Publicidade a jogos e apostas − Rien ne va plus, les jeux sont faits

Legislação

De acordo com o relatório divulgado pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (SRIJ), entre o primeiro trimestre de 2020 e o de 2021, verificaram-se 329,4 mil novos registos em jogos online, o que representa um aumento de 109%, sendo que 63,6% destes novos registos correspondem a jogadores com idade inferior a 35 anos.

Se o jogo online atrai, sobretudo, os mais jovens e qualificados, em matéria de jogos sociais, a preferência dos portugueses com habilitações e rendimentos mais baixos recai sobre outro jogo aparentemente inócuo − a raspadinha[1].

De resto, o estudo “Scratching the surface of a neglected threat: huge growth of Instant Lottery in Portugal”[2], lançado em 2020, revela que em Portugal se gastam mais de quatro milhões de euros por dia neste jogo, o que corresponde a um gasto médio por pessoa de 160 euros por ano, representando mais do dobro da média europeia.

Os autores do estudo em referência defendem que a raspadinha apresenta um conjunto de características que favorecem o estabelecimento de comportamento de jogo problemático ou patológico, como o preço baixo, a elevada acessibilidade e a rápida sensação de gratificação, praticamente instantânea. De resto, consideram que a publicidade, ao veicular a ideia de que neste jogo se pode ganhar muito com pouco, e a iliteracia sobre os riscos associados podem contribuir para potenciar o fenómeno.

Os dados são, por isso, preocupantes. O aumento generalizado do consumo de jogos, tendência acentuada durante a pandemia, fez disparar os riscos de prevalência de comportamentos aditivos. Neste contexto, a publicidade de jogos e apostas constitui apenas uma das frentes através das quais é possível atacar o problema, ainda que, na nossa perspetiva, deva ser acompanhada de outras medidas.

Em Espanha, no ano passado, foi publicado o Real Decreto 958/2020, de 3 de noviembre, de comunicaciones comerciales de las actividades de juego que fixa as condições para a publicidade, patrocínio, promoção ou qualquer outra forma de comunicação comercial por parte das entidades titulares de licenças para a realização de atividades de jogo incluídas no âmbito de aplicação da Ley 13/2011, de 27 de mayo, de regulación del juego, consagrando restrições bastante severas.

Com este regime, o horário permitido para divulgar anúncios de jogos na televisão, rádio e plataformas de vídeo passou a ser entre a 1h e as 5h da manhã.

De acordo com o diploma adotado na vizinha Espanha, no que concerne à publicidade nas redes sociais, os anunciantes devem segmentar o público-alvo das comunicações, de modo a que só possam ser enviadas a (i) pessoas que sigam as contas ou canais oficiais dos operadores de jogo em tais redes sociais, (ii) pessoas que tenham manifestado interesse ativo em atividades de jogo, desde que essas pessoas possam remover as preferências através de mecanismos permitidos pela rede social, e (iii) pessoas que se tenham registado num operador e façam parte da base de clientes existente.

Outras das medidas consagradas no regime que merece destaque consiste na proibição de atividades promocionais destinadas a atrair novos jogadores. Assim, as comunicações comerciais só podem ser dirigidas a clientes previamente registados nos sistemas dos operadores de jogo, isto é, que tenham uma conta aberta no operador de jogo relevante durante, pelo menos, 30 dias.

Já entre nós, a matéria da publicidade de jogos e apostas encontra-se regulada pelo art. 21.º do Código da Publicidade (CP), cuja redação é fruto da alteração operada pelo art. 3.º do Decreto-Lei n.º 66/2015, de 24 de abril, que aprova o Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online.

Ora, o art. 21.º-1 do CP determina que a publicidade de jogos e apostas deve ser efetuada de forma socialmente responsável, respeitando, nomeadamente, a proteção dos menores, bem como de outros grupos vulneráveis e de risco, privilegiando o aspeto lúdico da atividade dos jogos e apostas e não menosprezando os não jogadores, não apelando a aspetos que se prendam com a obtenção fácil de um ganho, não sugerindo sucesso, êxito social ou especiais aptidões por efeito do jogo, nem encorajando práticas excessivas de jogo ou aposta.

Para além desta norma genérica, o regime do art. 21.ºdo CP contempla regras vocacionadas essencialmente para a proteção dos menores, não estabelecendo, contudo, restrições quanto ao horário de emissão da publicidade a jogos e apostas.

Neste quadro, ainda em 2020, o Partido Comunista Português (PCP) apresentou o Projeto de Lei n.º 343/XIV/1.ª, com vista à introdução de restrições à publicidade nos jogos e apostas. Em concreto, propõe-se uma alteração ao art. 21.º do CP, proibindo a publicidade a jogos e apostas, em sítios e páginas na internet da responsabilidade de empresas e entidades com sede em Portugal, na televisão e na rádio e na imprensa escrita, entre as 7 horas e as 22 horas e 30 minutos.

Recentemente, já em 2021, foram apresentadas mais três iniciativas legislativas neste domínio.

Por via do Projeto de Lei n.º 919/XIV/2.ª, de 29 de julho de 2021, o Bloco de Esquerda (BE) também procura alterar o art. 21.º do CP, no sentido de proibir tout court a publicidade a lotarias instantâneas (raspadinhas) e, bem assim, proibir a publicidade a jogos e apostas, entre as 7 horas e as 22 horas e 30 minutos, independentemente do suporte utilizado para a sua difusão.

Nessa sede, propõe-se, ainda, que as comunicações comerciais e a publicidade de quaisquer eventos em que participem menores, designadamente atividades desportivas, culturais, recreativas ou outras, não possam exibir ou fazer qualquer menção, implícita ou explícita, a marca ou marcas de raspadinhas.

O Projeto de Lei n.º 951/XIV/3.ª, da autoria da Deputada não inscrita Cristina Rodrigues, apresentado a 24 de setembro de 2021, visa incluir uma advertência nos boletins dos jogos sociais quanto ao facto de serem passíveis de criar dependência, à semelhança do que já acontece com as embalagens de tabaco.

Em termos próximos aos da iniciativa do BE, também aqui se propõe que apenas seja possível publicitar este tipo de jogos depois das 22h30 minutos e até às 7 horas, assim como a revogação da norma do art. 21.º-7 do CP que exclui os jogos sociais do Estado da proibição de se fazer publicidade de jogos e apostas a menos de 250 metros em linha reta de escolas ou outras infraestruturas destinadas à frequência de menores.

Na mesma senda, através do Projeto de Lei  n.º 952/XIV/3.ª, de 24 de setembro de 2021, o Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) também propõe, tal como hoje já sucede com as bebidas alcoólicas, a restrição de publicidade a jogos e apostas, na televisão e na rádio, entre as 7 horas e as 22 horas e 30 minutos.

Conforme resulta deste último projeto, as entidades promotoras de jogos e apostas devem passar a ter de disponibilizar um mecanismo que permita a autoexclusão dos respetivos destinatários ou potenciais destinatários, medida atinente a reforçar os direitos e a proteção das pessoas mais vulneráveis a comportamentos aditivos.

O PAN pretende, ainda, que a publicidade passe a ser obrigatoriamente acompanhada de uma advertência para os riscos do uso excessivo do jogo e das apostas, sob a forma de mensagem informativa, e que se clarifique que as limitações legais de publicidade aos jogos e apostas, que atualmente estão consagradas no CP, se aplicam também às raspadinhas.

Ainda que com algumas diferenças entre si, as quatro iniciativas legislativas apresentadas assentam na restrição do horário de emissão de publicidade de jogos, com o fito de contrariar o incremento da sua procura e mitigar os seus efeitos sociais adversos.

A este propósito, cumpre ressalvar que a solução já consta do Manual de Boas Práticas à Publicidade de Jogos e Apostas, aprovado pela Comissão de Jogos, na reunião de 24 de abril de 2020, pese embora seja um instrumento de soft law[3].

Durante a discussão conjunta na generalidade, a 2 de outubro de 2021, o Partido Socialista (PS) defendeu que são necessários “mais estudos sérios e aprofundados, que permitam fazer um diagnóstico exaustivo dos padrões de jogo e de apostas”, sendo que podem “fazer sentido outras alterações ao código da publicidade de âmbito muito mais alargado”. Nessa ocasião, também o Partido Social Democrata (PSD) apelou a que se faça “uma intervenção mais vasta na prevenção e uma aposta de reforço de meios na saúde mental”, considerando que os problemas relativos à adição a jogos e apostas “vão muito além da alteração do código da publicidade”.

Entretanto, as quatro iniciativas legislativas baixaram à Comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação, para discussão sem votação, por 60 dias, na sequência dos requerimentos apresentados pelos seus autores.

Em face da decisão do Senhor Presidente da República de dissolução da Assembleia da República e de marcação de eleições legislativas antecipadas para 30 de janeiro de 2022, parece que teremos de aguardar eventuais avanços, neste plano, porventura, na próxima legislatura. Por ora, em linguagem de croupier: rien ne va plus, les jeux sont faits.


[1] A raspadinha corresponde à lotaria instantânea, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 314/94, de 23 de dezembro, que autorizou a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) a organizar e explorar, de modo exclusivo, este jogo, cujo Regulamento consta da Portaria n.º 552/2001, de 31 de maio.

[2] Daniela Vilaverde e Pedro Morgado, “Scratching the surface of a neglected threat: huge growth of Instant Lottery in Portugal”, in The Lancet, Volume 7, n.º 3, 2020.

[3] Cfr. Ponto 9 das Recomendações: “Na televisão e na rádio as comunicações comerciais e a publicidade a que se refere o presente artigo não deve ter lugar entre as 7 horas e as 22 horas e 30 minutos (…)”

Modalidades afins de jogos de fortuna ou azar – um regime de incerteza

Legislação

Sorteios ou giveaways, concursos publicitários e de conhecimento são algumas das mais conhecidas modalidades afins de jogos de fortuna ou azar, com as quais o consumidor se cruza no seu dia-a-dia, através dos mais variados suportes publicitários.

No fundo, trata-se de “operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémios coisas com valor económico predeterminado à partida”, conforme dispõe o art. 159.º, n.º 1 do Decreto-Lei 422/89, de 2 de dezembro (“Lei do Jogo”).

Assim, de acordo com esta definição, estão sujeitos ao regime das operações sob análise, não apenas os sorteios onde o elemento de sorte é predominante, como aqueles frequentemente organizados por marcas de produtos de cosmética, e publicitados por influenciadoras digitais, mas também todas as demais iniciativas, que atribuem prémios aleatórios de diferentes montantes e características, já que, também nesses casos, estará presente um elemento de sorte no que ao prémio a atribuir diz respeito.

Neste contexto, importa notar que o regime em questão é particularmente restritivo da liberdade dos operadores económicos, já que prevê uma proibição geral da exploração destas modalidades, por parte de entidades com fins lucrativos. Sem prejuízo, estão excecionados desta proibição os concursos de conhecimentos, passatempos ou outros, organizados por jornais, revistas, emissoras de rádio ou de televisão, bem como os concursos publicitários de promoção de bens ou serviços.

Acontece que a lei não define expressamente concursos publicitários de promoção de bens ou serviços, o que, na prática, esvazia de sentido útil a proibição referida, uma vez que qualquer ação deste género, levada a cabo por uma empresa com fins lucrativos, terá necessariamente a finalidade de promover bens ou serviços. Assim, bastará ao operador promover a ação num formato de concurso publicitário, para que a proibição mencionada não se lhe aplique.

Não obstante, está legalmente prevista uma barreira adicional, desta vez com um sentido prático inerente. Nomeadamente, por forma a levar a cabo uma modalidade afim de jogo de fortuna ou azar, os operadores económicos terão que obter uma autorização por parte da entidade competente, a qual avaliará a conformidade do regulamento da operação com as leis e diretrizes formais e estruturais aplicáveis.

É precisamente neste ponto que o regime aplicável às operações sob análise acaba por levantar mais questões.

Em primeiro lugar, como consequência de uma alteração ao regime em discussão, levada a cabo por meio do Decreto-Lei n.º 98/2018, de 27 de novembro, a entidade competente para autorizar deixou de ser a Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI), para passar a ser o presidente da respetiva câmara municipal (quando os jogos estejam circunscritos à área territorial do município), ou o presidente da câmara municipal da situação da residência ou da sede da entidade que procede à exploração da operação (quando não circunscritos à área territorial do município).

Sucede que, apesar de a transferência de competências se ter tornado efetiva a 1 de janeiro de 2021, facto é que muitos dos municípios ainda não regulamentaram as condições em que irão autorizar os regulamentos que lhes sejam apresentados, tarefa que lhes cabe, nos termos da Lei do Jogo.

Assim, o clima de incerteza neste contexto é acentuado, o que poderá levar a situações de incumprimento por parte das empresas (as quais poderão estar sujeitas à coima legalmente aplicável), e consequente desproteção do consumidor, que será alvo de práticas comerciais especialmente atrativas, sem que as mesmas sejam controladas por quem de direito.

Especialmente no contexto televisivo, não são raras as vezes em que o consumidor é alvo de práticas comerciais particularmente intrusivas da sua decisão de contratar, sendo estas, também não raramente, enquadráveis no contexto das práticas comerciais desleais. Um tema já analisado de forma mais aprofundada no blog, e consultável aqui.

Tal como referido no texto para o qual se remeteu, mantemos o entusiasmo enquanto aguardamos a intervenção do Grupo de Trabalho para a Revisão do Regime dos Concursos e Passatempos, conforme disposto no Despacho n.º 1620/2021, de 11 de fevereiro.

De notar que a intervenção deste grupo ambiciona implementar medidas de três ordens: proibir os concursos que recorram a números de telefone com custos acrescidos (os típicos 760 e 761), rever o regime de fiscalização das modalidades afins de jogos de fortuna ou azar e proibir a utilização de cartões de débito como prémios neste contexto.

Importa notar que apesar de desejada, a atualização deste regime está já atrasada, uma vez que resulta do Despacho sob análise que o Grupo de Trabalho constituído deveria apresentar conclusões capazes de implementar os objetivos propostos até ao dia 15 de abril de 2021.