Campanhas publicitárias de Natal e o abuso da vulnerabilidade infantil

Doutrina

Com a aproximação das festas de fim de ano é também chegado o período das luzes alucinantes, das músicas cativantes, das cores chamativas e da exploração do lúdico infantil. Por consequência, é também chegado o momento das campanhas de Natal voltadas especificamente a estimular o consumo massivo de produtos e serviços, justamente no período em que muitas das famílias assistem em seus lares ao recebimento das tão esperadas bonificações financeiras de fim de ano.

Voltadas a atrair a atenção de todo e qualquer consumidor durante os meses de novembro e dezembro, as campanhas de promoção de vendas de Natal são difundidas de forma ainda mais assertiva e por vias cada vez mais expansivas para atingir um número maior de consumidores. Merece, entretanto, especial atenção a publicidade que, neste período, faz uso de um grande apelo psicológico voltando-se às crianças.

De repente, temos bonecas, carrinhos, computadores portáteis, roupas, sapatos, jogos e um infindável número de produtos a despontarem exponencialmente nas listas infantis para o “Papai Noel”, se revelando, curiosamente, logo a seguir a anúncios publicitários que apontam para a necessidade de compra.

Explorando o uso de ferramentas de captação da atenção por meio de estímulos auditivos e visuais, esta modalidade de publicidade explora o desenvolvimento psicológico e cognitivo das crianças, exigindo-lhes o processamento, para além de experiências sensoriais, das perceções relacionadas ao consumo. Não são apenas luzes a piscar e músicas a tocar para atrair crianças, mas também o acompanhamento do processo de formação da figura “criança-consumidora” que está envolvida neste trabalho publicitário.

De acordo com o trabalho desenvolvido por Mônica Almeida Alves, nomeadamente, Marketing infantil – um estudo sobre a influência da publicidade televisiva nas crianças, ainda em 2011, as crianças ultrapassam quatro fases no crescimento enquanto consumidoras, sendo a primeira relacionada à observação do espaço e conduta de compra normalmente realizada pelos pais. Já a fase a seguir, próxima aos 2 anos, envolve a capacidade de conexão entre publicidade por imagem e produtos expostos fisicamente no mercado. Na terceira fase, já próxima dos 4 anos, por sua vez, as crianças detêm, de forma mais clara, o conhecimento sobre a relação entre publicidade, produto e loja, passando a possuir uma lista de anseios que parte no desejo, mas só é levada a cabo com a aquisição do produto.

Por fim, já inseridas em uma quarta fase, as crianças passam a ser consumidoras, adquirindo diretamente elas próprias, ou já identificando claramente, por meio de pedidos direcionados aos pais, os produtos que poderiam vir a lhes satisfazer os anseios.

Acompanhando este processo de desenvolvimento, as agências publicitárias e empresas percebem o enorme potencial relacionado às crianças, sobretudo se visto sob uma perspetiva futura de que os “pequenos” de hoje, tornar-se-ão “grandes consumidores” dentro de alguns anos. Trata-se de uma fidelização a longo prazo voltada não somente a produtos infantis, mas à captação psicológica de potenciais consumidores.

Mais ainda, como fator agravante para este cenário, ressalta-se o fato de que para além dos meios televisivos, atualmente as crianças possuem como vício os programas emitidos também via streaming, na Internet e nas telas de seus computadores ou ainda de seus smartphones. Vale dizer, cada dia mais, as publicidades voltadas a jovens e crianças assentam-se na exploração do reconhecimento público e na definição da identidade almejada nesta fase da vida.

Ainda que a publicidade voltada aos jovens e crianças tenha elementos identificadores próprios, como o aludido uso de cores, sons e animações, não precisamos mais do que cinco minutos diante de um anúncio para perceber que algumas características comuns a toda a espécie de propaganda se repetem. Este é o caso especialmente notável do denominado “efeito priming”, que se trata de uma ação cerebral de reprocessamento de informações já contidas na memória sobre determinados produtos, marcas ou serviços e decorrente da constante repetição do estímulo publicitário em diferentes formatos e vias, provocando-nos emoções e sentimentos até mesmo nostálgicos.

Ferramentas psicológicas nesse sentido, obviamente, não reguladas em lei, são utilizadas de forma muito mais evidente nas propagandas de final de ano, justamente para estimular a fixação a longo prazo da marca ou produto. É como lembrar das músicas que nossas avós nos cantavam nas noites de Natal, mas desta vez com slogans de uma marca que nos pareçam engraçados ou ainda com o jingle de fim de ano em algum supermercado ou loja de mobiliários que, passados anos, nunca nos sairão da cabeça. E é este mesmo o propósito.

Ocorre, entretanto, que a nível legal, desde 2007, o Parlamento Europeu vem tratando de coordenar os Serviços de Comunicação Social e Audiovisual oferecidos pelos Estados-Membros, como se denota através da Directiva 2007/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007. Mais ainda o Código da Publicidade de Portugal, que vem a estabelecer diferentes tipos de regras relacionadas à publicidade, tem especial secção voltada às restrições ao conteúdo da publicidade com detido cuidado sobre o tema “menores”.

Através de seu Art.14º, o Código determina que a publicidade especialmente dirigida a menores deve ter sempre em conta a sua vulnerabilidade psicológica, abstendo-se de explorar suas fragilidades. Deverá ainda a propaganda abster-se de explorar a inexperiência e falta de maturidade típica do grupo destinatário. E, por fim, não poderá ainda explorar a confiança que as crianças e jovens venham a depositar em seus pais ou tutores, denotando, nomeadamente, que fica impedido o uso de ferramentas publicitárias que distorçam a confiança existente entre pais e filhos, na tentativa de persuasão em favor da aquisição de um produto ou serviço.

Indo ainda um pouco mais longe, vemos que o Art. 12°, e) do Regime das Práticas Comerciais Desleais, por sua vez, consagra como prática agressiva em qualquer circunstância “incluir em anúncio publicitário uma exortação directa às crianças no sentido de comprarem ou convencerem os pais ou outros adultos a comprar-lhes os bens ou serviços anunciados”.

Não sugerimos desligar a TV, retirar das crianças os aparelhos telefônicos, nem mesmo impedi-las de viver e associar tudo o que lhes será demonstrado e oferecido durante o processo de desenvolvimento, crescimento e sociabilização. Não! Mas para já, fica reforçada a necessidade de detida atenção na influência que a psicologia publicitária possa ter sobre os menores.