Será consumidora uma pessoa que adquire um imóvel para arrendamento?

Jurisprudência

No passado dia 24 de outubro, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu uma decisão no âmbito do Processo C-347/23 (Caso Zabitoń). O caso centra-se na interpretação do conceito de consumidor numa situação em que duas pessoas casadas (LB, agente da polícia, e JL, diretora de uma escola) adquirem um bem imóvel, celebrando um contrato de crédito hipotecário para o efeito, com a intenção de obter rendimentos do imóvel por via do seu arrendamento posterior.

O TJUE examina se os membros deste casal podem ser enquadrados na categoria de consumidor, à luz do direito europeu, beneficiando da legislação mais protetora que é conferida a este, nomeadamente pela diretiva das cláusulas abusivas.

Destaca-se que o conceito de consumidor, de acordo com o direito europeu, se aplica, em regra, a pessoas singulares que adquirem bens ou serviços para fins pessoais, ou seja, alheios a uma atividade profissional. Assim, a motivação dos compradores é analisada com vista a determinar se o ato de aquisição de um imóvel com a finalidade de o arrendar lhe retira o caráter de consumo pessoal, transformando-o numa atividade profissional.

O TJUE decide que, apesar do objetivo de obter proveito com o arrendamento, os membros do casal devem ser considerados consumidores. O tribunal argumenta que a aquisição do imóvel não ocorre no âmbito de uma atividade profissional contínua e organizada. Assim, o simples facto de obter uma vantagem económica não transforma os compradores em profissionais. Não existindo uma intenção de exercer uma atividade imobiliária contínua, o negócio é enquadrado como um ato de consumo.

O TJUE realça a importância de uma interpretação do conceito de consumidor que garanta a segurança jurídica e a proteção no mercado. O tribunal opta, assim, por proteger o casal, considerando que a aquisição se traduz numa típica relação de consumo, não tendo os compradores experiência profissional no setor imobiliário nem atuando com caráter de habitualidade. Visa-se apenas, citando o acórdão, “consolidar o seu património privado”, sendo “uma forma de investimento” (ponto 33).

Esta decisão é bastante revelante, uma vez que a solução adotada não era evidente. Com efeito, o imóvel fora, neste caso, adquirido como um investimento, com vista à obtenção de rendimentos, o que poderia aproximar o negócio de uma atividade profissional, que se caracteriza precisamente pela finalidade lucrativa. Concorda-se, no entanto, com a decisão, na medida em que se tratou de um ato isolado, único[1], não revelando o exercício de uma atividade profissional, com regularidade. O arrendamento tem, na verdade, caráter regular, mas está aqui em causa o contrato de compra e venda do imóvel. O casal pretendia apenas fazer um investimento ao comprar o imóvel, colocando o seu património a render, sem ter conhecimentos específicos na área em causa. Julgo que a decisão poderia já ser outra se o casal comprasse um segundo imóvel para arrendar ou tivesse já outros imóveis arrendados. Aí se deverá, na minha perspetiva, traçar a fronteira entre ser ou não consumidor (ou não ser ou ser profissional, respetivamente).

É interessante notar que, no contrato de arrendamento, também não se poderá, reflexamente, considerar o casal (senhorio) como profissional, não se aplicando, portanto, a legislação de consumo. A qualificação como consumidor no contrato de compra do imóvel (e no contrato de crédito hipotecário associado) tem, portanto, o importante efeito de não se proteger como consumidor uma outra pessoa (inquilino) numa outra relação ligada a esta.

Podemos concluir deste caso, em suma, que o investimento ainda pode ser considerado consumo se não tiver caráter regular.


[1] No ponto 11 da decisão, refere-se que “os demandantes no processo principal não deram de arrendamento outros bens imóveis”.

O consumidor como produtor de informação

Doutrina

A proteção do consumidor nasce da constatação de que na sociedade de consumo em massa o cliente individualmente considerado se encontra numa posição de fragilidade em relação ao produtor e ao vendedor. Estes, além de provavelmente mais ricos e poderosos, estariam na posse de informação fundamental para que o comprador tivesse a oportunidade de formar adequadamente a sua vontade de adquirir certos bens ou serviços. Estará aqui a principal justificação para muito da legislação de defesa do consumidor assentar uma parte relevante do seu regime de proteção, na obrigação de ser transmitida informação ao tal ser estereotipado: o consumidor.

Há muito que se encontra cientificamente demonstrado que grande parte das decisões humanas não são ponderadas. Não se trata de falta de informação, trata-se do modo como o cérebro humano usualmente funciona. A economia comportamental, que combina a vertente económica com as ciências cognitivas, estudou detalhadamente o fenómeno.  Por todos, podemos ler “Pensar, depressa e devagar”, de Daniel Kahneman que questionou o modelo racional de tomada de decisões e de formulação de juízos. Licenciado em matemática e psicologia pela Universidade de Telaviv, posteriormente doutorado em psicologia pela Universidade de Berkeley, ganhou em 2002 o (mal) denominado Prémio Nobel da Economia “Por integrar aspetos da pesquisa psicológica sobre o comportamento económico do homem em situações de incerteza e a tomada de decisões nessas circunstâncias”.

Este livro, acessível a leigos, é mais que suficiente para se ficar sem grandes dúvidas sobre o processo mental usualmente subjacente à quantidade descomunal de decisões que o ser humano tem de estar sempre a tomar. A decisão rápida, digamos que instintiva, instantânea, impensada, inconsciente, é a regra e não a exceção.

Mesmo que não existissem estudos a evidenciar esta realidade, uma simples observação atenta dum consumidor médio por um jurista médio, há muito que permite concluir que dar-lhe informação pode ser infinitamente pouco se, efetivamente, se pretende protegê-lo. Bastaria, até, que cada um de nós observasse a sua própria atitude face ao modo como emite os “Aceito” todos os dias, para suspeitar da pouca eficácia da informação acessível.

Paradoxalmente, o aumento da quantidade de informação, quanto mais não seja por manifesta falta de tempo, parece contribuir mais para a desresponsabilização de quem a entrega do que para a formação da vontade de quem a recebe. O Manifesto contra a subversão do contrato, de Margarida Lima Rego, apresenta com veemência esta realidade, em contexto financeiro e meio digital. O assunto foi também abordado neste blog por Jorge Morais Carvalho, a propósito da adesão a contratos celebrados com recurso a cláusulas contratuais gerais. No limite, sabendo-se que os clausulados não são, nem podem razoavelmente ser, lidos por pessoas diligentes, a incerteza associada ao seu efetivo conteúdo é grande.

Embora as evidências científicas e de senso comum mostrem à saciedade, e também à sociedade, que esta coagida dádiva, menos em linha com a convicção, que em automática inserção de novos formulários aptos a serem em bloco e acriticamente “aceites”, não funciona, o “legislador” insiste em fazer assim, principalmente por não saber fazer doutra maneira. No limite, não prescindindo da soterração e saturação do consumidor e da desresponsabilização do produtor/prestador de serviços que, através da entrega de informação sobre os defeitos e insuficiências do que vende, pode responder menos pela falta de qualidades, diversa legislação distingue o mais importante do menos, estabelece hierarquias, impõe formulários de informação uniforme, sinalética visual mais ou menos colorida, tudo com vista a proporcionar a esse idílico ser racional, o consumidor, os instrumentos intelectuais de que necessita para fazer, contra toda a probabilidade e informação científica, uma escolha ponderada, tanto na necessidade como na qualidade, pensando se realmente precisa do que vai adquirir e comparando caraterísticas, preços, condições dos contratos, garantias, tudo, tudo, de vários produtos ou serviços semelhantes, para escolher mesmo bem. Exercício, atualmente, repetido muitas vezes ao longo do dia, intercalado por tomadas de conhecimento e aceitação de políticas de privacidade, mais especificamente “cookies”, e de proteção de dados, os mais recentes fornecedores de listas de declarações paralelas, mas integrantes da relação comercial.

O “direito à informação” é, assim, um dos grandes pilares da defesa do consumidor e, no essencial, usa-se quando meios realmente eficazes não estão disponíveis para o proteger.

Até há relativamente pouco tempo, ao falar-se de informação e de consumidor, o verbo mais usado era o “dar”. O profissional obrigado a dar e o consumidor obrigado a receber, sob pena de poder vir a ser considerado desleixado, pouco diligente, abaixo de “médio”, o que lhe retiraria alguma proteção.

Há, no entanto, que assinalar que os tempos mudaram e atualmente o consumidor, além de recetor, passou a produtor intensivo de informação. Tanto online, como no mundo físico, embora em ambiente digital a recolha, registo e tratamento de dados assuma maiores proporções.

As pessoas, pelo simples facto de se movimentarem em sociedades industrializadas e conectadas, usando sistematicamente dispositivos digitais, principalmente o telemóvel, criam informação, sobre si próprias e sobre o mundo, que é usada pelas empresas e pelo Estado.

Essa informação tem valor e vem suscitando já vasta discussão sobre se deverá ou não ser paga, bem como sobre a ideia de gratuitidade de produtos ou serviços que acabam por ter como “contrapartida”, dados sobre quem os adquire. Martim Farinha analisou o conceito de pagamento neste blog, no contexto da Diretiva das Praticas Comerciais Desleais.

Parece, pois, que no que diz respeito à informação, o consumidor tem o direito e o dever de a receber, ainda que daí não resulte benefício efetivo para nenhuma das partes. Uma espécie de óleo de fígado de bacalhau que tem de ser dado por uns e engolido por outros, perpetuando-se a tradição. É o consumidor como recetor de informação.

O consumidor como produtor de informação é algo novo, diferente, desafiante. Apetece perguntar várias coisas a esse respeito. Neste contexto, pergunta-se simplesmente: será que o consumidor ao receber pela informação que produz, em dinheiro ou géneros (produtos e/ou serviços), se torna “profissional”?

A produção de informação é uma atividade, de algum modo, comercial a que o consumidor moderno se vai dedicando bastante.

Quem pode escrever no Livro de Reclamações?

Jurisprudência

No final do ano transato, o Tribunal da Relação do Porto (TRP) pronunciou-se sobre recurso de sentença que, mantendo decisões administrativas da ASAE, aplicou à sociedade arguida duas coimas no valor de € 3.750,00/cada, pela prática da contraordenação prevista no art. 3.º-1-b) do DL n.º 156/2005, de 15 de setembro, e condenou a mesma, após cúmulo jurídico, numa coima única, de € 5.000,00.

Fazendo uma síntese da demanda em causa, de acordo com os factos provados, na madrugada de 19.11.2017, os participantes “C” e “G” quiseram aceder ao interior de estabelecimento (discoteca), aberto ao público e em funcionamento, explorado pela sociedade arguida, o que foi negado por porteiro daquela. Ato contínuo, cada um dos participantes solicitou o Livro de Reclamações, o qual também lhes foi negado pelo funcionário, pelo que, a pedido dos denunciantes e ao abrigo do disposto no art. 3.º-4 do DL n.º 156/2005, uma patrulha da PSP deslocou-se ao local, sem que, contudo, tenha logrado remover a recusa da sociedade arguida em facultar o Livro de Reclamações, nesta ocasião manifestada pelo gerente daquela.

Nas conclusões das alegações de recurso, a sociedade arguida defendeu, no essencial, que, para efeitos do DL n.º 156/2005, os participantes “C” e “G” não podiam ser qualificados como “consumidores ou utentes”, na medida em que tal qualificação jurídica pressupõe a conclusão de uma relação de consumo com o profissional, o que, no caso, não chegou a verificar-se, donde faltaria pressuposto constitutivo do “direito a reclamar” dos referidos denunciantes.

Ora, em face das conclusões do recurso, a questão a resolver pelo TRP consistia em aferir se os participantes “C” e “G” deviam (ou não) qualificar-se como “consumidores ou utentes”, atento o facto de não terem sido admitidos a ingressar no interior do estabelecimento explorado pela sociedade arguida.

A este respeito, o TRP, subscrevendo integralmente a sentença recorrida, começou por apelar à ratio legis do DL n.º 156/2005 expressa no seu Preâmbulo, onde se pode ler o seguinte: “[o] livro de reclamações constitui um dos instrumentos que tornam mais acessível o exercício do direito de queixa, ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu. (…) A justificação da medida (…) prendeu-se com a necessidade de tornar mais célere a resolução de conflitos entre os cidadãos consumidores e os agentes económicos, bem como de permitir a identificação, através de um formulário normalizado, de condutas contrárias à lei. É por este motivo que é necessário incentivar e encorajar a sua utilização, introduzindo mecanismos que o tornem mais eficaz enquanto instrumento de defesa dos direitos dos consumidores e utentes de forma a alcançar a igualdade material dos intervenientes a que se refere o artigo 9.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho” [negrito nosso]. Como se refere, muito assertivamente, no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.03.2010, “[o] princípio base que sustenta a exigência do livro de reclamações vai assim muito além da mera possibilidade de em concreto ser dado ao utente/cliente a possibilidade de ver o seu caso concreto ser resolvido, na medida em que está subjacente em toda a evolução legislativa a garantia de uma boa prestação de serviços ao consumidor em geral nomeadamente, na possibilidade de fiscalização efectiva do modo como se prestam os serviços”. Ademais, coloca-se também a necessidade de enfrentar, adequadamente, a tendencial resistência dos fornecedores de bens e prestadores de serviços a proceder à imediata entrega do Livro de Reclamações aos utentes ou consumidores que dele pretendam fazer uso.

Neste encalço, prossegue o aresto em análise, com apoio no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 03.04.2017, exaltando que, da interpretação e aplicação conjugadas dos n.ºs 1 e 3 do art. 3.º do DL n.º 156/2005 resulta que o dever de o fornecedor de bens ou prestador de serviços apresentar imediatamente ao consumidor ou utente o Livro de Reclamações não se compadece com qualquer espécie de condicionamento, nomeadamente “considerações sobre os motivos das reclamações ou a legitimidade de quem as apresenta”. Tais aspetos apenas podem ser suscitados e discutidos no âmbito do procedimento espoletado pelo preenchimento da folha de reclamação, porquanto o profissional “não pode ser juiz de si próprio, estando-lhe absolutamente vedada a recusa de apresentação do livro seja com que fundamento for”.

E quanto à questão da alegada falta de qualidade subjetiva de “utentes ou consumidores” suscitada em relação aos participantes, estribando-se no disposto pelo art. 2.º-1 do DL n.º 156/2005, o TRP adere ao entendimento segundo o qual a disciplina normativa daquele diploma “(…) está concebida para as situações em que os estabelecimentos se encontram abertos ao público e em funcionamento e em que o consumidor está em condições de adquirir o bem ou serviço”, com vista à manutenção de “relações de clientela”, o que, como é bom de ver, não pode ter lugar na hipótese de o estabelecimento se encontrar encerrado (inaplicável na situação dos autos), mas já se verifica no cenário, alternativo, de uma pessoa ingressar no interior de uma loja física imbuída do espírito de realizar alguma compra, mas não chegar a fazê-lo. Nesta segunda situação conjeturada, apesar de não chegar a haver lugar à celebração de uma relação jurídica de consumo, não deixamos ter um “consumidor” para os efeitos do DL n.º 156/2005, a quem assiste, de modo inequívoco, o direito a solicitar a apresentação imediata do Livro de Reclamações.

Por conseguinte, e em suma, para efeitos de delimitação do âmbito subjetivo de aplicação do DL n.º 156/2005 – e exclusivamente para estes efeitos, atenta a definição diversa apresentada no art. 2.º-1 da Lei-Quadro de Defesa do Consumidor – deve entender-se por consumidor “toda e qualquer que pessoa com interesse em adquirir um produto ou serviço, e que com esse propósito se dirige a um estabelecimento de venda de bens ou prestação de serviços” – como preconizado no acórdão aqui em análise –, abarcando esta noção os “potenciais clientes” que apenas pretendem que lhes seja prestado um serviço ou fornecido um determinado bem, ainda que tal, efetivamente, não tenha lugar, donde tal qualidade não podia deixar de ser reconhecida aos participantes “C” e “G”, os quais apenas não acederam ao interior do estabelecimento da sociedade arguida porque esta lhes vedou o ingresso.

Carlos Ferreira de Almeida e o Direito do Consumo

Recensão

Não tive a honra de ser aluno do Professor Carlos Ferreira de Almeida nem sequer de o conhecer pessoalmente. Sei, porém, que o seu desaparecimento, no início de fevereiro último, marcou, de modo indelével, uma plêiade de juristas (e não juristas) que tiveram o privilégio de conviver e beber da inteligência e sabedoria do Professor e, como tal, guardam uma imensa saudade do insigne Mestre.

Em particular, colegas e estudantes da NOVA School of Law conservam uma dívida de gratidão para com o Professor Carlos Ferreira de Almeida por, ao lado de Diogo Freitas do Amaral, ter contribuído decisivamente para a criação desta Faculdade de Direito, integrando a sua Comissão Instaladora, no âmbito da qual assumiu um papel crucial na criação do seu curso de Doutoramento – então, uma novidade no cursus honorum dos académicos das Leis –, e na fundação da Unidade de Mediação e Acompanhamentos de Conflitos de Consumo (UMAC), que antecedeu ao NOVA Consumer Lab.

Como sublinhou Marcelo Rebelo de Sousa em mensagem evocativa publicada no sítio da internet da Presidência da República, a par de “diversas funções públicas de relevo” que desempenhou, o Professor Carlos Ferreira de Almeida foi um “jurista distinto”, “por todos respeitado e admirado pelas suas qualidades científicas e pedagógicas”, que, como todos os grandes cultores das Artes e das Letras, para lá da lei da morte, deixa uma “vasta e marcante obra” literária, que continuará a formar gerações de estudantes e profissionais do Direito.

Neste sentido, reportando-me à experiência pessoal, comecei a contactar com a produção científica do Professor Carlos Ferreira de Almeida no início do meu estágio de advocacia, pela mão do meu patrono, Paulo Duarte, por sorte um reconhecido estudioso e entusiasta do Direito do Consumo, que, em inúmeras ocasiões, me incitou a mergulhar na leitura e análise atentas de alguns dos principais manuais do aqui homenageado, nomeadamente os vários volumes da obra “Contratos” e a sua tese de Doutoramento “Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico”, publicada em dois volumes, que, nas palavras do meu patrono, constitui um dos maiores monumentos da ciência jurídica portuguesa, de passagem obrigatória na formação contínua de qualquer jurista luso.

Mais recentemente, graças ao contributo inestimável do Professor Jorge Morais Carvalho, tive a oportunidade de proceder à leitura integral de outras duas obras que, em diferentes estádios da afirmação do Direito do Consumo, se assumem como verdadeiros marcos incontornáveis na doutrina jurídico-consumerística, a saber: “Os Direitos dos Consumidores”, publicado em 1982, e “Direito do Consumo”, dado à estampa em 2005, ambos editados pela Almedina.

Assumidamente influenciado pelas lições do grego Simitis (“Verbraucherschutz, Schlagwort oder Rechtsprinzip?” – numa tradução livre, “Proteção do consumidor, bordão ou princípio jurídico?”) e do alemão Reich (“Markt und Recht: Theorie u. Praxis d. Wirtschaftsrechts in d. Bundesrepublik Deutschland – numa tradução livre, “Mercado e Direito: Teoria e Prática do Direito Empresarial na República Federal da Alemanha”), em 1982, Ferreira de Almeida brindou-nos com a primeira obra jurídica de fundo dedicada aos direitos dos consumidores (e não ao Direito do Consumidor, designação que sempre rejeitou, por circunscrever o tratamento das situações jurídicas de consumo a um dos conceitos subjetivos – que não o único – nelas considerados). A partir da leitura e exame desta obra, conseguimos percecionar as preocupações emergentes nos finais dos anos 70 e inícios dos anos 80, espelhadas, superlativamente, pelos textos da “Carta do Conselho da Europa sobre a Proteção do Consumidor” (Resolução n.º 543 de 17 de maio de 1973), do “Programa Preliminar da Comunidade Económica Europeia para uma política de proteção e de informação dos consumidores” (Resolução do Conselho de 14 de abril de 1975) e do “Segundo Programa da Comunidade Económica Europeia para uma Política de Proteção e de Informação dos Consumidores” (Resolução do Conselho de 19 de maio de 1981) – cláusulas abusivas em contratos-tipo; vendas agressivas; condições abusivas de crédito; vendas de bens não solicitados; responsabilidade do produtor (esta última, ainda hoje, com um regime objetivamente insatisfatório) –, bem como o catálogo de direitos fundamentais neles previstos, o qual serviu de base para a organização sistemática das matérias de direito substantivo e processual abordadas, sempre com encadeamento lógico, pelo Professor.

Numa breve afloração do conteúdo da obra ora em apreço e de entre os muitos aspetos dignos de destaque, pela sua relevância teórico-prática (aqui, considerando que o Professor nunca acreditou numa distinção rígida entre teoria e prática, seja no ensino universitário, seja na investigação científica, a qual, na sua perspetiva, sempre devia versar sobre situações reais da vida quotidiana em detrimento dos artificialismos que, amiúde, apaixonam os académicos, encerrados nas suas torres de marfim), tomamos a liberdade de enfatizar os seguintes: a exposição dos sistemas de controlo (judicial, administrativo e misto) das cláusulas abusivas integradas nos contratos-tipo, suas vantagens e deméritos, a qual reveste de extremo interesse para a análise crítica da solução normativa do art. 3.º da Lei n.º 32/2021, de 27 de maio, ainda a aguardar a necessária regulamentação; a exaltação da lesividade para o consumidor associada à prática de preços impostos verticalmente e de preços aconselhados, assim como dos limites à liberdade de fixação dos preços, nomeadamente, a sua determinabilidade objetiva, a não discriminação entre clientes (hoje, frequentemente posta em crise, com a prática de personalização de preços) e a proibição do “dumping”; a equiparação “tout court” do cumprimento defeituoso ao incumprimento contratual e o apelo à noção de desconformidade em sentido lato (por influência da Convenção de Haia de 1964 sobre a Compra e Venda e a Convenção de Viena sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias de 1980) para o tratamento da venda de bens de consumo defeituosos; a consideração da assistência pós-venda satisfatória como dever integrado no normal cumprimento dos contratos de fornecimento de bens de consumo; a demonstração dos inconvenientes da aplicação “tout court” dos princípios fundamentais do processo civil à resolução de litígios de consumo, concretamente, o princípio dispositivo, o princípio da igualdade (uma “pura abstração”) e as regras gerais de repartição do ónus da prova; a preocupação em salientar a inibição dos consumidores perante a ação judicial, determinada, esta, pelas despesas com o processo, pela morosidade e pelo “calão jurídico profissional”; a preocupação em abordar e sustentar a importância de criação de estruturas especializadas para resolução dos litígios de consumo com tramitação processual simplificada (além de simplificação das provas e maior peso do princípio inquisitório), que privilegiem a definição da competência territorial em função do domicílio do consumidor e que não sirvam de instrumento ao serviço da cobrança de dívidas pelas empresas; a constatação do papel de destaque (então) conferido às associações de defesa dos consumidores (sobretudo as de estatuto pleno) na tutela coletiva dos direitos do sujeito mais débil da relação jurídica de consumo e ao nível da participação na tomada de decisões político-legislativas; a crítica à desconsideração do pequeno valor que, tipicamente, assumem as ações relativas a litígios de consumo para efeitos de assistência judiciária, já então marcada pela incapacidade de assegurar compensação adequada aos advogados envolvidos no sistema de acesso aos direito e aos tribunais; a inadmissibilidade do “dolus bonus” nos negócios jurídicos de consumo; o destaque e tratamento conferidos ao elemento relacional para caracterizar o negócio jurídico (e não apenas o contrato) de consumo (assim abarcando figuras como a proposta contratual, a oferta ao público, o negócio a favor de terceiro e a responsabilidade extracontratual); a promoção da extensão da relação de consumo aos membros do agregado familiar que vivem com o sujeito adquirente em economia comum (relevante, por exemplo, para a admissibilidade de ressarcimento de danos reclamados por pessoa diferente do titular do contrato de fornecimento de energia elétrica em caso de interrupção ilícita do serviço); a caracterização da natureza (tríplice) dos direitos dos consumidores consagrados na Lei de Defesa do Consumidor de 1981 como “direitos económicos gerais” em relação ao Estado (e que dele requerem a sua concretização como incumbências prioritárias, nos termos da alínea i) do art. 81.º da CRP), “direitos coletivos” (na promoção e tutela de interesses difusos) e direitos subjetivos (oponíveis aos profissionais, nas relações diretas com eles mantidas); e o não reconhecimento de autonomia científica ao Direito do Consumo, antes tratando-o como um tema de Direito Económico (quanto aos “direitos económicos gerais” e aos “direitos coletivos”) e de Direito Comercial e Civil (quanto aos “direitos subjetivos”).

Volvidos 23 anos, embora continuando a negar a sua autonomia científica, o Professor Carlos Ferreira de Almeida embarcou em nova deambulação pelo Direito Privado do Consumo, que veio a conquistar um merecido lugar de entre os manuais obrigatórios no estudo universitário das relações jurídico-consumerísticas. Adotando uma estrutura peculiar na exposição das matérias, diversa daquelas que, habitualmente, encontramos em manuais similares, mas que conserva, a todo o momento, uma conexão e encadeamento lógicos entre temas, é de imperiosa justiça enaltecer, em primeiro lugar, a preocupação do Professor em desenvolver, sempre que pertinentes, exercícios de Direito Comparado, seja para compreensão dos antecedentes legislativos que inspiraram os diplomas em análise, seja para retratar as soluções vigentes nos principais ordenamentos das famílias romano-germânica e anglo-saxónica.

Ademais, a par de outros méritos de que a obra é merecidamente credora, ousamos destacar: o aprumo e rigor técnico-jurídico no tratamento da figura do direito de arrependimento, sua natureza e efeitos, consoante o modelo (de eficácia suspensiva ou de eficácia resolúvel) em causa, distinguindo-a de realidades afins, particularmente, a faculdade de retratação; a preocupação em exaltar que os habitualmente identificados deveres de comunicação e de informação, consagrados nos arts. 5.º e 6.º do DL n.º 446/85, de 25 de outubro, se assumem, na verdade, como ónus, cujo incumprimento determina a consequência desfavorável da não inclusão, no contrato, de cláusulas contratuais (gerais); a arrumação dos padrões relevantes para a qualidade da coisa vendida, distinguindo entre requisitos objetivos e subjetivos, em termos próximos daqueles que, previsivelmente, passarão a constar do decreto-lei de transposição das Diretivas 2019/770 e 2019/771, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, sobre certos aspetos relativos aos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais e relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens, respetivamente; o tratamento das mensagens publicitárias como cláusulas contratuais gerais para efeitos da sua inserção nos contratos singulares (art. 2.º do DL n.º 446/85), o que parece ter sido ignorado pelo legislador nacional aquando da adoção da já referida Lei n.º 32/2021; a caracterização da conformidade, com recurso a uma fórmula de suma eloquência, como relação deôntica entre o ser (referente) e o dever ser (referência), reconduzindo-a ao cumprimento da obrigação de entrega; e a aplicação da figura da promessa pública para caracterização da declaração ou compromisso de garantia comercial/voluntária.

Uma derradeira consideração importa dedicar ao prognóstico desenvolvido nesta segunda obra quanto ao futuro do Direito do Consumo, entre a sua autonomização e a diluição no direito comum, que suscitou em mim um interesse particular, atenta a evolução conhecida desde a elaboração da obra, nomeadamente quanto ao conceito de consumidor (predominando, aqui, a conceção estrita, pelo menos ao nível do Direito da União Europeia, em que releva o elemento subjetivo) e quanto ao caminho trilhado no sentido da harmonização legislativa máxima (ainda que com recurso a diretivas comunitárias), factores que, segundo o autor, concorrem para o progresso em caminhos opostos.

Remetendo-me à minha humilde condição de curioso por algumas das temáticas acima afloradas, que captam a atenção e alimentam a paixão dos verdadeiros cultores do Direito do Consumo, por tudo quanto expus (e muito mais havia a exaltar!), vergo-me perante a memória do Professor Carlos Ferreira do Almeida e convido todos quantos seguem o projeto NOVA Consumer Lab nas plataformas digitais a escutarem (ou voltarem a escutar) a entrevista que o insigne Mestre concedeu ao NOVA Consumer Podcast, no ano transato, a qual constitui um valioso e inspirador documento para todos os membros desta equipa.

Até sempre, Professor!

Em busca de um conceito jurisprudencial de consumidor

Jurisprudência

Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2019

Uma das questões mais caras e importantes no âmbito do direito do consumo é, sem dúvida, a do conceito de consumidor. Sem sabermos o que se deve entender por consumidor, nunca saberemos que relações jurídicas estão abrangidas pelas normas deste “sub-ramo jurídico”. 

No ordenamento português, inexistindo um código e estando a  legislação de direito do consumo dispersa por vários diplomas legais, cada diploma, ao delimitar o seu âmbito de aplicação (subjetivo), contém uma definição de consumidor. Não existe, portanto, um conceito único de consumidor, quer a nível nacional quer a nível internacional.

Se o legislador não conseguiu ou não quis uniformizar a noção de consumidor, também a jurisprudência tem revelado flutuações acentuadas quanto à interpretação das várias normas legais que a definem. 

E não se pense que a discussão se restringe às definições constantes de diplomas de direito do consumo. Inusitadamente, uma das mais profícuas querelas quanto ao que se deve entender por consumidor surgiu e desenvolveu-se no âmbito da graduação de créditos em insolvência.

Tudo “começou” quando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2014 uniformizou jurisprudência no sentido de que, “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no art. 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.

Em suma, estava em causa saber se num contrato promessa incumprido pela promitente vendedora insolvente, o promitente-comprador que seja consumidor e a quem foram transmitidos os imóveis objeto do contrato meramente obrigacional, goza do “direito de retenção” sobre os mesmos para pagamento dos seus créditos, prevalecendo assim sobre outro crédito hipotecário que sobre eles incidia. 

A decisão do STJ foi claramente favorável à posição do consumidor ante a dos credores hipotecários (em regra, entidades bancárias), imbuído do espírito legislativo que deu origem à inclusão da referida al. f) ao n.º 1 do artigo 755.º do Código Civil. Como se pode ler no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro, “neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a proteção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da atividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de seletividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras”.

No entanto, o AUJ n.º 4/2014 não incluiu no segmento uniformizador a noção de consumidor, o que despoletou nova querela. Nessa decisão, apenas se refere, numa nota de rodapé (!), que o consumidor é o “utilizador final com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda”. 

A jurisprudência posterior divergiu, essencialmente, entre duas posições: uma vertente que, numa tentativa de restringir os efeitos da interpretação restritiva do artigo 755.º-1-f) do Código Civil, entendia o conceito de consumidor como todo o utilizador final de um bem (mais abrangente); e outra vertente, que recorria à noção de consumidor consagrada na LDC, restringindo a noção de consumidor aos que destinam o bem objeto do contrato-promessa a um uso não profissional.

Para perceber o alcance da querela, nada melhor do que convocar o caso que motivou nova uniformização de jurisprudência. Tratou-se de um contrato-promessa de duas frações de um edifício constituído em propriedade horizontal, onde os promitentes-compradores, obtida a traditio, “efetuam, diariamente, tratamentos de fisioterapia, se realizam consultas de cirurgia, consultas de otorrinologia, consultas e tratamentos de saúde dentária, consultas de fisiatria, diversos exames de Tac, Ressonâncias, Raio X, Cardio e outros serviços de saúde a diversos doentes”.

Ora, com este exemplo, fica claro o sentido e alcance da querela, na medida em que apenas adotando o conceito mais amplo de consumidor poderão os promitentes-compradores daquelas frações beneficiar do direito de retenção das mesmas para obter o pagamento dos seus créditos no processo de insolvência, visto que, apesar de serem utilizadores finais do bem, o destinam a um uso profissional.

A divergência foi sanada então com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2019, que uniformiza jurisprudência no sentido de que, “Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão n.º 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”.

De facto, esta é a solução que mais se adequa à fundamentação do primitivo acórdão uniformizador, onde se sustentou que “a opção legislativa no conflito entre credores hipotecários e os particulares consumidores, concedendo -lhes o direito de retenção teve e continua a ter uma razão fundamental: a proteção destes últimos no mercado da habitação; na verdade, constituem a parte mais débil que por via de regra investem no imóvel as suas poupanças e contraem uma dívida por largos anos, estando muito menos protegidos do que o credor hipotecário (normalmente a banca) que dispõe regra geral de aconselhamento económico, jurídico e logístico que lhe permite prever com maior segurança os riscos que corre …”.

Jogador de póquer online: consumidor ou profissional?

Jurisprudência

No Processo C‑774/19, o TJUE foi chamado a pronunciar-se sobre a qualificação como consumidor de um jogador de póquer online.

Antes de mais, cumpre enquadrar a relação jurídica em causa. Trata-se de um contrato celebrado entre uma pessoa singular (B. B.) e uma sociedade comercial com sede em Malta (Personal Exchange International Limited, doravante “PEI”), com recurso a cláusulas contratuais gerais por esta pré-elaboradas. O contrato tem como objeto a prestação de serviços de jogos de fortuna e azar em linha, no sítio de internet www.mybet.com.

O litígio surgiu na sequência de a “PEI” haver retido uma quantia depositada na conta de jogador de B. B., por este ter, alegadamente, incumprido uma obrigação decorrente daquele contrato, “ao criar uma conta de utilizador suplementar, para a qual utilizou o nome e os dados de A. B.”.

Ora, perante isto, B. B. propôs uma ação contra a “PEI” nos tribunais eslovenos. A sociedade maltesa invocou a incompetência internacional do tribunal, exceção julgada improcedente nas decisões das duas primeiras instâncias nacionais desse Estado-Membro, ambas alvo de recurso. Assim, o pedido de decisão prejudicial foi apresentado ao TJUE pelo Supremo Tribunal da Eslovénia.

O TJUE foi chamado a interpretar o artigo 15.°-1 do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (aplicável por o litígio se reportar a factos anteriores a 10 de janeiro de 2015; v. artigo 81.º do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012).

A questão era saber qual o tribunal internacionalmente competente para dirimir aquele conflito plurilocalizado. B. B., entendia serem os tribunais eslovenos, por considerar ser consumidor (artigos 15.º-1 e 16.º-1 do Regulamento (CE) n.° 44/2001). Já a “PEI” entendia serem os tribunais malteses, segundo a regra geral de competência, prevista no artigo 2.º-1 do mesmo Regulamento, nos termos da qual “as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado”, uma vez que entendem que B. B. deve ser considerado jogador de póquer profissional (solução que resultaria também do clausulado pré-elaborado pela “PEI” e assinado, sem qualquer margem negocial, por B. B.).

Estamos, portanto, perante uma questão processual/adjetiva que depende de uma questão material/substantiva: para aferirmos qual o tribunal competente para dirimir o litígio em causa temos que determinar, primeiramente, se podemos considerar esta relação como uma relação de consumo.

Note-se que o TJUE vem defendendo uma interpretação restritiva das normas excecionais relativas à competência internacional, concluindo que só os contratos celebrados fora e independentemente de qualquer atividade ou finalidade de ordem profissional, unicamente com o objetivo de satisfazer as próprias necessidades de consumo privado de um indivíduo, são abrangidos pelo regime previsto pelo referido regulamento em matéria de proteção do consumidor enquanto parte considerada mais fraca, ao passo que essa proteção não se justifica em casos de contratos que incluem algum objetivo ligado a uma atividade profissional.

Está na altura de introduzirmos alguns elementos fáticos que, segundo o Supremo Tribunal esloveno, serão importantes para a solução da questão:

  1. B. teve de aceitar as condições gerais apresentadas pela “PEI” por ser economicamente mais fraco e juridicamente menos experiente;
  2. B. não declarou oficialmente a atividade de jogador de póquer profissional;
  3. B. não propôs a sua atividade a terceiros mediante remuneração, nem teve patrocinadores;
  4. B. vive dos rendimentos provenientes dos jogos de póquer desde 2008;
  5. B. jogava póquer, em média, 9 horas por dia útil;
  6. B. ganhou cerca de € 227 000 em aproximadamente 13 meses (perto de € 17 450 por mês).

Recentrando a questão, o TJUE teve que decidir se um particular que adere a um clausulado pré-elaborado por um profissional e que não declarou oficialmente a sua atividade, nem ofereceu essa atividade a terceiros enquanto serviço remunerado ainda pode ser considerado consumidor, nos termos e para os efeitos do artigo 15.º do Regulamento (CE) n.° 44/2001, quando esse particular joga o jogo em causa durante um grande número de horas por dia e obtém ganhos significativos daí provenientes.

Na decisão, o TJUE não considerou determinante o facto de B. B. ter ganho quantias significativas graças a jogos de póquer online, entendendo que, por razões de previsibilidade e segurança jurídica, não fixando o Regulamento um limiar quantitativo quanto ao seu âmbito de aplicação, não se pode limitá-lo em função dos montantes ganhos, ademais tratando-se de um jogo de fortuna e azar, em que tanto as perdas como os ganhos são imprevisíveis e potencialmente avultados.

O Tribunal considerou também irrelevantes os alegados conhecimentos que B. B. possui e que lhe permitiram obter tão significativos ganhos, relembrando que para a qualificação como consumidor releva a posição contratual na relação em causa e não a sua informação e conhecimentos respeitantes ao objeto mediato do contrato (convoque-se o exemplo clássico do sapateiro que adquire um par de sapatos numa loja de um centro comercial).

Por fim, o TJUE relativizou o facto de B. B. jogar com muita regularidade (média de 9 horas por dia útil), considerando mais relevante não ter declarado oficialmente a atividade profissional de jogador de póquer e não ter oferecido essa atividade a terceiros enquanto serviço remunerado.

Assim, concluiu que B. B. poderia ser considerado consumidor e que os tribunais eslovenos eram internacionalmente competentes para dirimir o seu litígio com a “PEI”.

Quanto à bondade da decisão, poder-se-á apenas questionar se, mais do que os elevados montantes ganhos e a regularidade com que B. B. jogava, não deveria ter pesado na decisão do Tribunal o facto de B. B. ter como única fonte de rendimentos o jogo de póquer. Contrariamente às restantes, esta circunstância não foi escalpelizada pelo TJUE, e talvez fosse o mais forte indício a favor da tese de que a relação em causa não fosse de consumo, principalmente tendo em consideração o entendimento restritivo que o TJUE vem fazendo do conceito de consumidor para os efeitos que interessam neste caso: a competência internacional.

Independentemente disso, não podemos deixar de notar que, embora B. B. possa não ser profissional, atendendo aos proveitos retirados do jogo online (cerca de € 17.500/mês), amador não seria certamente.

Responsabilidade do produtor e conceito de consumidor

Jurisprudência

Comentário ao Acórdão do TRL, de 11-02-2020, Relator Pedro Brighton

Sumário
“I- No artº 2º nº 1 do Decreto-Lei nº 383/89, de 6/11 (Responsabilidade Decorrente de Produtos Defeituosos), podemos encontrar dois tipos de produtor : O produtor real, “o fabricante do produto acabado, de uma parte componente ou de matéria prima” ; e, também, o produtor aparente, “quem se apresente como tal pela aposição no produto do seu nome, marca ou outro sinal distintivo”.
II- Podemos entender o produtor real, como qualquer pessoa humana ou jurídica que sob a sua própria responsabilidade participa na criação do produto final, seja o fabricante do produto acabado, de uma parte componente ou de matéria-prima.
III- Por sua vez, o produtor aparente, que acaba por ser o distribuidor, o grossista ou as grandes cadeias comerciais, apesar de não ser o fabricante do produto acabado ou final, coloca no mesmo a sua marca ou símbolo distintivo, induzindo o lesado em erro, quanto à origem ou proveniência de fabricação do produto, dando-lhe a aparência de ser ele próprio o produtor real, quando não o é na realidade.
IV- A definição legal de consumidor, constante do artº 1º-B al. a) Decreto-Lei nº 67/2003 de 8/4 (Venda de Bens de Consumo), adoptou um sentido restrito de “consumidor”, definindo este como qualquer pessoa singular que não destine o bem ou serviço adquirido a um uso profissional ou um profissional (pessoa singular), desde que não actuando no âmbito da sua actividade e desde que adquira bens ou serviços para uso pessoal ou familiar.
V- Esta definição de consumidor exclui do seu âmbito as pessoas colectivas.”

Caso

O aresto em análise soluciona uma ação em que uma sociedade comercial demanda outra sociedade comercial, exigindo o ressarcimento de danos pela destruição de um automóvel “produzido” por esta, que se incendiou por defeito manifestado nas bombas injetoras. Estes danos reportam-se à diferença entre o montante já pago pela seguradora pela destruição do carro e o seu valor de mercado, e aos montantes despendidos pela autora no aluguer de um automóvel de substituição.

Comentário

Em primeiro lugar, a decisão em análise é um ótimo pretexto para (re)visitarmos as disposições do DL n.º 383/89, de 06 de novembro, que regula a “responsabilidade decorrente de produtos defeituosos”. Logo à partida, salienta-se a previsão de um conceito bastante amplo de produtor, englobando o produtor “real” e o “aparente” (art. 2.º-1), o que se justifica pela pretendida tutela eficaz do lesado. Depois, salientar que este é um regime que não tutela unicamente consumidores, ainda que lhes confira uma proteção acrescida em termos de danos indemnizáveis (art. 8.º).

Importa-nos destacar que a solução do caso se centrou na interpretação deste preceito. No entanto, a nosso ver, fê-lo erradamente. É que os danos abrangidos pelo pedido indemnizatório não cabem no âmbito da tutela do regime da responsabilidade objetiva do produtor do diploma em análise.
Ora, enquanto este regime estabelece os requisitos de ressarcibilidade dos danos pessoais sofridos pelo lesado (morte ou lesão física), seja este consumidor ou não, e dos danos produzidos “em coisa diversa do produto defeituoso”, abrangendo neste ponto apenas consumidores (lesado que tenha dado ao bem um destino principalmente de uso ou consumo privado), o pedido do autor refere-se a danos sofridos no próprio produto defeituoso, o automóvel. Ora, cabendo ao tribunal enquadrar juridicamente o pedido do autor (art. 5.º- 3 do Código de Processo Civil), “não esta(ndo) sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, parece-nos ter andado mal o tribunal ao decidir a causa com apelo à disposição analisada.
Outra questão que nos parece criticável na fundamentação de direito explanada pelo tribunal, é o recurso ao conceito legal de consumidor ínsito no DL n.º 67/2003, de 8 de abril para aferir o que é um consumidor para efeitos do DL n.º 383/89. Como sabemos, não existe no ordenamento jurídico nacional um conceito único de consumidor, cabendo a cada diploma definir o seu âmbito subjetivo. Ora, o denominado regime de responsabilidade do produtor (DL n.º 383/89) contém no art. 8.º uma delimitação objetivo-subjetiva do seu âmbito de aplicação, dele se podendo retirar aquilo a que podemos chamar uma “espécie de conceito de consumidor”. Assim, aplica-se tal regime àquele que adquira um bem a que normalmente seja dado um uso privado ou familiar e o destine principalmente a um uso desse tipo. A utilização do tempo verbal “lhe tenha dado (principalmente esse destino)” parece-nos inclusive solucionar, na aplicação deste diploma, uma querela que é extensível ao DL n.º 67/2003, que consiste em determinar qual o momento determinante para aferir o destino conferido ao bem pelo adquirente, se o da aquisição/entrega do bem, se a utilização efetiva em momento posterior. Assim, e reforçando-se que esta interpretação se cinge à aplicação deste diploma, parece relevar a utilização efetivamente conferida ao bem, em momento posterior ao da sua entrega.

No entanto, e em jeito de conclusão, a verdade é que a decisão de improcedência proferida pelo tribunal parece-nos a mais ajustada ao caso, ainda que discordemos dos seus fundamentos. Como expusemos, não nos parece relevante para o caso o regime da responsabilidade objetiva do produtor definida pelo diploma analisado. Tão-pouco seria de aplicar o regime da venda de bens de consumo e garantias (DL n.º 67/2003), uma vez que a responsabilidade direta do produtor perante o consumidor se limita ao exercício dos direitos de substituição e reparação, nos termos do art. 6.º- 1, estando excluídos os pedidos indemnizatórios, como o formulado nos autos. Poder-se-ia equacionar a aplicabilidade da Lei de Defesa do Consumidor (1), 
no entanto corroboramos o entendimento do tribunal de que a sociedade comercial adquirente do bem não pode ser considerada consumidora para efeitos de aplicação deste diploma, não apenas por ser uma pessoa coletiva, como afirma o tribunal, mas porque destina o bem a um uso profissional, ainda que posteriormente o coloque à disposição de um seu sócio e este o destine principalmente a um uso privado (art. 2.º- 1).

Notas

(1) Lei n.º 24/96, de 31 de julho

Conceito de consumidor na jurisprudência do TJUE no primeiro semestre de 2020

Jurisprudência

Iniciamos hoje uma série de posts dedicados à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no primeiro semestre de 2020. Selecionamos, para o efeito, as 16 decisões que, debruçando-se sobre pedidos de reenvio prejudicial de tribunais dos Estados-Membros, tratam matérias de direito do consumo.

Começamos com o tema do conceito de consumidor, presente em duas decisões do TJUE.

No Processo C-329/19 (acórdão de 2 de abril de 2020), o tribunal é chamado a pronunciar-se sobre a qualificação do condomínio como consumidor, matéria que já tratamos aqui no blog a propósito de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Estava em causa, neste caso, a aplicação da Diretiva 93/13/CEE, relativa às cláusulas abusivas.

O TJUE conclui que o condomínio não é consumidor para efeitos da Diretiva, mas que os Estados-Membros têm liberdade no sentido de qualificar o condomínio como consumidor no direito interno.

Mantém-se aqui a orientação no sentido de que os Estados-Membros podem alargar o âmbito de aplicação subjetivo das diretivas de proteção do consumidor, mesmo que estas sejam de harmonização máxima, podendo os direitos nacionais enquadrar quaisquer pessoas como consumidores.

No Processo C‑500/18 (acórdão de 2 de abril de 2020), está em causa o conceito de consumidor para efeitos de aplicação do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, relativo à competência judiciária.

O tribunal conclui que “uma pessoa singular que, ao abrigo de um contrato como o contrato financeiro por diferenças celebrado com uma sociedade financeira, efetua operações financeiras por intermédio dessa sociedade, pode ser qualificada de «consumidor», na aceção dessa disposição, se a celebração desse contrato não se inserir no âmbito da atividade profissional dessa pessoa, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar”.

Defende ainda o tribunal que não são decisivos para a qualificação “o facto de essa pessoa ter efetuado um elevado número de transações num período relativamente curto ou ter investido elevadas quantias nessas transações”. Isto significa que o número de transações e/ou o seu montante não constituem indícios suficientes para concluir se o investidor é consumidor.

Em sentido contrário, também não releva por si só “o facto de essa pessoa ser um «cliente não profissional»”, nos termos da Diretiva 2004/39/CE, relativa aos mercados de instrumentos financeiros. Assim, a qualificação como “cliente não profissional” não implica necessariamente a qualificação da pessoa em causa como “consumidor”.

Iremos analisar mais catorze decisões do TJUE em futuros posts, sendo o próximo desta série dedicado a cláusulas contratuais gerais.

“Condomínio-consumidor” – Comentário ao Ac. STJ 10-12-2019, rel. Nuno Pinto Oliveira

Jurisprudência

Ac. STJ 10-12-2019, rel. Nuno Pinto Oliveira

Sumário

“I. O condomínio deve ser considerado como um consumidor desde que uma das fracções seja destinada a uso privado.

II. A relação entre empreiteiro e comprador deve considerar-se como uma relação de consumo desde que o empreiteiro conhecesse, ou devesse conhecer, o fim do dono da obra de dividir o edifício em fracções autónomas e de vender cada uma das fracções autónomas a consumidores.

III. Em relação aos defeitos das partes comuns do edifício, o prazo de garantia do art. 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril deverá contar-se a partir da constituição da administração do condomínio.

IV. Em relação aos defeitos das partes próprias, das fracções autónomas, o prazo deverá contar-se a partir da entrega da coisa ao primeiro adquirente — ao primeiro comprador / consumidor — de cada uma das fracções.”

Anotação

Inauguro a minha participação neste blog abordando um tema que me é já familiar, a questão do “condomínio-consumidor”, tema da minha tese de mestrado (1). Faço-o a propósito do comentário a um acórdão do STJ que aborda a mesma temática.

Centrando-nos no aresto, são duas as questões jurídicas alvo de análise nesta anotação:

i) Quando se inicia a contagem dos prazos (dies a quo) de caducidade do exercício dos direitos dos condóminos quanto aos defeitos detetados nas partes comuns do edifício;

ii) Se, e em que condições, deve o condomínio considerar-se consumidor para efeitos do DL n.º 67/2003 (venda de bens de consumo e garantias).

Quanto à primeira das questões, a decisão segue a doutrina maioritária do Supremo, entendendo que a contagem dos prazos de reação face aos defeitos detetados nas partes comuns do edifício apenas deve iniciar-se no momento da constituição da administração do condomínio, ou seja, quando a assembleia de condóminos se reúne pela primeira vez e elege o administrador, e não quando são vendidas a primeira ou a última fração autónoma do edifício, nem tão-pouco quando no momento em que a obra é entregue pelo empreiteiro/construtor do prédio ao dono da obra/vendedor das frações.

Quanto à segunda problemática, como consta do sumário, o Supremo defendeu que para o condomínio beneficiar da proteção acrescida conferida pelas normas de direito do consumo basta que um dos condóminos haja adquirido a sua fração para a destinar a um uso privado (neste caso, habitação própria). É esta também a tese que defendemos na nossa tese de mestrado, no desenvolvimento do que é apontado por Jorge Morais Carvalho no seu Manual (2).

Uma última nota para destacar o raciocínio desenvolvido no acórdão que permite ao condomínio (autor) a dedução da sua pretensão contra o vendedor da fração e, em simultâneo, contra o construtor do prédio/empreiteiro. Dado que o conceito de consumidor é um conceito relacional, ou seja, depende da existência de uma relação entre um consumidor e um profissional, enquanto a qualificação do contrato entre vendedor e comprador da fração como contrato de consumo é pacífica, já não o será a relação entre este e o construtor do prédio. Em rigor, nem sequer existe uma relação contratual entre estes, mas a jurisprudência do STJ (3) vem entendendo que se deve ficcionar uma relação de consumo quando o empreiteiro conheça ou deva conhecer o fim do dono da obra de dividir o edifício em frações autónomas e vendê-las a consumidores. Este entendimento funda-se no espírito de proteção especial do consumidor e na consideração da elevada experiência técnica e negocial dos empreiteiros.

Notas

(1) O Condomínio e as Relações de Consumo: Um Teste à Elasticidade do Conceito de Consumidor, Julho 2019, publicada no Anuário do NOVA Consumer Lab, Ano I, 2019, disponível no site do NOVA Consumer Lab 

Consultar Anuário

(2) Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2020

(3) Além do acórdão em análise, veja-se o Ac. STJ de 17-10-2019, rel. Oliveira Abreu

Consultar acórdão