Inteligência Artificial, codificação das emoções e consumo

Doutrina

Os cientistas andam a codificar a emoção, o que nem sequer é muito novo, para a integrarem em sistemas de inteligência artificial.

A Artificial Intelligence (AI) ganha um E, transformando-se em EAI (Emotional Artificial Intelligence), o que a vai aproximando da ainda considerada praticamente inatingível AGI (Artificial General Intelligence), que implicaria que a inteligência da máquina seria semelhante à do ser humano, no sentido de que em vez de ser só magnífica na resolução de problemas e tarefas específicas, como fazer cirurgias, dirigir carros ou outros veículos, organizar cidades, seria também excecional na resposta a questões gerais e até de senso comum.

Até ver, as pessoas têm-se divertido bastante com as limitações dos sistemas de AI, sentindo-se ainda bastante superiores, já que sem qualquer dificuldade conseguem perceber coisas que a máquina nem vislumbra. Por exemplo, foi feita uma experiência com um sistema muito simples, em que uma pessoa representada em meia dúzia de traços no ecrã, “chutava à baliza” onde estava um “guarda-redes”, de aspeto semelhante. Naquele sistema de AI, tanto a figura que rematava como a que defendia, eram cada vez melhores na sua tarefa. Até que os cientistas resolveram apresentar o “guarda-redes” deitado no chão, deixando a “baliza aberta”. O marcador, perante a surpresa da situação, simplesmente colapsou. Não aproveitou a oportunidade “de fazer golo” e, em completo desnorte, acabou por se deitar também. Para a máquina, aquilo não era futebol, era evitar um obstáculo enquadrado num retângulo. Se o obstáculo é removido, a falta de lógica arrasa a estrutura. O humano, em face disto, ri-se por lhe ser tão evidente o que deveria ser feito.

Vários exemplos de comparação entre a inteligência humana e o desenvolvimento de uma (ainda incipiente) AGI, nomeadamente inserida em robôs, pode ser vista na extraordinária apresentação que José Santos-Victor, do IST, fez na Conferência sobre o tema “Cérebros e Robôs”, inserida na exposição da Fundação Calouste Gulbenkian denominada “Cérebro – mais vasto que o céu”, disponível aqui. Também no Técnico, Ana Paiva trabalha no desenvolvimento de “robôs sociais”, que exprimam emoções e sejam amáveis com as pessoas.

Os cientistas já codificam a emoção há muito tempo, sendo um clássico com provas dadas o sistema BET (Basic Emotion Theory), que assenta na tipificação das principais emoções humanas e sua manifestação.

Ora, com sistemas de AI, com algoritmos que aprendem através de técnicas de Machine Learning (ML) que, num nível de maior sofisticação opera através de redes neurais artificiais (Artificial Neural Nets – ANN), tomando a designação de Deep Learning (DL) e com uma quantidade crescente de material para alimentar o processo – a Big Data – fácil será perceber que as emoções humanas são facilmente reconhecíveis pela “máquina”. Tanto mais reconhecíveis, quanto maior for a quantidade de informação disponível.

O que é que isto tem a ver com o consumo, já vai apetecendo perguntar.

Pois tem tudo. Se pensarmos que o recurso a assistentes digitais, que recebem ordens de voz em que transparece a nossa disposição e até conversam connosco (chatbots) é já uma realidade vulgar, que o uso de câmaras que recebem e registam as nossas expressões faciais é quase permanente e ainda que é frequente que dados biométricos ligados à emoção, como o batimento cardíaco, estejam a ser registados, é fácil ver como empresas que têm acesso a tudo isso podem escolher o melhor momento para nos fazer lembrar que estamos mesmo a precisar de comprar alguma coisa.

A fasquia, que já estava alta com a análise do comportamento, é elevada a um nível muito superior, com a análise da emoção por sistemas de inteligência artificial.

A propósito de um artigo na área das ciências da computação, “The Ethics of Emotion in AI Systems”, de Luke Stark e Jesse Hoey, disponível aqui ou aqui, pode-se ler aqui um “Research Summary”, de Alexandrine Royer, uma cientista da área das ciências humanas (social scientist), publicado este mês pelo Montreal AI Ethics Institute, que explica com clareza a problemática em questão. Estas leituras dão-nos a perspetiva das ciências da computação, enunciada e complementada pela das ciências sociais, o que nos fornece um ponto de partida para grande reflexão.

Entretanto, pelo menos quando comprar online, através de um gigante tecnológico, faça um esforço para evitar, como tão bem disse Ricardo Araújo Pereira, “sentir sentimentos” ou, se tal for impossível, evite mostrá-los. É provável que poupe algum dinheiro.

Pode ler mais neste blog sobre a ética ligada à inteligência artificial, aqui e aqui e sobre AI na sociedade aqui.

Encerramento de estabelecimentos comerciais, garantias, trocas e saldos

Legislação

Na sequência da mais recente prorrogação do estado de emergência em Portugal, o Governo aprovou um conjunto de diplomas que regulam as medidas de combate à pandemia causada pelo vírus Sars-Cov-2.

Estando grande parte dos estabelecimentos comerciais encerrados, tornou-se imperioso agir com vista à proteção dos direitos dos consumidores e dos operadores económicos. Neste sentido, foi publicado o Decreto-Lei n.º 6-E/2021, de 15 de janeiro, prevendo um regime especial para as garantias e para a venda em saldos, cujo conteúdo passaremos a destacar de seguida.

Em primeiro lugar, o diploma estabelece um regime especial para as garantias, alterando provisoriamente o disposto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril. Assim, quanto aos direitos de reparação, substituição, redução do preço e resolução do contrato, que assistem ao consumidor em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, estabelece-se a prorrogação do prazo para o seu exercício por parte do consumidor.

Há que notar que o prazo definido pelo Decreto-Lei n.º 67/2003 para o exercício dos direitos referidos é ora de dois meses a contar da data de deteção da desconformidade, desde que dentro do prazo de dois anos contados desde a entrega do bem, ora de um ano, desde que dentro do período de cinco anos contados nos mesmos termos, conforme se trate, respetivamente, de um bem móvel ou imóvel. Assim, por efeito do Decreto-Lei n.º 6-E/2021, caso este prazo termine durante o período de suspensão de atividades e encerramento de instalações e estabelecimentos, no âmbito do estado de emergência, ou nos 10 dias posteriores àquele, será prorrogado por 30 dias, contados desde a data de cessação das medidas de suspensão e encerramento.

Ademais, nos casos em que o operador económico atribua ao consumidor o direito a efetuar trocas ou até o direito a solicitar um reembolso mediante devolução dos produtos, o prazo para o exercício de tais direitos ficará também suspenso durante o período de encerramento de instalações e estabelecimentos e suspensão de atividades, no âmbito do estado de emergência.

Por outro lado, o Governo tentou também acautelar as legítimas expectativas dos operadores económicos. Assim, determinou que a venda em saldos que se venha a realizar durante o período de suspensão das atividades e encerramento dos estabelecimentos, também no âmbito do presente estado de emergência, não relevará para efeitos de contabilização do limite máximo temporal previsto legalmente para a venda em saldos, de 124 dias por ano, conforme resulta do art. 10.º-1 do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março. Cumulativamente, o comerciante que pretenda vender em saldos durante tal período, estará dispensado da obrigação de emitir uma declaração à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), conforme previsto no n.º 5 do mesmo artigo.

De notar que esta iniciativa legislativa vem reproduzir algumas das medidas excecionais já aplicadas no âmbito do anterior confinamento, sobre as quais já nos tínhamos pronunciado em posts anteriores, que poderá consultar, respetivamente, aqui quanto aos saldos, e aqui no que às garantias diz respeito, para mais esclarecimentos.

Digital Services Act e as Grandes Plataformas Digitais

Legislação

No passado mês, a Comissão divulgou a proposta do Digital Services Act que visa regular o mercado digital, em particular as obrigações a que as plataformas online estão adstritas, com vista a salvaguardar os direitos dos consumidores num panorama virtual. Embora já aqui tenha sido dada uma visão global da proposta apresentada, neste post dar-se-á particular atenção às obrigações que as grandes plataformas digitais – como a Google e a Facebook – terão de cumprir, nos termos desta proposta, caso venha a entrar em vigor nos termos em que se encontra.

As grandes plataformas digitais estão sujeitas a duas categorias de obrigações, derivadas da sua dupla caracterização enquanto, por um lado, plataformas digitais (arts. 17.º a 24.º) e, por outro, plataformas digitais de grandes dimensões (arts. 25.º a 33.º).

Começando então pela primeira, estas são fundamentalmente oito, que se poderão dividir em três categorias: sistemas de queixa e resolução de conflitos (arts. 17.º, 18.º e 19.º); proteção contra utilização ilícita da plataforma (arts. 20.º, 21.º e 22.º) e deveres de informação (arts. 23.º e 24.º).

Relativamente à primeira categoria, as plataformas digitais deverão facultar aos seus utilizadores um sistema de queixa interno e gratuito relativo a decisões tomadas pela plataforma, no que concerne a (i) remoção de acesso à informação, (ii) suspensão ou cessação da prestação do serviço ou (iii) suspensão ou eliminação da conta (art. 17.º/1). A resposta a estas queixas deverá ser dada num prazo razoável, informando os utilizadores dos meios alternativos de resolução de litígios que este tem ao seu dispor (arts. 17.º/4 e 18.º). Por último, a Comissão prevê também a figura dos trusted flaggers, determinando que as plataformas digitais deverão dar-lhes prioridade no que toca à denúncia de conteúdos ilícitos (art. 19.º). A caracterização como trusted flagger será feita pelo Coordenador de Serviços Digitais[1] de cada Estado-Membro após comprovação de que a entidade em causa tem capacidade e conhecimentos necessários para identificar e notificar conteúdos ilícitos, que representa interesses coletivos de forma independente a qualquer plataforma e que executa as suas atividades de forma expedita e objetiva (art. 19.º/2).

Passando à segunda categoria de deveres, as plataformas digitais deverão garantir que não são utilizadas para fins ilícitos devendo, em particular, suspender a prestação dos seus serviços aos utilizadores que frequentemente forneçam conteúdo dessa índole (art. 20.º/1). Do mesmo modo, no contexto do sistema de queixa previamente mencionado, as plataformas deverão suspender a sua utilização por quem submeta queixas manifestamente infundadas de uma forma frequente (art. 20.º/2). Para além disso, caso tomem conhecimento de informações que possam levantar suspeitas sobre o cometimento de ilícitos criminais graves que envolvam ameaças à vida ou segurança de pessoas, as plataformas deverão comunicar esses  mesmos factos às autoridades competentes no Estado-Membro em causa (art. 21.º).

Além dos deveres de suspensão e de queixa, e caso as plataformas digitais permitam a celebração de contratos de consumo à distância, deverão também garantir a segurança dos contactos estabelecidos, recolhendo previamente informações referentes ao vendedor. Em concreto, deverão obter o nome, a morada e os contactos telefónico e eletrónico deste, bem como as suas informações bancárias caso se trate de uma pessoa singular, além de outras informações mencionadas no art. 22.º/1. Ademais, deverão adotar os esforços razoáveis para se certificarem que os dados obtidos são fidedignos e, caso constatem alguma incompletude ou erroneidade, deverão contactar o vendedor no sentido de recolher os elementos em falta (art. 22.º/2 e 3).

Passando à última categoria de deveres, vemos que as obrigações de apresentação de relatórios[2] são particularmente exigentes para as plataformas digitais. Assim, estas ficam sujeitas ao previsto no art. 23.º, tendo que mencionar (i) o número de situações que foram submetidas a meios de resolução alternativa de litígios, bem como o desfecho e duração média dos mesmos; (ii) o número de suspensões executadas ao abrigo do art. 20.º, especificando-se aquelas que são devidas à divulgação de conteúdo manifestamente ilegal e aquelas que se devem à utilização dos mecanismos de queixa de forma manifestamente infundada e (iii) qualquer utilização de meios automáticos de moderação de conteúdos (art. 23.º/1). Ademais, e pelo menos semestralmente, deverão reportar o número médio mensal de utilizadores em cada Estado-Membro (art. 23.º/2).

Por último, também em termos de marketing as plataformas digitais deverão garantir que os utilizadores conseguem identificar, para cada anúncio exposto, (i) que a informação divulgada é um anúncio publicitário, (i) a pessoa individual ou coletiva responsável pelo anúncio e (iii) os principais parâmetros utilizados para determinar os destinatários do mesmo (art. 24.º).

Além do exposto, conforme a dimensão da plataforma, esta pode ser considerada como uma grande plataforma digital e, por isso, ficar sujeita a deveres mais exigentes, nos termos da Secção 4 da proposta do Digital Services Act. Para o ser, terá de cumprir as condições previstas no artigo 25.º, ou seja, e em termos simplificados, ter uma média de, pelo menos, 45 milhões de utilizadores na União Europeia por mês. Nesse caso, além dos deveres anteriores, ficam sujeitas a mais oito, que se reconduzem a deveres de segurança e controlo (arts. 26.º a 28.º e 32.º), por um lado, e deveres de informação e de acesso (arts. 29.º a 31.º e 33.º), por outro.

Começando pelos primeiros, as grandes plataformas digitais ficam sujeitas a realizar avaliações dos riscos sistémicos derivados do seu funcionamento, pelo menos uma vez por ano. Aí, deverão avaliar a disseminação de conteúdos ilícitos através dos serviços prestados, efeitos negativos no que concerne ao direito ao respeito pela vida privada e familiar, liberdade de expressão e informação, à proibição de discriminação e aos direitos das crianças, bem como a manipulação intencional do serviço com efeitos negativos previsíveis para a saúde pública, menores, processos eleitorais e segurança pública (artigo 26.º). Feita essa análise, deverão estas plataformas implementar as medidas de segurança que considerem adequadas, proporcionais e eficazes de modo a mitigar os riscos identificados (art. 27.º).

Além disso, estas plataformas digitais deverão, no mínimo anualmente e a encargo próprio, realizar auditorias de modo a verificar o cumprimento das regras previstas no Regulamento (art. 28.º/1), do qual deverá resultar um relatório com recomendações a serem adotadas pela plataforma (art. 28.º/3 e 4). Como último dever dentro desta categoria, deverão ser nomeados um ou mais responsáveis pela monitorização do cumprimento do previsto no Digital Services Act (art. 32.º). Estes devem ter as qualificações, o conhecimento e a experiência adequados às suas tarefas (explicitadas no art. 32.º/3), tarefas essas que deverão ser exercidas de forma independente (art. 32.º/2 e 4).

No que toca aos deveres de informação e acesso, vemos que, caso as plataformas digitais de grandes dimensões utilizem sistemas de recomendação (“recommender systems[3]), deverão mencionar, de uma forma clara, acessível e de fácil compreensão, os parâmetros usados nesses sistemas, bem como as possibilidades fornecidas aos utilizadores de influenciar esses mesmos parâmetros (art. 29.º). Ademais, os deveres a que estão adstritos no contexto de publicidade são mais intensos, nomeadamente em termos de armazenamento de dados relativos aos anúncios expostos até um ano após serem divulgados pela última vez (art. 30.º/1). Nesse contexto, deverão armazenar, pelo menos, o conteúdo do anúncio, a pessoa (singular ou coletiva) em nome de quem esse anúncio foi exposto, o período durante o qual foi exposto, se estava destinado a um ou mais grupos específicos de utilizadores e, em caso afirmativo, quais os parâmetros usados para o efeito e, por último, o número total de utilizadores que viram o anúncio (art. 30.º/2).

Estas plataformas deverão garantir ao Coordenador de Serviços Digitais o acesso aos dados armazenados, nomeadamente para verificar o cumprimento do regulamento (art. 31.º/1). Por último, também a obrigação de apresentação de relatórios regulada no art. 23.º se torna mais exigente no caso das grandes plataformas digitais, por força do art. 33.º. Aqui, deverão estas publicar um relatório de seis em seis meses, a partir do momento em que são consideradas grandes plataformas digitais, tendo em conta a análise de riscos verificada na égide do art. 26.º, as medidas de mitigação desses mesmos riscos, de acordo com o art. 27.º, e o relatório da auditoria e da sua implementação, prevista no art. 28.º.

Assim, vemos que a Comissão teve em conta em especial as grandes plataformas digitais aquando da apresentação da proposta do Digital Services Act. Cabe-nos agora aguardar por futuros desenvolvimentos junto das instituições europeias.

 

[1] De acordo com a proposta apresentada, estes Coordenadores serão as entidades nacionais responsáveis por garantir uma correta aplicação do regulamento – ver art. 38.º.

[2] A regra geral de apresentação de relatórios encontra-se consagrada no art. 13.º do regulamento, tendo aplicação geral aos intermediários que a proposta do Digital Services Act visa regular. Não obstante, e relativamente às plataformas digitais, vemos que estes seus deveres são mais exigentes, por aplicação cumulativa do art. 23.º.

[3] De acordo com o art. 2.º, o), recommender systems são sistemas automáticos ou parcialmente automáticos utilizados por plataformas digitais no sentido de sugerir informação específica aos utilizadores da mesma, nomeadamente como resultado de uma pesquisa iniciada por este ou através da determinação da ordem pela qual a informação é exposta.

Decreto-Lei n.º 107/2020 – Alteração às medidas excecionais de proteção dos créditos

Legislação

No dia 31 de dezembro de 2020 foi publicado o Decreto-Lei n.º 107/2020, que altera as medidas excecionais de proteção dos créditos das famílias, empresas, instituições particulares de solidariedade social e demais entidades da economia social, no âmbito da pandemia da doença COVID-19.

Antes de prosseguir com a análise do referido diploma, cumpre fazer um breve enquadramento de alguns conceitos e questões relevantes no contexto da moratória.

Em primeiro lugar, é de referir que a moratória consiste na prorrogação concedida pelo credor ao devedor, ou seja, é o adiamento de um prazo, geralmente em relação ao vencimento de uma dívida. Este instrumento foi implementado pelo Decreto-Lei n.º10-J/2020, de 26 de março, com o intuito de colmatar as consequências gravosas a nível económico provocadas pela COVID-19.

Inicialmente, a moratória pública foi aprovada por um período de vigência entre o final de março e o dia 30 de setembro de 2020, prevendo a proibição da revogação das linhas de crédito contratadas, a prorrogação ou suspensão dos créditos até ao fim desse período, garantindo a continuidade do financiamento às famílias e empresas, e prevenindo eventuais incumprimentos resultantes da redução da atividade económica, conforme consagrado no art. 4.º do Decreto-Lei n.º 10-J/2020. Além disso, o diploma instituiu o regime das garantias pessoais do Estado para acautelar situações de emergência económica nacional causadas por circunstâncias excecionais e temporárias, de acordo com o art. 11.º do Decreto-Lei n.º 10-J/2020. A par destas medidas, foi facilitada, provisoriamente, quando comprovados determinados pressupostos, a concessão de garantias por parte de sociedade de garantia mútua (art. 13.º).

Em segundo lugar, importa verificar a que contratos de crédito se aplica a moratória pública. Enumeramos os seguintes (art. 3.º do Decreto-Lei n.º 10-J/2020):

 

  • Operações de crédito e contratos de locação financeira ou operacional concedidas por instituições de crédito, sociedades financeiras de crédito, sociedades de investimento, sociedades de locação financeira, sociedades de factoring e sociedades de garantia mútua, bem como por sucursais de instituições de crédito e de instituições financeiras a operar em Portugal.
  • Contratos de crédito celebrados com empresas, empresários em nome individual, instituições particulares de solidariedade social, associações sem fins lucrativos e outras entidades da economia social.
  • Contratos de crédito hipotecário e contratos de locação financeira de imóveis destinados à habitação celebrados com consumidores.
  • Contratos de crédito aos consumidores, nos termos do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, com finalidade educação, incluindo para formação académica e profissional.

 

Para as situações não abrangidas pela moratória pública, dispomos da moratória privada apresentada pela Associação Portuguesa de Bancos, que se prolonga até 31 de março de 2021 para o crédito hipotecário e até 30 de junho de 2021 para o crédito ao consumo.

O Decreto-Lei n.º 107/2020 vem introduzir um alargamento do prazo de suspensão das prestações dos contratos de crédito compreendidos pelo regime da moratória, findando o prazo a 30 de setembro de 2021. Por outro lado, o prazo para adesão à moratória foi prorrogado até ao dia 31 de março de 2021. No dia 2 de dezembro de 2020, devido ao impacto da segunda vaga da pandemia, a Autoridade Bancária Europeia julgou necessário reativar este instrumento, permitindo novas adesões até ao dia 31 de março de 2021 e determinando um período de moratória de até nove meses a contar da data dessa adesão.

Este diploma tem, assim, como objetivo a conformação do quadro legislativo nacional ao enquadramento prudencial europeu, mantendo as condições e características do regime da moratória em vigor para as novas adesões, com as adaptações inerentes à reativação da medida.

Por fim, é fulcral colocar esta questão: o que acontece aos juros enquanto a moratória se encontra em vigor?

Se o devedor optar por não pagar o capital, nem os juros, os juros não cobrados acrescem ao capital em dívida. Quando a moratória terminar, as prestações devidas são recalculadas com base no novo capital em dívida e no novo prazo de empréstimo, ou seja, os bancos contabilizam os juros decorridos durante o período de suspensão do crédito e adicionam-nos ao capital em dívida, o que significa que, apesar de ficarem algum tempo sem receber o reembolso dos créditos concedidos, no final do processo, os bancos irão obter um ganho extra.

Se o devedor optar por pagar os juros durante a moratória, quando esta terminar, as prestações que irá pagar serão recalculadas com base no capital em dívida quando foi pedida a moratória e no novo prazo do empréstimo.

Direito do consumo e sustentabilidade

Doutrina

Depois de muitos anos separados, os temas do consumo e, em especial, do direito do consumo e da sustentabilidade percorrem neste momento um caminho único, pretendendo-se orientar as políticas e as normas de direito do consumo também à promoção de escolhas mais sustentáveis.

Já falamos recentemente no nosso blog da Nova Agenda do Consumidor, apresentada pela Comissão Europeia no dia 13 de novembro de 2020, especificamente sobre as questões da informação sobre durabilidade e sustentabilidade dos bens e obsolescência precoce e programada, ambos os textos da autoria de José Filipe Ferreira.

Já antes, Maria Miguel Oliveira assinara o texto com o título: Então e a sustentabilidade?

Mais recentemente, e claramente em linha com a Nova Agenda do Consumidor, a Lei n.º 75-C/2020, de 31 de dezembro (Lei das Grandes Opções para 2021-2023), identifica a necessidade de “sensibilizar e capacitar os consumidores em matéria de (…) consumo responsável e sustentável” (ponto 5.4). No ponto 7.4, relativo à sustentabilidade competitiva da agricultura e das florestas, também se refere que é necessário “promover os sistemas de informação ao consumidor que permitam decisões esclarecidas privilegiando os modos de produção sustentáveis e os produtos diferenciados (bem-estar animal, produtos endógenos)”.

Com vista a orientar os consumidores para um consumo mais responsável e sustentável, o art. 320.º do Orçamento do Estado para 2021, aprovado pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, cria “uma contribuição no valor de € 0,30 por embalagem, obrigatoriamente discriminado na fatura, sobre embalagens de utilização única de plástico, alumínio ou multimaterial com plástico ou com alumínio a serem adquiridas em refeições prontas a consumir, nos regimes de pronto a comer e levar ou com entrega ao domicílio” (n.º 1).

O n.º 4 deste art. 320.º atribui ainda um direito subjetivo aos clientes nos contratos relativos ao fornecimento de refeições prontas a consumir, nos regimes de pronto a comer e levar. Com efeito, os clientes podem utilizar recipientes próprios para o transporte da comida. A norma impede os fornecedores de criarem obstáculos à utilização de recipientes próprios, o que significa que, não só não podem impedir os clientes de levarem os recipientes de casa, como não podem cobrar um valor adicional para o efeito. Na prática, com a contribuição criada pela norma, será necessariamente mais barato, em regra, levar os recipientes do que utilizar os recipientes disponibilizados pelo fornecedor.

Em 2021, o NOVA Consumer Lab também estará particularmente atento à ligação entre o (direito do) consumo e a sustentabilidade.

O Podcast vai iniciar ainda este mês a sua segunda temporada, a qual será inteiramente dedicada à sustentabilidade. Para já, estão agendadas entrevistas com Catarina Barreiros, criadora do blog, podcast e loja Do Zero, centrados na sustentabilidade, Marta Santos Silva e Luísa Cortat Simonetti Gonçalves, investigadoras e autoras do texto “Nudging Consumers Towards Sustainable Practices Regarding Plastics in a Post-COVID-19 Europe”, Helen Duphorn, Country Retail Manager IKEA Portugal, e Claire Bright, Professora da NOVA School of Law e Diretora do NOVA Knowledge Centre for Business, Human Rights and the Environment.

Já nos dias 21 e 22 de abril (este último o Dia Internacional da Terra) organizamos a Consumer Conference, que tem este ano como tema a ligação entre sustentabilidade e consumo. Além de vários/as oradoras/es já confirmados/as, cada painel terá também a participação de investigadoras/es selecionadas/os entre as/os que responderem ao Call for Papers que se encontra aberto até ao dia 5 de fevereiro.

Não perca a oportunidade de participar neste evento único. E continue a acompanhar-nos para saber mais novidades sobre este e outros temas ligados ao direito do consumo.

Cyberpunk 2077 e o problema da falta de conformidade dos videojogos no seu lançamento

Doutrina

No passado dia 10 de Dezembro, foi lançado o muito aguardado Cyberpunk 2077, do estúdio e distribuidor polaco CD Project Red, responsável também pela muito conhecida franchise The Witcher. Após oito anos em desenvolvimento, dois adiamentos da data de lançamento e uma campanha publicitária muito intensa, os fãs puderam finalmente adquirir o videojogo. Este encontra-se disponível em lojas físicas e em lojas virtuais, como a da GOG (subsidiária da CD Project Red), a Steam, a Google Store, a Playstation Store e a Microsoft Store. O videojogo tem versões para computadores e para as consolas Playstation 4 e Xbox One, assim como para as recém-lançadas, ditas de nova geração, Playstation 5 e Xbox X e S.

No entanto, para desapontamento de muitos, o videojogo que adquiriram – sendo que 8 milhões de pessoas fizeram por pre-order, com a antecedência de muitos meses, com a promessa de alguns conteúdos bónus – tinha bastantes problemas, especialmente em termos de performance do software. Rapidamente, a Internet encheu-se de relatos de jogadores que partilhavam os bugs e glitches mais “engraçados” e absurdos. E relatos do facto de o software estar com tantos problemas que seria impossível, na realidade, utilizar o serviço digital que adquiriram, mesmo tendo computadores e equipamentos que cumprissem com os requisitos de sistema publicitados pela CD Project Red. A situação revelou-se especialmente grave nas consolas de “antiga geração”, a Playstation 4 e a Xbox One, em que os jogadores se queixaram de o videojogo não funcionar e provocar crashes em que a consola se desligava de forma inesperada e constante. Esta situação levou, inclusivamente, a que a Sony retirasse o videojogo da Playstation Store e concedesse um reembolso a todos os consumidores que o pedissem.

Mesmo com um lançamento controverso e cheio de problemas, não cumprindo o “produto” final as expectativas estabelecidas pelo marketing intenso, as promessas do estúdio e a própria descrição do produto nas lojas virtuais, a verdade é que isto não impediu que as vendas do Cyberpunk 2077 fossem um sucesso comercial gigantesco. Muitos consumidores não tiveram acesso a remédios adequados face às faltas de conformidade do software. As soluções oferecidas basearam-se, essencialmente, nas (heterogéneas) políticas comerciais das lojas físicas e das lojas virtuais, que variam de plataforma para plataforma e de Estado para Estado.

Este aparenta ser um cenário bastante problemático que, infelizmente, no caso da indústria dos videojogos, está muito longe de ser excecional. Na verdade, lançamentos desastrosos de videojogos num estado inacabado como o do Cyberpunk 2077 são mais comuns do que seria de esperar. Há, geralmente, vários casos como este por ano, ligados às maiores produtoras, com situações particularmente notórias pelo nível de embuste e mentiras flagrantes (por exemplo, No Man Sky em 2016 ou Fallout 76 em 2018). Habitualmente, nestes casos, as empresas vão lançando patches e updates durante os meses seguintes ao lançamento, que servem para reparar/consertar os principais problemas do software e para incluir funcionalidades e conteúdos que supostamente deviam ter sido incluídas no produto final já distribuído[1]. Porém, este processo pode demorar muito tempo, ou até nem se verificar de todo, existindo empresas com uma reputação conhecida de venderem videojogos inacabados, com publicidade enganosa, e que rapidamente abandonam esses projetos, optando por alocar imediatamente os seus recursos a novos produtos.

Além dos danos causados pelo lançamento de videojogos num estado inacabado, há certas práticas adotadas pelos maiores distribuidores do mercado que devem ser referidas aqui: as já referidas pre-orderse os “reviews embargos”.

Nas pre-orders, os consumidores pagam antecipadamente por um videojogo que ainda não foi lançado no mercado, sendo geralmente aliciados para tal com a inclusão de conteúdos extra-exclusivos e, por vezes, uma redução do preço.

Os “review embargos” consistem na prática das produtoras de, ao enviarem antecipadamente cópias dos seus produtos a jornalistas para estes testarem, proibirem que estes publiquem as suas avaliações até depois do lançamento oficial. Impede-se, desta forma, que os consumidores (que já pagaram pelas pre-orders) possam ser alertados do estado do produto a tempo de cancelar a sua compra. Nos casos raros em que algum jornalista “furou” o embargo, publicando o seu artigo antes de tempo, este acabou blacklistedpelas principais empresas, deixando de receber o produto para testar com antecedência.

Do ponto de vista do Direito do Consumo, toda esta controvérsia levanta várias questões interessantes.

Na ótica processual, temos as questões de saber (i) qual é a jurisdição na qual deve ser iniciada a ação, (ii) qual é a lei aplicável ao contrato e (iii) que meios de resolução extrajudicial de litígios podem ser utilizados.

Os EULA (End-User Licensing Agreements) incluem, geralmente, cláusulas sobre estas temáticas, que por vezes procuram afastar as normas especiais do Regulamento Roma I e do Regulamento Bruxelas I, o que pode levantar problemas aos consumidores.

Num plano substantivo, a Diretiva dos Direitos dos Consumidores (Diretiva 2011/83/UE) classifica os videojogos como conteúdos digitais, estabelecendo que as comunicações pré-contratuais fazem parte integrante do contrato e atribuindo um direito ao arrependimento ou à livre resolução do contrato aos consumidores nos contratos realizados à distância ou fora do estabelecimento comercial. No entanto, no seu artigo 16.º-m), estabelece que o consumidor pode abdicar deste direito nos contratos de fornecimento de conteúdos digitais que não sejam disponibilizados em suporte duradouro. Na prática, esta situação ocorre com facilidade, por via da inclusão desta cláusula nos Termos e Condições que o consumidor é “forçado” a aceitar na loja virtual.

No entanto, nem tudo está perdido para o consumidor.

Embora em muitas ordens jurídicas dos Estados Membros da União Europeia não existam normas quanto a requisitos de conformidade de serviços digitais e que atribuam direitos ao consumidor em caso de desconformidade, esta situação está em vias de resolução. Com efeito, a Diretiva 2019/770, relativa aos contratos de fornecimento de serviços e conteúdos digitais, deverá ser transposta ainda este ano, com entrada em vigor das normas de transposição a 1 de Janeiro de 2022. Ainda mais recentemente, foi aprovada a Diretiva 2020/1828, sobre as ações coletivas de proteção dos direitos dos consumidores, que irá colmatar as lacunas existentes em alguns Estados Membros e agilizar a propositura de ações para a reparação de danos causados pela violação do direito de consumo europeu e das leis nacionais, incluindo as Diretivas 2011/83/UE e 2019/770.

Assim, com a transposição destas normas e com o aprofundamento do Mercado Único Digital na União Europeia, os consumidores irão beneficiar de uma maior proteção dos seus direitos. Situações como o lançamento do Cyberpunk 2077, em que serviços digitais são distribuídos num estado inacabado sem a devida indicação, tornar-se-ão, espera-se, mais raras.

[1] No caso da CD Project Red, quatro dias depois do lançamento do Cyberpunk 2077, esta publicou um statement neste sentido, admitindo que esconderam as falhas das versões nas consolas antigas e prometendo dois patches, em Janeiro e Fevereiro, que consertarão os problemas, assim como o direito ao reembolso a quem o pedisse. https://en.cdprojektred.com/news/important-update/

O RGPD e a nova indústria da proteção de dados

Doutrina

O Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD) tem vindo, paulatinamente, a impor-se em todas as áreas do Direito e da vida. Passo a passo, o polvo estende os seus tentáculos, que começa por colar suavemente a partir da ventosa mais pequena, progredindo depois na medida em que lhe é permitido, até envolver a realidade e a sujeitar ao que se diz serem as suas regras.

O Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016 (RGPD), relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, revogou a Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, transposta para a ordem jurídica portuguesa pela Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, por sua vez revogada pela Lei n.º 58/2019, de 8 de agosto que assegura a execução do RGPD na ordem jurídica nacional.

O RGPD, sob a aparência de novidade, serviu essencialmente para ultrapassar as discrepâncias nacionais na transposição da Diretiva e criar uma uniformidade transnacional. Após anos de negociações, o resultado final foi pouco diferente do que a Diretiva já previa e propiciava. Sendo quase redundante, apresentava-se desadequado a uma realidade que foi mudando ao longo das árduas negociações que se iam gorando e progredindo em concessões com vista ao acordo. A realidade continuou – e continua – a mudar, inexoravelmente, a partir da sua entrada “em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação”. Tendo esta ocorrido em 4 de maio de 2016, aquela terá ocorrido a 25 de maio do mesmo ano, tendo o RGPD previsto que “é aplicável a partir de 25 de maio de 2018”. Talvez daqui resulte a obnubilação da primeira data e a atenção que se focou na segunda.

A partir daí a proteção de dados tem-se vindo a tornar ubíqua, invadindo as áreas do Direito que têm subjacente informação e que são, potencialmente, todas. As relações de consumo, que se vão paulatinamente deslocando para o ambiente digital, encontram-se especialmente expostas, quer pela contratação em massa, quer pela intensa apetência para a produção de dados. Este é o grande problema. Numa época em que “os dados” assumiram uma omnipresença em todas as áreas, surge um instrumento que visa dominá-los ou, pelo menos, submetê-los aos rigores das checklists.

Embora o RGPD, como foi referido, tenha replicado o regime substancial da Diretiva 95/46, consagrando no essencial os mesmos princípios e direitos (acrescentando o novo direito de portabilidade dos dados), conseguiu captar a atenção global devido, principalmente, às sanções astronómicas que prevê.

De resto, criou ou desenvolveu uma estrutura burocrática gigantesca, que passa pelo novo papel das autoridades de controlo independentes e a obrigatoriedade de nomeação de um encarregado da proteção de dados, e se consubstancia numa série de trâmites e certificações, que passou a ocupar diligentemente uma multidão crescente de pessoas. Está, pois, na origem de um novo mundo de prestação de serviços salvíficos, com vista à implementação de procedimentos para serem evitadas pesadas coimas.

O RGPD criou a florescente indústria da proteção de dados.

Orçamento do Estado e linhas telefónicas de apoio ao consumidor – O princípio do fim dos “707”?

Legislação

O Orçamento do Estado para 2021, aprovado pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, tem várias normas que visam regular as relações de consumo.

Analisa-se hoje o artigo 189.º, que impõe ao Governo a aprovação, até ao final de janeiro, de legislação no sentido de “estabelecer que as chamadas efetuadas pelo consumidor para uma linha de apoio ao cliente de fornecedores de bens e prestadores de serviços não podem exceder o custo de uma chamada normal para uma linha telefónica geográfica ou móvel, exceto nos casos em que a própria chamada represente o serviço prestado ao consumidor, designadamente nos concursos que utilizam chamadas de valor acrescentado”, “impor aos operadores económicos o dever de divulgar o número ou números disponibilizados para contacto com os clientes e de obedecer a determinados critérios na sua divulgação” e “criar um regime contraordenacional para a violação das obrigações referidas nas alíneas anteriores”.

Ora, já existe legislação que proíbe que os números das linhas de apoio ao cliente excedam o custo de uma chamada normal para uma linha telefónica geográfica ou móvel.

Com efeito, o art. 9.º-D da Lei de Defesa do Consumidor (LDC) estabelece que “a disponibilização de linha telefónica para contacto no âmbito de uma relação jurídica de consumo não implica o pagamento pelo consumidor de quaisquer custos adicionais pela utilização desse meio, além da tarifa base, sem prejuízo do direito de os operadores de telecomunicações faturarem aquelas chamadas”. Este preceito transpõe o art. 22.º da Diretiva 2011/83/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores.

Chamado a pronunciar-se sobre o conceito de “tarifa base”, o Tribunal de Justiça da União Europeia – TJUE (Acórdão de 2 de março de 2017, Processo C-568/15, Acórdão Zentrale zur Bekämpfung unlauteren Wettbewerbs Frankfurt am Main) veio declarar que este “deve ser interpretado no sentido de que o custo de uma chamada relativa a um contrato celebrado e para uma linha telefónica de apoio ao cliente explorada por um profissional não pode exceder o custo de uma chamada normal para uma linha telefónica fixa geográfica ou móvel”.

É, assim, inadmissível que o número de telefone disponibilizado pelo profissional implique custos acrescidos em relação a uma chamada normal para um telefone fixo ou móvel. Não pode, por exemplo, ser disponibilizado um número iniciado por 707, devendo apenas ser admitidos os números começados por 2 ou 9 ou, naturalmente, os números gratuitos.

Esta norma aplica-se a todos os contratos de consumo, mas tem particular relevância nos contratos duradouros, nomeadamente os relativos a serviços públicos essenciais, em que a relação existente entre as partes pressupõe o estabelecimento de contactos por iniciativa do consumidor. Exemplificando, num contrato relativo a comunicações eletrónicas, a utilização da linha telefónica de apoio ao cliente do prestador de serviços não pode implicar custos para o consumidor que excedam os de uma chamada normal para um número de telefone fixo ou móvel.

Mesmo que não existisse esta regra na LDC, a disponibilização de um “707” como único meio de contacto sempre constituiria uma forma de desincentivar o consumidor a contactar o serviço de assistência, que não poderia ser tolerada pelo direito, por violação do princípio da boa-fé.

O art. 9.º-D vem, no entanto, esclarecer que, mesmo que existam outros meios de contacto, a disponibilização de uma linha telefónica não pode implicar custos acrescidos para o consumidor.

No Acórdão de 13 de setembro de 2018, Processo C-332/17, Acórdão Starman, o TJUE vem reforçar esta ideia, ao concluir que é ilícita a prática em que o profissional utiliza dois números, um sem custos acrescidos e outro com custos acrescidos, mesmo que informe os consumidores de forma adequada da existência dos dois números. O profissional apenas pode, portanto, disponibilizar números sem custos acrescidos para o consumidor.

A regra já se encontra, portanto, prevista no ordenamento jurídico português. Esperemos que seja agora garantido o seu cumprimento efetivo, até porque se prevê passar a impor aos profissionais “o dever de divulgar o número ou números disponibilizados para contacto com os clientes e de obedecer a determinados critérios na sua divulgação”.

Saúda-se, ainda, a intenção de criar um regime contraordenacional para a sua violação. Este regime deveria, aliás, ser alargado a todas as normas que, na LDC, transpõem preceitos da referida Diretiva 2011/83/EU: arts. 8.º, 9.º-A, 9.º-B e 9.º-C, além do já indicado art. 9.º-D.

2020 – Um ano estranho, mas muito produtivo no NOVA Consumer Lab

Eventos

Fazemos hoje aqui no blog um balanço do ano de 2020 no NOVA Consumer Lab. 2020 foi um ano marcado pela pandemia, mas também por combates intensos e determinantes para o mundo em que vivemos. Além da COVID-19, o (combate ao) racismo, a sustentabilidade e o digital estiveram na agenda em quase todos os países do globo.

O NOVA Consumer Lab aproveitou o primeiro confinamento para intensificar e diversificar as suas atividades, tendo sido este o ano em que começamos os projetos do blog, do podcast e das talks.

A equipa cresceu, contando hoje com vinte e seis investigadores: Alyne Calistro, Ana Jorge Teixeira, Ana Machado, André Alfar Rodrigues, Edgar Palma, Eduardo Freitas, Elisa Arruda, Fabrizio Esposito, Filipa Ribas de Oliveira, Francisca Lopes, Francisco Arga e Lima, Gabriela Hiwatashi dos Santos, Gonçalo Veiga da Silva, Joana Campos Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira, Jorge Morais Carvalho, José Filipe Ferreira, Maria Miguel Oliveira da Silva, Martim Farinha, Matilde Bettencourt, Natália Veiga Rebelo, Paula Ribeiro Alves, Pedro Ferreira, Sofia Lopes Agostinho, Suzana Rahde Gerchmann e Yasmin Waetge.

Estamos presentes nas seguintes redes sociais: Facebook, Instagram, Linkedin e YouTube. Para aceder ao nosso grupo no WhatsApp e receber as novidades em primeira mão, basta seguir esta ligação.

 

Blog

Iniciado em abril, em pleno confinamento, o NOVA Consumer Blog já conta com 65 posts, distribuídos ao longo do ano. A legislação COVID-19 dominou os primeiros meses, enquanto nos últimos meses a categoria dominante passou a ser a da jurisprudência. Olhamos também bastante para o direito europeu, por um lado, e para uma pesquisa própria, dominando temas mais tecnológicos, como a inteligência artificial.

Se olharmos para as etiquetas, verificamos que o tema dominante é a COVID-19. Outros temas, relacionados ou não com este, foram tratados de forma recorrente no nosso blog, destacando-se a inteligência artificial, o consumo digital, a contratação à distância, a venda de bens de consumo, o crédito ao consumo, o turismo, incluindo viagens organizadas e alojamento local e a resolução alternativa de litígios de consumo, em especial, a arbitragem.

Escreveram textos no blog, além de um autor convidado (António Pedro Pinto Monteiro), dez dos nossos investigadores (Jorge Morais Carvalho, José Filipe Ferreira, Paula Ribeiro Alves, Martim Farinha, Yasmin Waetge, Maria Miguel Oliveira da Silva, Ana Machado, André Alfar, Fabrizio Esposito e Francisco Arga e Lima).

 

Podcast

O NOVA Consumer Podcast tem um novo episódio de quinze em quinze dias, às segundas-feiras, tendo sido publicado o primeiro no início do Verão, a 22 de junho.

A primeira temporada, mais generalista, terá quinze episódios, sendo publicado o último, já gravado, com Mariana França Gouveia, no dia 4 de janeiro de 2021. Com um grupo de entrevistados bastante diversificado, atravessamos fronteiras e um oceano, entrevistando personalidades relevantes na área do consumo e em áreas conexas.

  1. Jorge Morais Carvalho, Diretor do NOVA Consumer Lab (22 de junho)
  2. Teresa Moreira, Diretora do Serviço das Políticas da Concorrência e dos Consumidores da UNCTAD (6 de julho)
  3. Maria Cristina Portugal, Presidente do Conselho de Administração da ERSE (20 de julho)
  4. Paula Ribeiro Alves, Jurista e Doutoranda nos temas da IA, Big Data e Privacidade (3 de agosto)
  5. Antonino Serra Cambaceres, Advocacy Manager na Consumers International (17 de agosto)
  6. Carlos Ferreira de Almeida, Professor Catedrático Jubilado de Direito Privado na NOVA (31 de agosto)
  7. Claudia Lima Marques, Professora de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (14 de setembro)
  8. Mário Beja Santos, Escritor e Pioneiro de Defesa do Consumidor (28 de setembro)
  9. Armando Flores, Cofundador do Centro de Defesa do Consumidor de El Salvador (12 de outubro)
  10. Isabel do Carmo, Médica Especialista em Endocrinologia, Diabetes e Nutrição (26 de outubro)
  11. Juliana Pereira da Silva, Presid. do Instituto de Pesquisas e Estudos da Sociedade de Consumo (9 de novembro)
  12. Direito do Consumo em Portugal e no Brasil – Uma conversa entre investigadores do NOVA Consumer Lab (23 de novembro)
  13. Sandra Passinhas, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (7 de dezembro)
  14. Juan Trimboli, Presidente da Fundación Ciudadana por un Consumo Responsable do Chile (21 de dezembro)
  15. Mariana França Gouveia, Diretora da NOVA School of Law (4 de janeiro)

A segunda temporada, que terá início a 18 de janeiro de 2021, será dedicada à ligação entre consumo e sustentabilidade, um tema que irá estar no centro de parte das nossas atividades nos próximos meses.

 

Talks

As NOVA Consumer Talks realizam-se, à distância e em inglês, na primeira quarta-feira de cada mês, tendo como objetivo promover a discussão sobre os temas de investigação de cada um dos membros da nossa equipa. Além de um investigador do NOVA Consumer Lab, são sempre convidados dois investigadores/professores de universidades estrangeiras.

A primeira sessão (The Crossroads Between Data Protection and Consumer Law) realizou-se no dia 7 de outubro e teve como intervenientes Francisco Arga e Lima (NOVA Consumer Lab), Madalena Narciso (Maastricht University) & Martin Schmidt-Kessel (Universität Bayreuth), com moderação de Jorge Morais Carvalho.

No dia 4 de novembro, teve lugar a segunda sessão (Virtual Goods and European Consumer Law), com participação de Martim Farinha (NOVA Consumer Lab), Przemyslaw Palka (Yale Law School) & Vanessa Mak (Leiden University), com moderação de Jorge Morais Carvalho. O vídeo da sessão está disponível no YouTube.

Elisa Schenfel de Arruda (NOVA Consumer Lab), Giuseppe Versaci (Università di Siena) & Frederik Zuiderveen Borgessius (iHub, Radboud University) foram os intervenientes da sessão de 9 de dezembro (Who is afraid of personalised prices?), que contou com a moderação de Fabrizio Esposito e também se encontra publicada no YouTube.

A 6 de janeiro de 2021, teremos a próxima Talk, sobre “Mandatory Mediation in Consumer Disputes”, com João Pedro Pinto-Ferreira (NOVA Consumer Lab), Iris Benohr (Queen Mary University of London) & Pablo Cortés (University of Leicester) e moderação de Joana Campos Carvalho. As inscrições podem ser feitas aqui.

 

Jornada

No dia 6 de maio, teve lugar a I Jornada do NOVA Consumer Lab, na qual os investigadores do centro apresentaram os seus temas de investigação, sob o olhar atento de cerca de 200 participantes.

A abertura do evento contou a presença de Mariana França Gouveia, Diretora da NOVA School of Law, e de João Torres, Secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor.

A moderação esteve a cargo de Sandra Passinhas, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e de Bruno Miragem, Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Os temas apresentados foram os seguintes (incluindo ligação para o vídeo):

A Exploração Laboral no Mundo e o Direito do Consumidor à Informação em Particular (Maria Miguel Oliveira da Silva);

Economia Circular, Product-Service Systems e Proteção do Consumidor (Gonçalo Veiga da Silva);

Condomínio-Consumidor: Comentário ao Ac. do STJ, de 10 de dezembro de 2019 (José Filipe Ferreira);

Covid 19 e o Avião que Nunca Chegou a Descolar (Francisca Lopes);

A Interrupção indevida do Fornecimento de Energia Elétrica – Regime Sancionatório e Responsabilidade Civil (Eduardo Freitas);

Responsabilidade Civil dos Influenciadores Digitais (Alyne Calistro);

Quadro Regulatório Aplicável ao E-Commerce na União Europeia e na China (Natália Rebelo);

Estrutura Contratual da Plataforma TaskRabbit (Suzana Rahde Gerchmann);

Entre o Direito do Consumo e a Proteção de Dados Pessoais: O Caso do Facebook (Francisco Arga e Lima);

Obsolescência Programada: Existe um Dever de Atualização do Software? (Edgar Palma);

Os Bens Virtuais e o Direito do Consumo Europeu (Martim Farinha);

Sandbox Regulatório como Ferramenta de Proteção aos Consumidores (Yasmin Waetge).

 

Conferências, palestras e aulas

No dia 15 de março, por ocasião do Dia Mundial dos Direitos dos Consumidores, organizamos o webinário “As Cinquenta Sombras das Garantias: Venda de Bens de Consumo em Portugal” (Jorge Morais Carvalho).

O “Cycle of Seminars on Digital Contracts” decorreu entre os dias 18 de março e 18 de maio, integrado na disciplina de Digital Contracts, regida por Jorge Morais Carvalho. O cartaz foi este:

– Data as Counter-Performance in Consumer Contracts – Madalena Narciso, Maastricht University;

– Personalisation of Prices and Modernisation of Consumer Law – Fabrizio Esposito, Université Catholique de Louvain;

– Digital Contracts and Information Requirements – Arno R. Lodder, Vrije Universiteit Amsterdam;

– Digital Contracts and Services of General Economic Interest – Lucila de Almeida, Tel Aviv University & European University Institute (Florence School of Regulation/Robert Schuman Centre for Advanced Studies);

– Termination of the Contract and Destination of Data and Content Generated by Users of Digital Services – Sergio Cámara Lapuente, Universidad de La Rioja;

– 3D-printing from the Perspective of Commercial and Consumer Contracts – Christian Twigg-Flesner, University of Warwick;

– Data as Digital Wealth: Raw Data, Inferred Data and Data Processing Algorithms | José Antonio Castillo Parrilla, Universidad del País Vasco.

No dia 12 de dezembro, teve lugar o evento Regulating Innovation Roundtable, com abertura por Jorge Morais Carvalho e João Vieira dos Santos (Legal Hackers Lisbon) e participação de Maria Eduarda Gonçalves (ISCTE-IUL), Ronald Leenes (Tilburg Law School), Teresa Moreira (Head, Competition and Consumer Policies Branch, UNCTAD) e Teresa Rodríguez-de-las-Heras Ballell (Universidad Carlos III de Madrid), com moderação de Fabrizio Esposito.

 

Livros e artigos

Em 2020, foram publicados três livros com referência ao NOVA Consumer Lab:

Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020 (de Jorge Morais Carvalho);

Casos Práticos Resolvidos de Direito do Consumo, Vol. II, Almedina, 2020 (com coordenação de Jorge Morais Carvalho e Maria Miguel Oliveira da Silva). Esta obra reúne 40 novos casos práticos sobre Direito do Consumo, resolvidos à luz da legislação nacional e europeia por 52 autores ligados à NOVA School of Law e ao NOVA Consumer Lab;

Legislação de Direito do Consumo, Almedina, 2020 (compilação por Jorge Morais Carvalho).

Foram ainda publicados os seguintes artigos com indicação de filiação ao centro:

– Jorge Morais Carvalho, “Consumer ADR in the European Union and in Portugal as a Means of Ensuring Consumer Protection”, in Christine Riefa & Séverine Saintier (eds.), Vulnerable Consumers and the Law – Consumer Protection and Access to Justice, Routledge, 2020, pp. 193-207.

– Jorge Morais Carvalho & Martim Farinha, “Goods with Digital Elements, Digital Content and Digital Services in Directives 2019-770 and 2019-771”, in Revista de Direito e Tecnologia, Vol. 2, n.º 2, 2020, p. 257-270.

– Jorge Morais Carvalho, “Introducción a las Nuevas Directivas sobre Contratos de Compraventa de Bienes y Contenidos o Servicios Digitales”, in Esther Arroyo Amayuelas & Sergio Cámara Lapuente (eds.), El Derecho Privado en el Nuevo Paradigma Digital, Colegio Notarial de Cataluña/Marcial Pons, 2020, pp. 31-47.

– Jorge Morais Carvalho & João Pedro Pinto-Ferreira, “Reflexão sobre a Arbitragem e a Mediação de Consumo na Lei de Defesa do Consumidor – A Lei n.º 63/2019, de 16 de Agosto”, in Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação, n.º 13, 2020, pp. 9-35.

– Jorge Morais Carvalho, “Contratos de Compraventa de Bienes (Directiva 2019771) y Suministro de Contenidos o Servicios Digitales (Directiva 2019770) – Ámbito de Aplicación y Grado de Armonización”, in Cuadernos de Derecho Transnacional, Vol. 12, n.º 1, 2020, pp. 930-940.

– Jorge Morais Carvalho, “Resolução Alternativa de Litígios de Consumo por Entidades Reguladoras”, in Garantia de Direitos e Regulação: Perspectivas de Direito Administrativo, AAFDL, Lisboa, 2020, pp. 567-584.

 

Anuário

O primeiro número do Anuário do NOVA Consumer Lab, referente a 2019, foi publicado em janeiro de 2020, incluindo artigos de Bruno Miragem, José Antonio Castillo Parrilla, Fabrizio Esposito e Madalena Narciso e as teses de mestrado de Eduardo Freitas, José Filipe Ferreira e Miguel Vieira Ramos.

O número de 2020 encontra-se em processo de paginação. Inclui nove artigos, dos quais quatro em inglês – Shannon König (“Regulation of Ride-Hailing Companies in Germany and Portugal”), Pedro Fonseca Barros Ferreira (“Reviews and Endorsements in Online Marketplaces and Consumer Protection”), Gabriela Hiwatashi dos Santos (“A “New Deal for Consumers”? The European Regulatory Framework for Online Search Queries and Rankings under the Omnibus Directive (Directive (EU) 2019/2161)”) e Helena Gonçalves de Lima (“Burden of Proof of (Lack of) Conformity in Directive 2019/770: A Comparison with the Directive 2019/771”) – e cinco em português – José Engrácia Antunes (“O Regime Geral da Contratação de Consumo”), Alyne Grazieli Calistro (“Responsabilidade Civil dos Influenciadores Digitais”), Francisca Faria Lopes (“COVID-19 e o Avião Que Nunca Chegou a Descolar”), Paula Ribeiro Alves (“Sensibilidade e Bom Senso – Comentário ao Acórdão do TJUE no Caso Orange (Processo C-61/19), Relativo aos Requisitos do Consentimento para Tratamento de Dados Pessoais”) e Jorge Morais Carvalho (“Conformidade do Bem com o Contrato no Regime Português da Venda de Bens de Consumo”). Será publicado em janeiro de 2021.

 

Consumer Conference

Foi lançada ainda em 2020 a primeira pedra da Consumer Conference, cuja primeira edição se irá realizar nos dias 21 e 22 de abril de 2021, tendo como tema “Sustainability. Consumption”.

Encontra-se em curso um Call for Papers, que termina no dia 5 de fevereiro de 2021. Consulte todas as informações no site.

 

Inquérito sobre preços personalizados

Lançamos em setembro de 2020 um inquérito, dirigido a todas e a todos, no qual se pretende estudar a opinião das pessoas sobre preços personalizados.

O projeto é coordenado por Fabrizio Esposito e Elisa Arruda (que também defendeu este ano, com grande sucesso, a sua tese de mestrado neste tema), com participação de Leonor Bettencourt.

Já temos mais de trezentas respostas, mas seria muito importante chegar às quatrocentas, número ideal para a extração de conclusões cientificamente válidas. O inquérito pode ser preenchido aqui.

 

Atendimento telefónico

Entre setembro de 2008 e setembro de 2020, prestamos serviços de informação e encaminhamento do consumidor através de atendimento telefónico, no âmbito de uma relação contratual entre a NOVA School of Law e a Direção-Geral do Consumidor.

No âmbito do atendimento telefónico, era prestada informação genérica relativa a questões relacionadas com o Direito do Consumo, procedendo-se também ao encaminhamento dos consumidores para meios de resolução alternativa de litígios e entidades reguladoras.

No total, foram atendidas 78 682 chamadas, das quais 4126 entre janeiro e setembro de 2020.

 

Formação avançada

Em abril de 2020, promoveu-se um E-Curso sobre o Regime Contratual das Plataformas Digitais, com coordenação de Jorge Morais Carvalho e Joana Campos Carvalho.

Neste curso, que contou com cerca de 30 participantes, procedeu-se a uma análise aprofundada dos vários contratos ligados às plataformas: (i) contrato entre o fornecedor de bens e serviços e a plataforma; (ii) contrato entre o fornecedor e o utilizador/consumidor; (ii) contrato entre o fornecedor e o utilizador.

Em novembro, ainda no domínio da formação avançada, teve início a Academia do Consumo para os CIAC (centros de informação autárquicos ao consumidor), projeto preparado pela JURISNOVA e pelo NOVA Consumer Lab, com a colaboração da Direção-Geral do Consumidor e o apoio do Fundo para a Promoção dos Direitos dos Consumidores. A participação no projeto é totalmente gratuita para os CIAC e para os seus colaboradores.

O projeto tem a duração de dois anos e inclui três fases sucessivas:

Fase 1 – Formação Online | Entre janeiro e junho de 2021

Fase 2 – Formação Presencial | A partir de meados de 2021

Fase 3 – Consultoria | A partir do final de 2021

Jogador de póquer online: consumidor ou profissional?

Jurisprudência

No Processo C‑774/19, o TJUE foi chamado a pronunciar-se sobre a qualificação como consumidor de um jogador de póquer online.

Antes de mais, cumpre enquadrar a relação jurídica em causa. Trata-se de um contrato celebrado entre uma pessoa singular (B. B.) e uma sociedade comercial com sede em Malta (Personal Exchange International Limited, doravante “PEI”), com recurso a cláusulas contratuais gerais por esta pré-elaboradas. O contrato tem como objeto a prestação de serviços de jogos de fortuna e azar em linha, no sítio de internet www.mybet.com.

O litígio surgiu na sequência de a “PEI” haver retido uma quantia depositada na conta de jogador de B. B., por este ter, alegadamente, incumprido uma obrigação decorrente daquele contrato, “ao criar uma conta de utilizador suplementar, para a qual utilizou o nome e os dados de A. B.”.

Ora, perante isto, B. B. propôs uma ação contra a “PEI” nos tribunais eslovenos. A sociedade maltesa invocou a incompetência internacional do tribunal, exceção julgada improcedente nas decisões das duas primeiras instâncias nacionais desse Estado-Membro, ambas alvo de recurso. Assim, o pedido de decisão prejudicial foi apresentado ao TJUE pelo Supremo Tribunal da Eslovénia.

O TJUE foi chamado a interpretar o artigo 15.°-1 do Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (aplicável por o litígio se reportar a factos anteriores a 10 de janeiro de 2015; v. artigo 81.º do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012).

A questão era saber qual o tribunal internacionalmente competente para dirimir aquele conflito plurilocalizado. B. B., entendia serem os tribunais eslovenos, por considerar ser consumidor (artigos 15.º-1 e 16.º-1 do Regulamento (CE) n.° 44/2001). Já a “PEI” entendia serem os tribunais malteses, segundo a regra geral de competência, prevista no artigo 2.º-1 do mesmo Regulamento, nos termos da qual “as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado”, uma vez que entendem que B. B. deve ser considerado jogador de póquer profissional (solução que resultaria também do clausulado pré-elaborado pela “PEI” e assinado, sem qualquer margem negocial, por B. B.).

Estamos, portanto, perante uma questão processual/adjetiva que depende de uma questão material/substantiva: para aferirmos qual o tribunal competente para dirimir o litígio em causa temos que determinar, primeiramente, se podemos considerar esta relação como uma relação de consumo.

Note-se que o TJUE vem defendendo uma interpretação restritiva das normas excecionais relativas à competência internacional, concluindo que só os contratos celebrados fora e independentemente de qualquer atividade ou finalidade de ordem profissional, unicamente com o objetivo de satisfazer as próprias necessidades de consumo privado de um indivíduo, são abrangidos pelo regime previsto pelo referido regulamento em matéria de proteção do consumidor enquanto parte considerada mais fraca, ao passo que essa proteção não se justifica em casos de contratos que incluem algum objetivo ligado a uma atividade profissional.

Está na altura de introduzirmos alguns elementos fáticos que, segundo o Supremo Tribunal esloveno, serão importantes para a solução da questão:

  1. B. teve de aceitar as condições gerais apresentadas pela “PEI” por ser economicamente mais fraco e juridicamente menos experiente;
  2. B. não declarou oficialmente a atividade de jogador de póquer profissional;
  3. B. não propôs a sua atividade a terceiros mediante remuneração, nem teve patrocinadores;
  4. B. vive dos rendimentos provenientes dos jogos de póquer desde 2008;
  5. B. jogava póquer, em média, 9 horas por dia útil;
  6. B. ganhou cerca de € 227 000 em aproximadamente 13 meses (perto de € 17 450 por mês).

Recentrando a questão, o TJUE teve que decidir se um particular que adere a um clausulado pré-elaborado por um profissional e que não declarou oficialmente a sua atividade, nem ofereceu essa atividade a terceiros enquanto serviço remunerado ainda pode ser considerado consumidor, nos termos e para os efeitos do artigo 15.º do Regulamento (CE) n.° 44/2001, quando esse particular joga o jogo em causa durante um grande número de horas por dia e obtém ganhos significativos daí provenientes.

Na decisão, o TJUE não considerou determinante o facto de B. B. ter ganho quantias significativas graças a jogos de póquer online, entendendo que, por razões de previsibilidade e segurança jurídica, não fixando o Regulamento um limiar quantitativo quanto ao seu âmbito de aplicação, não se pode limitá-lo em função dos montantes ganhos, ademais tratando-se de um jogo de fortuna e azar, em que tanto as perdas como os ganhos são imprevisíveis e potencialmente avultados.

O Tribunal considerou também irrelevantes os alegados conhecimentos que B. B. possui e que lhe permitiram obter tão significativos ganhos, relembrando que para a qualificação como consumidor releva a posição contratual na relação em causa e não a sua informação e conhecimentos respeitantes ao objeto mediato do contrato (convoque-se o exemplo clássico do sapateiro que adquire um par de sapatos numa loja de um centro comercial).

Por fim, o TJUE relativizou o facto de B. B. jogar com muita regularidade (média de 9 horas por dia útil), considerando mais relevante não ter declarado oficialmente a atividade profissional de jogador de póquer e não ter oferecido essa atividade a terceiros enquanto serviço remunerado.

Assim, concluiu que B. B. poderia ser considerado consumidor e que os tribunais eslovenos eram internacionalmente competentes para dirimir o seu litígio com a “PEI”.

Quanto à bondade da decisão, poder-se-á apenas questionar se, mais do que os elevados montantes ganhos e a regularidade com que B. B. jogava, não deveria ter pesado na decisão do Tribunal o facto de B. B. ter como única fonte de rendimentos o jogo de póquer. Contrariamente às restantes, esta circunstância não foi escalpelizada pelo TJUE, e talvez fosse o mais forte indício a favor da tese de que a relação em causa não fosse de consumo, principalmente tendo em consideração o entendimento restritivo que o TJUE vem fazendo do conceito de consumidor para os efeitos que interessam neste caso: a competência internacional.

Independentemente disso, não podemos deixar de notar que, embora B. B. possa não ser profissional, atendendo aos proveitos retirados do jogo online (cerca de € 17.500/mês), amador não seria certamente.