Chocolate: Exploração de Cacau?

Doutrina

Álvaro de Campos foi bem perentório no poema Tabacaria: “olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates”. Se ele soubesse como é que têm sido feitos.

A International Rights Advocates moveu, pela primeira vez num tribunal dos Estados Unidos, uma ação em Washington DC contra as gigantes do cacau: Nestlé, Cargill, Barry Callebaut, Mars, Olam, Hershey e Mondelēz encontram-se entre os réus. Em causa está uma acusação por sujeição a trabalho escravo de oito (então) crianças originárias do Mali, por terem sido forçadas a trabalhar nas plantações de cacau da Costa do Marfim sem remuneração, sem documentos legais e sem conhecimento do lugar onde se encontravam efetivamente.

Consumidores assíduos de pelo menos uma destas marcas de chocolate poderão deslocar-se ao frigorífico e verificar que, no rótulo, existem as indicações “placer responsable” e “cocoa plan: mejora la vida de los agricultores y la calidad de sus productos”.

Isto não se inventa. Em 2001, em resultado do Protocolo Harkin-Engel, as empresas haviam prometido eliminar gradualmente o trabalho infantil até 2005. Parece que o novo prazo é agora 2025.

Questionadas sobre o problema, as empresas citadas que se dignaram a fazer um comentário sobre o processo convocaram as suas políticas de tolerância zero face à violação de direitos humanos nas suas cadeias de abastecimento. Vinte e quatro anos para tomar medidas efetivas para combater o problema não é uma política de tolerância zero, é uma política de tolerância escandalosamente inadmissível.

Entre as principais alegações do processo encontra-se o velho problema da terceirização: as empresas citadas não são proprietárias das fazendas do cacau em discussão. De seguida vão afirmar que nem sequer tinham um vínculo com o trabalhador.

Olhem o que vos digo: isto só lá vai com o direito do consumo. Que bom é ser consumidor, o maior juiz de todos os tempos.

Cláusulas abusivas, sanções contraordenacionais e transposição da Diretiva (UE) 2019/2161

Legislação

O ano de 2021 será um ano muito exigente para o legislador nacional em matéria de direito do consumo, sendo necessário transpor até 1 de julho de 2021 a Diretiva (UE) 2019/770 (conteúdos e serviços digitais) e a Diretiva (UE) 2019/771 (venda de bens de consumo) e até 28 de novembro de 2021 a Diretiva (UE) 2019/2161 (modernização das regras da União em matéria de defesa dos consumidores).

É precisamente sobre esta última que falamos hoje, em particular sobre uma norma que esta introduz na Diretiva 93/13/CEE (cláusulas abusivas).

Trata-se do novo art. 8.º-B, que impõe aos Estados-Membros que estabeleçam sanções efetivas, proporcionadas e dissuasivas em caso de violação das disposições do diploma.

Concluiu-se que a consequência da nulidade das cláusulas, prevista no direito português (art. 12.º do DL 446/85), em linha com o art. 6.º-1 da Diretiva 93/13/CEE (“não vinculem o consumidor”), não é suficiente para dissuadir os profissionais de recorrer a cláusulas abusivas.

Apesar de não se referir expressamente a aplicação de coimas, o cumprimento do art. 8.º-B pressupõe, na lógica do sistema português, a previsão de sanções contraordenacionais em caso de violação do regime das cláusulas contratuais gerais.

Com a transposição da Diretiva (EU) 2019/2161 passará, assim, a estar prevista uma sanção contraordenacional, em certas situações, se for incluída num contrato uma cláusula abusiva.

Que situações são essas?

Segundo o art. 8.º-B-2 da Diretiva 93/13/CEE, na versão de 2019, as situações em que terá de estar prevista a aplicação de sanções contraordenacionais são, no mínimo, aquelas em que as cláusulas contratuais:

  • sejam expressamente definidas como abusivas segundo o direito nacional; ou
  • em que o profissional continue a recorrer a cláusulas contratuais que tenham sido consideradas abusivas numa decisão definitiva adotada numa ação inibitória.

O primeiro ponto parece remeter para as listas de cláusulas consideradas abusivas nos termos do diploma, excluindo apenas as cláusulas abusivas segundo a cláusula geral. Incluirá também seguramente os casos em que o profissional continue a utilizar uma cláusula que já tenha sido considerada abusiva por decisão administrativa ou judicial.

O procedimento poderá ser administrativo ou judicial, admitindo-se que as autoridades administrativas possam decidir sobre o caráter abusivo das cláusulas contratuais (considerando 14 da Diretiva (EU) 2019/2161). Esta possibilidade é muito interessante, uma vez que permite uma ação eficaz e setorial com vista à prevenção e repressão da utilização de cláusulas abusivas. Deveria prever-se esta possibilidade em Portugal, permitindo, naturalmente, o controlo posterior da decisão administrativa pelos tribunais. Assim, a entidade fiscalizadora ou reguladora poderá analisar os clausulados contratuais, decidir que cláusulas são abusivas e aplicar sanções contraordenacionais.

Este controlo pode ser uma via de esperança para o efetivo cumprimento das normas aplicáveis.

Se se tratar de uma infração generalizada (que afete pelo menos os interesses dos consumidores de três Estados-Membros) ou de uma infração generalizada ao nível da União (que afete pelo menos os interesses de dois terços dos Estados-Membros, que correspondam a dois terços dos consumidores da União), sendo aplicável o art. 21.º do Regulamento (UE) 2017/2394 (cooperação entre as autoridades nacionais responsáveis pela aplicação da legislação de proteção dos consumidores), as sanções previstas a nível nacional devem prever “a possibilidade de aplicar coimas por meio de procedimentos administrativos ou de intentar uma ação judicial para aplicação de coimas, ou ambas, sendo o montante máximo dessas coimas de, pelo menos, 4% do volume de negócios anual do profissional no(s) Estado(s)-Membro(s) em causa” (art. 8.º-B-4 da Diretiva 93/13/CEE, na versão de 2019).

Um montante máximo tão elevado deverá passar a estar consagrado no direito português, embora esta imposição se limite às infrações generalizadas e às infrações generalizadas ao nível da União. Nos restantes casos, têm de estar previstas sanções contraordenacionais, mas o montante máximo pode ser mais baixo, desde que a sanção em causa seja efetiva, proporcionada e dissuasora da inserção de cláusulas abusivas em contratos singulares.

Em qualquer caso, como refere aqui Mateja Durovic (pp. 74-75), as normas europeias encorajam os Estados-Membros a prever coimas de montante elevado também a infrações que não se enquadrem naquelas categorias, ou seja, que afetem apenas consumidores de um ou dois Estados-Membros.

O grande objetivo é evitar que, para um profissional, seja melhor arriscar a previsão de uma cláusula abusiva, sendo mais benéfico para si as vantagens que daí retira do que as desvantagens associadas às sanções aplicáveis.

Responsabilidade na Internet: o Ato dos Serviços Digitais garante a liberdade de expressão?

Legislação

Por Nuno Sousa e Silva

www.nsousaesilva.pt

 

Este texto apresenta uma breve reflexão sobre o regime de responsabilidade dos prestadores de serviços da sociedade da informação na proposta de Regulamento “Ato dos Serviços Digitais” (doravante “Proposta”). Para uma panorâmica da Proposta veja-se aqui, e, especificamente sobre a regulação das grandes plataformas, aqui.

A Diretiva do comércio eletrónico (transposta em Portugal pelo DL 7/2004, de 7 de Janeiro) tem mais de 20 anos, o que, tendo em conta a dinâmica da Internet equivalerá a mais de um século de existência. Quando esta Diretiva foi aprovada não conhecíamos o Facebook, o Youtube, o Whatsapp, o Flickr ou o Uber, e a Netflix e a HBO ainda não ofereciam serviços de streaming. A Internet teve uma evolução mais rápida que a cidade de Xangai, onde antes existiam barracas e descampados estão agora arranha-céus. Não obstante, a Diretiva foi um sucesso. Os seus princípios aguentaram bem o teste do tempo e as transformações que este trouxe. Apesar disso, há um consenso quanto à necessidade de atualizar o quadro normativo aplicável. A vida contemporânea depende mais intensamente da Internet e o ciberespaço mudou muito.

Os Estados-Membros foram adaptando as suas regras, procurando responder a alguns destes desafios, o que, naturalmente, levou a uma certa fragmentação das regras, indesejável do ponto de vista do mercado único.[1] Nessa linha, a forma mais eficaz de evitar competência regulatória/dumping passa pela intervenção da União Europeia. Nesta Proposta isso é levado muito a sério, até porque também se centraliza o enforcement.

Como refere o art. 1.º/1 da Proposta, esta lida essencialmente com três aspetos: a) as isenções de responsabilidade de intermediários; b) os deveres dos intermediários, que variam de acordo com a sua categoria e dimensão e c) a supervisão e tutela relativamente a estas regras. Vou concentrar-me no primeiro.

Em relação às isenções de responsabilidade (mas não de deveres) a Proposta reconhece o valor da Diretiva do comércio eletrónico, replicando, no essencial, os seus arts. 12.º a 15.º, nos arts. 3.º (simples transporte), art. 4.º (armazenagem temporária – “caching”), 5.º (armazenagem principal – “hosting”) e 7.º (ausência de obrigação geral de vigilância) respetivamente. Por isso mesmo, o art. 71.º da Proposta prevê a revogação dos arts. 12.º a 15.º da Diretiva. O remanescente, nomeadamente a cláusula do mercado interno e as regras relativas à conclusão de contratos mantêm-se em vigor (ainda que, à luz da Proposta, haja alguma relativização do princípio do país de origem).

Em geral as regras básicas de isenção de responsabilidade dos intermediários permanecem inalteradas. O art. 6.º esclarece que a adoção voluntária de medidas de fiscalização por parte dos intermediários não afasta a isenção de responsabilidade.

Uma relevante novidade, animada por uma ideia de tutela da confiança/aparência, é a exclusão da isenção de responsabilidade “nos termos da legislação de defesa do consumidor de plataformas em linha que permitam aos consumidores celebrar contratos à distância com profissionais, sempre que tal plataforma em linha apresente o elemento específico de informação ou permita de outra forma que a transação específica em causa leve um consumidor médio e razoavelmente bem informado a acreditar que a informação, ou o produto ou serviço objeto da transação, é fornecida pela própria plataforma em linha ou por um destinatário do serviço que atue sob a sua autoridade ou controlo” (art. 5.º/3). O objetivo é abranger aqueles casos em que as empresas, além de venderem produtos ou prestarem serviços diretamente também gerem “marketplaces”, permitindo a terceiros oferecer os seus produtos ou serviços na sua página. Este artigo colocará, para ser aplicado, um problema da qualificação – porque é que esta regra está limitada às regras de defesa do consumidor? Pode ser uma questão de competência da UE, mas não creio que seja a melhor solução.

Além disso, há pequenas nuances que podem ou não ser relevantes. Na Diretiva do comércio eletrónico falava-se em atividade ilegal ou informação ilegal, agora fala-se em conteúdo ilegal (ver considerando 12, que o concretiza dando exemplos muitos diferentes, desde o discurso de ódio, noção que me parece muito difícil de concretizar, à pornografia infantil). Haverá uma diferença?

Chegou a ser discutida, e na posição do PPE volta a fazer-se a proposta, de incluir também obrigações relativas a conteúdo nocivo (“harmful content”). Se definir conteúdo ilegal já não é fácil, bem mais difícil será saber o que é conteúdo nocivo. A meu ver, certas músicas ou programas de televisão muito populares cairiam facilmente nessa categoria…

Acresce ainda, obviamente, o tema das fake news, que toda a gente concorda serem um problema (deep fakes e, mais insidiosos, os shallow fakes), mas o consenso acaba aí. Aliás, será sequer possível traçar uma fronteira entre o que é diferença factual e diferença de opinião? O que é que são factos? Muito daquilo que há vinte anos eram factos ou pelo menos consensos em vários domínios científicos estão hoje em dia ultrapassados. Com efeito, como é que a ciência avançou? Graças à liberdade de expressar opiniões “contra-factuais”. O dissenso é uma fonte de progresso de inexcedível importância.

Não por acaso, na Proposta há alguma preocupação com a salvaguarda da liberdade de expressão e de criação. Nesse sentido, o considerando 47 e o art. 20.º parecem equilibrados ao referir a necessidade de o conteúdo ser manifestamente ilegal ou de as denúncias serem manifestamente infundadas para os intermediários poderem (respetivamente) remover ou suspender um utilizador. No entanto, não parece que haja qualquer exigência de carácter evidente ou manifesto da ilegalidade do conteúdo para que se afaste a isenção de responsabilidade prevista no art. 5.º. Creio que essa qualificação deveria existir.

Se eu escrever na minha página do Twitter ou Facebook “Miguel Sousa Tavares é um palhaço”.[2] Isto é conteúdo ilegal? Pode ser, mas certamente não será manifestamente ou claramente ilegal.

Há quem proponha que não deve haver diferença entre o online e o offline. A dificuldade está em encontrar as equivalências certas. O jornal que publique um artigo em que eu escreva as palavras “Miguel Sousa Tavares é um palhaço” será responsável por isso? Devemos tratar de forma igual um editor de um livro ou de um jornal e quem gere uma plataforma? Não é certamente igual um jornal que tem controlo editorial sobre um número limitado de conteúdos e uma plataforma que recebe e aloja centenas de conteúdos por segundo. E, mesmo quanto ao regime, não é claro que os editores sejam e devam ser responsáveis pela informação que publicam.

Há um fascinante caso norte-americano de 1991 – Winter v. Putnam – relativo à responsabilidade do editor de um livro sobre cogumelos que continha erros graves e que, por isso, causou o envenenamento de alguns leitores. Mesmo assim, em atenção à liberdade de expressão, o editor não foi considerado responsável. Esta talvez seja uma postura extrema (até porque o livro seria um produto defeituoso), mas a decisão parte da valorização do discurso e da liberdade.

Há um risco de consequências imprevistas ou de distorção dos objetivos desta Proposta – quanto mais severos formos com os intermediários, maior o perigo para os pequenos negócios e para os cidadãos. Se os incentivos não estiverem devidamente alinhados, isto pode facilmente levar ao empobrecimento do discurso, da diversidade cultural e em última análise da democracia.

Nesse sentido, a Eurodeputada Christel Schaldemose já sublinhou que não se devem equiparar as plataformas a editores e que devemos distinguir aquelas que se dedicam à venda de produtos (“marketplaces”), daquelas que promovem e alojam discurso. O debate ainda está a começar, mas promete ser animado.

 

[1] Cfr. o estudo de Jan Bernd Nordemann https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2020/648802/IPOL_STU(2020)648802_EN.pdf e, mais recente, o estudo de Andrea Bertolini https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2021/656318/EPRS_STU(2021)656318_EN.pdf (sublinhando a complexidade regulatória emergente, mesmo no Direito Europeu).

[2] https://www.publico.pt/2013/07/02/sociedade/noticia/mp-arquivou-processo-de-cavaco-contra-miguel-sousa-tavares-1598996

The Game did not Stop

Doutrina

Fevereiro abriu com o que parecia ser uma corrida à prata, que se seguiu ao rally das ações da empresa de jogos GameStop no final de janeiro. Dentro da realidade psicadélica que globalmente se vive, procurando com êxito ainda incerto combater a pandemia de Covid-19, poderia fazer sentido.

O descontrolo que grassa por todo o lado, chegou (de novo) aos mercados financeiros provocando, também ali, uma enorme volatilidade. Tristemente habituados aos gráficos, dos infetados, hospitalizados, mortos e recuperados, já não nos fere a vista uma linha que sobe a pique, sem razão aparente, e rapidamente intuímos que significa que o que estávamos habituados a que fosse, deixou de ser. É temporário, não se sabe é por quanto tempo e com que efeitos.

No final de janeiro assistimos a uma aparente vitória de pequenos investidores sobre grandes fundos, abordada neste blog aqui. A notícia da vertiginosa subida das ações de uma empresa de jogos, a GameStop, originada em dicas e conselhos num fórum online, do Reddit, foi título em várias publicações, principalmente por ter causado uma semana de excecional volatilidade e grandes perdas para os que habitualmente ganhavam, as grandes empresas e os grandes fundos.

Enquanto esse frenesim ocorria, iniciava-se a corrida à prata, diziam uns que impulsionada pelo Reddit, como é noticiado aqui e outros que não, antes pelo contrário, como é noticiado aqui e aqui.

A corrida à prata poderia fazer sentido por várias razões.

A primeira é uma razão clássica, os metais são um refúgio quando os mercados ficam estranhos. Têm existência física pouco perecível e valor intrínseco. A segunda seria a razão agora em curso, a do fenómeno Reddit ou de quem dele se esteja a aproveitar, que consiste em alardear que os grandes fundos podem ser prejudicados se o preço subir, por terem apostado na descida, tratando de diligenciar para que suba. A terceira, mais prosaica, poderia ter a ver com a natureza humana. Depois do jogo e do entretenimento, os metais preciosos e, para os menos abonados, especificamente a prata, é sinal de riqueza. Quem sabe se a escolha da próxima ascensão vertiginosa não poderia ter também algo a ver com os básicos da psicologia humana.

Como tanto do que acontece na Bolsa, faria sentido, aconteceu, mas durou quatro dias, atingindo o pico durante o dia 2 de fevereiro, estando a prata, ao que parece, a voltar a valores anteriores ao sprint.

Quanto à GameStop, já não parece estar a correr nada bem. No gráfico a um ano, percebe-se melhor o fenómeno extraordinário que aconteceu. Em início de fevereiro de 2020, a ação valia 3.95 USD, iniciou uma pequena subida em agosto e fechou o ano de 2020 nos 18.84 USD. Em 20 de janeiro de 2021, iniciou uma subida vertiginosa, atingindo no dia 27 de janeiro, quarta-feira, os 347.5 USD. Baixou na quinta (193,6) e fechou com nova subida acentuada na sexta (325). Esta semana desce a pique, tendo fechado ontem a 90 USD e andando hoje por aí.

O mercado, se for livre, assenta na lei da oferta e da procura. Se a procura aumenta, o preço sobe, se a procura diminui o preço baixa. Havendo equilíbrio, o preço é estável. Aumentando muitíssimo a procura, sem ajustamento da oferta, o preço dispara para valores que podem ser completamente desajustados ao valor real daquilo que é transacionado. Quando acontece nas Bolsas de Valores, chamam-lhe bolha.

Desde há muito que existem Bolsas, mercados em que se comercializam mercadorias, ações e outros ativos financeiros. Desde há muito que existem bolhas, que por vezes assumiram a denominação de manias, como aconteceu com a Tulip Mania, que ocorreu entre novembro de 1636 e maio de 1637, em Amesterdão[1] e que muitos consideram a primeira da história.

Na Bolsa, as bolhas rebentam. O efeito é o de se voltar, com fortes perdas para alguns, a uma situação mais perto da normalidade.

Vamos ver no que isto dá.

Para já, registe-se a situação atual da GameStop – “Power to the players”, no mercado de Nova York. Registe-se, também, que o fenómeno GameStop da semana passada já foi repetido na Malásia, onde pequenos investidores criaram um grupo para apoiar uma empresa fabricante de luvas. Registe-se, ainda, a existência de alertas oficiais para o risco de investimentos em ambiente de grande volatilidade e a qualificação do fenómeno como “insane Ponzi Scheme”.

Os aderentes aos fenómenos de perspetivas de lucro rápido e fácil vão, à medida que o prodígio avança, sendo cada vez mais e cada vez mais inexperientes. A informação vai chegando progressivamente aos menos conhecedores que, convencidos de que podem enriquecer instantaneamente, engrossam a coluna e contribuem decisivamente para a subida. Estão lá e permanecem, quando os conhecedores vão saindo. Quem, na quarta-feira, comprou ações a 340 USD e as vendeu, por exemplo, hoje a meio da manhã, por 90 USD, perdeu 250 USD por ação.

O economista Nouriel Roubini, que ficou conhecido por prever a crise financeira, terá afirmado sobre o tema, numa conferência na última quinta-feira no Porto, que “Parece manipulação e vai acabar em lágrimas”.

Esperemos que, ao contrário do que parece, desta vez não tenha razão.

 

[1] A Holanda ainda hoje tem algo semelhante a uma Bolsa de Flores, o Aalsmeer Flower Auction.

Golias foi ao chão – o fenómeno GameStop e o efeito Reddit

Doutrina

Os pequenos e frágeis uniram-se esta semana e conseguiram aplicar uns golpes certeiros que desequilibraram alguns gigantes de Wall Street, numa semana em que uma surpreendente volatilidade foi ali a caraterística dominante. Golias foi ao chão e nós, os pequenos, sentimo-nos poderosos o que, para variar, é bastante bom.

A história, complexa como tudo nas Bolsas, conta-se em poucas palavras. Esta semana Wall Street fechou com os seus índices em queda acentuada, no que foi a pior semana desde outubro, segundo o JN, porque houve uma “revolta de pequenos investidores contra os fundos especulativos, que foram forçados a vender ativos para cobrir as suas perdas.”. Esses fundos tinham apostado na baixa da cotação de empresas em dificuldades, como a cadeia de lojas de videojogos GameStop, fazendo “short-selling”, coisa que fazem todos os dias e que consiste em “obter ações, emprestadas, vendendo-as, antecipando a sua descida, para depois de esta ocorrer as recomprarem, devolverem e encaixarem os ganhos realizados.”, também explicado aqui. Normalmente funciona. Esporadicamente, sai-lhes o tiro pela culatra e têm de recomprar. Precisando de liquidez, vendem as “posições longas” (investimentos previstos para médio/longo prazo) em ações de empresas que estão ganhadoras (e que, com a venda, desvalorizam). Pelo caminho podem perder dinheiro durante um bocadinho, o que não deixa de ser desagradável.

A especulação bolsista dos grandes investidores, leia-se gigantescos fundos, assenta em ordens quase exclusivamente automáticas, produzidas por ferozes algoritmos, enviadas por sistemas de computação poderosíssimos, estrategicamente situados, sempre que possível fisicamente ao lado das Bolsas de Valores, o que permite que cheguem uns milissegundos mais rapidamente que as dos outros gigantes o que, em negociação bolsista, faz toda a diferença. O fenómeno foi magistralmente analisado, já em 2006, por Saskia Sassen, no seu livro “Territory, Authority, Rights[1]. Esta extraordinária, versátil e surpreendente investigadora, alia à solidez dos métodos científicos clássicos, originalidades como a de ir à noite para o Goldman Sachs, falar com funcionários da limpeza e segurança, para melhor compreender a crise financeira que culminou em catástrofe em 2008. E compreendeu muito bem que, há mais de uma década, os “mercados” já funcionavam essencialmente em modo automático, dominados pela tecnologia só acessível aos incrivelmente ricos e poderosos que, assim, se tornavam mais incrivelmente ricos e poderosos, como a realidade desde aí, passando pela crise de 2008 e respetiva recuperação, foram demonstrando.

Esta dinâmica foi, então, interrompida esta semana. A revolta é notícia por todo o lado, aparecendo no Expresso, com o interessante título “Wall Street. O efeito Reddit ultrapassa o fenómeno da GameStop” o que, no essencial, significa que o que começou por ser uma rebelião contra um ataque à empresa de videojogos GameStop, se propagou a outras ações, devido a um movimento que se desenvolveu online, no fórum da Reddit. Segundo o Expresso “os investidores compram ações de acordo com as notícias que vão sendo divulgadas na rede social Reddit, muito partilhada pelos investidores e personalidades norte-americanas”. Neste movimento, as ações da GameStop foram objeto de intensíssima transação e tiveram ganhos extraordinários, outras tiveram perdas inesperadas e o fórum da Reddit praticamente duplicou o número de utilizadores que terá aumentado “de 2,8 milhões para 4,3 milhões”.

A moral da história consiste em que a união faz a força, David vence Golias, juntos venceremos e assim, o que é bonito, nos redime um pouco e nos alimenta a esperança de que as coisas podem ser diferentes, o que é especialmente importante para quem se interessa por Direito do Consumo.

Essa expetativa assumiu contornos muito vincados na aurora das redes sociais. O Facebook foi lançado em 4 de fevereiro de 2004, rapidamente ganhou adeptos, e outras redes sociais se lhe seguiram num movimento crescente e imparável. Parecia que nascia uma possibilidade de todos terem voz, palco, relevância. A ideia de uma espécie de democracia direta despontava intensamente.

O livro de Glenn Reynolds, de 2007, “An Army of Davids: How Markets and Technology Empower Ordinary People to Beat Big Media, Big Government, and Other Goliaths” expressa muito bem e amplamente, a ideia de que os indivíduos ganhavam relevantes poderes que lhes iam possibilitar grandes feitos.

Poucos anos depois, a ideia for perdendo força, para o que contribuíram, por exemplo, as denominadas “primaveras árabes”, em parte possíveis pela mobilização e comunicação online, e que, em muitos casos, se tornaram sombrios invernos. Mais recentemente, a eleição de Trump, também não ajudou. Os fenómenos associados às compras online, as fake news, a monetarização dos dados pessoais, a obtenção de foros de soberania de facto pelos gigantes tecnológicos, entre muitos outros, têm originado reflexão e recuo em relação às grandes expetativas iniciais.

Voltando ao caso desta semana em Wall Street, há que estar com atenção aos tempos vindouros.

Embora não tenha nada a ver para o caso, assinale-se que é curioso que uma empresa que vive de vender jogos se chame GameStop. Dir-se-ia uma contradição nos termos, uma suscetibilidade de induzir em erro desde a denominação e será, provavelmente uma gracinha imaginativa assente num trocadilho com GameShop. Do ponto de vista linguístico é interessante e funciona. Os trocadilhos tendem a funcionar. Do ponto de vista legal, é duvidoso. No entanto, esta é uma questão lateral, que não deve perturbar o facto de a GameStop ser o herói desta história e um herói charmoso que parece que ficou rico, pelo menos para já. Curioso, também, é o facto de o fenómeno da semana se ter intensificado muito após a publicação de um tweet de Elon Musk no tal fórum, sendo que as ações da Tesla eram das que mais perdiam. Podia ter algum interesse aplicar uma lupa neste ponto.

Vamos, portanto, estar com atenção à próxima semana, e à outra, e à outra. Existe a possibilidade de verificarmos que os algoritmos dos fundos foram ajustados e que os gigantes que fecharam a descer vão recuperar extremamente. Em relação à GameStop, ou se salva, ou aproveita para encaixar uns milhões e, eventualmente fechar para ir abrir no quarteirão a seguir, com denominação igualmente (des)elucidativa, talvez StopLossGame. Em relação ao Reddit, e sendo certo que Golias foi ao chão e se levanta antes de terminar a contagem para o KO, o tempo dirá se foi a causa ou a consequência e já diz que veio, viu e venceu.

[1] V. Saskia Sassen, “Territory, Authority, Rights – from Medieval to Global Assemblages”, Princeton University Press, 2006, pp. 348 e ss..

 

Regime Jurídico das Contraordenações Económicas e Direito do Consumo

Legislação

Foi hoje publicado no Diário da República o Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro, que aprova, em anexo, o Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE). Como se pode ler no preâmbulo, o objetivo principal deste diploma consiste em resolver o problema da “disparidade no que se refere aos regimes sancionatórios previstos nos diversos diplomas que regulam a atividade económica, com particular destaque para os limites mínimos e máximos das coimas, e para a diversidade de autoridades competentes, que podem variar nas distintas fases do processo contraordenacional”, tendo em vista a maximização do bem-estar, da segurança e da proteção dos direitos dos consumidores, o regular funcionamento dos mercados e a competitividade da economia e a promoção da concorrência

Nos termos do art. 1.º-1 do RJCE, o “regime é aplicável às contraordenações económicas que sejam qualificadas por lei como tal”.  Foi assim necessário alterar uma série de diplomas legais, neles se qualificando alguns ilícitos como contraordenações económicas. O art. 1.º-2 do DL 9/2021 indica os regimes alterados, podendo a sua extensão ser resumida no facto de a última alínea ser a impressionante alínea wwwwwww).

Entre os diplomas alterados, destacamos, em matéria de Direito do Consumo, os regimes da venda de bens de consumo e garantias, dos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial, das práticas comerciais desleais, da indicação de preços, das práticas comerciais com redução de preço, da habitação periódica, das viagens organizadas e da resolução alternativa de litígios de consumo.

Em relação a este último diploma (Lei n.º 144/2015), assinalamos apenas um lapso na sua identificação. Com efeito, na alínea j) do art. 1.º-2, refere-se que se procede “à terceira alteração à Lei n.º 144/2015, de 18 de setembro, alterada pelo Decreto-Lei n.º 102/2017, de 23 de agosto, e pela Lei n.º 14/2019, de 12 de fevereiro, que transpõe a Diretiva 2013/11/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, e estabelece o enquadramento jurídico dos mecanismos de resolução extrajudicial de litígios de consumo”. Trata-se, na verdade, da quarta alteração, uma vez que o diploma também foi alterado, recentemente, pela Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro (Orçamento do Estado para 2021), que aditou um art. 4.º-C, sobre o apoio financeiro da administração local.

Voltando ao RJCE, salienta-se que as contraordenações económicas passam a ser classificadas como leves, graves e muito graves, tendo em conta a relevância dos bens jurídicos tutelados (art. 17.º). Os montantes das coimas (art. 18.º) dependem, por um lado, do escalão classificativo e, por outro lado, da natureza do agente. Os agentes podem ser qualificados como pessoa singular, microempresa (menos de 10 trabalhadores), pequena empresa (entre 10 e 49 trabalhadores), média empresa (entre 50 e 249 trabalhadores) e grande empresa (250 ou mais trabalhadores).

São considerados contraordenações leves, entre outros ilícitos, (i) o incumprimento do dever de informação relativo à resolução alternativa de litígios de consumo e (ii) a omissão da informação relativa a restrições geográficas a encomendas feitas online.

São considerados contraordenações graves, entre outros ilícitos, (i) as práticas comerciais desleais, (ii) a omissão da indicação do preço, (iii) o incumprimento das regras relativas às práticas comerciais com redução de preço, (iv) o incumprimento do prazo para a reparação ou substituição no prazo de 30 dias e sem grave inconveniente para o consumidor na venda de bens de consumo e (v) o incumprimento do dever de informação pré-contratual nos contratos celebrados à distância ou fora do estabelecimento comercial.

São considerados contraordenações muito graves, entre outros ilícitos, (i) o fornecimento de bens não solicitados e (ii) o não reembolso do valor pago pelo consumidor em caso de indisponibilidade do bem ou serviço encomendado à distância.

Deixamos uma última referência à Diretiva (UE) 2019/2161, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019, que altera a Diretiva 93/13/CEE, do Conselho, e as Diretivas 98/6/CE, 2005/29/CE e 2011/83/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, a fim de assegurar uma melhor aplicação e a modernização das regras da União em matéria de defesa dos consumidores, cuja transposição irá implicar, necessariamente e em breve, uma alteração ao RJCE agora aprovado.

Com efeito, prevê-se na nova versão das diretivas relativas às práticas abusivas, à indicação de preços, às práticas comerciais desleais e aos direitos dos consumidores que “os Estados-Membros asseguram que [… as] sanções contemplam a possibilidade de aplicar coimas por meio de procedimentos administrativos ou de intentar uma ação judicial para a aplicação de coimas, ou ambas, sendo o montante máximo dessas coimas de, pelo menos, 4% do volume de negócios anual do profissional no(s) Estado(s)-Membro(s) em causa”. Ora, esta possibilidade não se encontra prevista no RJCE.

Orçamento do Estado, Estado de Emergência e Serviços Públicos Essenciais

Legislação

No último dia do ano transato foi aprovada a Lei n.º 75-B/2020, de 31 de dezembro, referente ao Orçamento de Estado para 2021, que trouxe importantes novidades para os consumidores, dado o contexto pandémico no qual ainda nos encontramos. Uma dessas novidades (embora com contornos já conhecidos) vem na forma do art. 361.º, referente à impossibilidade da suspensão do fornecimento de serviços públicos essenciais durante o 1.º semestre de 2021. Sendo que este artigo retoma o previsto na Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, explorado aqui, aqui e aqui, com este post pretendemos explorar o regime recém-aprovado, comparando-o com o anterior e verificando quais as evoluções sofridas.

Nestes termos, vemos que ao longo dos seus sete números, o art. 361.º consagra a proibição de os prestadores de serviços públicos essenciais (água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas) suspenderem o fornecimento destes serviços (n.º 1).

Não obstante, relativamente às comunicações eletrónicas, dita o n.º 2 que esta proibição apenas se aplica se a suspensão em causa tiver uma de três causas: (i) situação de desemprego, (ii) quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20%, ou (iii) infeção por doença COVID-19. Assim, vemos que, ao contrário do que ocorre com os restantes serviços públicos essenciais, o fornecimento de serviços de comunicações eletrónicas poderá ser suspenso caso não se verifique nenhuma destas condições.

Ademais, caso estejamos perante a primeira ou segunda condição, o n.º 3 atribui dois direitos aos consumidores de serviços de telecomunicações: a cessação unilateral do contrato, sem lugar a compensação ao fornecedor, ou a suspensão temporária do mesmo, sem penalizações para o consumidor, que deverá ser retomado a 1 de janeiro de 2022 ou em data a acordar entre as partes.

Além disso, este artigo aborda a possibilidade de existirem valores em dívida relativos aos serviços prestados. Nesse cenário, os n.os 4 e 5 obrigam à elaboração, em tempo razoável, de um plano de pagamento adequado aos rendimentos atuais do consumidor, plano esse acordado entre este e o fornecedor.

Por último, o n.º 7 permite aos consumidores que viram o fornecimento dos seus serviços públicos suspensos no período entre 1 de outubro e 31 de dezembro de 2020 requerer a sua reativação sem custos inerentes, desde que (i) tenham estado desempregados, com uma quebra do rendimento do seu agregado familiar igual ou superior a 20% ou infetados pela doença COVID-19 durante a integralidade desse período e (ii) tenha sido acordado um plano de pagamento para os valores em dívida relativos ao fornecimento desses serviços.

Quando comparado com o anterior regime, previsto no art. 4.º da Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, vemos que os regimes em causa apresentam semelhanças evidentes. Na verdade, o conteúdo dos n.os 1 e 2 mantém-se igual à versão original da Lei n.º 7/2020[1] e o n.º 3 mantém-se igual à versão da Lei n.º 7/2020, alterada pela Lei n.º 18/2020, de 29 de maio. No mesmo sentido, os n.os 4 e 5 mantêm o conteúdo previsto na Lei n.º 7/2020 e o n.º 6 continua a remeter para a Portaria 149/2020, de 22 de junho, para o cálculo da quebra de rendimentos. Por último, e como novidade, temos o n.º 7 que não existia no regime anterior.

Nestes termos, vemos que algumas das questões anteriormente apontadas por nós se mantêm nesta nova versão da proibição da suspensão de serviços públicos essenciais. Por exemplo, é possível verificar, tal como aqui foi constatado, que existe uma certa hierarquização dos serviços públicos essenciais, na medida em que são exigidos requisitos extra para a proibição de suspensão no fornecimento de serviços de telecomunicação face aos restantes. Ora, face à necessidade que se tem sentido na manutenção do trabalho à distância, ou na necessidade de contacto telefónico em situações urgentes, tais como com o SNS 24, continua sem se compreender a razão de ser desta diferenciação entre as telecomunicações e a água, a energia elétrica e o gás natural. Contudo, vemos também que o legislador, ao ter de escolher entre a versão originária da Lei n.º 7/2020 e a subsequentemente adotada pela Lei n.º 18/2020, preferiu agora a primeira, garantindo assim um maior nível de proteção do consumidor relativamente ao fornecimento de água, energia elétrica e gás, embora tenha mantido um nível de proteção mais reduzido para as comunicações eletrónicas.

Ademais, no que se refere aos planos de pagamentos em caso de valores em dívida, vemos que a lei continua sem dar resposta à questão de saber o que acontece caso não seja possível alcançar esse acordo entre o consumidor e o fornecedor, nem por abordar as questões por nós mencionadas relativamente à Portaria 149/2020, nomeadamente no que toca à interpretação do conceito de “causa determinante” prevista no art. 3.º-1.

Assim, não parece que este novo artigo venha trazer grandes inovações no que concerne ao anterior regime, a não ser o importante alargamento do prazo em que o utente se encontra especialmente protegido.

 

[1] De relembrar, tal como previamente analisado, que, com a Lei n.º 18/2020, de 29 de maio, os requisitos extra constantes do art. 4.º-2 foram alargados a todos os serviços públicos essenciais mencionados pelo n.º 1.

Boycott (boicote) e Buycott – O poder do consumidor está nas suas decisões

Doutrina

Os tempos que vivemos são estranhos e confusos. E são estranhos e confusos a muitos níveis. O consumo e as nossas decisões de consumo também estão a viver nestes tempos de medo, incerteza e angústia.

aqui falámos no nosso blog do conceito de revenge spending, num texto escrito em agosto de 2020 por Yasmin Watge, que caracteriza um fenómeno de consumo por vingança em relação à pandemia e ao vírus, que leva a que o menor consumo durante o confinamento seja compensado por um consumo excessivo após o final desse período. Também os efeitos Netflix e Shein foram realçados em textos de Paula Ribeiro Alves e Yasmin Waetge, ambos escritos em dezembro de 2020. Destes textos resulta alguma ânsia pelo consumo, por parte das pessoas, muitas vezes irrefletida.

Como refere Yasmin Waetge no final deste seu último texto, “o problema não é consumir, mas é não pensar no consumo!”.

E esta é a principal mensagem deste texto. As decisões de consumo são também políticas.

No #13 do NOVA Consumer Podcast, Sandra Passinhas definia-se como uma consumidora politicamente ativa, por exemplo não comprando produtos de determinadas regiões. Prevê aliás que um dia todos o faremos.

A verdade é que, no mesmo momento em que se assiste a fenómenos como os de revenge spending e a efeitos Netflix e Shein, entre muitos outros, nunca se discutiu tanto a ligação entre o consumo, por um lado, e a sustentabilidade e a responsabilidade social, por outro lado. E esta ligação está umbilicalmente ligada às decisões de consumo das pessoas, às nossas decisões de consumo. Nunca como hoje se transmite e se anuncia o que se compra e o que não se compra.

Nos primeiros episódios da segunda temporada do NOVA Consumer Podcast, já gravados e que se serão transmitidos em breve (com Catarina Barreiros, o primeiro, e Marta Santos Silva e Luísa Cortat, o segundo), é possível verificar esta tendência. A questão do consumo de abacate, por exemplo, ligada a uma produção muito pouco sustentável em contextos geográficos como o nosso (em Portugal) foi salientada nas duas entrevistas.

As decisões de consumo têm uma forte vertente política. Quando se contrata (ou não se contrata) está a tomar-se uma decisão que tem consequências políticas. Pode estar em causa o ambiente, uma orientação política, princípios ou valores éticos, o cumprimento da lei, processos de produção mais justos.

Neste texto, de 2018, Orge Castellano, explica de que forma “buycotting” é a nova forma de ativismo político, dando exemplos de campanhas para reforçar as compras a empresas contrárias às políticas de Donald Trump nos Estados Unidos da América.

Podemos dar muitos outros exemplos: comprar roupa fabricada em locais onde são respeitados os direitos dos trabalhadores; não comprar carne de regiões onde os animais são maltratados; comprar fruta de países democráticos; não comprar eletrodomésticos de países com regimes fiscais iníquos; ir a restaurantes que utilizam produtos sustentáveis; não seguir influenciadoras ou influenciadores que não alertam para o facto de os conteúdos serem patrocinados.

O boicote, do inglês boycott, é uma arma ao serviço do consumidor (e das associações de consumidores), muito referida e utilizada, em especial nos Estados Unidos América, nos primeiros tempos da sociedade de consumo. Segundo o texto anteriormente referido, a própria palavra resulta de um proprietário de terras irlandês, Charles Boycott, que, na segunda metade do século XIX, explorava e abusava (d)os camponeses. Em 1880, um ano particularmente difícil para as colheitas, estes pediram uma redução do valor das rendas, a qual foi recusada. Os camponeses iniciaram uma revolta, que contou com a solidariedade das empresas locais, que deixaram de contratar com Charles Boycott, tendo inclusivamente o carteiro deixado de lhe levar a correspondência. Esta tática de protesto foi então cunhada a partir do nome do boicotado naquele momento histórico. Boicotar uma empresa significa não contratar com ela. Boicotar um produto significa não o comprar (ou não o adquirir por via de qualquer outra relação contratual que não a compra e venda).

O buycott, fenómeno mais recente e ainda sem termo em português (será que podemos falar de “compracote”?), é a tática inversa: contratar com uma empresa porque se está alinhado com o seu posicionamento, por exemplo em matéria de ambiente, orientação política, princípios ou valores éticos e/ou cumprimento da lei[1].

Esta tática reforça o poder do consumidor. Quando se pensa no consumo que se faz, faz-se política e influencia-se a sociedade à nossa volta. O consumidor tem o poder de mudar a sociedade através do consumo, quer pelo que consome quer pelo que não consome. Tem o poder de influenciar o posicionamento das empresas. E tem o dever de controlar o cumprimento das declarações feitas pelas empresas. Isto leva-nos aos conceitos de greenwashing e de bluewashing, mas deixemos o tema para depois, que o texto já vai longo.

 

[1] Para uma análise mais aprofundada da distinção entre o boycott e o buycott, de um ponto de vista sociológico, v. este texto de Lauren Copeland, com o título Conceptualizing Political Consumerism: How Citizenship Norms Differentiate Boycotting from Buycotting.

O psicólogo Facebook e os jovens

Doutrina

Há muito, muito tempo, num reino distante, um gigante mostrou a um jornal o resultado de umas pesquisas que andava a fazer sobre a vulnerabilidade dos adolescentes online, aferível em tempo real, e a constatação de que a intensa vivência da fragilidade seria o momento ideal para, amavelmente, lhes sugerir algumas compras.

Foi em 2017, na Austrália, o gigante era o Facebook, o jornal o The Australian e a proeza assentava na utilização de inteligência artificial (Artificial Intelligence – AI), big data e small data. Pode tudo ser lido em detalhe aqui, num artigo do The Guardian que, sensatamente, nos avisa ao entrarmos: “This article is more than 3 years old”.

No que diz respeito às capacidades da AI, três anos é tempo imenso e é importante ter isso em mente ao ler este post, que vem na sequência do publicado esta semana aqui. A ideia é trazer substância material ao tema aí tratado, relativo à leitura das emoções por sistemas de inteligência artificial e ilustrar o que pode, e é, feito na realidade em que todos vivemos e que a todos nos afeta. É necessário, pois, ter em consideração que estas habilidades são, de algum modo, rudimentares em relação às que podem ser, e são, realizadas atualmente, em 2021, num mundo que, além do mais, está pandémico há um ano e, também por isso, transitou para uma versão ainda mais digital de si próprio.

Vamos aos factos: o Facebook, num relatório bastante claro, destinado a informar os anunciantes sobre as vantagens de anunciarem, explicou que seguia em tempo real as comunicações de adolescentes e jovens, nomeadamente posts e imagens, e identificava as inseguranças, ansiedades e receios que estavam a sentir. Naturalmente que, pelo simples facto de se incluírem naquela faixa etária, a propensão para se sentirem, por exemplo, gordos, magros, feios, com borbulhas, louros em vez de morenos, morenos em vez de louros, é enorme, como todos os que por essa idade já passámos tão bem sabemos. Não é por acaso, é pela sua especial vulnerabilidade, que a legislação protege diferenciadamente crianças e jovens.

Quando aquele feito do Facebook foi tornado público a reação não foi a melhor e a empresa pediu desculpa e disse que ia instaurar um inquérito interno e etc, etc, etc, o bê-a-bá do politicamente correto. No entanto, num segundo momento, talvez por perceber que admitir, mesmo que para pedir desculpa, seria mau demais, veio dizer que tinha havido um engano e que o Facebook não fornecia ferramentas “to target people based on their emotional state”, mas sim “to help marketers understand how people express themselves”. Ora, portanto, os anunciantes tinham muito interesse, talvez como os psicólogos, em compreender como é que as pessoas exprimiam as suas emoções e o psicólogo supremo Facebook, solicitamente, ajudava nessa tarefa e na prossecução desse elevado objetivo. Tudo, vá, em abstrato, sem ter a ver com conseguir vendas. Era, pois, isto que era feito, estava esclarecido e não se falava mais no assunto.

O escândalo foi grande e grandemente esquecido.

A internet é assim, o que lá está é tão eterno, como efémero. Impressionamo-nos, revoltamo-nos, enfadamo-nos e seguimos para a receita de wraps que se segue, porque já estamos a ficar com um bocadinho de fome.

Pode ler mais neste blog sobre a ética ligada à inteligência artificial, aqui e aqui e sobre a AI na sociedade aqui e, se quiser ficar mesmo assustado, aqui.

Novamente os saldos, as promoções e as liquidações – Decreto n.º 3-B/2021, de 19 de janeiro

Legislação

Em face da evolução da atual pandemia, o Governo tem vindo a adotar, progressivamente, medidas para o combate à propagação do vírus Sars-CoV-2, adaptadas às necessidades de controlo da mesma.

Ainda há uns dias anunciávamos aqui no blog as medidas previstas no Decreto-Lei n.º 6-E/2021, de 15 de janeiro, em matéria de saldos. O art. 11.º deste diploma veio flexibilizar o anúncio de saldos, determinando que a comercialização em saldos que se venha a realizar durante o período de suspensão das atividades e encerramento dos estabelecimentos no âmbito do estado de emergência não releva para efeitos de contabilização do limite máximo temporal previsto legalmente para a venda em saldos, de 124 dias por ano, nos termos do art. 10.º-1 do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março.

Pois bem: poucos dias depois temos uma nova regra emergencial sobre anúncio de reduções de preços, incluindo saldos, promoções e liquidações, esta de sentido contrário.

Assim, no passado dia 19 de janeiro, foi publicado em Diário da República o Decreto n.º 3-B/2021, que altera o anterior Decreto n.º 3-A/2021, de 14 de janeiro.

O Decreto n.º 3-B/2021 adita um novo art. 15.º-A ao Decreto n.º 3-A/2021: “é proibida a publicidade, a atividade publicitária ou a adoção de qualquer outra forma de comunicação comercial, designadamente em serviços da sociedade da informação, que possam ter como resultado o aumento do fluxo de pessoas a frequentar estabelecimentos que, nos termos do presente decreto, estejam abertos ao público, designadamente através da divulgação de saldos, promoções ou liquidações”.

Para compreender o art. 15.º-A é essencial segmentá-lo em três partes distintas.

Em primeiro lugar, determina-se a proibição da publicidade, da atividade publicitária ou de qualquer outra forma de comunicação comercial, designadamente em serviços da sociedade de informação.

O conceito de publicidade, bem como o de atividade publicitária, conforme dispostos nos arts. 3.º e 4.º, respetivamente, do Código da Publicidade, são bastante abrangentes. Será considerada publicidade a comunicação, no âmbito de uma atividade comercial, industrial, artesanal ou liberal, com o objetivo de promover, com vista à sua comercialização ou alienação, quaisquer bens ou serviços.

Na segunda parte do artigo restringe-se o seu âmbito, referindo-se que a proibição nos termos expostos se aplica “designadamente em serviços da sociedade de informação, que possam ter como resultado o aumento do fluxo de pessoas a frequentar estabelecimentos que (…) estejam abertos ao público”.

Os serviços da sociedade de informação são, nos termos legais, quaisquer serviços prestados à distância, por via eletrónica, no âmbito de uma atividade económica. Assim, sendo claro que os estabelecimentos atualmente abertos ao público não poderão promover, por meios publicitários, os seus produtos online, dúvidas restam quanto à permissibilidade de práticas publicitárias desses mesmos bens ou produtos nos próprios estabelecimentos.

Se recorrermos à ratio do diploma, i.e., a necessidade de diminuição da circulação dos cidadãos, por forma a mitigar os contágios do vírus SARS-CoV-2, facilmente percebemos que o artigo sob análise tem como objetivo desencorajar que os consumidores se dirijam a espaços físicos de comércio ou prestação de serviços, por incentivo de mensagens publicitárias.

Assim, poderia defender-se, quanto à publicidade feita dentro dos próprios estabelecimentos abertos ao público, que, não tendo os consumidores acesso às promoções via online, não seriam motivados a dirigir-se ao estabelecimento por força das práticas promocionais aí praticadas (porque não teriam conhecimento das mesmas antes de entrar no estabelecimento), mas antes por necessidade estrita de acesso a bens ou serviços essenciais.

A última parte da norma sob análise vem estreitar, mais uma vez, o seu âmbito de aplicação, dizendo que é designadamente proibida a divulgação de saldos, promoções ou liquidações que possam ter como resultado o aumento do fluxo de pessoas a frequentar estabelecimentos abertos ao público.

Resta a dúvida sobre a consagração, neste trecho, de um numerus clausus de práticas publicitárias proibidas.

Desta forma, as conclusões a tirar serão que, por um lado, aos estabelecimentos encerrados ou cujas atividades tenham sido suspensas por ordem do Governo não será de aplicar a presente proibição, beneficiando estes do regime mais favorável consagrado recentemente para os saldos (e que já foi analisado aqui).

É também de concluir que a proibição sob análise não será de aplicar aos operadores económicos que, apesar de estarem, de momento, abertos ao público, promovam práticas comerciais com redução de preço aplicáveis exclusivamente às compras através de plataforma online, contando que o processo de venda e pós-venda seja passível de ser concluído sem necessidade de contacto com o estabelecimento físico do operador económico.

É ainda clara a aplicabilidade da proibição de anunciar saldos, promoções ou liquidações em estabelecimentos abertos ao público, publicitando tais práticas com redução de preço online.

Restam dúvidas quanto a saber se a proibição aqui em causa se aplica, de facto, a toda a publicidade, ou antes, conforme descrito na respetiva epígrafe, apenas à publicidade a práticas comerciais com redução de preço.