Breve análise à proteção do consumidor em Timor-Leste

Doutrina

Após séculos de domínio colonial português e 24 anos de ocupação por parte da Indonésia, a primeira Constituição da República Democrática de Timor-Leste (CRDTL) entrou em vigor em Timor-Leste a 20 de maio de 2002. Aproximando-se a celebração dos 20 anos da entrada em vigor da Constituição timorense, analisamos de forma concisa as principais características do regime de proteção dos consumidores em Timor-Leste e na sua Constituição.

Numa primeira linha, a CRDTL consagra determinados direitos dos consumidores no seu artigo 53.º:

1. Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, a uma informação verdadeira e à protecção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos.

2. A publicidade é disciplinada por lei, sendo proibidas todas as formas de publicidade oculta, indirecta ou enganosa.

A norma constitucional de proteção dos consumidores presente na CRDTL, à semelhança do art. 78.º da Constituição da República de Angola, art. 80.º da Constituição da República de Cabo Verde e  art.º 92.º da Constituição da República de Moçambique, foi claramente inspirada no artigo 60.º da Constituição da República Portuguesa, sendo visível que o legislador timorense transcreveu quase ipsis verbis a redação que consta desse mesmo artigo 60.º.

A proteção do consumidor em Timor-Leste é conseguida sobretudo através do dever de fornecimento de bens e serviços com qualidade, isto é, conformes ao contrato e com as características e propriedades necessárias para satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos que lhes atribuem. Quando os bens ou serviços adquiridos por um consumidor não estiverem conformes ao contrato, a CRDTL estabelece que o consumidor terá  direito a uma indemnização para reparar os danos decorrentes de bens ou serviços desconformes ao contrato (para além de outros direitos que poderão surgir para além deste preceito constitucional).  Não obstante, o legislador cria também um direito mais geral à informação verdadeira e à proteção da saúde, segurança e interesses económicos dos consumidores.

O n.º 2 desenvolve o direito dos consumidores a uma informação verdadeira. Esta “informação verdadeira” reporta-se às características dos bens ou serviços adquiridos, através da proibição de publicidade oculta, indireta ou enganosa que possa induzir o consumidor em erro.

A Lei n.º 8/2016, de 8 de Julho (Lei de Proteção do Consumidor) incorpora e desenvolve os princípios previstos no art. 53.º da CRDTL, tornando-se assim no principal diploma referente à proteção e defesa dos direitos dos consumidores em Timor-Leste.

O art. 1.º da Lei n.º 8/2016, de 8 de julho, refere que esta lei tem como objeto a aprovação do regime jurídico de proteção e defesa dos consumidores, definindo as funções do Estado, os direitos dos consumidores e a intervenção das associações de proteção de consumidores.

O art. 3.º estabelece como sendo consumidor a “pessoa singular ou coletiva à qual são fornecidos bens ou prestados serviços destinados ao uso não profissional, por pessoa que exerça uma atividade económica, com caráter profissional, com vista à obtenção de benefícios”. De notar que o elemento subjetivo desta noção de consumidor, para além das pessoas singulares, inclui também as pessoas coletivas, alargando de forma significante a aplicação da legislação de consumo. Esta extensão dos direitos de consumidor às pessoas coletivas pode levantar questões quanto à sua ratio legis – uma pessoa singular requer um maior nível de proteção nas suas relações de consumo do que uma pessoa coletiva, sobretudo se tivermos em conta as assimetrias de informação e de poder negocial entre o consumidor pessoa singular e o vendedor do bem ou prestador do serviço. Contudo, o alargamento do elemento subjetivo do conceito de consumidor não deixa de ser uma opção político-legislativa que não é suficiente por si só para determinar a aplicação da legislação de consumo – tem ainda de se verificar a presença dos elementos objetivo, teleológico e relacional.

O art. 7.º, com a epígrafe “qualidade dos bens e serviços”, visa garantir que os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e produzir os efeitos que lhes atribuem. O período mínimo de garantia dos bens móveis é de um ano, exceto quando ao bem não seja dado um uso normal ou razoavelmente previsível e salvo prazo mais favorável acordado pelas partes. Este período é alargado para um mínimo de cinco anos no caso dos bens imóveis.

A Lei de Proteção do Consumidor consagra ainda um direito de arrependimento com fonte legal nos contratos “que resultem da iniciativa do fornecedor de bens ou do prestador de serviços fora do estabelecimento comercial, por meio de correspondência ou outros equivalentes”, pelo que apenas se aplica a estes. É estabelecido um prazo de dez dias úteis a contar da data da receção do bem ou da conclusão do contrato de prestação de serviços para o consumidor invocar este direito.

Não deixa de ser interessante referir que a Lei de Proteção do Consumidor, para além de atribuir direitos, atribui também deveres aos consumidores. Apesar de ser uma norma essencialmente programática, o art. 13.º estabelece que o consumidor tem o dever de:

“a) Respeitar os compromissos assumidos perante os fornecedores de bens e prestadores de serviços, agindo de boa-fé, com correção e seriedade;

b) Defender junto das autoridades competentes os seus interesses;

c) Atender às consequências do seu consumo face aos outros cidadãos, nomeadamente os mais vulneráveis;

d) Atender ao impacto ambiental do seu consumo;

e) Denunciar perante as autoridades competentes qualquer violação dos seus direitos.”

Quanto às associações de defesa de consumidores, estas têm um papel de destaque no que concerne a proteção dos consumidores, sendo-lhes atribuídos diversos objetivos e tarefas para alcançar este propósito.

Como indica o art. 8.º, para além do Estado ter o dever de incentivar e promover a realização de ações de sensibilização para o consumo, cabe também às associações de proteção de consumidores a promoção deste tipo de atividades. Para isso, “as associações de consumidores são dotadas de personalidade jurídica, sem fins lucrativos e com o objetivo principal de proteger os direitos e os interesses dos consumidores em geral ou dos consumidores seus associados” (art. 30.º n.º1). No catálogo de direitos atribuídos às associações de consumidores previstos no art. 31.º, destacam-se os seguintes:

“a) Estatuto preferencial para a discussão de matérias que digam respeito à política de consumidores;

c) Direito a representar os consumidores no processo de consulta e audição públicas a realizar no decurso da tomada de decisões suscetíveis de afetar os direitos e interesses daqueles;

d) Direito a solicitar, junto das autoridades administrativas ou judiciais competentes, a apreensão e retirada de bens do mercado ou a interdição de serviços lesivos dos direitos e interesses dos consumidores;

h) Direito a serem ouvidas nos processos de regulação de preços de fornecimento de bens e de prestações de serviços essenciais, nomeadamente nos domínios da água, energia, gás, transportes e comunicações, e a receber os esclarecimentos sobre as tarifas praticadas e a qualidade dos serviços, por forma a poderem pronunciar-se sobre elas;

j) Direito à presunção de boa-fé das informações por elas prestadas.”

Por fim resta referir que, apesar do enquadramento legal exposto, de várias semelhanças com a legislação em vigor em Portugal e países dos PALOP, e do catálogo de direitos atribuído aos consumidor, a legislação de defesa do consumidor em Timor-Leste “ainda não é implementada e reconhecida pelos próprios consumidores, agentes do mercado e administração pública”, como reconhece o Embaixador da União Europeia em Timor-Leste, Andrew Jacobs. Há ainda um longo caminho a percorrer para que a legislação de consumo possa efetivamente vir a ser aplicada no dia-a-dia nas relações de consumo, aplicação esta que é absolutamente fundamental para garantir a proteção dos direitos dos consumidores, conforme previsto no artigo 53.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste.

A proteção dos consumidores no texto constitucional em vigor

Doutrina

Em dois textos anteriormente publicados neste blog (aqui e aqui), analisou-se a evolução histórica da Constituição em matéria de consumo. Foi possível então verificar que a proteção dos consumidores foi entrando gradualmente na Constituição, tendo hoje um espaço com uma amplitude assinalável.

Começando por aspetos gerais, constituem hoje incumbências prioritárias do Estado, além de assegurar o funcionamento dos mercados, reprimindo as práticas lesivas do interesse geral, também “garantir a defesa dos interesses e dos direitos dos consumidores” (alíneas f) e i) do art. 81.º), sendo mesmo “a proteção dos consumidores” um dos objetivos da política comercial (alínea e) do art. 99.º).

A Constituição estabelece como tarefas fundamentais do Estado, entre outras, “garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático” (alínea b) do art. 9.º) e “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais” (alínea d) do art. 9.º). Em concreto, e referindo para já apenas os direitos que são conferidos em geral, independentemente da natureza de consumidor da parte protegida, citamos as principais normas: “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” e “todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade” (art. 20.º-1 e 2); “o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis” (art. 34.º-1); “todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua retificação e atualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei”, e “a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis” (art. 35.º-1 e 3); “os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações [incluindo de consumidores], desde que estas não se destinem a promover a violência e os respetivos fins não sejam contrários à lei penal”, e “as associações [incluindo as de consumidores] prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas atividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial” (art. 46.º-1 e 2); “todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou coletivamente, […] petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral […]”, sendo também “conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização” (art. 52.º-1 e 3); “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão […], nos termos da Constituição” (art. 62.º-1).

Embora se discuta a sua natureza jurídica, nomeadamente o seu caráter de direito fundamental, inclui-se também na lista anterior o princípio contido no art. 13.º. Este preceito, depois de enunciar que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” (n.º 1), concretiza no sentido de que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual” (n.º 2). O artigo 26.º-1-in fine acrescenta ainda que a todos é concedido o direito “à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

Por fim, a Constituição da República Portuguesa contém atualmente uma norma – o art. 60.º – que atribui determinados direitos – atente-se na epígrafe do artigo: “Direitos dos consumidores” – a todos aqueles que numa determinada relação atuem como consumidores. O n.º 1 contém o elenco dos direitos que a Constituição considera mais relevantes, atribuindo-os aos consumidores individualmente considerados: direito à qualidade dos bens e serviços, direito à formação, direito à informação, direito à proteção da saúde e da segurança, direito à proteção dos interesses económicos e direito à reparação de danos.

A norma parece agrupar os direitos à formação e à informação num só direito, o mesmo sucedendo com os direitos à proteção da saúde, da segurança e dos interesses económicos. Entendemos, no entanto, que se trata de direitos que, pela sua singularidade, devem ser referidos de forma isolada. Apenas mantemos a associação dos direitos à saúde e à segurança.

O n.º 3 atribui direitos aos consumidores, embora não diretamente, mas através das associações de consumidores e das cooperativas de consumo: direito ao apoio do Estado, com vista à prossecução dos fins destas entidades, que passa pela garantia dos direitos dos consumidores, direito “a ser ouvidas sobre as questões que digam respeito à defesa dos consumidores” e direitos processuais especiais relacionados com a defesa dos associados ou de interesses coletivos ou difusos.

O n.º 2 trata da publicidade, uma problemática que vai além da proteção dos consumidores, embora o seu centro de relevância se encontre neste âmbito. A norma proíbe “todas as formas de publicidade oculta, indireta ou dolosa”.

O art. 60.º da CRP tem cariz essencialmente programático, embora alguns autores reconheçam a aplicabilidade direta às relações jurídicas de consumo de parte dos direitos consagrados no preceito[1].

Em relação à exigência de qualidade, defende-se que, além do seu sentido programático, o preceito constitui elemento de interpretação de contratos de consumo, determinando o nível de qualidade da prestação. Em caso de dúvida sobre o objeto do contrato, por terem sido utilizados termos vagos ou referências genéricas, deve ter-se em conta a necessidade de interpretação do clausulado no sentido de o bem ou serviço ser de boa qualidade. Em regra, o recurso a este elemento de interpretação é mais relevante quanto menos elementos concretos forem definidos contratualmente pelas partes, o que sucede em grande medida quando se remete a determinação da prestação para momento posterior.


[1] Diovana Barbieri, “The Binding of Individuals to Fundamental Consumer Rights in the Portuguese Legal System”, 2008, in ERPL, Vol. 16, n.º 5, 2008, pp. 676 e 677.

Os consumidores na Constituição: de 1989 em diante

Doutrina

aqui se escreveu recentemente sobre o papel dos consumidores e da sua proteção na versão originária da Constituição de 1976 e na primeira revisão constitucional. Hoje concluímos esta análise histórica, descrevendo brevemente a evolução posterior, resultante das revisões constitucionais subsequentes.

A Lei Constitucional n.º 1/89, que aprovou a segunda revisão da Constituição, completou o caminho que havia sido iniciado pela revisão anterior rumo à atribuição de direitos aos consumidores.

O art. 32.º desta Lei Constitucional aditou o art. 60.º, com a epígrafe “Direitos dos consumidores”, que correspondia aproximadamente ao anterior artigo 110.º, com a diferença do aditamento do “direito à qualidade dos bens e serviços consumidos”. A principal novidade consistia na localização privilegiada deste art. 60.º, na parte da Constituição da República Portuguesa dedicada aos direitos fundamentais, embora no título relativo aos direitos económicos, sociais e culturais. Pode, assim, dizer-se que, com a revisão de 1989, se deu a fundamentalização dos direitos dos consumidores.

Com relevância significativa para os consumidores, foi ainda aditado à Constituição um novo art. 102.º, que definiu os objetivos da política comercial, incluindo especificamente entre esses objetivos “a proteção dos consumidores” (alínea e)).

Esta revisão constitucional também alterou os arts. 35.º (que aborda a problemática da utilização da informática), 52.º (com a alteração da epígrafe para “Direito de petição e direito de ação popular”) e 81.º-e) (eliminando a expressão “através de nacionalizações ou outras formas”), renumerou o art. 84.º, que passou a art. 86.º, e eliminou os arts. 109.º e 110.º.

Quanto ao art. 52.º, a epígrafe foi alterada nas duas primeiras revisões constitucionais: na versão originária, era “Direito de petição e ação popular”; depois da primeira revisão, passou a “Direito de petição e de ação popular”; e, na sequência da segunda revisão, ficou “Direito de petição e direito de ação popular”, epígrafe que ainda se mantém. Note-se que se trata de uma valorização progressiva da ação popular. Na versão originária, não tinha, face à epígrafe, o caráter de direito, na versão da primeira revisão, passou a ter o caráter de direito, mas abrangido na categoria mais ampla do direito de petição e de ação popular (parece tratar-se de um direito apenas), enquanto, na segunda revisão, manteve-se como direito, mas já autonomizado do direito de petição. A norma atribui, assim, dois direitos: um direito de petição e um direito de ação popular. Esta conclusão já teria de resultar de uma interpretação adequada da versão originária, pelo que nos parece que se trata apenas de uma curiosidade linguística.

A terceira revisão constitucional, que procurou adaptar a Constituição da República Portuguesa à União Europeia, não produziu alterações diretas ao nível da posição dos consumidores.

A Lei Constitucional n.º 1/97 (quarta revisão constitucional), pelo contrário, procedeu a alterações pontuais mas relevantes no que respeita à temática em análise. A exceção é o artigo 35.º da Constituição, que sofreu uma profunda remodelação, certamente originada pela massificação da utilização da informática e a consequente multiplicação de situações de tratamento de dados dos cidadãos.

Além desta alteração, deve destacar-se a inclusão expressa dos direitos dos consumidores entre os bens jurídicos que podem ser objeto de uma ação popular em caso de infração – art. 52.º-3-a). Embora no texto anterior já se pudesse concluir que os direitos dos consumidores estavam abrangidos pelo espírito da norma, especialmente dado o caráter exemplificativo da lista de bens enunciada, a sua inserção na letra do preceito retirou qualquer dúvida que se pudesse colocar.

O n.º 3 do artigo 60.º também foi alterado, tendo sido acrescentada aquela que ainda hoje constitui a parte final do preceito: “sendo-lhes [às associações de consumidores e às cooperativas de consumo] reconhecida legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos”.

Igualmente relevante, embora simbolicamente, foi a alteração da redação da alínea j), que passou a constituir a alínea h) e a estabelecer como incumbência prioritária do Estado, já não a proteção do consumidor, mas a garantia da defesa dos interesses e dos direitos dos consumidores. Assim, o Estado passa a estar diretamente vinculado à defesa dos direitos dos consumidores.

Refira-se ainda que os arts. 86.º e 102.º passaram, respetivamente, a 85.º (cooperativas) e 99.º (objetivos da política comercial). Das quinta, sexta e sétima revisões constitucionais, apenas a sexta, aprovada pela Lei Constitucional n.º 1/2004, atingiu as normas referidas neste post e no anterior sobre o tema, embora com pouca profundidade: acrescentou a orientação sexual ao elenco dos fatores de discriminação previstos no n.º 2 do art. 13.º, veio admitir a apresentação de petições também a órgãos das regiões autónomas (art. 52.º-1 e 2) e alterou a numeração do art. 81.º, passando as alíneas e) e h) a f) e i), respetivamente.

Os consumidores na versão originária da Constituição de 1976 e a primeira revisão constitucional

Doutrina

A Constituição da República Portuguesa contém, na sua versão atual, sete referências a consumidores, uma no art. 52.º-3, quatro no art. 60.º, que tem exatamente por epígrafe “Direitos dos consumidores”, uma na alínea i) do art. 81.º e a última no art. 99.º-e). As referências a consumo são quatro, uma no já referido art. 60.º e as outras três no art. 104.º-4, que trata de impostos e, em especial, dos impostos sobre o consumo.

No entanto, deve assinalar-se que a problemática da proteção e dos direitos dos consumidores foi objeto de alterações muito significativas desde o texto originário que entrou em vigor no dia 25 de Abril de 1976. Impõe-se, assim, uma análise cuidada desta evolução.

No texto originário, apenas existia uma referência expressa a consumidor, na alínea m) do art. 81.º, a qual inseria a proteção do “consumidor, designadamente através do apoio à criação de cooperativas e de associações de consumidores”, entre as incumbências prioritárias do Estado. A proteção do consumidor surgia assim apenas como um dos aspetos que o Estado deveria ter preferencialmente em conta ao nível da organização económico-social do país, a par, por exemplo, do desenvolvimento das relações económicas com todos os povos ou da realização da reforma agrária. Outra incumbência prioritária do Estado, prevista na alínea g) do mesmo artigo, consistia em “eliminar e impedir a formação de monopólios privados, através de nacionalizações ou de outras formas, bem como reprimir os abusos do poder económico e todas as práticas lesivas do interesse geral”. Embora se trate de uma questão eminentemente de concorrência entre empresas, o interesse dos consumidores também está indiretamente presente no espírito desta disposição. Como se pode observar, a proteção dos consumidores não era diretamente assegurada pelo texto constitucional, muito menos se vislumbrando a existência de direitos especial ou exclusivamente afetos a estes.

Tal como a última norma referida, outros preceitos do diploma tratavam já de problemáticas que, indiretamente (ou não exclusivamente), tinham alguma relação com a proteção dos consumidores. Assim, pode assinalar-se a relevância de vários preceitos: o art. 13.º consagrava o princípio da igualdade e ainda hoje mantém, no essencial, o seu conteúdo; o art. 34.º-1 estabelecia, e ainda estabelece, que “o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”, norma a que se apela em matéria de publicidade; o art. 35.º regulava – e ainda regula, embora com alterações significativas – a utilização da informática, questão fulcral no que respeita à proteção de dados pessoais; o art. 46.º, regulando, em geral, a liberdade de associação, também se aplicava e ainda aplica às associações de consumidores; o art. 49.º tinha por epígrafe “Direito de petição e ação popular”, embora ainda não se fizesse referência direta aos direitos dos consumidores, como acontece hoje no art. 52.º; o art. 65.º incumbia e ainda incumbe o Estado de “estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar”; o art. 84.º estabelecia que “o Estado deve fomentar a criação e a atividade de cooperativas, designadamente de […] consumo”; o art. 109.º era bastante relevante no que concerne à proteção dos consumidores, uma vez que atribuía ao Estado um papel na formação e no controlo dos preços (n.º 1) e proibia a publicidade dolosa (n.º 2); por fim, o art. 110.º-2 incumbia o Estado de “disciplinar e vigiar a qualidade e os preços das mercadorias importadas e exportadas”.

Assim, pode concluir-se que o texto originário da nossa lei fundamental, embora não incluísse os consumidores entre os sujeitos merecedores de uma proteção especial efetiva como parte com menor poder negocial no mercado, tinha claras preocupações sociais, que se refletiram num documento com capacidade suficiente para que as necessidades que se vieram a sentir pudessem ser materializadas em legislação ordinária. Com efeito, a primeira lei de proteção dos consumidores (Lei n.º 29/81, de 22 de agosto) foi publicada ainda antes da primeira revisão constitucional.

A Lei Constitucional n.º 1/82 aprovou a primeira revisão da Constituição, tendo introduzido expressamente na lei fundamental alguns direitos dos consumidores. A proteção dos consumidores deixou de constituir um mero objetivo que deveria ser prosseguido pelo Estado na medida do possível entre outros aspetos da política económica, passando mesmo a estar previstos alguns direitos que teriam de ser assegurados pelo Estado independentemente da política económica seguida. A principal alteração pode ser encontrada no art. 90.º da Lei Constitucional n.º 1/82, que aditou um novo art. 110.º, estruturalmente próximo do atual art. 60.º. Deve notar-se, no entanto, que este preceito estava ainda inserido na parte da Constituição que se ocupava da organização económica e não na que regulava os direitos fundamentais.

Também a alínea m) do artigo 81.º, que passou a constituir a alínea j), sofreu uma alteração, simbolicamente relevante, referindo-se simplesmente à proteção do consumidor como incumbência prioritária do Estado. Retirou-se, assim, a expressão “designadamente através do apoio à criação de cooperativas e de associações de consumidores”, que parecia indiciar serem estas as principais preocupações que o Estado deveria ter nesta matéria.

Para além destes aspetos, claramente os mais relevantes, a revisão de 1982 procedeu à alteração dos arts. 35.º (que trata da utilização da informática), 49.º (que passou a art. 52.º e mudou de epígrafe para “Direito de petição e de ação popular”), 84.º e 109.º. No art. 84.º abandonou-se a referência expressa às cooperativas de consumo e o art. 109.º foi aprofundado, passando a estabelecer que “o Estado intervém na racionalização dos circuitos de distribuição e na formação e no controlo dos preços, a fim de combater atividades especulativas, evitar práticas comerciais restritivas e os seus reflexos sobre os preços, e adequar a evolução dos preços dos bens essenciais aos objetivos da política económica e social”. A alínea g) do art. 81.º não viu a sua redação ser alterada, mas passou a constituir a alínea e).