Carlos Ferreira de Almeida e o Direito do Consumo

Recensão

Não tive a honra de ser aluno do Professor Carlos Ferreira de Almeida nem sequer de o conhecer pessoalmente. Sei, porém, que o seu desaparecimento, no início de fevereiro último, marcou, de modo indelével, uma plêiade de juristas (e não juristas) que tiveram o privilégio de conviver e beber da inteligência e sabedoria do Professor e, como tal, guardam uma imensa saudade do insigne Mestre.

Em particular, colegas e estudantes da NOVA School of Law conservam uma dívida de gratidão para com o Professor Carlos Ferreira de Almeida por, ao lado de Diogo Freitas do Amaral, ter contribuído decisivamente para a criação desta Faculdade de Direito, integrando a sua Comissão Instaladora, no âmbito da qual assumiu um papel crucial na criação do seu curso de Doutoramento – então, uma novidade no cursus honorum dos académicos das Leis –, e na fundação da Unidade de Mediação e Acompanhamentos de Conflitos de Consumo (UMAC), que antecedeu ao NOVA Consumer Lab.

Como sublinhou Marcelo Rebelo de Sousa em mensagem evocativa publicada no sítio da internet da Presidência da República, a par de “diversas funções públicas de relevo” que desempenhou, o Professor Carlos Ferreira de Almeida foi um “jurista distinto”, “por todos respeitado e admirado pelas suas qualidades científicas e pedagógicas”, que, como todos os grandes cultores das Artes e das Letras, para lá da lei da morte, deixa uma “vasta e marcante obra” literária, que continuará a formar gerações de estudantes e profissionais do Direito.

Neste sentido, reportando-me à experiência pessoal, comecei a contactar com a produção científica do Professor Carlos Ferreira de Almeida no início do meu estágio de advocacia, pela mão do meu patrono, Paulo Duarte, por sorte um reconhecido estudioso e entusiasta do Direito do Consumo, que, em inúmeras ocasiões, me incitou a mergulhar na leitura e análise atentas de alguns dos principais manuais do aqui homenageado, nomeadamente os vários volumes da obra “Contratos” e a sua tese de Doutoramento “Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico”, publicada em dois volumes, que, nas palavras do meu patrono, constitui um dos maiores monumentos da ciência jurídica portuguesa, de passagem obrigatória na formação contínua de qualquer jurista luso.

Mais recentemente, graças ao contributo inestimável do Professor Jorge Morais Carvalho, tive a oportunidade de proceder à leitura integral de outras duas obras que, em diferentes estádios da afirmação do Direito do Consumo, se assumem como verdadeiros marcos incontornáveis na doutrina jurídico-consumerística, a saber: “Os Direitos dos Consumidores”, publicado em 1982, e “Direito do Consumo”, dado à estampa em 2005, ambos editados pela Almedina.

Assumidamente influenciado pelas lições do grego Simitis (“Verbraucherschutz, Schlagwort oder Rechtsprinzip?” – numa tradução livre, “Proteção do consumidor, bordão ou princípio jurídico?”) e do alemão Reich (“Markt und Recht: Theorie u. Praxis d. Wirtschaftsrechts in d. Bundesrepublik Deutschland – numa tradução livre, “Mercado e Direito: Teoria e Prática do Direito Empresarial na República Federal da Alemanha”), em 1982, Ferreira de Almeida brindou-nos com a primeira obra jurídica de fundo dedicada aos direitos dos consumidores (e não ao Direito do Consumidor, designação que sempre rejeitou, por circunscrever o tratamento das situações jurídicas de consumo a um dos conceitos subjetivos – que não o único – nelas considerados). A partir da leitura e exame desta obra, conseguimos percecionar as preocupações emergentes nos finais dos anos 70 e inícios dos anos 80, espelhadas, superlativamente, pelos textos da “Carta do Conselho da Europa sobre a Proteção do Consumidor” (Resolução n.º 543 de 17 de maio de 1973), do “Programa Preliminar da Comunidade Económica Europeia para uma política de proteção e de informação dos consumidores” (Resolução do Conselho de 14 de abril de 1975) e do “Segundo Programa da Comunidade Económica Europeia para uma Política de Proteção e de Informação dos Consumidores” (Resolução do Conselho de 19 de maio de 1981) – cláusulas abusivas em contratos-tipo; vendas agressivas; condições abusivas de crédito; vendas de bens não solicitados; responsabilidade do produtor (esta última, ainda hoje, com um regime objetivamente insatisfatório) –, bem como o catálogo de direitos fundamentais neles previstos, o qual serviu de base para a organização sistemática das matérias de direito substantivo e processual abordadas, sempre com encadeamento lógico, pelo Professor.

Numa breve afloração do conteúdo da obra ora em apreço e de entre os muitos aspetos dignos de destaque, pela sua relevância teórico-prática (aqui, considerando que o Professor nunca acreditou numa distinção rígida entre teoria e prática, seja no ensino universitário, seja na investigação científica, a qual, na sua perspetiva, sempre devia versar sobre situações reais da vida quotidiana em detrimento dos artificialismos que, amiúde, apaixonam os académicos, encerrados nas suas torres de marfim), tomamos a liberdade de enfatizar os seguintes: a exposição dos sistemas de controlo (judicial, administrativo e misto) das cláusulas abusivas integradas nos contratos-tipo, suas vantagens e deméritos, a qual reveste de extremo interesse para a análise crítica da solução normativa do art. 3.º da Lei n.º 32/2021, de 27 de maio, ainda a aguardar a necessária regulamentação; a exaltação da lesividade para o consumidor associada à prática de preços impostos verticalmente e de preços aconselhados, assim como dos limites à liberdade de fixação dos preços, nomeadamente, a sua determinabilidade objetiva, a não discriminação entre clientes (hoje, frequentemente posta em crise, com a prática de personalização de preços) e a proibição do “dumping”; a equiparação “tout court” do cumprimento defeituoso ao incumprimento contratual e o apelo à noção de desconformidade em sentido lato (por influência da Convenção de Haia de 1964 sobre a Compra e Venda e a Convenção de Viena sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias de 1980) para o tratamento da venda de bens de consumo defeituosos; a consideração da assistência pós-venda satisfatória como dever integrado no normal cumprimento dos contratos de fornecimento de bens de consumo; a demonstração dos inconvenientes da aplicação “tout court” dos princípios fundamentais do processo civil à resolução de litígios de consumo, concretamente, o princípio dispositivo, o princípio da igualdade (uma “pura abstração”) e as regras gerais de repartição do ónus da prova; a preocupação em salientar a inibição dos consumidores perante a ação judicial, determinada, esta, pelas despesas com o processo, pela morosidade e pelo “calão jurídico profissional”; a preocupação em abordar e sustentar a importância de criação de estruturas especializadas para resolução dos litígios de consumo com tramitação processual simplificada (além de simplificação das provas e maior peso do princípio inquisitório), que privilegiem a definição da competência territorial em função do domicílio do consumidor e que não sirvam de instrumento ao serviço da cobrança de dívidas pelas empresas; a constatação do papel de destaque (então) conferido às associações de defesa dos consumidores (sobretudo as de estatuto pleno) na tutela coletiva dos direitos do sujeito mais débil da relação jurídica de consumo e ao nível da participação na tomada de decisões político-legislativas; a crítica à desconsideração do pequeno valor que, tipicamente, assumem as ações relativas a litígios de consumo para efeitos de assistência judiciária, já então marcada pela incapacidade de assegurar compensação adequada aos advogados envolvidos no sistema de acesso aos direito e aos tribunais; a inadmissibilidade do “dolus bonus” nos negócios jurídicos de consumo; o destaque e tratamento conferidos ao elemento relacional para caracterizar o negócio jurídico (e não apenas o contrato) de consumo (assim abarcando figuras como a proposta contratual, a oferta ao público, o negócio a favor de terceiro e a responsabilidade extracontratual); a promoção da extensão da relação de consumo aos membros do agregado familiar que vivem com o sujeito adquirente em economia comum (relevante, por exemplo, para a admissibilidade de ressarcimento de danos reclamados por pessoa diferente do titular do contrato de fornecimento de energia elétrica em caso de interrupção ilícita do serviço); a caracterização da natureza (tríplice) dos direitos dos consumidores consagrados na Lei de Defesa do Consumidor de 1981 como “direitos económicos gerais” em relação ao Estado (e que dele requerem a sua concretização como incumbências prioritárias, nos termos da alínea i) do art. 81.º da CRP), “direitos coletivos” (na promoção e tutela de interesses difusos) e direitos subjetivos (oponíveis aos profissionais, nas relações diretas com eles mantidas); e o não reconhecimento de autonomia científica ao Direito do Consumo, antes tratando-o como um tema de Direito Económico (quanto aos “direitos económicos gerais” e aos “direitos coletivos”) e de Direito Comercial e Civil (quanto aos “direitos subjetivos”).

Volvidos 23 anos, embora continuando a negar a sua autonomia científica, o Professor Carlos Ferreira de Almeida embarcou em nova deambulação pelo Direito Privado do Consumo, que veio a conquistar um merecido lugar de entre os manuais obrigatórios no estudo universitário das relações jurídico-consumerísticas. Adotando uma estrutura peculiar na exposição das matérias, diversa daquelas que, habitualmente, encontramos em manuais similares, mas que conserva, a todo o momento, uma conexão e encadeamento lógicos entre temas, é de imperiosa justiça enaltecer, em primeiro lugar, a preocupação do Professor em desenvolver, sempre que pertinentes, exercícios de Direito Comparado, seja para compreensão dos antecedentes legislativos que inspiraram os diplomas em análise, seja para retratar as soluções vigentes nos principais ordenamentos das famílias romano-germânica e anglo-saxónica.

Ademais, a par de outros méritos de que a obra é merecidamente credora, ousamos destacar: o aprumo e rigor técnico-jurídico no tratamento da figura do direito de arrependimento, sua natureza e efeitos, consoante o modelo (de eficácia suspensiva ou de eficácia resolúvel) em causa, distinguindo-a de realidades afins, particularmente, a faculdade de retratação; a preocupação em exaltar que os habitualmente identificados deveres de comunicação e de informação, consagrados nos arts. 5.º e 6.º do DL n.º 446/85, de 25 de outubro, se assumem, na verdade, como ónus, cujo incumprimento determina a consequência desfavorável da não inclusão, no contrato, de cláusulas contratuais (gerais); a arrumação dos padrões relevantes para a qualidade da coisa vendida, distinguindo entre requisitos objetivos e subjetivos, em termos próximos daqueles que, previsivelmente, passarão a constar do decreto-lei de transposição das Diretivas 2019/770 e 2019/771, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, sobre certos aspetos relativos aos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais e relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens, respetivamente; o tratamento das mensagens publicitárias como cláusulas contratuais gerais para efeitos da sua inserção nos contratos singulares (art. 2.º do DL n.º 446/85), o que parece ter sido ignorado pelo legislador nacional aquando da adoção da já referida Lei n.º 32/2021; a caracterização da conformidade, com recurso a uma fórmula de suma eloquência, como relação deôntica entre o ser (referente) e o dever ser (referência), reconduzindo-a ao cumprimento da obrigação de entrega; e a aplicação da figura da promessa pública para caracterização da declaração ou compromisso de garantia comercial/voluntária.

Uma derradeira consideração importa dedicar ao prognóstico desenvolvido nesta segunda obra quanto ao futuro do Direito do Consumo, entre a sua autonomização e a diluição no direito comum, que suscitou em mim um interesse particular, atenta a evolução conhecida desde a elaboração da obra, nomeadamente quanto ao conceito de consumidor (predominando, aqui, a conceção estrita, pelo menos ao nível do Direito da União Europeia, em que releva o elemento subjetivo) e quanto ao caminho trilhado no sentido da harmonização legislativa máxima (ainda que com recurso a diretivas comunitárias), factores que, segundo o autor, concorrem para o progresso em caminhos opostos.

Remetendo-me à minha humilde condição de curioso por algumas das temáticas acima afloradas, que captam a atenção e alimentam a paixão dos verdadeiros cultores do Direito do Consumo, por tudo quanto expus (e muito mais havia a exaltar!), vergo-me perante a memória do Professor Carlos Ferreira do Almeida e convido todos quantos seguem o projeto NOVA Consumer Lab nas plataformas digitais a escutarem (ou voltarem a escutar) a entrevista que o insigne Mestre concedeu ao NOVA Consumer Podcast, no ano transato, a qual constitui um valioso e inspirador documento para todos os membros desta equipa.

Até sempre, Professor!

O Fenómeno da Wish e as Expectativas dos Consumidores

Doutrina

A Wish é uma plataforma digital gerida pela empresa ContextLogic Inc., sediada em São Francisco, nos Estados Unidos da América. Esta plataforma, responsável por reunir milhões de vendedores e conectá-los a milhões de consumidores é atualmente uma das maiores em termos de volume de negócios, posicionando-se ao lado da Aliexpress, Amazon, entre outras.

Apesar de na Wish se verificarem vários tipos de trocas comerciais, nesta publicação abordarei apenas a perspetiva das trocas entre profissionais e consumidores.

Ora, o que cativa sobretudo os consumidores são os preços especialmente reduzidos e um stock ilimitado de bens[1]. Estes preços só são possíveis pois a plataforma, à semelhança do que acontece com outras como o Aliexpress, permite aos vendedores registarem os seus produtos e vendê-los diretamente aos consumidores, eliminando-se custos desnecessários gastos com intermediários. Note-se que grande parte dos bens colocados à disposição dos consumidores são importados da China e de outros países fora da Europa.

O modelo negocial praticado na plataforma Wish dá prioridade aos bens de reduzido valor, fomentando um elevado volume de negócios, descuidando a qualidade e conformidade dos bens comercializados.

O consumidor não se pode deixar enganar pelos preços aparentemente baixos, uma vez que grande parte dos produtos apresentados são contrafeitos, alguns não correspondem às fotografias apresentadas no site, e outros não apresentam muita qualidade, sendo vários os comentários negativos que podemos encontrar na internet sobre esta realidade.

Não obstante, a Wish afirma ter uma política bastante exigente e criteriosa no que se refere à comercialização, por intermédio do seu serviço, de bens contrafeitos, produtos inapropriados, perigosos ou de baixa qualidade. Resta saber como é feito este controlo, qual deve ser o seu grau de responsabilidade se, por exemplo, um consumidor adquirir um item perigoso e isso causar danos à sua integridade física. A única solução apresentada pela Wish passa pela denúncia, por parte dos utilizadores do seu serviço, de quaisquer anúncios que promovam a venda deste tipo de produtos, para um email que indicam no website.

Face ao exposto, duas propostas legislativas apresentadas pela Comissão Europeia: o Digital Services Act e o Digital Markets Act. Estas propostas vêm tentar resolver questões como as da transparência, da cooperação das plataformas com as autoridades nacionais, do  dever de as plataformas transmitirem informações aos utilizadores, de limitar certos anúncios, ou da proibição de práticas que prejudiquem a concorrência. O não cumprimento destas obrigações pode levar à aplicação de sanções pecuniárias. Cumpre também referir que, na plataforma Wish, é impossível verificar se as reduções de preço apresentadas em vários anúncios são genuínas, na medida em que não conseguimos apurar por quanto tempo é que os produtos estiveram à venda por um preço mais elevado, ou se, de facto, estiveram a um preço mais elevado antes da alegada redução.

Por fim, em todos os anúncios dos produtos colocados à venda através do serviço da Wish é permitido aos consumidores deixar o seu feedback e avaliação sobre o produto comprado. A Wish assegura que as opiniões alojadas na sua plataforma são fidedignas, mas não esclarece como é feito este controlo, sendo certo que existe um mercado de feedbacks positivos falsos, que influencia, em larga escala, o comportamento dos consumidores, a ponto de adotarem uma decisão de transação nesse mesmo pressuposto.

Por todo o exposto, é importante que o consumidor, ao utilizar esta plataforma e outras semelhantes, não se deixe deslumbrar por propostas demasiado boas para corresponderem à realidade. É necessário selecionar, de forma consciente, os bens que se pretendem adquirir, sabendo que haverá sempre um risco elevado de o item não corresponder ao que é publicitado na fotografia que acompanha o anúncio, ou até que o item poderá nunca chegar ao seu destino.

Retomaremos este assunto com o propósito de verificar que direitos assistem aos consumidores nestes casos, quais os deveres e obrigações das plataformas como a Wish e dos profissionais que comercializam produtos através destas plataformas.


[1] Nesta plataforma são comercializados smartphones, roupas, gadgets, brinquedos, calçado, entre muitos outros.

A omissão da informação sobre as características éticas do bem: um exercício de prognose

Doutrina

Desafiada pela Alyne Calistro a produzir uma sequela do seu tão interessante texto As Práticas ESG e o Greenwashing – Pela Busca da Informação Verdadeira, a quem muito agradeço o repto, parece ser de especial urgência responder à questão que nos endereça:

Sob o manto da preocupação com a ESG – Environment, Social and Governance, como saberá o consumidor se tais práticas ocorrem verdadeiramente?

Pois bem, o consumidor, à partida, não poderá ter a certeza. Todavia, poderá desconfiar que tais práticas benignas não ocorrem, o que pode revelar-se o pior cenário que pode acontecer ao vendedor e ao produtor.

Se, por um lado, o consumidor médio não se demora na inspeção minuciosa da ética subjacente à produção de um produto, por outro está cada vez mais capacitado – ou, pelo menos, sensibilizado – para identificar um determinado método de produção tendencialmente associado à exploração laboral e infantil.

Até aqui, parece-nos, temos observado um panorama em que os produtores que são omissos quanto à informação das suas práticas laborais, sejam elas tidas como benignas ou negativas, têm beneficiado com o seu comportamento límbico. O consumidor tende, provavelmente, a entender o seu estado de desconhecimento face ao método de produção do bem como uma verosimilhança ao real método de produção. Não será também difícil imaginar que suceda um raciocínio de desresponsabilização perante o problema social em causa, assumindo que outras instâncias poderão (e deverão) ocupar-se da questão.

Não nos esqueçamos que qualquer um destes raciocínios ou qualquer outro diferente destes são processados num ínfimo período de tempo, isto é, a decisão de contratar do consumidor, pelo menos perante um bem de consumo de valor não muito avultado, não se compadece com longas análises de custo-benefício, muito menos com considerações de caráter ético.

É precisamente neste ponto que, em jeito de juízo de prognose, entendemos que, muito em breve, não informar o consumidor acerca dos padrões éticos do bem poderá vir a ser o pior que pode acontecer ao vendedor e, sobretudo, ao produtor (quando este não coincide com aquele).

A imagem do consumidor que dedica extensas horas à análise da política ESG do vendedor ou produtor é uma caricatura que apenas se observará em camadas muito específicas de cidadãos. A larga maioria dos consumidores não o faz nem o pretende fazer.

Portanto, se até aqui assistimos a um padrão de tendencial apatia perante a ausência de indicações acerca da ética do produto, por outro lado assiste-se ao surgimento de um movimento cada vez mais palpável, por parte dos consumidores, no sentido da implementação de práticas ambiental e socialmente mais sustentáveis

Parece-nos que as duas situações apresentadas neste texto se irão cruzar em breve: o consumidor quererá comprar bens sustentáveis e penalizará os produtores e os vendedores que não o informarem sobre essas características, não tanto por um imperativo ético, mas porque necessitam de tais informações para a tomada de decisão de contratar que não estão disponíveis.

Naturalmente, a confirmar-se a nossa previsão, chegarão novos e mais pesados desafios para o combate ao greenwashing.

As falácias e o caminho para o fim do plástico descartável em Portugal

Doutrina

Atenção: 91% do plástico utilizado no mundo não é reciclado. É esta a surpreendente informação, resultado de um estudo, publicada ainda em 2017 na revista científica Science Advances, que tem colocado cada vez mais claramente, não somente na ordem do dia, mas nos objetivos centrais das políticas públicas mundiais, um novo problema: o consumo dos plásticos descartáveis e seu respetivo destino final.

Todos os anos são produzidos cerca de 58 milhões de toneladas de plástico na Europa, 40% dos quais para embalar produtos[1]. Na União Europeia, “80 % a 85 % do lixo marinho é constituído por plástico segundo medições realizadas por meio de contagens nas praias, sendo que os artigos de plástico de utilização única representam 50%”[2]. Só em Portugal, cada pessoa gera 31 quilos de resíduos plásticos por ano, de acordo com a Comissão Europeia.

Nesta senda, em 2018, a União Europeia começou a demonstrar um foco especificamente sobre o problema dos plásticos descartáveis e, desde então, tem trabalhado ativamente com um robusto plano para reduzir sua utilização até 2026.  Por meio da Diretiva (UE) 2019/904, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 05 de junho, relativa à redução do impacto de determinados produtos de plástico no ambiente, a ideia é banir este material de diversos objetos de uso quotidiano, dado que podem já ser produzidos exclusivamente a partir de matérias-primas de fontes renováveis.

O problema dos plásticos descartáveis, que assistiu a um admirável crescimento nos últimos dois anos em razão das questões sanitárias associadas à pandemia de COVID-19, teve, entretanto, um contraponto em Portugal com a publicação, em Diário da República, do Decreto-Lei n.º 78/2021 de 24 de setembro, que transpõe parcialmente para a ordem jurídica interna a diretiva europeia acima citada.

O diploma que proíbe a comercialização de plásticos de uso único, como cotonetes, talheres, pratos, palhinhas ou recipientes de poliestireno expandido, deverá ser aplicado a partir do próximo dia 1 de novembro. Para além, ele traz medidas de prevenção e redução do impacto de determinados produtos de plástico no ambiente, mais especificamente nos mares e florestas, voltando-se à promoção de uma economia circular com modelos de negócio, produtos e materiais inovadores e sustentáveis.

O documento vem ainda na mesma toada de outros diplomas nacionais sobre o assunto, como é o caso, sobretudo, do Decreto-Lei 102-D, de 10 de dezembro , que aprova o regime geral da gestão de resíduos, o regime jurídico da deposição de resíduos em aterro e altera o regime da gestão de fluxos específicos de resíduos, transpondo as Diretivas (UE) 2018/849, 2018/850, 2018/851 e 2018/852. Entre seus elementos de maior impacto na vida dos consumidores portugueses, o DL n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro ao alterar o  Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de dezembro, veio a reforçar a proibição da “disponibilização gratuita de sacos de caixa, isto é, sacos com ou sem pega, incluindo bolsas e cartuchos, feitos de qualquer material, em qualquer estabelecimento comercial”, regra em vigor desde 01 de julho deste ano.

Fato interessante, entretanto, é que apesar do esforço comunitário  no combate ao plástico descartável, a UE terá de encontrar cada vez mais alternativas circulares e ecológicas para gerir os resíduos de plástico sem escalonar a incineração e deposição de resíduos em aterro, especialmente após a recente proibição da China às importações de resíduos de plástico. Isto porque, de acordo com informações divulgadas pelo próprio Parlamento Europeu, “metade do plástico recolhido para reciclagem é exportado para ser tratado em países fora da UE”.

Mais ainda, é necessário ressaltar que as normativas devem se voltar não somente à redução do consumo de plástico, mas também a evitar o greenwashing, já abordado pelo Nova Consumer Lab, aqui, e a substituição de um produto descartável por outro, igualmente nocivo ao meio ambiente a à biodiversidade.

As alternativas ao uso do plástico descartável vão desde bambu, cana-de-açúcar, amidos, plástico reciclado, algas, alumínio, vidro, papel, cartão, cascas de banana, folhas de palmeira e todo um novo mundo de economia “eco friendly”. Entretanto, de nada resultaria a redução do plástico descartável, se outras matérias-primas, substâncias químicas estiverem a se espalhar pelos oceanos.

A má notícia vem quando um estudo recente, realizado a pedido da BEUC, organização europeia de consumidores, revelou ter encontrado substâncias químicas em louças descartáveis não plásticas, em tigelas descartáveis de fibra vegetal, em cartuchos de papel e louça feitas de folhas de palmeira. A pesquisa, feita em quatro países (Itália, Dinamarca, Espanha e França) demonstra que 53% dos produtos que foram analisados, muitos deles supostamente compostáveis e biodegradáveis, apresentaram produtos químicos tóxicos indesejados, compostos fluorados, que persistem na natureza por anos, além de gerarem efeitos nocivos à saúde. Como se pode imaginar, o cotonete de bambu, lançado na sanita, não é realmente melhor para os mares do que o seu antigo modelo em plástico.

Esta realidade faz-nos entender, justamente, que a mera proibição dos produtos de plásticos de uso único ou a criação de leis de combate aos descartáveis não é um fim em si mesmo. A redução do consumo, a promoção da reutilização e a consciencialização da recolha seletiva é que, de facto, podem ser a chave para o problema ambiental. De acordo com a própria secretária de Estado do Ambiente  em Portugal, Inês Santos Costa, “os produtos alternativos existem, é um facto. Mas o que não podemos é cair no erro de substituir um descartável por outro que até pode ter menos impacto, mas não deixa de ser um descartável”.


[1] Segundo informações disponibilizadas pela Deco-Proteste, em 30 de julho de 2021.

[2] Informações presentes na Diretiva Europeia (UE) 2019/904, contra o plástico descartável.

Sabia que se comprou uma bicicleta pode beneficiar de um incentivo?

Legislação

Por forma a acelerar a adoção de meios de transporte com menor impacto ambiental, foi criado em 2017, com o apoio do Fundo Ambiental, o “Incentivo pela Introdução no Consumo de Veículos de Baixas Emissões”.
Este incentivo consiste na atribuição, a pessoas singulares ou coletivas, de um determinado montante, consoante o tipo de veiculo de baixa emissão[1], com vista à promoção da mobilidade sustentável e à prossecução do objetivo da “neutralidade carbónica até 2050”[2].
Com exceção do ano de 2021, o valor global do incentivo tem vindo sempre a aumentar, o que é revelador de coerência para com os objetivos ambientais estabelecidos.
Partindo dos 2.300.000€ no seu ano de introdução, o valor da dotação global cresceu, em 2018, para 2.650.000€, atingiu os 3.000.000€ no ano subsequente e, em 2020, fixou-se nos 4.000.000€, valor que permaneceu inalterado em 2021.

Considerando que existe um interesse crescente, por parte dos consumidores, em adquirir veículos ambientalmente sustentáveis, é importante que estes conheçam o incentivo e estejam devidamente informados em relação ao que dispõe o respetivo regulamento.
Presente no Despacho n.º 2535/2021, de 5 de março de 2021, o regulamento em vigor descreve, entre outros pontos, quais os veículos abrangidos pelo incentivo, os beneficiários elegíveis, o modo de apresentação do pedido e os documentos a apresentar.
Sobre os veículos abrangidos, o regulamento estabelece as seguintes tipologias:

               Tipologia 1 – Veículos ligeiros de passageiros (categoria M1)
               Tipologia 2 – Veículos ligeiros de mercadorias (categoria N1)
               Tipologia 3 – Bicicletas de carga, com ou sem assistência elétrica
               Tipologia 4 – Bicicletas citadinas, motociclos de duas rodas e ciclomotores elétricos
               Tipologia 5 – Bicicletas citadinas convencionais

Em relação às bicicletas, que são o foco do presente artigo, devemos atender às últimas três tipologias.
Sobre a tipologia 3, o incentivo aplica-se, de acordo com o ponto 1.3.2 do anexo, a “qualquer bicicleta de carga, com ou sem assistência elétrica, construída especificamente para o transporte de carga ou com reboque destinado a esse fim”.
Da conjugação do ponto 1.3.1 com o 1.3.3 do anexo, verificamos que o incentivo se aplica a 300 unidades (no nosso caso, bicicletas), “de acordo com a data e hora da submissão do pedido de incentivo”, e que o montante para cada unidade será de 50% do valor de aquisição do veículo, até ao limite máximo de 1.000€, para as bicicletas de carga com assistência elétrica, ou de 500€, para bicicletas de carga sem assistência elétrica.
A tipologia 4 compreende, entre outros veículos, “qualquer bicicleta com assistência elétrica, destinada a uso citadino, não incluindo bicicletas destinadas a uso desportivo”. O incentivo abrange 1857 unidades, com um montante correspondente a 50% do valor de aquisição do veículo, até ao limite de 350€.
A tipologia 5, que diz respeito a bicicletas convencionais, “sem assistência elétrica, destinada[s] a uso citadino, não incluindo bicicletas destinadas a uso desportivo”, prevê um incentivo para 500 unidades e contempla um incentivo de 20% do valor de aquisição, até ao limite máximo de 100€.

De realçar que, independentemente da categoria, apenas será atribuída uma unidade de incentivo por pessoa singular.
Exige-se ainda que o veículo objeto do apoio tenha sido adquirido entre 1 de janeiro de 2021 e 30 de novembro de 2021, data limite para a submissão de candidaturas.
O candidato cujo veículo esteja conforme com os requisitos deve preencher o formulário presente no website do Fundo Ambiental, seguindo as instruções e apresentando os documentos necessários para a atribuição do incentivo[3].
Uma vez inscrito, o candidato ou vê efetuado o reconhecimento do direito ao incentivo ou, caso esteja esgotado o montante para a tipologia em questão, é notificado que o seu pedido se encontra em lista de espera.
Visando garantir que a totalidade das verbas são distribuídas, o regulamento contempla situações que podem beneficiar candidatos que se encontrem em lista de espera:

• Se uma das tipologias não esgotar o montante que lhe foi designado, o ponto 6.2 postula que “serão atribuídos mais incentivos dentro dessa categoria até esgotar o montante”. Por outras palavras, será aumentado o número de bicicletas que beneficiam do incentivo se, após a entrega do número previsto de unidades, sobrarem verbas nessa categoria. Caso seja selecionado, o beneficiário será notificado por correio eletrónico;

• Se não tiver sido atribuído o número máximo de unidades de incentivo a alguma das tipologias, o valor restante destina-se aos candidatos que estão na lista de espera das outras tipologias. Nesta hipótese, a atribuição do valor remanescente não é aferida pela ordem de chegada dos candidatos, mas antes determinada pela norma presente no ponto 6.7, que revela uma hierarquia entre as listas de espera das diferentes tipologias. Esta regra sequencial é aplicável, nos mesmos termos, às situações em que existe um pedido indeferido (pontos 6.6 e 7.3 do anexo).

Aos beneficiários é imposta a obrigação de “após a receção do incentivo, manter[em] a posse do veículo por um período não inferior a 24 meses a contar da data de aquisição” (ponto 9.1 do anexo). Para além da referida obrigação, encontra-se vedada a exportação dos veículos que beneficiam do incentivo, pois “o principal objetivo do programa [é] a introdução no território nacional de veículos ambientalmente mais favoráveis” (ponto 9.2 do anexo).

Tendo em vista o interesse dos consumidores, e para evitar que, ao adquirirem uma bicicleta, sejam induzidos em erro em relação às condições do regulamento, é importante que fiquem assentes os seguintes pontos:

1) O regulamento não confere “direito absoluto” à comparticipação. Existe um número limitado de incentivos que, não obstante algumas exceções, são conferidos com base na ordem de chegada dos beneficiários;

2) O valor dos incentivos é variável consoante o veículo em questão, podendo ir dos 100€, para bicicletas citadinas convencionais, até aos 1.000€, para bicicletas de carga com assistência elétrica. O incentivo nunca ultrapassa 50% do valor total do veículo, podendo, em alguns casos, atingir apenas 20% do valor de aquisição;

3) Algumas categorias de bicicletas, como as bicicletas desportivas, não são abrangidas pelo incentivo;

4) As bicicletas devem ser novas e obtidas durante o período de 1 de janeiro de 2021 a 30 de novembro de 2021, devendo o beneficiário apresentar, no momento da inscrição, fatura com a data de aquisição do veículo;

5) As pessoas singulares apenas podem submeter um único veículo para obtenção do incentivo;

6) Os beneficiários ficam obrigados a manter a posse do veículo por um período não inferior a 24 meses, ficando também vedada a possibilidade de exportarem os veículos que tenham sido objeto do incentivo.


[1] O regime do Despacho n.º 2535/2021 não se limita às bicicletas, incluindo também determinados automóveis, motociclos e ciclomotores. As trotinetes elétricas ficam excluídas do âmbito de aplicação do incentivo. O presente artigo tem como escopo apenas as bicicletas.

[2] Podemos encontrar este objetivo na parte introdutória do Despacho n.º 2535/2021.

[3] Para além dos documentos relativos ao candidato, como o documento de identificação ou o número de identificação bancária, a fatura de aquisição do veículo é um documento fundamental para comprovar a data em que o veículo foi adquirido.

O Robô de Cozinha da Lena

Consumo em Ação

Por André Neves, Beatriz Pereira e Luís Cruz

Hipótese: Lena foi a uma demonstração de Bimbitas a casa de uma amiga e acabou por comprar um robô de cozinha. Apenas o fez porque a representante da marca também lhe ofereceu a possibilidade celebrar um contrato de crédito com outra empresa. Lena nem precisava de se preocupar, pois a empresa de crédito pagaria diretamente à Bimbitas, Lda. o valor do robô de cozinha, ficando Lena apenas com a obrigação de pagar as prestações mensais relativas ao crédito. Quando a Bimbita chegou, Lena percebeu que esta não funcionava. Já passou algum tempo e a questão não está resolvida. Lena tem de continuar a pagar as prestações?

Resolução: Lena celebrou dois contratos: um contrato de compra e venda de uma Bimbita com a Bimbitas, Lda., e um contrato de crédito ao consumo com outra empresa. Primeiramente, há que analisar que direitos pode a Lena exercer em relação à Bimbita que comprou à Bimbitas, Lda.. De seguida, importa averiguar se estamos perante um contrato de crédito coligado. Dados estes passos, conseguiremos dar resposta à questão.

Quanto aos direitos que Lena poderá eventualmente exercer em relação à Bimbita, importa analisar o DL 67/2003. Parecem estar preenchidos os quatro elementos do conceito de consumidor (art. 1.º-B-a)): elemento subjetivo, elemento objetivo, elemento teleológico e elemento relacional. Assim sendo, estando perante um contrato de compra e venda (art. 1.º-A-1), podemos concluir que o diploma é aplicável à relação contratual em análise.

Refere o art. 2º-1 que “[o] vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”, e as alíneas do art. 2.º-2 são no fundo “critérios [formulados pela negativa] que têm como objetivo definir os elementos que integram o contrato, […] para depois, no momento do cumprimento, [se] aferir se o objeto prestado corresponde ao objeto contratado”[1] [2]. Assim sendo, não obstante a sua letra, o art. 2.º-2 não deve ser interpretado no sentido de consagrar uma presunção[3]; em termos figurados, diríamos que a norma se dirige ao consumidor, “dizendo-lhe” que se ele conseguir provar um dos factos previstos nas alíneas, em princípio haverá falta de conformidade[4]. Sendo que a Bimbita pura e simplesmente não funciona, parece-nos que Lena conseguiria desde logo provar, quer o facto descrito na alínea d), quer o facto descrito na alínea c)[5], pelo que, não estando obviamente em causa o art. 2.º-3, há falta de conformidade.

Dispõe o art. 3.º-1 que o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue, e o n.º 2 do mesmo artigo explicita, para o que nos importa, que as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea presumem-se existentes já nessa data. Ora, estando perante uma dispensa ou liberação do ónus da prova[6], cabe ao profissional fazer prova de que a falta de desconformidade não existia no momento da entrega do bem. Assim sendo, a Bimbitas, Lda. teria de provar um facto posterior concreto, que não lhe seja imputável, gerador da falta de conformidade[7], e tanto quanto sabemos esse facto não existiu.

Tendo a Bimbitas, Lda. de responder pela falta de conformidade, Lena tem os quatro direitos previstos no art. 4.º-1, sendo livre de exercer o que entender, uma vez que não é estabelecida qualquer hierarquia entre eles[8], tendo apenas como limite a impossibilidade e o abuso de direito (art. 4.º-5). Uma vez que a Bimbita não funciona, parece-nos que faria sentido que Lena pedisse a reparação, a restituição ou a resolução do contrato, embora pudesse também pedir uma redução adequada do preço, caso fosse essa a sua vontade. Entendemos que nenhuma das opções constituiria abuso de direito (e com toda a probabilidade não se levantariam problemas de impossibilidade) e, portanto, Lena tem dois anos a contar da data da entrega do bem para exercer um dos direitos referidos (art. 5.º-1).

É referido no enunciado que já passou algum tempo desde que a Bimbita chegou e a questão não está resolvida. Ora, se a questão não estiver resolvida porque Lena não chegou a interpelar a Bimbitas, Lda., caso já tenha passado mais de dois meses da data em que detetou a desconformidade, ela não poderá exercer os direitos que lhe são atribuídos nos termos do art.4.º (art. 5.º-A-2). Não temos informações relativas ao facto de Lena ter ou não interpelado a Bimbitas, Lda. dentro do prazo referido; contudo, para efeitos de prossecução na resolução da hipótese, vamos assumir que interpelou e, não obstante, não teve o seu problema resolvido.

Posto isto, importa agora partir para a análise da questão principal à luz do DL 133/2009, que, à partida, é aplicável ao contrato de crédito ao consumo celebrado entre Lena e a empresa de crédito (art. 1.º-2 e art. 4.º-1 a), b) e c) do referido diploma)[9].

Para concluirmos se Lena tem ou não de continuar a pagar as prestações mensais relativas ao crédito, temos de perceber se existe uma conexão bastante entre o contrato de compra e venda e o contrato de crédito ao consumo. O DL em análise tem uma figura interessantíssima, que é a figura do contrato de crédito coligado, cuja definição se pode encontrar no seu art. 4.º-1-o). Ora, o pressuposto da i) está verificado, na medida em que o crédito concedido serve exclusivamente para financiar o pagamento do preço do fornecimento da Bimbita. Quanto ao da ii), está igualmente verificado: ambos os contratos constituem objetivamente uma unidade económica, desde logo porque a empresa de crédito recorreu à Bimbitas, Lda. para a celebração do contrato de crédito[10]. Estando os dois pressupostos preenchidos, podemos concluir no sentido de que temos um contrato de crédito coligado.

Havendo um contrato de crédito coligado, podemos partir para a análise do art. 18.º, que refere, no seu n.º 2, que “a invalidade ou revogação do contrato de compra e venda repercute-se, na mesma medida, no contrato de crédito coligado”. Ora, não obstante a norma não aludir à ineficácia, seguimos Fernando de Gravato Morais[11] e Jorge Morais Carvalho, ensinando-nos o último que “tendo em conta a razão de ser do preceito, e não existindo diferenças substanciais entre as duas situações, […] [deve entender-se que] noutros casos de ineficácia, diversos da revogação (leia-se exercício do direito de arrependimento), a norma também tem aplicação”[12]. Assim sendo, importa agora analisar o DL 24/2014, que ao que tudo indica é aplicável à relação contratual entre Lena e a Bimbitas, Lda., na medida em que tudo nos leva a crer que estamos perante um contrato entre um consumidor e um profissional celebrado fora do estabelecimento comercial (art. 2.º-1, art. 3.º-g)-iv), art. 3.º-c) e art. 3.º-i)). Nos termos do art. 10.º-1-b) deste diploma, regra geral, o consumidor tem direito de arrependimento no prazo de 14 dias a contar do dia em que adquire a posse física do bem. Ora, o enunciado parece dar-nos a entender que este prazo já passou (“Já passou algum tempo”); contudo, caso não tenha passado, Lena pode exercer este direito nos termos do art. 11.º e, portanto, ver automaticamente repercutir-se a ineficácia do contrato de compra e venda no contrato de crédito ao consumo (art. 18.º-2 do DL 133/2009), tendo “o dever de informar o financiador da ineficácia do contrato de crédito para que este possa tomar as medidas que entenda adequadas no âmbito da sua relação com o vendedor ou prestador do serviço”[13]. Nesta situação, Lena não teria de continuar a pagar as prestações mensais relativas ao crédito[14], tal como não teria de continuar a pagá-las se, partindo do pressuposto de que estaríamos dentro do prazo previsto pelo art. 17.º do DL 133/2009, exercesse o direito de arrependimento relativamente ao contrato de crédito[15].

Resta-nos analisar o art. 18.º-3, o qual refere que, no caso de desconformidade no cumprimento de contrato de compra e venda coligado com contrato de crédito, o consumidor que, após interpelação do vendedor[16], não tenha obtido deste a satisfação do seu direito ao exato cumprimento do contrato, pode interpelar o financiador para exercer uma de três pretensões previstas nas alíneas do art. 18.º-3. Assumindo que Lena já interpelou a Bimbitas, Lda. para que esta procedesse ao cumprimento pontual do contrato, e esta não prestou o bem “em conformidade com o contrato dentro de um prazo razoável, […] pode aquela recorrer ao financiador com o objetivo de salvaguardar a sua contraprestação”[17]. Se a Lena tivesse exercido o direito de reparação ou de substituição perante a Bimbitas, Lda., poderia exercer a exceção de não cumprimento do contrato perante o financiador (art. 18º-3-a)). Por outro lado, se eventualmente tivesse exigido a redução do preço perante a Bimbitas, Lda., o que no caso não faria muito sentido, poderia interpelar o financiador no sentido de exigir a redução do montante do crédito em montante igual ao da redução do preço (art. 18º-3-b)). E, por fim, caso tivesse exercido o direito de resolução perante a Bimbitas, Lda., poderia exigir a resolução do contrato de crédito perante o financiador (art. 18º-3-c)). Existe um paralelismo entre as soluções relativamente ao contrato de crédito e as soluções relativamente ao contrato de compra e venda, isto é, Lena pode fazer repercutir no contrato de crédito a solução que resulta do direito que tiver exercido relativamente ao contrato de compra e venda (qualquer um dos previstos no art. 4.º-1 do DL 67/2003). Sem prejuízo do que aqui foi exposto, partindo do pressuposto de que Lena quer, de facto, a Bimbita e, por isso, exerceu o seu direito de reparação ou de substituição perante a Bimbitas, Lda. (art. 4.º-1 DL 67/2003), o qual não foi satisfeito, pode interpelar o financiador e exercer a exceção do não cumprimento do contrato (art. 18.º-3-a) do DL 133/2009), não pagando, assim, as prestações mensais relativas ao crédito enquanto o bem não for reparado ou substituído pela Bimbitas, Lda..


[1] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, Almedina, 2020, p.285.

[2] Ac. do STJ de 19 de novembro de 2015, Processo n.º 139/12.0TVLSB.L1.S1 (Oliveira Vasconcelos).

[3] JORGE MORAIS CARVALHO e MICAEL MARTINS TEIXEIRA, Duas Presunções Que Não São Presunções: A Desconformidade na Venda de Bens de Consumo em Portugal, in “Revista de Direito do Consumidor”, Vol. 27, n.º 115, 2018, pp. 311-330.

[4] JOÃO CALVÃO DA SILVA, Venda de Bens de Consumo, Almedina, 2003, p. 61.

[5] Bastaria provar um deles, mas de facto o não funcionamento geral da Bimbita cabe perfeitamente tanto na alínea c) quanto na alínea d).

[6] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 319.

[7] Ibidem, p. 320.

[8] Ibidem, p. 323.

[9] Não temos elementos que nos levem a concluir em sentido contrário.

[10] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 463.

[11] FERNANDO GRAVATO DE MORAIS, Crédito aos consumidores, Almedina, 2009, p. 88.

[12] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 464.

[13] Ibidem, p. 465

[14] E teria obviamente direito a que lhe fosse devolvido o montante que já tivesse pago, tanto no caso em que exerce o direito de arrependimento relativamente ao contrato de compra e venda perante a Bimbitas, Lda.., quanto no caso em que exerce o direito de arrependimento relativamente ao contrato de crédito perante a empresa de crédito.

[15] Nos termos do art. 18º-1, a ineficácia do contrato de crédito resultante do exercício do direito de arrependimento repercutir-se-ia também no contrato de compra e venda. Vd. FERNANDO GRAVATO DE MORAIS, Crédito aos consumidores, cit., p. 87

[16] Para que o consumidor possa interpelar o financiador, antes tem de se ter dirigido ao vendedor. Vd. FERNANDO DE GRAVATO MORAIS, Crédito aos consumidores, cit., pp. 89-89.

[17] JORGE MORAIS CARVALHO, Manual do Direito do Consumo, cit., p. 467.

O Conceito de Pagamento na Diretiva das Práticas Comerciais Desleais – Acórdão C-371/20 TJUE

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante Tribunal ou TJUE) pronunciou-se recentemente sobre o processo C-371/20, um reenvio prejudicial sobre a interpretação do conceito de pagamento no ponto 11[1] do Anexo I da Diretiva 2005/29/CE de 11 de Maio de 2005, conhecida como a Diretiva das Práticas Comerciais Desleais.

O tema da extensão do conceito de contraprestação nos contratos de consumo para incluir outras contrapartidas que não sejam pecuniárias tem sido particularmente debatido e trabalhado no Direito do Consumo Europeu, em especial quanto à questão do tratamento de dados pessoais[2].

A jurisprudência sobre este tema ainda é escassa (neste blog já foi analisado um caso italiano). No processo C-371/20, a alegada contraprestação não foi o tratamento de dados pessoais de consumidores, mas o envio e permissão de utilização de conteúdos protegidos por direitos de propriedade intelectual a título gratuito.

Neste caso alemão, o Tribunal, seguindo de perto a opinião do Advogado-Geral Maciej Szpunar (AG), expandiu a sua interpretação do conceito de financiamento/pagamento, no contexto de uma prática comercial de inserção de promoções em conteúdos editoriais.

Segundo o TJUE, este conceito deve ser interpretado como abarcando qualquer contrapartida económica com valor patrimonial, independentemente da forma que esta assuma. No caso sub judice, a permissão de utilização de imagens protegidas por direitos de propriedade intelectual de forma gratuita constitui uma contrapartida com valor económico e, portanto, um pagamento pelas promoções.

Enquadramento Factual

Peek & Cloppenburg, uma sociedade comercial que se dedica à atividade de venda a retalho de vestuário, e a GRAZIA, uma revista de moda, realizaram uma parceira em 2011, para a organização de um evento, uma “noite de compras exclusivas” denominada “GRAZIA StyleNight by Peek&Cloppenburg”.

A revista GRAZIA publicou um artigo de dupla página sobre este evento, enquanto parte do conteúdo editorial da própria revista, sem identificação de este ter sido pago, isto é, do seu caráter publicitário. O artigo continha diversas imagens das lojas e produtos da “Peek & Cloppenburg”, que foram fornecidas por esta, com a autorização da sua utilização neste âmbito.

P&C Hambourg, uma sociedade concorrente de Peek&Cloppenburg, alegou que este incidente constitui uma prática comercial contrária à lei alemã que transpôs a Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (UWG), ao constituir publicidade dissimulada paga nos conteúdos editorais da revista.

Ratio Decidendi

Uma das principais dificuldades do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal Alemão) deveu-se à própria interpretação do elemento literal da norma de transposição e da Diretiva[3].

Na versão em alemão da Diretiva, o termo “bezahlt” é geralmente associado ao pagamento de somas monetárias, de forma semelhante à versão inglesa, que utiliza “paid for” ea versão espanhola “pagando”. No entanto, algumas das restantes versões linguísticas do diploma utilizam expressões de carácter mais neutral, quanto à natureza da contrapartida, nomeadamente as versões francesa “financer” e italiana “i costi di tale promozione siano stati sostenuti”.

Em português, a expressão utilizada na Diretiva é “tendo sido o próprio profissional a financiar essa promoção”. Embora semelhante à versão francesa, esta linguagem também poderia suscitar algumas dúvidas aos juristas portugueses.

Devido a estas discrepâncias no elemento literal, o TJUE (para. 36 e 37) e o AG (para. 46 e seguintes) avançaram para o elemento sistemático e teleológico, considerando assim o contexto e os objetivos prosseguidos pela Diretiva.

Dado que:

1. o objetivo principal deste diploma é garantir um elevado nível de proteção dos consumidores na União Europeia contra práticas comercias desleais;

2. as práticas enumeradas no Anexo I são sempre consideradas desleais independentemente das circunstâncias;

3. o objetivo da norma em assegurar a transparência na publicidade de produtos e serviços no domínio da imprensa escrita e outros meios de comunicaç3ão social;

4. restringir o conceito de pagamento apenas à transmissão de quantias pecuniárias não corresponderia à prática jornalística e publicitária e retiraria o efeito útil desta disposição;

5. vários estudos realizados pelo Parlamento Europeu sobre práticas de publicidade dissimulada e enganosa na Internet, nas redes sociais, fóruns, blogues, publicações de influencers, concluíram que estas são financiadas direta ou indiretamente por operadores económicos, devendo aplicar-se esta Diretiva;

6. restringir o conceito de pagamento teria inevitavelmente um efeito prejudicial na confiança dos consumidores, na neutralidade da imprensa e nas regras da concorrência.

O Tribunal concluiu que o conceito de pagamento deve aplicar-se sempre que o profissional conceder qualquer contrapartida económica, independentemente da sua forma e valor, seja em quantias monetárias, bens, serviços ou qualquer outra vantagem patrimonial pela realização da ação publicitária.

A disposição, a título gratuito, a favor da revista GRAZIA, de imagens protegidas por direitos de propriedade intelectual pode ser considerada pelo Bundesgerichtshof como um financiamento direto da publicação.

As conclusões deste acórdão têm implicações bastante interessantes para o Direito do Consumo Europeu.

Em primeiro lugar, revela a importância de considerar as diferentes versões linguísticas dos diplomas europeus, os problemas que podem surgir e o valor dos restantes elementos interpretativos, nomeadamente o sistemático e teleológico.

Em segundo, embora o caso em apreço apenas incida nos conteúdos editoriais, tanto o Tribunal e o Advogado-Geral demonstraram abertura à aplicação desta Diretiva às novas realidades do marketing digital, onde a publicidade oculta é endémica, especialmente quanto às práticas de muitos influencers, frequentemente direcionadas a menores.

Por fim, a expansão do conceito de pagamento a diferentes tipos de contraprestações económicas com valor patrimonial poderá ser um indicador de que este raciocínio também poderá ser considerado (e aplicado) pelo Tribunal noutras diretivas de Direito do Consumo Europeu.


[1] “11. Utilizar um conteúdo editado nos meios de comunicação social para promover um produto, tendo sido o próprio profissional a financiar essa promoção, sem que tal seja indicado claramente no conteúdo ou através de imagens ou sons que o consumidor possa identificar claramente (publi-reportagem). Esta disposição não prejudica a Directiva 89/552/CEE”

[2] A Diretiva (UE) 2019/770, dos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais (DCD) e a Diretiva (UE) 2019/2161, da Modernização do Direito do Consumo (MD) na sua alteração à Diretiva 2011/83/UE, já incluem o tratamento de dados pessoais fornecidos pelos consumidores (desde que não seja realizado para o cumprimento de requisitos legais ou no cumprimento das obrigações contratuais) no seu âmbito objetivo.

[3] Na jurisprudência do TJUE, nomeadamente o Acórdão C-512/12 4finance, a necessidade de aplicação uniforme dos atos legislativos da UE implica que estes diplomas não podem ser interpretados considerando apenas uma versão linguística isoladamente. É assim necessário considerar as várias versões linguísticas em conjunto na interpretação literal. Após este exercício é que se deve avançar para a interpretação sistemática e teleológica da norma (Acórdão C-281/12 Trento Sviluppo e Centrale Adriatica).

Piscina com fuga de água – Comentário ao Ac. do TRL, de 27/04/2021

Jurisprudência

O Código Civil (CC) prevê um regime para o contrato de empreitada nos artigos 1207.º e seguintes. A empreitada consiste num contrato de prestação de serviços (cfr. artigo 1155.º), através do qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante o pagamento de um preço.

O Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, disponível aqui, transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas. Trata-se de normas especiais relativamente às regras do CC, pelo que afastam as que se mostrarem incompatíveis com o seu campo de aplicação.

De acordo com o artigo 1.º-A, o DL referido aplica-se aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, esclarecendo que consumidor é aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, e da alínea a) do artigo 1.º-B do DL.

Com o Decreto-Lei nº. 84/2008, de 21 de Maio, a aplicação do DL 67/2003 alargou-se, “com as necessárias adaptações, aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada”, conforme o n.º 2 do artigo 1.º-A.  Deste modo, este diploma aplica-se aos contratos de empreitada entre aqueles que fornecem bens de consumo no exercício de uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios e quem adquira bens de consumo destinados a uso não profissional. Aos restantes contratos de empreitada, aplica-se o disposto no Código Civil.  

O DL manifesta uma protecção maior ao consumidor, consagrada, aliás, no artigo 60.º da Constituição da República Portuguesa, considerado a parte mais fraca, por ter menos conhecimento na matéria, e, por conseguinte, o Direito acautela a sua posição contratual, beneficiando-o com presunções de não conformidade. No caso dos contratos de empreitada, o consumidor será o dono da obra.

Recentemente, o Tribunal da Relação de Lisboa, a 27 de Abril de 2021, pronunciou-se sobre um contrato de empreitada e respectiva conformidade da obra, que pode consultar aqui.

No caso, a Autora, no âmbito da sua actividade profissional de construção de piscinas, celebrou com o Réu um contrato de empreitada, não tendo este pago o valor total da obra uma vez que a mesma não estava conforme pois o nível da água descia abaixo do nível da pedra, provocando a perda água da piscina. 

Apesar de terem sido denunciados, os defeitos nunca foram reparados. Segundo a Autora, o alegado defeito é consequência de ter sido o Réu a escolher a pedra de transborda da piscina, contra as suas indicações. Apesar de não ser recomendado, o Réu quis alterar a pedra a usar.

Não estando a obra adequada ao seu uso e não apresentando as qualidades e o desempenho habituais, o DL faz presumir a não conformidade da obra (cfr. artigo 2.º n.º 2 DL).

Como explica o TRL, a presunção “abarca genericamente as situações de “vícios” e “desconformidades” da obra, a que aludem os artigos 1208.º e 1218.º, n.º 1 do CC” (…) O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das prestações daquele tipo; a desconformidade representa uma discordância com respeito ao fim acordado”.

Em caso de não conformidade da obra, o consumidor pode optar pela reparação, pela sua substituição, pela redução adequada do preço ou pela resolução do contrato, não impondo o DL qualquer ordem hierárquica na escolha, apenas restringida pelos limites impostos pela proibição geral do abuso de direito e pela manifesta impossibilidade – artigo 4.º, n.º 5 do DL 67/2003.

Através de perícias, provou-se a existência de irregularidades que permitiam a fuga de água. A obra não satisfaz, portanto, a sua função normal, desviando-se do objectivo contratual negociado pois a deficiente execução da obra põe em causa a funcionalidade base da piscina por permitir a fuga da água[1].

Não se provou, porém, que a Autora tenha comunicado ao Réu a consequente e provável fuga de água com a aplicação daquela pedra, nem que a pedra usada tenha sido uma imposição do réu. Importa ter presente que imposição e mera opinião são situações diferentes para efeito de averiguação de responsabilidade.

O n.º 3 do artigo 2.º do DL clarifica que não existe falta de conformidade se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor. Ora, pela factualidade apurada, não foi esse o caso.

Com efeito, e como bem elucida o TRL, não pode deixar-se de exigir do empreiteiro, pelos conhecimentos técnicos que detém, que tivesse atentado e previsto os possíveis problemas que poderiam advir da utilização daquela pedra em particular. Mais, não deveria aceitar sem mais quaisquer sugestões do dono da obra, em regra, menos conhecedor.

O empreiteiro deve executar a obra acordada[2], com os seus conhecimentos e experiência, que o dono da obra provavelmente não tem. Ao optar por acolher a opinião deste, o empreiteiro não se exime de responsabilidade. Deve escolher a forma mais adequada para a execução da obra, tendo em conta as finalidades da mesma, não apenas objectivamente como considerando as finalidades que em concreto as partes tiveram em vista[3].

Julgou-se a Autora como a única responsável pelo defeito da obra.

Se assim não fosse, qualquer opinião dada pelo dono da obra, por mais desadequada que fosse, permitiria ao empreiteiro isentar-se de responsabilidade.

Para assim não ser, a Autora empreiteira teria que demonstrar que o material usado foi não apenas uma escolha do dono de obra, mas sim uma verdadeira exigência do mesmo.


[1] Pedro Martinez in Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, 2001, página 33.

[2] Neste sentido, também o artigo 1208.º do CC.

[3] Com efeito, o defeito deve ser apreciado numa concepção objectiva, à luz do seu uso corrente, e subjectiva-concreta, cfr. João Calvão da Silva, Estudos Jurídicos (Pareceres), Almedina, Coimbra, 2001, página 335.

Technological Free Zones and the Portuguese Regulatory Sandbox Legal Framework

Doutrina

Written by Yasmin Waetge (version in Portuguese here). Translated by Gabriela Santos.

The NOVA Consumer Lab resumes its activities after a short break with a renewed spirit to discuss and analyze the latest Consumer Law news. Today we bring up a brief analysis of the recently approved Technological Free Zones, considered a major step towards the promotion of foreign investment and national development.

Currently, the ever-increasing pace of technological innovation development requires governments to actively seek to understand the risks associated with this reality while setting out appropriate policies and guidelines to reap its benefits and protect consumers. Despite the legislative efforts, the fact is that the regulatory gap between reality and legal prescriptions has caused society, businesses, markets and even States to develop what some authors refer to as ‘regulatory uncertainty’ or ‘regulatory fear’.[1]

In this context, as well as a consumer protection measure, law operators have progressively witnessed the expansion of ‘Regulatory Sandbox’ as an alternative system for the current challenge of adapting this ‘new’ market regulation to the innovations that arise daily. Integrated in this environment, in a regulatory dialectic, businesses may enjoy a broad interaction with regulators for the controlled development of services and products. Thus, at a subsequent time and in a more secure conjecture, regulatory authorities will be able to decide “if-”, “how-” and “when-” to grant permanent licenses for the entrance and operation of such companies in the consumer market.

In a more integrative and comprehensive content-based approach, since 2020 the Portuguese government has been discussing the groundwork of the so-called ‘Technological Free Zones’ (ZLTs). In generic terms, this environment aims to be a general and cross-sector structure for the experimentation of innovative technologies. In other words, it would be a representation that corresponds to the ‘regulatory sandbox’ concept.

Initially, through Resolution of the Council of Ministers no. 29/2020[2], Portugal acknowledged its intention to establish a ‘common legal framework for demonstration and testing activities, in a real environment, of innovative technologies or solutions’, regardless of the sector. This feature of the Portuguese system sets it apart from the experiences of other countries that have resorted to this model to facilitate innovation in the economic realm, financial and insurance regulation. 

More recently, the Portuguese government approved and published in the Official Gazette of Portugal the legal framework for Technological Free Zones (ZLTs), laid down in Decree-Law no. 67/2021[3] of July 30, 2021, which establishes its regulatory regime and defines the governance model for promoting technology-based innovation through the creation of these zones.

The Decree-Law contains 4 chapters and 16 articles, many of which implemented by numerous subparagraphs. Notwithstanding some delay, the regulation’s enactment responds to the global trend of promoting innovation and increasing the transfer of scientific and technological knowledge in the economy. In addition, Portugal envisions in the creation of Technological Free Zones the possibility to enhance its attractiveness for innovation projects and foreign investment related to emerging technologies to the national market.

Aware of the emergence of new stakeholders in the global economy and trying to catch up on its oversight of the sector over the last few years, in comparison to the rest of the European Union, Portugal also announced in 2020 a set of measures to assist more than 2,500 startups based in the country to help them overcome the consequences of the COVID-19 pandemic. The businesses support package amounts to more than 25 million euros, with an average of 10,000 euros of financial aid for each startup.[4]

For instance, it is worth reminding that to a large extent it was precisely in the wake of the UK Financial Authority’s exquisite creation of a ‘regulatory sandbox’ in 2015 that Revolut emerged, now one of Europe’s most valuable FinTech.

Thus, despite some well-deserved criticism, one cannot disregard the legislative efforts made, since, placed in a harmonized environment, and with the already consolidated presence of innovation hubs, the implementation of Technological Free Zones aims at mitigating regulatory entrance barriers to different economic sectors, reducing uncertainties and, above all, boosting innovation in Portugal. We look forward to sharing more analysis and news on this subject soon.


[1] See QUAN, Dan (2020) “A few thoughts on regulatory sandboxes”, Technical report, Stanford PACS, Stanford University.

[2] Resolution of the Council of Ministers No. 29/2020 – General principles for the creation and regulation of Technological Free Zones. Available at: https://data.dre.pt/eli/resolconsmin/29/2020/04/21/p/dre.

[3] Decree-Law No. 67/2021 – Regime and governance model for the promotion of technology-based innovation through the creation of Technological Free Zones. p. 29-37. Available at: https://data.dre.pt/eli/dec-lei/67/2021/07/30/p/dre.

[4] See “Novas medidas de apoio ao ecossistema de empreendedorismo no valor de 25 milhões de euros”. Comunicados da República Portuguesa. April 21, 2021. Available at:  https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/comunicacao/comunicado?i=novas-medidas-de-apoio-ao-ecossistema-de-empreendedorismo-no-valor-de-25-milhoes-de-euros

Ventos de mudança na remoção e substituição das baterias portáteis

Doutrina

Quantos de nós consumidores já nos deparámos com a situação em que um aparelho portátil, como por exemplo smartphones, ainda se encontra em perfeitas condições de hardware, software ou estado de conservação, mas a sua bateria tem uma durabilidade nula ou quase nula? Quantos de nós é que já nos vimos obrigados a substituir as baterias desses aparelhos em lojas próprias ou autorizadas porque, de outro modo, é impossível ou arriscado manter o bom funcionamento do mesmo? A verdade é que, frequentemente, a vida útil do aparelho e da sua bateria não coincidem, tal como já tivemos oportunidade de analisar em texto anterior de José Filipe Ferreira, para o qual se remete.

Porém, naquilo que se esperam ser boas notícias para os consumidores europeus, o artigo 11.º da Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo às baterias e respetivos resíduos foi desenhado para, pelo menos, remodelar esta realidade. É, pois, proposto que, doravante, as baterias portáteis[1] incorporadas em aparelhos possam ser facilmente removíveis e substituíveis pelo utilizador final ou por operadores independentes durante a vida útil do aparelho, se a vida útil das baterias for inferior ou, o mais tardar, no fim da vida útil do aparelho. A Proposta de Regulamento também esclarece que se deverá considerar que uma bateria é facilmente substituível quando, ao retirar a mesma do aparelho, este último pode funcionar com uma bateria semelhante, sem que isso afete o funcionamento ou o desempenho do aparelho.

Como bem se compreende, esta inovação poderá representar uma pedra no charco naquele que é o paradigma atual quanto à remoção e substituição de baterias portáteis. Veja-se, por exemplo, o caso da Apple em que nos diversos aparelhos (iPhone, iPad, Apple Watch, etc.) a substituição das baterias, por um utilizador final leigo na matéria, é praticamente impossível de realizar e, mesmo que seja feita por profissionais – que não a Apple ou as lojas por si autorizadas -, não há qualquer proteção para os consumidores, caso a remoção e substituição afete o desempenho dos aparelhos.

Assim, a obrigação que a Proposta de Regulamento prevê afigura-se como bastante benéfica para os consumidores, pois oferecerá aos mesmos a possibilidade de substituírem, por si próprios, as baterias em causa, assim como terão mais opções de escolha, caso pretendam recorrer a operadores profissionais, sem que sobre essas decisões paire a quase certeza de diminuição da qualidade e desempenho do aparelho que atualmente se verifica.

Adicionalmente, esta facilidade em dar uma segunda vida aos aparelhos poderá, igualmente, conduzir a uma redução do consumo, na medida em que, não raras vezes, a opção dos consumidores passa por comprarem novos aparelhos, pois os custos e riscos inerentes à substituição das baterias não compensa o investimento. Acresce que a estatuição da obrigação que aqui se analisa poderá, também, ter a virtude de levar os fabricantes a investirem em baterias com uma vida útil mais longa, evitando-se assim a necessidade de aquisição de novas baterias e promovendo-se, deste forma, o consumo sustentável.

Por fim, é importante não esquecer que o artigo ora analisado está incluído numa Proposta de Regulamento – a qual conheceu vários avanços durante a Presidência Portuguesa do Conselho Europeu – mas que, até à aprovação final, a acontecer, provavelmente, ainda em 2021, poderá conhecer alterações. Assim, somente com a versão final do Regulamento, bem como com a sua produção de efeitos concretos no mercado, é que será possível compreender se estamos perante verdadeiros ventos de mudança ou se, em contrapartida, não assistimos a uma mera brisa não refrescante.


[1] Para efeitos da Proposta de Regulamento, classificam-se como baterias portáteis aquelas que: (i) são fechadas hermeticamente, (ii) pesam menos de 5 kg, (iii) não são concebidas para fins industriais e (iv) não são baterias de um veículo elétrico nem baterias de um automóvel.