A garrafa de vinho mais cara do que o jantar

Consumo em Ação

Por Leandro Pinto, Matilde Pinho e Rita Saramago

Hipótese: No dia 15 de junho, Joaquim telefonou para o restaurante Belos Cozinhados e reservou uma mesa para nove pessoas para as 21h. Joaquim combinou a ementa com  o empregado do restaurante. Com o grupo totalmente instalado e com os pratos já servidos, o empregado veio perguntar o que pretendiam beber. Joaquim pediu vinho e água para todos. Uns minutos depois, o empregado apareceu com uma garrafa de vinho na mão, que apresentou como sugestão do restaurante. Joaquim aceitou sem colocar qualquer questão sobre o preço, tendo sido pedida uma segunda garrafa de vinho a meio da refeição. Terminada a refeição, Joaquim pediu a conta e, quando esta chegou, ficou surpreendido com o valor apresentado (€ 1 500), dos quais € 1 300 diziam respeito às duas garrafas de vinho, referidas na conta como sendo “Barca Velha” (um conhecido vinho, bastante caro). Joaquim tem de pagar?

Resolução: No caso em análise, o processo negocial pode ser objeto de duas leituras diferentes. A primeira é considerar-se que foi celebrado apenas um contrato atípico que junta elementos de vários tipos. Neste caso, teríamos dois elementos principais – empreitada (no que à confeção do jantar diz respeito) e prestação de serviços (serviço do restaurante) – e dois elementos secundários – compra e venda (relativamente ao vinho e à água) e aluguer (talheres, cadeiras, mesas do restaurante). Diferentemente, pode autonomizar-se o contrato de compra e venda das garrafas de vinho, o que nos parece ser a solução mais correta para o tratamento do caso.

Quanto ao jantar, o contrato celebrou-se por telefone. Joaquim tem a obrigação de pagar o preço e o restaurante deve confecionar e servir o jantar.

No que respeita ao vinho, temos um contrato de compra e venda. Cabe analisar se o ato de apresentar a garrafa ao cliente consubstancia uma proposta contratual e se foi, de facto, celebrado um contrato. É inequívoco que o comportamento do empregado se apresenta como uma proposta contratual e que Joaquim, ao aceitar que este servisse o vinho, a aceitou. A questão incide no preço, que não é comunicado no momento da aceitação, o que nos levará posteriormente a discutir a validade do contrato, por violação do direito à informação do consumidor, plasmado no art. 8.º-1-c) da Lei de Defesa do Consumidor.

Antes de passarmos à questão da validade do contrato, importa percebermos qual seria a determinação mais correta do valor do vinho. Por força do Decreto-Lei n.º 138/90 de 26 de abril, é obrigatória a indicação dos preços dos bens e serviços colocados à disposição do consumidor no mercado, o que à partida pressupõe que o restaurante tinha afixada a tabela de preços praticados no estabelecimento comercial e, como é sabido por regras de experiência comum, teria também um menu à disposição dos seus clientes. Podemos, assim, concluir que o preço do vinho estava determinado, mas que não foi comunicado ao consumidor no momento de apresentação da proposta. Houve uma omissão por parte do empregado.

Terá havido uma prática comercial desleal e, consequentemente, o consumidor pode resolver o contrato? Se assim for, não tem de pagar qualquer valor pelas garrafas? Ou, pelo contrário, o empregado (e representante do restaurante) foi diligente e era o consumidor quem tinha o dever de solicitar o menu, verificando o preço do vinho?

Para determinar se existiu uma prática comercial desleal, recorremos ao Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março. Este regime pode ser analisado numa estrutura de pirâmide, em três níveis de análise diferentes: listagem normativa (arts. 8.º e 12.º), que indica práticas enganosas e agressivas em qualquer circunstância; práticas comerciais desleais em especial [art. 6.º-b) e c)]; cláusula geral (arts. 4.º e 5.º).

A prática em apreço não se enquadra nas listas dos arts. 8.º e 12.º, pelo que cabe averiguar se estamos perante uma prática comercial desleal em especial. Ao abrigo dos arts. 9.º-1-a) e 10.º-c), aplicáveis por remissão do art. 6.º-b), é discutível se a omissão do preço se traduz numa omissão de informação com requisitos substanciais para a decisão negocial. Atendendo às circunstâncias do caso concreto, nomeadamente o preço exorbitante do vinho, consideramos que sim, pois trata-se de uma informação de relevo, que interferiria, com elevada probabilidade, na decisão negocial do consumidor. Deste modo, esta informação deveria ter sido transmitida pelo profissional, através do seu representante (empregado), e não foi, impossibilitando Joaquim de tomar uma decisão negocial esclarecida.

Embora Joaquim não tenha especificado as bebidas no ato da reserva, tendo em conta o contexto e o preço médio da refeição, entendemos que foi tacitamente acordado um limite para o custo do vinho. O entendimento esperado de um cliente colocado na posição de Joaquim seria o de que o vinho não custaria mais de € 30, o preço médio de uma garrafa de vinho num restaurante.

Por este motivo, consideramos que se verificou uma prática comercial desleal especial por omissão.

Se dúvidas ainda existissem, chegaríamos à mesma conclusão através do nível seguinte de análise, a cláusula geral, plasmada no art. 5.º-1. Esta cláusula inclui quatro requisitos cumulativos[1]: (i) relação jurídica de consumo; (ii) existência de uma  prática comercial; (iii) contrariedade à diligência profissional; (iv) suscetibilidade da distorção do comportamento económico do consumidor.

Tendo já sido feita a verificação relativa aos pontos (i) e (ii), passamos a dedicar a nossa atenção aos pontos (iii) e (iv).

Tendo em conta o preço avultado do vinho comparado com o preço da refeição, seria expectável que o profissional, ao sugeri-lo, informasse o cliente, evitando que este fosse surpreendido em momento posterior. O comportamento não foi honesto, contrariando a diligência profissional que incumbe ao profissional.

A falta de honestidade teve como efeito o cliente ter um comportamento diferente daquele que teria caso tivesse todas as informações. Atendendo ao preço avultado do vinho, é (quase) certo que Joaquim adotaria um comportamento diferente se tivesse sido informado, não aceitando a proposta.

Paralelamente, a determinação do valor do vinho não resultou de um acordo entre as partes, tendo sido definido um valor de forma unilateral por parte do restaurante (em respeito pelas regras de fixação de preços que não cabe aqui aprofundar), valor este que não foi comunicado a Joaquim.

Violado o direito à informação do consumidor, Joaquim teria o direito de resolução do contrato, por força do art. 8.º-4 da Lei de Defesa do Consumidor. Tal implicaria que o consumidor tivesse de devolver o bem ao vendedor e este deixaria de poder exigir a obrigação de pagamento do preço. Neste caso, é evidente que esta não é uma solução adequada, uma vez que o vinho é um bem consumível e que, neste caso, já foi consumido durante a refeição, ficando Joaquim impossibilitado de devolver o conteúdo da garrafa.

Tratando-se de uma prática comercial desleal, aplica-se o art. 14.º-1 do Decreto-Lei n.º 57/2008 e o consumidor pode exigir a redução adequada do preço do bem, solução adequada neste caso. Em vez de serem cobrados € 1300 euros pelas duas garrafas, seria fixado um preço mais reduzido por cada garrafa, de acordo com o preço de mercado de um vinho, normalmente recomendado num restaurante como o Belos Cozinhados e expectável pelo consumidor médio colocado naquela posição.

Respondendo à questão colocada, Joaquim tem de pagar, mas não o valor exigido pelo restaurante. O valor deverá ser reduzido, equivalendo ao valor de mercado de duas garrafas de um vinho médio, normalmente recomendado em restaurantes como o Belos Cozinhados, cujo preço seja expectável para o consumidor médio colocado na posição do Joaquim.


[1] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, p. 142.

Reabrir a controvérsia das loot boxes nos videojogos

Doutrina

No passado dia 31 de maio, a Forbrukerrådet (Conselho de Consumidores Norueguês)[1] publicou o relatório “INSERT COIN: How the gaming industry exploits consumers using loot boxes”, de 59 páginas, detalhando a prática comercial das Loot boxes em videojogos, os diversos problemas que estas levantam, em termos de proteção dos consumidores, a legislação aplicável e a necessidade de mais (e melhor) regulação. Em coordenação com a publicação deste relatório, 20 associações de proteção dos consumidores de 18 estados europeus juntaram-se em apelos às autoridades para implementar reformas na legislação e na fiscalização destas práticas. Portugal foi um deles, tendo-se a DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor juntado a este consórcio.

As loot boxes são uma prática comercial utilizada em diversos videojogos, desde os gratuitos (free-to-play) aos pagos, que consiste, tipicamente, em cobrar aos utilizadores um valor (em moeda corrente ou em moedas virtuais), para desbloquearem “caixas” ou “carteirinhas” virtuais, de forma a obterem um prémio aleatório, que consiste numa recompensa (em conteúdo digital) do videojogo em questão. Os prémios aleatórios destas caixas podem variar muito, desde conteúdos para a simples personalização das personagens (as chamadas skins), apenas com valor cosmético e sem impacto na jogabilidade, até a personagens, equipamentos, figuras ou outros itens que concedem vantagens substanciais a quem as adquire. Estes itens virtuais podem, também, frequentemente ser transacionados, doados, trocados e vendidos entre os utilizadores, o que permite o surgimento (lícito ou ilícito) de mercados secundários, verdadeiras economias paralelas que incentivam a procura pelas loot boxes.

Estima-se que a venda de loot boxes em 2020 tenha resultado em receitas mundiais de 15 mil milhões de dólares para a indústria dos videojogos, com destaque para videojogos como o FIFA21, da EA, e o Fortnite, da Epic Games.

Controvérsias com loot boxes já não são uma novidade em 2022. É necessário destacar que, entre 2017 e 2018, depois de uma série de polémicas com o lançamento dos videojogos Star Wars Battlefront II e FIFA18, comparando a funcionalidade a casinos online predatórios para jovens, as Comissões de Jogos de Fortuna e Azar dos Países Baixos (Netherlands Gaming Authority) e da Bélgica (Belgium Gaming Commission) lançaram investigações a estas práticas para compreender se estas violavam as leis de jogo online nestes Estados, o que se veio a verificar. A generalidade das empresas passou a bloquear estas funcionalidades nestes Estados, mantendo-se a prática nos restantes. Aproveita-se as diferenças entre a definição legal de gambling nos vários ordenamentos jurídicos.

Este novo relatório e a ação concertada das associações de defesa dos consumidores visam reabrir esta temática, num ângulo pouco explorado até agora: o do Direito do Consumo. Desta forma, o relatório dá destaque:

  1. ao carácter agressivo da publicidade, pop-ups e notificações constantes dentro e fora dos jogos;
  2. à exploração de vulnerabilidades dos utilizadores com recurso a técnicas de design enganador e dissimulado – deceptive design, manipulative design e dark patterns;
  3. a critérios enganadores de transparência sobre as probabilidades de os utilizadores vencerem prémios;
  4. à utilização de algoritmos opacos que modificam e dissimulam resultados e probabilidades;
  5. à utilização de moedas virtuais (in-game currencies) próprias de cada jogo e plataforma para mascarar o custo real monetário da compra das loot boxes;
  6. às técnicas de design dos jogos destinadas a incentivar os jogadores a adquirirem loot boxes, com recurso a estímulos e castigos;
  7. ao verdadeiro custo real de modelos de negócio free-to-play ou freemium, que na verdade são bastante caros para os utilizadores;
  8. ao risco de perda dos conteúdos digitais a qualquer momento, fruto de cláusulas contratuais inseridas nos End-User License Agreements (EULA);
  9. à venda de loot boxes especialmente direcionada a menores.

O relatório utiliza dois case studies (FIFA22 e Raid: Shadow Legends) para exemplificar as principais práticas da indústria, passando de seguida para um curto enquadramento jurídico, incluindo a legislação aplicável aos contratos de jogo de fortuna e azar na modalidade de jogo online e o Direito do Consumo Europeu (e dos Estados Unidos da América).

No Direito do Consumo Europeu, a Forbrukerrådet focou a sua análise quanto à aplicabilidade, em primeiro lugar, da Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (Diretiva 93/13/CEE[JCO31] , transposta no DL n.º 446/85, de 25 de outubro) em especial às cláusulas que conferem unilateralmente um vasto leque de poderes aos prestadores de serviços para modificar funcionalidades dos conteúdos ligados às loot boxes, o funcionamento das mesmas e a possibilidade de apagarem os bens virtuais das contas dos utilizadores sem justificação e sem direito a reembolso.

Defende-se ainda a aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (Diretiva 2005/29/CE, transposta pelo DL n.º 57/2008, de 26 de março) quanto ao carácter enganador e agressivo comum a vários sistemas de loot boxes (artigos 8.º e 9.º), desde o timing das ofertas comerciais durante o jogo, a pressão colocada sobre os utilizadores, a opacidade da informação sobre os prémios, e o facto de frequentemente serem direcionadas a consumidores vulneráveis, nomeadamente as crianças e jovens.

Considera-se também aplicável a Diretiva dos Direitos dos Consumidores (Diretiva 2011/83/UE, transposta pelo DL n.º 24/2014, de 14 de fevereiro) quanto ao incumprimento dos requisitos de informações contratuais, nomeadamente certas informações como a probabilidade real dos prémios[2] das loot boxes essenciais para a decisão dos consumidores de comprarem ou não (artigo 6.º-1). A Comissão Europeia referiu este ponto nas suas Guidelines do final de 2021 para a interpretação e aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (Comunicação C/2021/9320), no artigo 7.º-4, afirmando que na venda de loot boxes devem ser cumpridos os deveres de informação de ambas as diretivas, quanto ao preço e as principais características (como as probabilidades).

A proposta de Regulamento para a Inteligência Artificial também foi abordada, mas apenas de passagem, quanto à opacidade e impacto negativo nos utilizadores dos algoritmos utilizados em videojogos.

De notar que o relatório não refere a Diretiva dos conteúdos e serviços digitais, quanto às normas relativas às modificações dos conteúdos digitais pelo profissional e o exercício dos direitos dos consumidores (como os efeitos da resolução do contrato).

Atendendo que a Comissão Europeia começou em março deste ano um “Fitness Check[JCO32] ” às três diretivas indicadas no relatório, com vista à preparação de propostas de revisão das mesmas até 2024, este relatório pretende reabrir a discussão sobre as loot boxes e promover alterações legislativas que tenham em conta os principais problemas regulatórios desta prática comercial.

Assim, o relatório termina com uma série de recomendações para a regulação das loot boxes:

  1. Proibição de práticas enganosas e dissimuladas pelas empresas de videojogos;
  2. Os preços nas lojas in-game devem estar indicados em moeda corrente (pelo menos com igual destaque em comparação com o preço em moedas virtuais);
  3. Videojogos direcionados a menores não devem ter loot boxes, nem funcionalidades “pay-to-win”, em que, sendo o jogo grátis, haja a possibilidade de serem conferidas vantagens substanciais ao utilizador pelo pagamento de quantias monetárias;
  4. Mais transparência no funcionamento dos algoritmos, devendo o consumidor ser expressamente informado quando for sujeito a decisões automatizadas que possam afetar o seu comportamento;
  5. Reforçar a atuação e cooperação das autoridades administrativas e entidades reguladoras no setor dos videojogos, para garantir a cumprimento da lei pelos profissionais e a proteção adequada dos consumidores;
  6. E finalmente, caso estes “remédios” não surtam o efeito de mitigar os problemas causados pela utilização desta prática comercial, esta deverá ser proibida.

Tal como em muitos outros ordenamentos jurídicos, em Portugal, a indústria dos videojogos e a suas práticas têm passado muito despercebidas[3] ao enforcement do Direito de Consumo. Esperemos que a participação da DECO neste consórcio e a cobertura mediática deste assunto possam resultar em ações concretas, especialmente se atendermos ao facto que o Decreto-Lei n.º 119-G/2021, de 10 de dezembro, apenas transpôs parcialmente a Diretiva 2019/2161 (Diretiva Omnibus), existindo assim uma janela de oportunidade para inserir reformas nos diplomas nacionais, acompanhando a transposição das medidas em falta.


[1] Organização de defesa dos direitos dos consumidores noruegueses, sob a alçada da Autoridade do Consumidor Norueguês, autoridade administrativa semelhante a uma entidade reguladora independente em Portugal.

[2] A Autoridade da Concorrência Italiana (AGCM), com competência para o enforcement da Diretiva da Práticas Comerciais Desleais, conseguiu impor este requisito de transparência às empresas de videojogos em Itália.

[3] Em 2018, Teresa Monteiro, vice-presidente do Turismo Portugal, assinou uma declaração conjunta de reguladores sobre loot boxes em videojogos. Também em 2018, o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos participou num encontro de reguladores em Birmingham sobre o mesmo tema. Além destas notícias, não se conhecem mais ações dos reguladores portugueses.


Alegações Ambientais e o Ecobranqueamento: a defesa dos direitos dos consumidores no âmbito da transição verde

Legislação

Existe atualmente um crescente impacto da comunicação comercial com recurso a alegações ambientais que visam influenciar as decisões de compra do consumidor. Tornou-se banal depararmo-nos com referências à sustentabilidade ou reciclabilidade de um produto. Proliferaram os selos, logos e certificações. A utilização de expressões como “Green” ou “Eco” foram banalizadas e alegações ambientais genéricas e vagas são muitas vezes uma prática no mercado.

A 30 de março de 2022 foi publicada pela Comissão Europeia, a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera as Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/UE, no que diz respeito à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e de melhor informação.

Na preparação da Proposta, foram consultados mais de 12.000 consumidores, empresas, autoridades nacionais dos Estados-Membros e especialistas na área do consumo e Direito do Consumo, tendo a mesma revelado que o receio do ecobranqueamento tem impedido os consumidores de participar mais ativamente na transição verde. A questão da fiabilidade da informação surgiu como a principal questão para o consumidor.

A viabilidade da reparação dos produtos foi identificada como passível de permitir aos consumidores uma escolha de produtos mais sustentáveis e, por sua vez, uma melhor informação sobre a durabilidade dos mesmos foi identificada como a melhor opção para capacitar os consumidores na transição ecológica, permitindo assim uma economia circular.

É de grande importância e de se sublinhar a crescente atenção dada pela Comissão Europeia à temática das alegações ambientais. A Proposta visa, entre outros objetivos, a proteção dos consumidores no âmbito de práticas comercias desleais que induzam o consumidor em erro quanto às suas escolhas de consumo sustentável, reforçando o princípio do direito à informação.

É uma das iniciativas previstas na Nova Agenda do Consumidor e no Plano de Ação para a Economia Circular e dá seguimento ao Pacto Ecológico Europeu, mais conhecido como o Green Deal.

Mais precisamente, a Proposta visa, entre outros, impedir as práticas de ecobranqueamento, de obsolescência precoce e de utilização de rótulos, selos e certificações não fiáveis.

São adicionadas dez práticas comerciais ao elenco constante no anexo I da Diretiva 2005/29/CE que devem ser consideradas desleais em quaisquer circunstâncias, sendo três delas sobre o tema das alegações ambientais.

O foco recai igualmente sobre as informações pré-contratuais, sendo alterada a Diretiva 2011/83/EU. A Proposta introduz os conceitos de durabilidade e reparabilidade dos produtos, temas relacionados com a obsolescência programada/precoce, sendo curiosamente introduzida uma pontuação de reparabilidade. O consumidor é assim capacitado para uma participação mais ativa na economia circular.

No que dirá respeito à durabilidade, passa a ser necessária a prestação de informação sobre a existência e a duração da garantia comercial de durabilidade dos produtos, sempre que o produtor disponibilize essa informação. Notamos que estas alterações são estendidas à celebração de contratos à distância e de contratos celebrados fora do estabelecimento comercial.

Trata-se portanto de uma Proposta com o objetivo claro de contribuição para o bem-estar dos consumidores europeus e para a economia da UE.

No âmbito nacional assinala-se igualmente um crescente foco nas temáticas trazidas pela transição verde.

A Direção-Geral do Consumidor (DGC) é a entidade pública em Portugal que tem por missão a definição e execução da política de defesa do consumidor, sendo responsável pelo acompanhamento e fiscalização da publicidade em Portugal e se tem movimentado numa ótica de sensibilização e informação tanto junto dos profissionais como dos consumidores.

Em Outubro de 2021, foi lançado pela DGC e pela Auto Regulação Publicitária, um guia explicativo, que visa orientar os profissionais para práticas transparentes e capacitar o consumidor para escolhas mais conscientes tendo em conta as implicações ecológicas dos seus hábitos de consumo.

São exemplificadas boas e más práticas, sendo claro que qualquer alegação ambiental deverá ser “verdadeira, precisa e capaz de ser comprovada através de provas científicas”, que por sua vez deverão estar disponibilizadas ao consumidor de forma imediata e junto da alegação em causa, devendo a linguagem ser acessível e clara.

É assim que aguardamos com expectativa as negociações e emendas do Parlamento Europeu e do Conselho, a publicação da Diretiva e a sua posterior transposição, sendo certo que todo o trabalho efetuado a nível Europeu e em Portugal permitirá uma maior capacitação do consumidor para um consumo sustentável, circular e consciente das suas implicações ecológicas.

“Sustainable development is development that meets the needs of the present without compromising the ability of future generations to meet their own needs.” Gro Harlem Brundtland, Líder internacional em desenvolvimento sustentável.

As principais alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro, ao Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março: breve análise do regime das práticas comerciais desleais

Legislação

O Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro, que entrará em vigor no dia 28 de maio de 2022, procede à transposição parcial da Diretiva (UE) 2019/2161, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro[1], relativa à defesa dos consumidores, e altera, entre outros diplomas[2], o Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março[3], que prevê o regime de repressão das práticas comerciais desleais em Portugal.

Com efeito, importa assinalar que à introdução das alterações previstas pela Diretiva 2019/2161, também conhecida como “Diretiva Omnibus”, subjaz o reconhecimento da necessidade de prever novas regras que regulem as relações de consumo estabelecidas em ambiente digital. No âmbito desta Diretiva encontra-se prevista a implementação de um conjunto de medidas, com vista a reforçar a defesa dos direitos dos consumidores, dando-se um passo em frente na atualização do regime das práticas comerciais comerciais, cujo teor se revelou, até o momento, insuficiente para dar resposta aos desafios que resultam da revolução tecnológica e digital[4].

O artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro, prevê as alterações introduzidas ao Decreto-Lei n.º 57/2008. Em concreto, é alterado a definição de «produto»[5] na alínea c) do artigo 3.º deste diploma, cujo teor passa a incluir, além dos bens e serviços, os conteúdos e serviços digitais. São ainda aditadas como alíneas m) e n) ao artigo 3.º, no âmbito das quais se prevê, respetivamente, os conceitos de «classificação»[6] e de «mercado em linha»[7].

É aditada a alínea c) ao elenco de ações enganosas previsto n.º 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 57/2008, no âmbito da qual é qualificada como ação enganosa “qualquer atividade de promoção comercial de um bem como sendo idêntico a um bem comercializado noutros Estados-Membros, quando esse bem seja significativamente diferente quanto à sua composição ou características, exceto quando justificado por fatores legítimos e objetivos”. A introdução desta prática no elenco de ações enganosas permite uma maior clarificação dos consumidores, dos profissionais e das autoridades nacionais competentes sobre o tipo de práticas comerciais que são consideradas desconformes à lei, assegurando maior harmonização no tratamento das questões que se suscitam neste âmbito e evitando a criação de situações de dúvida quanto à qualificação destas práticas comerciais como desleais. 

De igual modo, o elenco das ações consideradas enganosas em quaisquer circunstâncias é alvo de aditamento das alíneas n), bb), cc) e dd) ao artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 57/2008. Passam a integrar este elenco as ações que envolvam anúncios e classificação de ofertas, revenda de bilhetes e, ainda, práticas relacionadas com revisões em linha, adaptando-se, assim, o regime a novas exigências inerentes à proteção dos consumidores contra práticas comerciais desleais em ambiente digital.

É removida a referência ao mecanismo de tratamento das reclamações[8] constante da alínea d) do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 57/2008 referente à informação considerada substancial para efeitos de apresentação de uma proposta contratual ou de convite a contratar e, no mesmo preceito legal, é introduzida a alínea f), a qual prevê o dever de dever de o prestador do mercado em linha informar o consumidor se o terceiro que oferece os bens ou serviços através de seu mercado em linha é ou não um profissional, com base nas declarações prestadas por esse terceiro ao prestador do mercado em linha.

É de salientar, no que concerne à aplicação de mecanismos a que os consumidores lesados poderão recorrer em virtude da existência de práticas comerciais desleais, a eliminação da referência ao regime da anulabilidade dos contratos prevista no artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 57/2008, passando este artigo a prever o exercício alternativo dos direitos à redução adequada do preço ou à resolução do contrato, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais (n.ºs 1 e 2), e, bem assim, o ressarcimento dos danos em que os consumidores tenham incorrido, nos termos gerais previstos para o instituto da responsabilidade civil (artigos 483.º e seguintes e 798.º e seguintes do Código Civil).

Por fim, de acordo com o artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro, é aditado o artigo 10.º-A ao Decreto-Lei n.º 57/2008, relativo à matéria das pesquisas e avaliações de produtos efetuadas pelos consumidores, no âmbito do qual se consagra o dever de os mercados em linha informarem os consumidores sobre os principais parâmetros determinantes da classificação das propostas apresentadas em resultado das pesquisas daqueles (n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º-A), bem como o dever de referirem se as avaliações efetuadas por consumidores que são por si disponibilizadas são verificadas e de que forma o são.

Com efeito, a introdução das alterações suprarreferidas ao regime das práticas comerciais desleais parece encontrar correspondência com o sentido de “missão” empregue pela União Europeia ao longo do tempo, tendente a reforçar a proteção em matéria de defesa dos direitos dos consumidores. Este reforço da defesa dos direitos dos consumidores e, por conseguinte, de progressiva reposição do equilíbrio na relação entre profissional e consumidor tem-se traduzido na adoção de medidas legislativas que vêm sendo atualizadas em função da evolução e desenvolvimento do mercado digital.

A este propósito, cumpre assinalar que o almejado reforço de proteção dos direitos dos consumidores parece ser alcançado com as alterações legislativas em apreço, como o que representa não apenas uma inegável modernização do regime legal, ao permitir uma aproximação entre a letra da lei e o plano da realidade prática, como a harmonização do regime aplicável pelos Estados-Membros, salvaguardando que os consumidores beneficiam plenamente dos seus direitos ao abrigo do direito da União Europeia.

Diante do exposto, concluir que a atualização do regime das práticas comerciais desleais presta um contributo relevante para o reforço dos direitos dos consumidores, não só ao potenciar a harmonização do regime aplicável pelos Estados-Membros e, por conseguinte, o bom funcionamento do mercado único europeu, como ainda ao permitir a densificação do conceito de consumidor, fruto da constante evolução do mercado digital a que temos vindo a assistir.


[1] Doravante designada por Diretiva 2019/2161. Esta Diretiva procede à alteração da Diretiva 93/13/CEE do Conselho e das Diretivas 98/6/CE, 2005/29/CE (relativa às práticas comerciais desleais e sobre a qual nos debruçamos no texto presente) e 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, a fim de assegurar uma melhor aplicação e a modernização das regras da União em matéria de defesa dos consumidores.

[2] Lei n.º 24/96, de 31 de julho, Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro, Decreto-Lei n.º 138/90, de 26 de abril, Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de fevereiro e Decreto Regulamentar n.º 38/2012, de 10 de abril.

[3] Doravante designado por Decreto-Lei n.º 57/2008.

[4] Com relevo para o tema que nos ocupa, vide artigo 3.º da Diretiva 2019/2161, onde se encontra previsto o elenco de alterações introduzidas à Diretiva 2005/29/CE, objeto de transposição parcial pelo Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro.

[5] «Produto» define-se como qualquer bem ou serviço, incluindo bens imóveis, conteúdos e serviços digitais, bem como direitos e obrigações.

[6] «Classificação» define-se como “a importância relativa atribuída aos produtos, tal como apresentados, organizados ou comunicados pelo profissional, independentemente dos meios tecnológicos utilizados para essa apresentação, organização ou comunicação”.

[7] «Mercado em linha» define-se como “um serviço com recurso a software, nomeadamente um sítio eletrónico, parte de um sítio eletrónico ou uma aplicação, explorado pelo profissional ou em seu nome, que permita aos consumidores celebrar contratos à distância com outros profissionais ou consumidores”.

[8] O Considerando n.º 40 da Diretiva 2019/2161 prevê que “os requisitos de informação previstos no artigo 7.º, n.º 4, da Diretiva 2005/29/CE, incluem a prestação de informações ao consumidor sobre a política de tratamento das reclamações do profissional. As conclusões da avaliação de qualidade do direito em matéria de defesa dos consumidores e de comercialização mostram que essa informação é mais pertinente durante a fase pré-contratual, a qual é regulada pela Diretiva 2011/83/UE. O requisito de fornecer essas informações nos convites a contratar durante a fase de publicidade nos termos da Diretiva 2005/29/CE deverá, por conseguinte, ser suprimido.”


Campanhas publicitárias de Natal e o abuso da vulnerabilidade infantil

Doutrina

Com a aproximação das festas de fim de ano é também chegado o período das luzes alucinantes, das músicas cativantes, das cores chamativas e da exploração do lúdico infantil. Por consequência, é também chegado o momento das campanhas de Natal voltadas especificamente a estimular o consumo massivo de produtos e serviços, justamente no período em que muitas das famílias assistem em seus lares ao recebimento das tão esperadas bonificações financeiras de fim de ano.

Voltadas a atrair a atenção de todo e qualquer consumidor durante os meses de novembro e dezembro, as campanhas de promoção de vendas de Natal são difundidas de forma ainda mais assertiva e por vias cada vez mais expansivas para atingir um número maior de consumidores. Merece, entretanto, especial atenção a publicidade que, neste período, faz uso de um grande apelo psicológico voltando-se às crianças.

De repente, temos bonecas, carrinhos, computadores portáteis, roupas, sapatos, jogos e um infindável número de produtos a despontarem exponencialmente nas listas infantis para o “Papai Noel”, se revelando, curiosamente, logo a seguir a anúncios publicitários que apontam para a necessidade de compra.

Explorando o uso de ferramentas de captação da atenção por meio de estímulos auditivos e visuais, esta modalidade de publicidade explora o desenvolvimento psicológico e cognitivo das crianças, exigindo-lhes o processamento, para além de experiências sensoriais, das perceções relacionadas ao consumo. Não são apenas luzes a piscar e músicas a tocar para atrair crianças, mas também o acompanhamento do processo de formação da figura “criança-consumidora” que está envolvida neste trabalho publicitário.

De acordo com o trabalho desenvolvido por Mônica Almeida Alves, nomeadamente, Marketing infantil – um estudo sobre a influência da publicidade televisiva nas crianças, ainda em 2011, as crianças ultrapassam quatro fases no crescimento enquanto consumidoras, sendo a primeira relacionada à observação do espaço e conduta de compra normalmente realizada pelos pais. Já a fase a seguir, próxima aos 2 anos, envolve a capacidade de conexão entre publicidade por imagem e produtos expostos fisicamente no mercado. Na terceira fase, já próxima dos 4 anos, por sua vez, as crianças detêm, de forma mais clara, o conhecimento sobre a relação entre publicidade, produto e loja, passando a possuir uma lista de anseios que parte no desejo, mas só é levada a cabo com a aquisição do produto.

Por fim, já inseridas em uma quarta fase, as crianças passam a ser consumidoras, adquirindo diretamente elas próprias, ou já identificando claramente, por meio de pedidos direcionados aos pais, os produtos que poderiam vir a lhes satisfazer os anseios.

Acompanhando este processo de desenvolvimento, as agências publicitárias e empresas percebem o enorme potencial relacionado às crianças, sobretudo se visto sob uma perspetiva futura de que os “pequenos” de hoje, tornar-se-ão “grandes consumidores” dentro de alguns anos. Trata-se de uma fidelização a longo prazo voltada não somente a produtos infantis, mas à captação psicológica de potenciais consumidores.

Mais ainda, como fator agravante para este cenário, ressalta-se o fato de que para além dos meios televisivos, atualmente as crianças possuem como vício os programas emitidos também via streaming, na Internet e nas telas de seus computadores ou ainda de seus smartphones. Vale dizer, cada dia mais, as publicidades voltadas a jovens e crianças assentam-se na exploração do reconhecimento público e na definição da identidade almejada nesta fase da vida.

Ainda que a publicidade voltada aos jovens e crianças tenha elementos identificadores próprios, como o aludido uso de cores, sons e animações, não precisamos mais do que cinco minutos diante de um anúncio para perceber que algumas características comuns a toda a espécie de propaganda se repetem. Este é o caso especialmente notável do denominado “efeito priming”, que se trata de uma ação cerebral de reprocessamento de informações já contidas na memória sobre determinados produtos, marcas ou serviços e decorrente da constante repetição do estímulo publicitário em diferentes formatos e vias, provocando-nos emoções e sentimentos até mesmo nostálgicos.

Ferramentas psicológicas nesse sentido, obviamente, não reguladas em lei, são utilizadas de forma muito mais evidente nas propagandas de final de ano, justamente para estimular a fixação a longo prazo da marca ou produto. É como lembrar das músicas que nossas avós nos cantavam nas noites de Natal, mas desta vez com slogans de uma marca que nos pareçam engraçados ou ainda com o jingle de fim de ano em algum supermercado ou loja de mobiliários que, passados anos, nunca nos sairão da cabeça. E é este mesmo o propósito.

Ocorre, entretanto, que a nível legal, desde 2007, o Parlamento Europeu vem tratando de coordenar os Serviços de Comunicação Social e Audiovisual oferecidos pelos Estados-Membros, como se denota através da Directiva 2007/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2007. Mais ainda o Código da Publicidade de Portugal, que vem a estabelecer diferentes tipos de regras relacionadas à publicidade, tem especial secção voltada às restrições ao conteúdo da publicidade com detido cuidado sobre o tema “menores”.

Através de seu Art.14º, o Código determina que a publicidade especialmente dirigida a menores deve ter sempre em conta a sua vulnerabilidade psicológica, abstendo-se de explorar suas fragilidades. Deverá ainda a propaganda abster-se de explorar a inexperiência e falta de maturidade típica do grupo destinatário. E, por fim, não poderá ainda explorar a confiança que as crianças e jovens venham a depositar em seus pais ou tutores, denotando, nomeadamente, que fica impedido o uso de ferramentas publicitárias que distorçam a confiança existente entre pais e filhos, na tentativa de persuasão em favor da aquisição de um produto ou serviço.

Indo ainda um pouco mais longe, vemos que o Art. 12°, e) do Regime das Práticas Comerciais Desleais, por sua vez, consagra como prática agressiva em qualquer circunstância “incluir em anúncio publicitário uma exortação directa às crianças no sentido de comprarem ou convencerem os pais ou outros adultos a comprar-lhes os bens ou serviços anunciados”.

Não sugerimos desligar a TV, retirar das crianças os aparelhos telefônicos, nem mesmo impedi-las de viver e associar tudo o que lhes será demonstrado e oferecido durante o processo de desenvolvimento, crescimento e sociabilização. Não! Mas para já, fica reforçada a necessidade de detida atenção na influência que a psicologia publicitária possa ter sobre os menores.

O Conceito de Pagamento na Diretiva das Práticas Comerciais Desleais – Acórdão C-371/20 TJUE

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante Tribunal ou TJUE) pronunciou-se recentemente sobre o processo C-371/20, um reenvio prejudicial sobre a interpretação do conceito de pagamento no ponto 11[1] do Anexo I da Diretiva 2005/29/CE de 11 de Maio de 2005, conhecida como a Diretiva das Práticas Comerciais Desleais.

O tema da extensão do conceito de contraprestação nos contratos de consumo para incluir outras contrapartidas que não sejam pecuniárias tem sido particularmente debatido e trabalhado no Direito do Consumo Europeu, em especial quanto à questão do tratamento de dados pessoais[2].

A jurisprudência sobre este tema ainda é escassa (neste blog já foi analisado um caso italiano). No processo C-371/20, a alegada contraprestação não foi o tratamento de dados pessoais de consumidores, mas o envio e permissão de utilização de conteúdos protegidos por direitos de propriedade intelectual a título gratuito.

Neste caso alemão, o Tribunal, seguindo de perto a opinião do Advogado-Geral Maciej Szpunar (AG), expandiu a sua interpretação do conceito de financiamento/pagamento, no contexto de uma prática comercial de inserção de promoções em conteúdos editoriais.

Segundo o TJUE, este conceito deve ser interpretado como abarcando qualquer contrapartida económica com valor patrimonial, independentemente da forma que esta assuma. No caso sub judice, a permissão de utilização de imagens protegidas por direitos de propriedade intelectual de forma gratuita constitui uma contrapartida com valor económico e, portanto, um pagamento pelas promoções.

Enquadramento Factual

Peek & Cloppenburg, uma sociedade comercial que se dedica à atividade de venda a retalho de vestuário, e a GRAZIA, uma revista de moda, realizaram uma parceira em 2011, para a organização de um evento, uma “noite de compras exclusivas” denominada “GRAZIA StyleNight by Peek&Cloppenburg”.

A revista GRAZIA publicou um artigo de dupla página sobre este evento, enquanto parte do conteúdo editorial da própria revista, sem identificação de este ter sido pago, isto é, do seu caráter publicitário. O artigo continha diversas imagens das lojas e produtos da “Peek & Cloppenburg”, que foram fornecidas por esta, com a autorização da sua utilização neste âmbito.

P&C Hambourg, uma sociedade concorrente de Peek&Cloppenburg, alegou que este incidente constitui uma prática comercial contrária à lei alemã que transpôs a Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (UWG), ao constituir publicidade dissimulada paga nos conteúdos editorais da revista.

Ratio Decidendi

Uma das principais dificuldades do Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal Federal Alemão) deveu-se à própria interpretação do elemento literal da norma de transposição e da Diretiva[3].

Na versão em alemão da Diretiva, o termo “bezahlt” é geralmente associado ao pagamento de somas monetárias, de forma semelhante à versão inglesa, que utiliza “paid for” ea versão espanhola “pagando”. No entanto, algumas das restantes versões linguísticas do diploma utilizam expressões de carácter mais neutral, quanto à natureza da contrapartida, nomeadamente as versões francesa “financer” e italiana “i costi di tale promozione siano stati sostenuti”.

Em português, a expressão utilizada na Diretiva é “tendo sido o próprio profissional a financiar essa promoção”. Embora semelhante à versão francesa, esta linguagem também poderia suscitar algumas dúvidas aos juristas portugueses.

Devido a estas discrepâncias no elemento literal, o TJUE (para. 36 e 37) e o AG (para. 46 e seguintes) avançaram para o elemento sistemático e teleológico, considerando assim o contexto e os objetivos prosseguidos pela Diretiva.

Dado que:

1. o objetivo principal deste diploma é garantir um elevado nível de proteção dos consumidores na União Europeia contra práticas comercias desleais;

2. as práticas enumeradas no Anexo I são sempre consideradas desleais independentemente das circunstâncias;

3. o objetivo da norma em assegurar a transparência na publicidade de produtos e serviços no domínio da imprensa escrita e outros meios de comunicaç3ão social;

4. restringir o conceito de pagamento apenas à transmissão de quantias pecuniárias não corresponderia à prática jornalística e publicitária e retiraria o efeito útil desta disposição;

5. vários estudos realizados pelo Parlamento Europeu sobre práticas de publicidade dissimulada e enganosa na Internet, nas redes sociais, fóruns, blogues, publicações de influencers, concluíram que estas são financiadas direta ou indiretamente por operadores económicos, devendo aplicar-se esta Diretiva;

6. restringir o conceito de pagamento teria inevitavelmente um efeito prejudicial na confiança dos consumidores, na neutralidade da imprensa e nas regras da concorrência.

O Tribunal concluiu que o conceito de pagamento deve aplicar-se sempre que o profissional conceder qualquer contrapartida económica, independentemente da sua forma e valor, seja em quantias monetárias, bens, serviços ou qualquer outra vantagem patrimonial pela realização da ação publicitária.

A disposição, a título gratuito, a favor da revista GRAZIA, de imagens protegidas por direitos de propriedade intelectual pode ser considerada pelo Bundesgerichtshof como um financiamento direto da publicação.

As conclusões deste acórdão têm implicações bastante interessantes para o Direito do Consumo Europeu.

Em primeiro lugar, revela a importância de considerar as diferentes versões linguísticas dos diplomas europeus, os problemas que podem surgir e o valor dos restantes elementos interpretativos, nomeadamente o sistemático e teleológico.

Em segundo, embora o caso em apreço apenas incida nos conteúdos editoriais, tanto o Tribunal e o Advogado-Geral demonstraram abertura à aplicação desta Diretiva às novas realidades do marketing digital, onde a publicidade oculta é endémica, especialmente quanto às práticas de muitos influencers, frequentemente direcionadas a menores.

Por fim, a expansão do conceito de pagamento a diferentes tipos de contraprestações económicas com valor patrimonial poderá ser um indicador de que este raciocínio também poderá ser considerado (e aplicado) pelo Tribunal noutras diretivas de Direito do Consumo Europeu.


[1] “11. Utilizar um conteúdo editado nos meios de comunicação social para promover um produto, tendo sido o próprio profissional a financiar essa promoção, sem que tal seja indicado claramente no conteúdo ou através de imagens ou sons que o consumidor possa identificar claramente (publi-reportagem). Esta disposição não prejudica a Directiva 89/552/CEE”

[2] A Diretiva (UE) 2019/770, dos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais (DCD) e a Diretiva (UE) 2019/2161, da Modernização do Direito do Consumo (MD) na sua alteração à Diretiva 2011/83/UE, já incluem o tratamento de dados pessoais fornecidos pelos consumidores (desde que não seja realizado para o cumprimento de requisitos legais ou no cumprimento das obrigações contratuais) no seu âmbito objetivo.

[3] Na jurisprudência do TJUE, nomeadamente o Acórdão C-512/12 4finance, a necessidade de aplicação uniforme dos atos legislativos da UE implica que estes diplomas não podem ser interpretados considerando apenas uma versão linguística isoladamente. É assim necessário considerar as várias versões linguísticas em conjunto na interpretação literal. Após este exercício é que se deve avançar para a interpretação sistemática e teleológica da norma (Acórdão C-281/12 Trento Sviluppo e Centrale Adriatica).

A Odisseia da Troca das Prendas de Natal

Consumo em Ação

Por Carolina Silva e Leonor Guiomar

Hipótese: Teodoro recebeu duas prendas iguais no Natal, compradas na mesma loja. Os talões contêm a seguinte indicação: “trocas até ao dia 3 de janeiro”. Quando se dirigiu à loja para efetuar a troca, a funcionária informou Teodoro que este apenas poderia trocar o seu bem por outro de igual valor (e não por um de valor superior, como Teodoro pretendia, pagando a diferença de preço). A funcionária também informou Teodoro de que política da loja não admite a atribuição de vales. Teodoro pode fazer alguma coisa?

Resolução: No caso em apreço, somos confrontados com uma questão referente à interpretação da informação presente no talão entregue a Teodoro (T). Ora, uma vez que esse talão não tinha todas as informações posteriormente dadas pela funcionária da loja, cabe-nos interpretar o sentido da declaração negocial à luz do art. 236.º-1 do Código Civil (CC). Posto isto, o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, iria olhar para a indicação do talão e entender que é possível proceder à troca por outra ou outras coisas de valor igual ou diferente (pagando a respetiva diferença, no caso de o valor ser superior).

Outra questão é o facto de podermos estar perante uma prática desleal, o que nos leva à aplicação do regime das práticas comerciais desleais (Decreto-Lei n.º 57/2008).

Este diploma é aplicável “às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores” (art. 1.º-1). Cumpre apreciar se T é consumidor para efeitos do diploma.

Não parecem existir factos que obstem à consideração de T como consumidor, dado que se encontram preenchidos os elementos previstos do art. 3.º. Começando pelo elemento subjetivo, tem-se em conta a alínea a), concluindo-se que T é uma pessoa singular. É ainda nesta alínea que se evidencia a verificação do elemento teleológico, na medida em que T não pretendia utilizar a prenda para fins profissionais. Também a alínea b) parece estar devidamente preenchida, dado que a loja se enquadra abrangida na definição de profissional aí presente (elemento relacional). Por fim, temos a alínea d), que reflete o elemento objetivo, estando em causa uma prática comercial. Perante o exposto, concluímos, então, que T é considerado consumidor para efeitos do DL 57/2008.

Cumpre, agora, analisar se a prática levada a cabo pela loja pode ser considerada desleal. A prática não se inclui em nenhuma das situações enumeradas nos arts. 8.º e 12.º do diploma, pelo que temos de recorrer aos arts. 7.º, 9.º e 11.º, que se referem às práticas enganosas e agressivas, respetivamente.

Olhando para as características do caso concreto, encaixamos esta prática no art. 9.º-1, estando em causa uma prática que conduz ou é pelo menos suscetível de conduzir o consumidor a tomar uma decisão diferente daquela que teria tomado. Ora, em virtude da omissão de uma informação fundamental, nomeadamente, “a troca estar limitada a bens do mesmo valor”, T foi privado de efetuar a troca nos termos em que seria expectável que o pudesse fazer. Ademais, poderíamos reforçar esta ideia recorrendo à cláusula geral presente no art. 5.º.

A omissão realizada pela loja é proibida, não só pelo art. 4.º do diploma indicado, como também parece colidir com o art. 60.º da Constituição da República Portuguesa, que tutela o direito à informação, um dos direitos fundamentais dos consumidores.

Por estarmos perante uma prática comercial desleal, são aplicáveis sanções contraordenacionais (arts. 19.º e segs.), pode ser invocada a invalidade do contrato (art. 14.º) e o profissional incorre em responsabilidade civil (art. 15.º). Em suma, T pode exigir a troca por coisa(s) de valor diferente. Ao mesmo tempo, poderá ser aplicada ao profissional uma sanção contraordenacional relativa à prática comercial desleal.

As chamadas telefónicas com os prefixos 760 e 761 nos concursos publicitários de programas televisivos

Doutrina

Em post anterior, dedicado a uma primeira análise crítica do recém-adotado Decreto-Lei n.º 59/2021, relevou-se positivamente o estabelecimento de um “regime autónomo e mais robusto, que visa garantir, finalmente, uma aplicação prática efetiva” da obrigação de que as linhas telefónicas disponibilizadas pelos profissionais sejam gratuitas ou correspondam a uma gama de numeração geográfica ou móvel (com os prefixos “2” ou “9”), para contacto do consumidor, no âmbito de uma relação jurídica de consumo.

Sem prejuízo, a questão da necessidade de regulação do preço das chamadas telefónicas, encarada como medida de tutela da posição dos consumidores, também se coloca com particular acuidade no que tange às chamadas por aqueles realizadas para inscrição (e eventual seleção e participação) em concursos publicitários de programas televisivos que recorrem à utilização de números de telefone com custos acrescidos, como sejam as linhas telefónicas das gamas 760 e 761 do Plano Nacional de Numeração da ANACOM, as quais identificam serviços de tarifa única em que o preço máximo por chamada é de, respetivamente, € 0,60 (mais IVA) e € 1,00 (mais IVA).

Neste domínio, como explanaremos de seguida, por força de práticas comerciais desleais (enganosas e agressivas), consumidores particularmente vulneráveis em razão da idade (igual ou superior a 65 anos) ou de situação de carência económica vêm a adotar reiteradas decisões de transação (no caso, decisões de participação em concursos publicitários mediante realização de várias chamadas telefónicas) que os levam ao depauperamento das finanças pessoais e, até, à colocação em situação (de risco) de sobre-endividamento.

A comunicação comercial a concurso publicitário difundida por um operador de televisão enquadra-se no âmbito da figura da autopromoção, prevista no art. 2.º-1-c) da Lei n.º 27/2007, de 30 de julho, na medida em que constitui a promoção de um serviço oferecido pelo próprio operador, integrado em programa de entretenimento pelo mesmo emitido, com vista à atribuição de prémios aos telespectadores, mediante a realização, por este, de chamadas telefónicas pagas, sendo que a receita das chamadas reverte, em parte, para o titular do serviço de programas televisivo.

Neste encalço, por estar em causa a divulgação de serviços próprios do operador televisivo, que atua no âmbito da sua atividade comercial (portanto, um profissional), dirigida a pessoas singulares que, embora com um interesse económico subjacente, intervêm na prática comercial do profissional, mediante o pagamento de um preço (custo fixo da chamada telefónica), com fins que não se incluem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional (isto é, consumidores), deve concluir-se que a promoção dos referidos concursos publicitários, inseridos em programas de TV, está subordinada à disciplina normativa do Decreto-Lei n.º 57/2008[1].

Isto posto, conquanto se reconheça que os concursos em causa geram uma receita significativa para a salvaguarda do equilíbrio financeiro das estações televisivas que as promovem, não pode deixar-se de acompanhar o entendimento do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, organicamente integrado no Instituto do Turismo de Portugal, I.P., quando preconiza que, atendendo à regularidade dos concursos, aos montantes neles envolvidos e à “forte promoção e [a]o insistente e persistente apelo à participação dos telespectadores”, poder-se-á “justificar um eventual recurso à possibilidade conferida pelo n.º 3 do artigo 159.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, com a adoção de medidas convenientes à proteção dos consumidores e de medidas restritivas da exploração de concursos com as características mencionadas por parte dos canais de televisão”[2].

Na verdade, como resulta patente a partir do simples visionamento de qualquer dos programas de entretenimento de day-time dos operadores televisivos generalistas (em dias úteis e, em particular, ao fim-de-semana) e foi declarado, de forma assertiva e categórica, nas Deliberações 32/2016 (OUT-TV), 33/2016 (OUT-TV) e 34/2016 (OUT-TV) da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, as promoções de concursos publicitários no decurso de tais programas consubstanciam práticas comerciais desleais porque: a) por um lado, são suscetíveis de induzirem em erro o telespectador sobre as características do concurso, levando-o a adotar uma decisão de transação (no caso, decisão de participar no concurso e os termos da sua participação) que, de outro modo, não tomaria, caso conhecesse, cabalmente, as reais características daquele; b) e, por outro lado, exercem uma influência indevida sobre o telespectador – acentuada pelo facto de o público-alvo destes programas ser composto, maioritariamente, por pessoas com idade ou superior a 65 anos ou que enfrentam algum infortúnio na sua vida pessoal e/ou profissional ou dos membros do seu agregado familiar –, sendo aptas a limitar de forma significativa a capacidade de decisão do mesmo, conduzindo-o a tomar decisão de transação que, não fosse a pressão psicológica exercida pelos apelos verbais dos apresentadores e pelas mensagens gráficas persistentes, não adotariam.

Quanto à asserção produzida em a), que reúne os pressupostos de que depende a prática de uma ação enganosa, nos termos do disposto nos arts. 6.º-b) e 7.º-1-b) do Decreto-Lei n.º 57/2008, ainda que, após a celebração do “Acordo de Autorregulação em Matéria de Concursos com Participação Telefónica” entre os operadores RTP, SIC e TVI se tenha começado a verificar que os apelos verbais dos apresentadores e as mensagens gráficas apresentadas no decurso dos programas contemplam referência à real natureza do prémio (cartão de débito VISA Electron pré-carregado e não dinheiro), constata-se que, não raras vezes, a promoção não é clara relativamente às pessoas que se podem habilitar ao prémio (apenas os maiores de 18 anos) nem às concretas utilizações que lhe podem ser conferidas (o cartão apenas pode ser utilizado para efetuar pagamentos de compras através de terminais da rede VISA, não sendo possível a sua transferência para outras contas, nem o seu levantamento em numerário).

Ademais, é criada a convicção no telespectador de que pode efetuar um número ilimitado de chamadas para se habilitar a ganhar o prémio em jogo (recorrendo ao adágio orelhudo “quantas mais vezes ligar, mais hipótese tem de ganhar”), o que não corresponde à verdade, pois cada participante apenas pode efetuar até 10 ou 6 chamadas diárias por concurso e por número de telefone de origem (consoante o número de destino pertença à gama de numeração 760 ou 761, limitação automática que, contudo (ressalvam os regulamentos destes concursos[3]), por razões técnicas, o sistema informático pode não lograr operar, caso em que a chamada seguinte será considerada uma inscrição válida e será cobrada a tarifa única, sem que, pasme-se, possa ser exigida dos promotores qualquer indemnização ou compensação). E, bem assim, é prometido o imediato envio do cartão de débito para a casa do vencedor do concurso, o que também, de facto, pode não suceder, visto que, de acordo com os regulamentos destes concursos, a entrega do prémio poderá ter lugar até 90 dias a contar da data da realização do sorteio que apura o candidato contemplado.

Acresce, ainda, o facto de ser omitida qualquer referência à existência de um intervalo temporal contado desde a data de emissão do cartão para a utilização do saldo nele creditado, sob pena de caducidade do direito à utilização do saldo remanescente (se o houver).

E não se diga que o conhecimento de algumas das características dos concursos acima destacadas resulta assegurada pela mera remissão para o regulamento aplicável. Não obstante se terem operado progressos louváveis, ao nível da informação gráfica exibida em cada período de apelo (feito pelos apresentadores), após a conclusão do “Acordo de Autorregulação” acima referido[4], entendo que subsiste uma desproporção manifesta entre o destaque conferido ao número de telefone a ligar e ao valor do prémio em jogo e as demais características relevantes do concurso, a qual não é, de todo em todo, mitigada pela disponibilização do regulamento do concurso em sítio da internet ou em página do teletexto, plataformas cujo acesso e consulta requerem capacidades que os targets dominantes dos programas de entretenimento de day-time, em muitos casos, não dispõem.

Uma derradeira consideração acerca da asserção produzida em a) para notar que, ao contrário do que estabelece o “Acordo de Autorregulação”, os operadores de televisão recorrem a suportes gráficos de comunicação com função primordialmente apelativa à participação nos concursos, como é o caso da colocação de relógio em countdown no canto superior direito do ecrã, mormente na parte final dos programas.

Já no que respeita à afirmação sob alínea b) acima, que congrega os requisitos necessários à configuração de uma prática comercial agressiva, nos termos dos arts. 6.º-b) e 11.º-1 e 2-a) do Decreto-Lei n.º 57/2008, reveste meridiana clareza que, em todos os programas de entretenimento de day-time se pratica um apelo insistente, com recurso a uma linguagem persuasiva (empregue por apresentadores que gozam de elevada notoriedade e, mesmo, credibilidade junto dos telespectadores), à inscrição nos concursos publicitários, sugerindo-se facilidade na realização da chamada (“é o preço de um café”) e na obtenção do prémio, incitando-se à realização de mais do que uma chamada e alimentando-se a expectativa de o consumidor conseguir, por aquela via, fazer face a todos os seus compromissos financeiros e realizar os seus sonhos de vida. Seja em espaços exclusivamente dedicados ao efeito, seja no decurso de espaços de entrevistas a convidados ou de momentos musicais, os apelos verbais surgem acompanhados por elementos gráficos, que estimulam, igualmente, à realização de chamadas, os quais permanecem no ecrã desde alguns segundos até vários minutos.

Neste particular, creio que a norma autorreguladora gizada pelos operadores de televisão não satisfaz, minimamente, as exigências de proteção dos consumidores vulneráveis, ao prever que “apenas serão permitidos, no máximo, 5 (cinco) períodos de apelo pelos apresentadores, com a duração total máxima de 12 minutos, por hora de programa” (art. 10.º). A quantificação do tempo de duração máxima dos períodos de apelo revela-se manifestamente excessiva, tanto mais porque é utilizada, até ao limite estipulado, no final dos programas de entretenimento, coincidentes com períodos de confeção e toma de refeições (almoço ou jantar) ou de regresso a casa de trabalhadores (após jornada de trabalho) e imediatamente anteriores a espaços de informação, logo, previsivelmente, de maior audiência. No limite, como alerta a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, com a promoção persistente dos concursos nos programas de day-time, corre-se o risco de se desvirtuar a “linha editorial subjacente a um programa de entretenimento, comprometendo-se, deste modo, a identidade e integridade do mesmo”, a ponto de se inverter “toda a lógica do programa (…) anunciado, (…) transformando-o num conteúdo essencialmente promocional, onde o entretenimento e as variedades tendencialmente se convertem em mero pretexto para captar a atenção do espectador para a verdadeira mensagem que se quer passar: a da promoção do concurso e da persuasão à realização do maior número de chamadas telefónicas”, em contravenção com o disposto no art. 9.º-1-a) da Lei n.º 27/2007.

Por todo o exposto, merece o nosso aplauso a decisão de criação de um Grupo de Trabalho para a Revisão do Regime dos Concursos e Passatempos, vertida no Despacho n.º 1620/2021 do Secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor – cujas conclusões ainda não são conhecidas (embora já devessem ter sido apresentadas até ao dia 15 de abril de 2021) –, consequente à Recomendação n.º 7/B/2020 da Senhora Provedora de Justiça, na qual, a par da necessidade de reforço da proteção dos consumidores mais vulneráveis, também se suscitam sérias dúvidas quanto à conformidade dos regulamentos dos concursos com o Decreto-Lei n.º 422/89, mormente os seus arts. 159.º e ss., por estar em causa uma modalidade afim dos jogos de fortuna ou azar. Muito sucintamente, conclui-se naquela Recomendação que o uso de números de tarifa especial majorada, como sejam os números com prefixo 760 e 761, viola o disposto no art. 161.º-2 do Decreto-Lei n.º 422/89, que proíbe dispêndio para o jogador que não seja o do custo normal de serviço público de telecomunicações (cfr. arts. 3.º-jj) e 86.º e ss. da Lei n.º 5/2004), assim como se sustenta que a utilização de cartões de débito como prémio colide com o preceito do art. 159.º-1-in fine, isto porque, como já referido pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, “um cartão de débito não constitui uma coisa «com valor económico», mas um verdadeiro prémio em dinheiro, uma vez que o cartão de débito constitui uma forma de pagamento eletrónico que permite a dedução do valor de uma compra diretamente no cartão do titular e por representar um título indicativo de uma quantia monetária suscetível de ser movimentada a qualquer momento”.


[1] Neste sentido, o Considerando (82) da Diretiva 2010/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2010, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à oferta de serviços de comunicação social audiovisual (Diretiva «Serviços de Comunicação Social Audiovisual»), que reza nos seguintes termos: “Para além das práticas reguladas pela presente diretiva, as práticas comerciais desleais, como as práticas enganosas e agressivas, que se verifiquem nos serviços de comunicação social audiovisual são reguladas pela Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno”, que foi transposta para a ordem jurídica nacional por via do Decreto-Lei n.º 57/2008.

[2] Pronúncia reproduzida na Deliberação 99/2015 (OUT-TV) do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (Concursos publicitários de participação telefónica nos serviços de programas televisivos generalistas RTP1, SIC e TVI)

[3] Ver, a título exemplificativo, os regulamentos dos concursos “Casa Feliz 2021 – 2.ª Edição” e “Camião da Sorte 2021”, promovidos pela SIC, e “Dois às 10 2021 – 2.ª Série” e “Somos Portugal – Junho/Julho 2021”, promovidos pela TVI.

[4] Previstos no art. 11.º do “Acordo de Autorregulação”, onde se prevê: a emissão de texto em oráculo – “O concurso publicitário x/x foi autorizado pela SGMAI. Prémio em [menção do prémio em espécie], não convertível em dinheiro. Antes de participar, consulte o regulamento em [sítio da internet] e no teletexto. Cada chamada tem o custo de € x + IVA. Idade mínima de participação: 18 anos. Limite máximo diário de x chamadas neste concurso, por número de telefone de origem. Participe no concurso de forma informada e responsável” –, o qual deve obrigatoriamente obedecer a um tamanho e um tipo de letra que torne possível a sua leitura pela generalidade dos espectadores, devendo a altura dos caracteres corresponder, no mínimo, a um terço da altura dos caracteres utilizados no oráculo para a divulgação do número de telefone usado para inscrição nos concursos; caso o oráculo seja divulgado em movimento (vulgo, ticker), deve o mesmo deslocar-se a uma velocidade que permita a sua leitura pela generalidade dos espectadores; deve ser divulgado, pelo menos 4 vezes por hora de programa, o sítio da internet e/ou a página de teletexto onde se encontra disponível o regulamento relativo ao concurso (observando-se, para tanto, as exigências formais de tamanho e tipo de letra e velocidade do oráculo anteriormente referidas); sempre que seja utilizado um grafismo para comunicação dos concursos, deve ser mencionada regularmente informação sobre a existência de regulamento aplicável ao concurso e a forma de acesso ao mesmo, bem como informação sobre valor e natureza do prémio (“em cartão”), sendo aplicáveis a tais grafismos os já referidos requisitos quanto ao tamanho e tipo de letra.

A venda de smartphones sem carregador constitui uma prática comercial desleal?

Doutrina

Esta questão surge no seguimento do meu primeiro texto sobre a admissibilidade da venda de smartphones sem adaptador à luz do direito à informação, no qual referi que, caso exista falta de informação, o consumidor tem o direito de resolução do contrato no prazo de sete dias úteis a contar da data de receção do bem, assim como o direito a indemnização nos termos gerais.
Trata-se agora de saber quais as possíveis repercussões da não inclusão de adaptadores ao nível do regime das práticas comerciais desleais, presente no Decreto-Lei n.º 57/2008.
No âmbito deste regime, conseguimos identificar três possíveis situações relacionadas com a questão inicial.

A primeira será a do profissional que não inclui um adaptador de corrente com o smartphone e que não presta de forma diligente a informação necessária para o esclarecimento do consumidor.
Este caso configura uma omissão enganosa, nos termos do art. 9.º-1-a) do DL 57/2008. Desta norma retiramos como critério que “é enganosa, e portanto conduz ou é suscetível de conduzir o consumidor a tomar uma decisão de transação que não teria tomado de outro modo, a prática comercial […] que omite uma informação com requisitos substanciais para uma decisão negocial esclarecida do consumidor”. Este artigo pressupõe uma análise da definição de “decisão de transação” e que se preencham os conceitos de “requisitos substanciais” e de “consumidor”.
A definição de decisão de transação está presente no art. 3.º l), não constituindo qualquer entrave ao nosso caso.
Em relação ao conceito de “requisitos substanciais” devemos recorrer ao art. 10.º-a), que nos esclarece que “são consideradas substanciais para efeitos do artigo anterior […] as características principais do bem ou serviço, na medida adequada ao meio e ao bem ou serviço”. Assim, podemos afirmar que o adaptador de corrente, que de forma reiterada sempre foi parte integrante do conteúdo da caixa, é um requisito substancial.
O conceito de consumidor, para efeitos deste diploma, resulta da articulação das definições dos arts. 3.º-a) e 5.º-2. Da referida alínea, retiramos que é consumidor “qualquer pessoa singular que […] atue com fins que não se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional” e, do art 5.º-2, que “o carácter leal ou desleal da prática comercial é aferido utilizando-se como referência o consumidor médio”.
Devido à popularidade dos telemóveis, e pelo facto de estarem a ser retirados adaptadores de corrente de telemóveis que abrangem gamas altas e médias, é difícil concretizar o que será o “consumidor médio”.
Sobre o nível de diligência esperado por parte do consumidor médio, a doutrina divide-se. Na jurisprudência portuguesa, no âmbito da propriedade industrial[1], o consumidor médio será apressado, distraído e desatento se estiverem em causa bens de valor reduzido ou elevado consumo[2].  No direito da União Europeia, o considerando 18 da Diretiva 2005/29/CE revela que o consumidor médio é “normalmente informado e razoavelmente atento e advertido, tendo em conta fatores de ordem social, cultural e linguística”.
Independentemente do critério adotado é certo dizer que, se não existir informação suficiente por parte do profissional, por estarmos perante uma modificação de uma prática comercial consolidada, o consumidor médio não será capaz de prever que o carregador não está incluído na caixa.
A respeito do critério do art. 9.º-1, sobre a suscetibilidade de poder conduzir o consumidor médio a não tomar uma decisão de transação que este não teria tomado de outro modo, podemos simplesmente afirmar que a não inclusão de um acessório é algo que pode conduzir o consumidor a optar por outro telemóvel que tenha o acessório incluído. Esta afirmação preenche o requisito de mera suscetibilidade de condução a uma decisão de transação do n.º 1 e, em articulação com a análise que foi feita em relação aos restantes elementos da norma, podemos afirmar que estamos perante uma omissão enganosa caso o consumidor não seja informado sobre a não inclusão do adaptador de corrente na caixa do telemóvel.

A segunda prática comercial desleal acontece em torno da tecnologia de carregamento rápido (fast charging). Passou a ser comum a indicação das velocidades de carregamento dos dispositivos por forma a cativar os consumidores. Como o tempo de carregamento está diretamente dependente do adaptador que se utiliza, o profissional deve esclarecer este facto perante o consumidor. Se o profissional não fizer esta indicação, podemos estar novamente no âmbito do art. 9.º-1-a) do DL 57/2008, em articulação com o art. 10.º-a), por existir uma omissão de informação que incide sobre uma característica principal do bem (a velocidade de carregamento). O profissional deve indicar que as velocidades anunciadas só serão atingidas se for adquirido, em separado, um adaptador compatível com fast charging. Se não for feita esta advertência, o consumidor (médio) poderá pensar que qualquer adaptador servirá para carregar rapidamente o seu telemóvel e, se utilizar um antigo adaptador que já disponha em sua casa (em linha com os objetivos ambientais), é provável que não beneficie desta nova tecnologia se este não for apto para o efeito. A falta de informação também pode conduzir o consumidor a comprar um adaptador sem fast charging, o que não só contribui negativamente para os alegados objetivos de sustentabilidade a que se compromete o profissional, como também lesaria o consumidor que teria de adquirir outro adaptador para poder usufruir das velocidades anunciadas.

É ainda possível encontrar uma terceira prática comercial desleal no caso em análise.
O art. 7.º-1-c), relativo às ações enganosas, indica que a motivação da prática comercial é um elemento capaz de induzir, ou ser suscetível a induzir, o consumidor em erro. A estrutura do art. 7.º-1 é semelhante à do art. 9.º-1, na medida em que utiliza a mera suscetibilidade de o consumidor ser induzido em erro para efeitos de aplicação da norma. Como o consumidor pode ser influenciado se for anunciado que um telemóvel de uma determinada marca é mais “amigo do ambiente” que outros dispositivos concorrentes, podemos afirmar que existe suscetibilidade de conduzir o consumidor a tomar uma decisão de transação que não tomaria de outro modo, preenchendo os elementos do art. 7.º-1. Deste modo, se o profissional divulgar que está a retirar os adaptadores de corrente das caixas dos telemóveis por motivos ambientais e de sustentabilidade, é importante que esses motivos sejam verificados e que correspondam à realidade. Se, em vez disso, estiverem exclusivamente relacionados com o aumento de lucro ou se comprovar que colocar os adaptadores numa caixa em separado contribui negativamente para o ambiente, estaremos perante uma ação enganosa por parte do profissional[3].

Quais são as consequências de uma prática comercial desleal para o profissional?

A consequência jurídica poderá passar, em primeiro lugar, pela anulabilidade do contrato de compra e venda, no prazo de um ano a contar da data da prática comercial desleal, por aplicação do art. 14.º-1 que, por sua vez, remete para o art. 287.º do Código Civil.

Em segundo lugar, em alternativa à anulabilidade, podemos ter a modificação do contrato segundo juízos de equidade, a requerimento do consumidor. A qualificação desta solução não se configura como uma redução (art. 292.º do Código Civil), aproximando-se mais da conversão (art. 293.º do Código Civil). Como refere Jorge Morais Carvalho, “a modificação do contrato não fica dependente do requisito estabelecido na parte final daquele preceito, não relevando a avaliação da vontade hipotética das partes”[4]. Se tivéssemos em consideração a vontade do profissional, este não quereria a celebração do contrato com outro objeto. Por este motivo, não podemos valorizar a vontade hipotética do profissional, pelo que a solução passa pela “justiça do caso concreto, devendo ser ponderados todos os elementos que sejam considerados relevantes”. Partindo deste preceito, uma forma de obter a justiça do caso concreto poderia passar pela inclusão do carregador, a título de liberalidade, no contrato de compra e venda do telemóvel.

Nos termos do n.º 3, “se a invalidade afetar apenas uma ou mais cláusulas do contrato, pode o consumidor optar pela manutenção deste, reduzido ao seu conteúdo válido”. Esta norma, ao contrário da anterior, aponta para uma redução nos termos do art. 292.º do CC. Poderíamos ter uma situação em que seria vendido o telemóvel sem o carregador, sendo descontado o valor deste ao preço final.

Estas consequências não operam automaticamente. É necessário que o consumidor atue dentro do prazo referido, sob pena de se manter o contrato de compra e venda.

O DL 57/2008 prevê ainda a aplicação de sanções contraordenacionais (art. 21.º) e o direito do consumidor a indemnização (art. 15.º).


[1] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 138-140, expõe a noção de consumidor médio e demonstra a diferença que existe a respeito deste no direito da U.E. e no direito nacional.

[2] Acórdão do TRL, de 19-01-2010, processo 25/07.5TYLSB.L1-1.

[3] Como exemplo de uma decisão fundamentada, em parte, na necessidade de saber a motivação do profissional que retira os adaptadores da caixa, encontramos a decisão do Procon-SP contra a Apple. Na notificação, de 28 de outubro de 2020, o Procon-SP solicita à Apple que apresente “quais [as] razões [que] fundamentam a decisão comercial” de retirar os adaptadores. Como não obteve resposta, o Procon-SP multou a empresa em R$ 10.546.442,48, a 22 de março de 2021.

[4] Jorge Morais Carvalho, in Código Civil Anotado, coord. de Ana Prata, Volume I, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 386-388.

O envio de pré-aviso de interrupção de serviço público essencial como prática comercial desleal

Doutrina

Por Carlos Filipe Costa e Sara Fernandes Garcia

No contexto da pandemia da doença COVID-19, numa fase inicial, foi consagrado um regime excecional vedando a suspensão da prestação dos serviços públicos essenciais de fornecimento de água, energia elétrica e gás natural, “durante o estado de emergência e no mês subsequente”, através do art. 4.º da Lei n.º 7/2020, retificada pela Declaração de Retificação n.º 18/2020. No caso do serviço de comunicações eletrónicas, a proibição de suspensão só seria aplicável se motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20%, ou por infeção por COVID-19, solução já aqui comentada.

Posteriormente, o regime foi atualizado, por via da Lei n.º 18/2020, que prolongou o prazo relativo à proibição, até 30 de setembro de 2020, mas introduziu algumas limitações na proteção conferida aos utentes (v. aqui e aqui).

No âmbito da Lei do Orçamento de Estado para 2021, aprovada pela Lei n.º 75-B/2020, através do art. 361.º, n.º 1, a) a c), a medida extraordinária foi novamente prorrogada, passando a vigorar, durante o primeiro semestre de 2021, com o retorno ao tratamento diferenciado dos serviços de comunicações eletrónicas, como se analisou aqui.

Mais recentemente, foi publicado o Decreto-Lei n.º 56-B/2021, que se ocupa da garantia de acesso aos serviços essenciais, a par da regulação do regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda. O art. 3.º deste diploma, em vigor a partir de 1 de julho, estabelece que, até 31 de dezembro de 2021, não pode ser suspenso o fornecimento dos serviços de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas, sem, contudo, fixar condições de aplicação, optando por uma formulação mais ampla e protetora, com o fito de “debelar os constrangimentos temporários e possibilitar maior liquidez aos cidadãos e às famílias durante o período de normalização de vida”, conforme resulta do preâmbulo.

Neste quadro, perante uma situação típica que, nos termos da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (LSPE) e do regulamento de relações comerciais do respetivo setor, possa determinar a interrupção do fornecimento destes serviços essenciais, deve a suspensão ser precedida de “pré-aviso adequado” por não se fundar em “caso fortuito ou de força maior” (art. 5.º-1 da LSPE). A questão que colocamos é a seguinte: pode o comercializador ou a entidade gestora enviar o pré-aviso ao utente durante o período em que vigora a proibição de suspensão, ainda que este só venha a produzir efeitos em data ulterior?

A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), em memorando intitulado “Nota Interpretativa do regime de interrupção de fornecimento por facto imputável ao cliente”, depois de assinalar a ausência de solução legislativa quanto à (in)admissibilidade do envio de pré-aviso de interrupção ao utente, tomou posição no sentido de que “(…) nada inibe os comercializadores de enviar aos seus consumidores os respetivos pré-avisos, desde que respeite o disposto na lei e em regulamento, designadamente a data a partir da qual pode ocorrer a interrupção”.

De acordo com a perspetiva da ERSE, em caso de falta de pagamento dos montantes devidos no prazo estipulado (mora do utente), se o comercializador tivesse exigido a prestação pecuniária devida pelos serviços prestados em janeiro, através de fatura comunicada ao utente a 3.2.2021, sem que tivesse ocorrido o pagamento até 22.2.2021 (arts. 10.º-3 da LPSE e 66.º-1 do RRCSEG), podia emitir, de imediato, o pré-aviso de interrupção do fornecimento de energia elétrica (ou de gás natural) ao cliente, ainda que a suspensão só pudesse ter lugar, forçosamente, em data posterior à proibição de suspensão.

O regime de proibição da suspensão que vem sendo sucessivamente prorrogado não constitui uma consagração da “teoria do limite do sacrifício”, não bastando que a prestação se tenha tornado extraordinariamente onerosa ou excessivamente difícil para o devedor se exonerar do cumprimento. Não funciona também como uma moratória legal facultada ao utente para regularização das prestações que, entretanto, já se venceram. O regime não teve em vista a promoção do incumprimento, pelos utentes, dos contratos de prestação dos serviços públicos essenciais, o que, de resto, atentaria, de modo ostensivo, contra o princípio fundamental estruturante do nosso Direito dos Contratos contido no brocardo latino pacta sunt servanda (art. 406.º-1 do Código Civil).

Ainda assim, afigura-se incontornável que, com a adoção desta solução normativa de caráter excecional, o legislador, colocando em confronto os interesses do cumprimento pontual dos contratos e da continuidade da prestação dos serviços, fez pender os pratos da balança para a preponderância da essencialidade do fornecimento permanente dos serviços de interesse económico geral em causa, porque tendentes à satisfação de necessidades primaciais na vida de qualquer cidadão, particularmente num período pautado pelo recolhimento domiciliário.

Acresce que, embora uma interrupção de um daqueles serviços por mora no pagamento não permita a imediata resolução do contrato por parte do comercializador ou da entidade gestora (arts. 83.º-1 do RRCSEG e art. 79.º-4 do RRCSAR), certo é que o pré-aviso, previsto no art. 5.º-1 a 3 da LSPE se traduz numa intimação para o cumprimento, mediante concessão de um prazo perentório − não inferior a 20 dias − para regularização do valor em dívida, sob cominação de suspensão do abastecimento.

Assim, à semelhança do que sucede com a interpelação admonitória, prevista no art. 808.º-1-2.ª parte do Código Civil, também o pré-aviso cumpre uma função de injunção cominatória para cumprimento da prestação. Ora, esse desiderato só se produz eficazmente com a concessão de um prazo que, embora suficiente para o utente “desassorear e remover os obstáculos que estão a impedir o cabal e perfeito cumprimento do contrato”[1], inculque a ideia de que o fornecedor não suportará a situação de inadimplência por muito mais tempo.

Daí que, no quadro do relacionamento comercial habitualmente mantido entre comercializadores (ou entidades gestoras) e clientes (ou utilizadores), os pré-avisos de interrupção do fornecimento dos serviços essenciais não sejam remetidos com uma antecedência muito superior à mínima legal ou regulamentarmente exigida face à data em que a suspensão se poderá concretizar (caso subsista a razão fundante), o que permite manter a sua atualidade, primordial no desempenho da sua função.

Neste seguimento, um utente menos atento ao regime excecional vigente, mesmo enfrentando dificuldades no cumprimento, em face de um pré-aviso de interrupção de fornecimento que chegue ao seu conhecimento, poder-se-á sentir condicionado a oferecer, a breve trecho, o pagamento integral do preço, dada a ameaça de perda de acesso ao serviço essencial no seu local de consumo. De resto, a probabilidade de tal suceder agudizar-se-ia perante uma sucessão de pré-avisos de suspensão de fornecimento, ainda que emitidos com base em fundamento normativamente legitimante, considerando o efeito negativo que tais comunicações têm na gestão da vida pessoal e familiar de qualquer utente.

Por quanto se expôs, entendemos que a emissão de pré-aviso de suspensão de fornecimento dos serviços essenciais de fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas, em data que supere, em larga medida, a antecedência legal ou regularmente imposta, é suscetível de configurar uma prática comercial desleal, na modalidade de prática agressiva, nos termos dos arts. 3.º-a) a d), j) e l), 6.º-b), e 11.º-1 e 2-a) e c) do Decreto-Lei n.º 57/2008.

Com efeito, a emissão do pré-aviso nestes moldes pode exercer uma influência indevida sobre o consumidor, suscetível de limitar, de modo significativo, o seu comportamento e conduzir à adoção de decisão de transação que, de outro modo, não teria tomado, a qual, neste caso, se traduz no pagamento imediato do valor ou de parte do valor em dívida[2].

Esta conduta por parte do profissional, assente na exploração de uma posição de poder, é capaz de criar no espírito do consumidor a ideia de que deve proceder de imediato à regularização dos pagamentos, de forma a evitar consequências negativas, o que restringe consideravelmente a sua capacidade de tomar uma decisão livre.

Ainda que se sustente que se trata de adiantar uma informação relativa a uma situação de incumprimento já consumada, que leva o utente a antecipar o pagamento devido e que provavelmente teria lugar no futuro, importa recordar que este regime de exceção visa precisamente assegurar a continuidade da prestação destes serviços públicos essenciais, permitindo ultrapassar, ainda que temporariamente, problemas de liquidez, lógica que ficaria subvertida com a adoção desta prática, constituindo eventualmente uma forma de fraude à lei.


[1] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2015.

[2] A “decisão de transação” está associada, em regra, à decisão tomada por um consumidor sobre a aquisição de bens ou serviços. Porém, de acordo com as Orientações sobre a aplicação da Diretiva relativa às práticas comerciais desleais, SWD (2016) 163 final, de 25.5.2016, pp. 39-40, a noção adotada é bastante lata, abrangendo decisões prévias e posteriores à compra. Atendendo ao espírito de completude inerente a esta Diretiva-quadro, defendemos que a decisão de pagamento de uma dívida, num contrato de execução duradoura em que o consumidor realiza a contraprestação pecuniária periodicamente, é enquadrável no conceito amplo de decisão de transação, para efeitos de aplicação do regime.