Por Carlos Filipe Costa e Sara Fernandes Garcia
No contexto da pandemia da doença COVID-19, numa fase inicial, foi consagrado um regime excecional vedando a suspensão da prestação dos serviços públicos essenciais de fornecimento de água, energia elétrica e gás natural, “durante o estado de emergência e no mês subsequente”, através do art. 4.º da Lei n.º 7/2020, retificada pela Declaração de Retificação n.º 18/2020. No caso do serviço de comunicações eletrónicas, a proibição de suspensão só seria aplicável se motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20%, ou por infeção por COVID-19, solução já aqui comentada.
Posteriormente, o regime foi atualizado, por via da Lei n.º 18/2020, que prolongou o prazo relativo à proibição, até 30 de setembro de 2020, mas introduziu algumas limitações na proteção conferida aos utentes (v. aqui e aqui).
No âmbito da Lei do Orçamento de Estado para 2021, aprovada pela Lei n.º 75-B/2020, através do art. 361.º, n.º 1, a) a c), a medida extraordinária foi novamente prorrogada, passando a vigorar, durante o primeiro semestre de 2021, com o retorno ao tratamento diferenciado dos serviços de comunicações eletrónicas, como se analisou aqui.
Mais recentemente, foi publicado o Decreto-Lei n.º 56-B/2021, que se ocupa da garantia de acesso aos serviços essenciais, a par da regulação do regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda. O art. 3.º deste diploma, em vigor a partir de 1 de julho, estabelece que, até 31 de dezembro de 2021, não pode ser suspenso o fornecimento dos serviços de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas, sem, contudo, fixar condições de aplicação, optando por uma formulação mais ampla e protetora, com o fito de “debelar os constrangimentos temporários e possibilitar maior liquidez aos cidadãos e às famílias durante o período de normalização de vida”, conforme resulta do preâmbulo.
Neste quadro, perante uma situação típica que, nos termos da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (LSPE) e do regulamento de relações comerciais do respetivo setor, possa determinar a interrupção do fornecimento destes serviços essenciais, deve a suspensão ser precedida de “pré-aviso adequado” por não se fundar em “caso fortuito ou de força maior” (art. 5.º-1 da LSPE). A questão que colocamos é a seguinte: pode o comercializador ou a entidade gestora enviar o pré-aviso ao utente durante o período em que vigora a proibição de suspensão, ainda que este só venha a produzir efeitos em data ulterior?
A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), em memorando intitulado “Nota Interpretativa do regime de interrupção de fornecimento por facto imputável ao cliente”, depois de assinalar a ausência de solução legislativa quanto à (in)admissibilidade do envio de pré-aviso de interrupção ao utente, tomou posição no sentido de que “(…) nada inibe os comercializadores de enviar aos seus consumidores os respetivos pré-avisos, desde que respeite o disposto na lei e em regulamento, designadamente a data a partir da qual pode ocorrer a interrupção”.
De acordo com a perspetiva da ERSE, em caso de falta de pagamento dos montantes devidos no prazo estipulado (mora do utente), se o comercializador tivesse exigido a prestação pecuniária devida pelos serviços prestados em janeiro, através de fatura comunicada ao utente a 3.2.2021, sem que tivesse ocorrido o pagamento até 22.2.2021 (arts. 10.º-3 da LPSE e 66.º-1 do RRCSEG), podia emitir, de imediato, o pré-aviso de interrupção do fornecimento de energia elétrica (ou de gás natural) ao cliente, ainda que a suspensão só pudesse ter lugar, forçosamente, em data posterior à proibição de suspensão.
O regime de proibição da suspensão que vem sendo sucessivamente prorrogado não constitui uma consagração da “teoria do limite do sacrifício”, não bastando que a prestação se tenha tornado extraordinariamente onerosa ou excessivamente difícil para o devedor se exonerar do cumprimento. Não funciona também como uma moratória legal facultada ao utente para regularização das prestações que, entretanto, já se venceram. O regime não teve em vista a promoção do incumprimento, pelos utentes, dos contratos de prestação dos serviços públicos essenciais, o que, de resto, atentaria, de modo ostensivo, contra o princípio fundamental estruturante do nosso Direito dos Contratos contido no brocardo latino pacta sunt servanda (art. 406.º-1 do Código Civil).
Ainda assim, afigura-se incontornável que, com a adoção desta solução normativa de caráter excecional, o legislador, colocando em confronto os interesses do cumprimento pontual dos contratos e da continuidade da prestação dos serviços, fez pender os pratos da balança para a preponderância da essencialidade do fornecimento permanente dos serviços de interesse económico geral em causa, porque tendentes à satisfação de necessidades primaciais na vida de qualquer cidadão, particularmente num período pautado pelo recolhimento domiciliário.
Acresce que, embora uma interrupção de um daqueles serviços por mora no pagamento não permita a imediata resolução do contrato por parte do comercializador ou da entidade gestora (arts. 83.º-1 do RRCSEG e art. 79.º-4 do RRCSAR), certo é que o pré-aviso, previsto no art. 5.º-1 a 3 da LSPE se traduz numa intimação para o cumprimento, mediante concessão de um prazo perentório − não inferior a 20 dias − para regularização do valor em dívida, sob cominação de suspensão do abastecimento.
Assim, à semelhança do que sucede com a interpelação admonitória, prevista no art. 808.º-1-2.ª parte do Código Civil, também o pré-aviso cumpre uma função de injunção cominatória para cumprimento da prestação. Ora, esse desiderato só se produz eficazmente com a concessão de um prazo que, embora suficiente para o utente “desassorear e remover os obstáculos que estão a impedir o cabal e perfeito cumprimento do contrato”[1], inculque a ideia de que o fornecedor não suportará a situação de inadimplência por muito mais tempo.
Daí que, no quadro do relacionamento comercial habitualmente mantido entre comercializadores (ou entidades gestoras) e clientes (ou utilizadores), os pré-avisos de interrupção do fornecimento dos serviços essenciais não sejam remetidos com uma antecedência muito superior à mínima legal ou regulamentarmente exigida face à data em que a suspensão se poderá concretizar (caso subsista a razão fundante), o que permite manter a sua atualidade, primordial no desempenho da sua função.
Neste seguimento, um utente menos atento ao regime excecional vigente, mesmo enfrentando dificuldades no cumprimento, em face de um pré-aviso de interrupção de fornecimento que chegue ao seu conhecimento, poder-se-á sentir condicionado a oferecer, a breve trecho, o pagamento integral do preço, dada a ameaça de perda de acesso ao serviço essencial no seu local de consumo. De resto, a probabilidade de tal suceder agudizar-se-ia perante uma sucessão de pré-avisos de suspensão de fornecimento, ainda que emitidos com base em fundamento normativamente legitimante, considerando o efeito negativo que tais comunicações têm na gestão da vida pessoal e familiar de qualquer utente.
Por quanto se expôs, entendemos que a emissão de pré-aviso de suspensão de fornecimento dos serviços essenciais de fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas, em data que supere, em larga medida, a antecedência legal ou regularmente imposta, é suscetível de configurar uma prática comercial desleal, na modalidade de prática agressiva, nos termos dos arts. 3.º-a) a d), j) e l), 6.º-b), e 11.º-1 e 2-a) e c) do Decreto-Lei n.º 57/2008.
Com efeito, a emissão do pré-aviso nestes moldes pode exercer uma influência indevida sobre o consumidor, suscetível de limitar, de modo significativo, o seu comportamento e conduzir à adoção de decisão de transação que, de outro modo, não teria tomado, a qual, neste caso, se traduz no pagamento imediato do valor ou de parte do valor em dívida[2].
Esta conduta por parte do profissional, assente na exploração de uma posição de poder, é capaz de criar no espírito do consumidor a ideia de que deve proceder de imediato à regularização dos pagamentos, de forma a evitar consequências negativas, o que restringe consideravelmente a sua capacidade de tomar uma decisão livre.
Ainda que se sustente que se trata de adiantar uma informação relativa a uma situação de incumprimento já consumada, que leva o utente a antecipar o pagamento devido e que provavelmente teria lugar no futuro, importa recordar que este regime de exceção visa precisamente assegurar a continuidade da prestação destes serviços públicos essenciais, permitindo ultrapassar, ainda que temporariamente, problemas de liquidez, lógica que ficaria subvertida com a adoção desta prática, constituindo eventualmente uma forma de fraude à lei.
[1] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2015.
[2] A “decisão de transação” está associada, em regra, à decisão tomada por um consumidor sobre a aquisição de bens ou serviços. Porém, de acordo com as Orientações sobre a aplicação da Diretiva relativa às práticas comerciais desleais, SWD (2016) 163 final, de 25.5.2016, pp. 39-40, a noção adotada é bastante lata, abrangendo decisões prévias e posteriores à compra. Atendendo ao espírito de completude inerente a esta Diretiva-quadro, defendemos que a decisão de pagamento de uma dívida, num contrato de execução duradoura em que o consumidor realiza a contraprestação pecuniária periodicamente, é enquadrável no conceito amplo de decisão de transação, para efeitos de aplicação do regime.