Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital

Legislação

No dia 17 de maio, foi publicada a Lei 27/2021, que consagra a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, que entrará em vigor no dia 16 de julho.

É, como os diplomas desta natureza, um conjunto de normas essencialmente programáticas, que exprimem preocupações, boas intenções e enquadramentos de realidades que se têm vindo a impor globalmente. Não há, atualmente, modo de escapar à evidência de que, além do espaço físico a que estávamos habituados, passou a existir um espaço digital. Esta coexistência pode ocorrer em paralelo, quando todo um processo se passa exclusivamente num ou noutro mundo, ou em interseção, quando ambas as dimensões são usadas. A título de exemplo, pode-se pensar na compra de um livro, que pode ser em papel, comprado numa livraria de rua, pago em dinheiro ou, no extremo oposto, um e-book adquirido online, pago com cartão e descarregado para um dispositivo digital que o permitirá ler naquele formato eletrónico. Pelo meio, há várias combinações possíveis, de físico e digital, como livro de papel comprado e pago online e enviado pelo correio, ou outras.

A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (Carta) reconhece esta globalização, e a necessidade de a acompanhar, logo no seu artigo 2.º, n.º 1, em que sob a epígrafe “Direitos em ambiente digital” declara que “A República Portuguesa participa no processo mundial de transformação da Internet num instrumento de conquista de liberdade, igualdade e justiça social e num espaço de promoção, proteção e livre exercício dos direitos humanos, com vista a uma inclusão social em ambiente digital.”.

Claro que se poderia, logo aqui, começar a questionar se estará a existir um processo mundial de transformação da internet num instrumento de conquista de liberdade, igualdade e justiça social e etc, mencionando, só a título de exemplo, as denominadas primaveras árabes (antes de se tornarem invernos), as eleições americanas (amavelmente coadjuvadas por empresas tecnológicas), o crédito social chinês (transparente sistema de vigilância geral), o agravamento imparável das desigualdades sociais, o condicionamento das escolhas dos consumidores. Poder-se-ia, depois, ir esmiuçando cada uma das disposições da Carta, criticando e questionando se e como poderiam ser operacionalizadas, tarefa que o seu caráter geral e utópico não dificultaria. Não é o que se fará.

Estamos perante uma Carta, e uma Carta bastante simpática. Por isso, vamos antes apresentar o seu conteúdo, esperando que seja possível à República Portuguesa e ao mundo concretizar, o mais possível e da melhor forma, o que ali se estabelece.

A Carta, pequena em extensão, já que conta só com vinte e três artigos, é grande em substância. Não apresentando divisões em partes, contém um corpo de disposições coerente, entre o artigo 1.º, relativo ao “Objeto”, e os artigos 22.º e 23.º, relativos a “Direito transitório” e “Entrada em vigor”. Assim, temos, além do já referido e geral artigo 2.º, a consagração dos seguintes direitos, liberdades e garantias, sucessivamente do artigo 3.º ao 21.º: Direito de acesso ao ambiente digital, Liberdade de expressão e criação em ambiente digital, Garantia do acesso e uso, Direito à proteção contra a desinformação, Direitos de reunião, manifestação, associação e participação em ambiente digital, Direito à privacidade em ambiente digital, Uso da inteligência artificial e de robôs, Direito à neutralidade da Internet, Direito ao desenvolvimento de competências digitais, Direito à identidade e outros direitos pessoais, Direito ao esquecimento, Direitos em plataformas digitais, Direito à cibersegurança, Direito à liberdade de criação e à proteção dos conteúdos, Direito à proteção contra a geolocalização abusiva, Direito ao testamento digital, Direitos digitais face à Administração Pública, Direito das crianças, Ação popular digital e outras garantias.

Muito há a dizer sobre cada um e esperamos voltar ao tema em futuros posts. Por ora, parece especialmente relevante uma proclamação e uma espécie de novidade.

Quanto à proclamação, está subjacente a toda a Carta sendo, desde logo, expressa no artigo 2.º, n.º 2 que estabelece que “As normas que na ordem jurídica portuguesa consagram e tutelam direitos, liberdades e garantias são plenamente aplicáveis no ciberespaço.”. Naturalmente. É uma afirmação redundante, como redundantes são de um modo geral as afirmações semelhantes e, portanto, uma parte da Carta. Se direitos, liberdades e garantias são consagrados, os principais e mais relevantes na própria Constituição da República Portuguesa (CRP) e não são legitimamente limitados, não há necessidade de dizer que também se aplicam no ciberespaço, nos estádios de futebol, nos navios ou noutro local físico ou digital sob jurisdição portuguesa. A vantagem, neste como noutros casos, é deixar expresso e sublinhado que assim é.

A novidade poderia ser a proclamação de que todos têm direito de livre acesso à internet, previsto no artigo 3.º, n.º 1. Assim dito, muito poderia significar. No entanto, no contexto em que se encontra, consubstanciará principalmente uma proibição de discriminação ilegítima de, tendo os meios económicos e tecnológicos necessários para tal, alguém ver limitado o exercício da sua liberdade de aceder ao serviço de internet, nomeadamente pelas razões enunciadas no próprio artigo que reproduzem, de perto, as enumeradas no artigo 13.º da CRP, que consagra o princípio da igualdade perante a lei.

É bom ter uma Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. É bom que seja sucinta, trate do essencial e, dentro da medida do possível em Direito, que seja clara. Muito há a discutir, pecará certamente por excesso e por defeito, boa parte do que consagra nunca, ou muito dificilmente, se concretizará, mas não deixa de ser uma moldura, um enquadramento, um reminder de que no novo faroeste, presente em todos os pontos cardeais, há boas intenções, há Direito e existirá um ou outro xerife justo, de boa vontade e alguma força para o fazer aplicar [1].


[1] Vem pouco depois da Proposta da Comissão Europeia sobre o Regulamento da IA, aqui, e da Proposta de regras da Unesco, aqui.

Incumprimento dos prazos de entrega nas encomendas online

Doutrina

Imaginemos o seguinte cenário: saiu um novo livro da nossa série preferida e queremos lê-lo o mais rapidamente possível. Vamos de imediato à internet e, após várias pesquisas, concluímos que devemos encomendar através da página online da livraria Livros para todos os gostos. Ao lado do livro, aparece a opção: “Disponível para entrega. 2 a 5 dias úteis”.

Passado o 5.º dia útil, contactamos a livraria, que nos informa de que está com problemas com o fornecedor e que não sabe quando poderá proceder à entrega do livro. Remete ainda para um documento disponível no site, designado “Termos e Condições”, que tem uma cláusula 4.ª na qual a empresa se desresponsabiliza pelos prazos indicados nas suas ofertas.

O que fazer?

Deixemos desde já o alerta para a circunstância de o regime legal não ser especialmente protetor do consumidor nestes casos. Tal como não protege, na verdade, os concorrentes daquela livraria. Teríamos certamente optado pela livraria online do lado, que prometia entregar em 6 dias úteis, se soubéssemos que o prazo indicado pela livraria na qual encomendámos o livro não iria ser cumprido.

Comecemos pela parte mais fácil: os chamados “termos e condições”, que não são termos e condições, figuras jurídicas com um sentido próprio e bem diferente deste, mas cláusulas a incluir em contratos, normalmente escondidos nas páginas dos profissionais ou colocados em links pelos quais não se passa ou se passa rapidamente, não estão, em regra, incluídos no contrato, por força da aplicação das normas relativas à inserção das cláusulas contratuais gerais em contratos singulares. Veja-se, em especial, o art. 5.º do DL 446/85. Estando excluídas essas cláusulas do contrato, o profissional não pode invocar que os prazos de entrega são meramente indicativos.

Quanto aos prazos para entrega dos bens, aplica-se o art. 9º-B da Lei de Defesa do Consumidor.

O profissional “deve entregar os bens na data ou dentro do período especificado pelo consumidor” (n.º 1).

Se o profissional não entregar nesse prazo, o consumidor terá ainda, em regra, de dar um prazo adicional ao profissional antes de poder resolver o contrato (n.º 4). Só será possível a resolução imediata no caso de o profissional se recusar a entregar os bens, o prazo for essencial tendo em conta “todas as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato” ou tiver havido acordo quanto à essencialidade do prazo (n.º 5).

O problema é que a resolução do contrato, imediata ou diferida, não é normalmente a solução pretendida pelo consumidor. No caso que estamos a analisar, o consumidor não quer a destruição dos efeitos do contrato. Aquilo que quer é o livro. E, já agora, quer também uma compensação por não ter recebido o livro.

Se é certo que o consumidor tem direito a indemnização, nos termos gerais, o dano não é facilmente identificável nestas situações. Num sistema que não admite os danos punitivos e é bastante restritivo na atribuição de danos não patrimoniais, compensa a prática de ser agressivo na indicação dos prazos de entrega, sabendo que se pode depois incumprir.

As dificuldades são exatamente as mesmas se aplicarmos o regime das práticas comerciais desleais (DL 57/2008), acrescendo o problema da prova dos pressupostos previstos no regime. Na prática, o direito a indemnização é limitado também neste diploma. Restam ao consumidor as opções já aqui (e aqui) referidas no blog do boicote e do buycott: opções de consumo conscientes, privilegiando-se quem cumpre.

A admissibilidade da venda de smartphones sem adaptador à luz do direito à informação

Doutrina

Antes da chegada dos smartphones, e numa altura em que o e-waste era um termo desconhecido para a maioria das pessoas, era comum que cada fabricante fosse responsável por, pelo menos, um carregador proprietário. De acordo com a avaliação de impacto inicial, elaborada pelo grupo de peritos da Comissão Europeia sobre equipamentos de rádio (E03587), também conhecido por RED expert group, em 2009, […] mais de 30 soluções proprietárias existiam no mercado”.

Numa perspetiva de sustentabilidade, e para mitigar o impacto ambiental causado pela falta de estandardização, a União Europeia decidiu agir.
O memorando de entendimento relativo à harmonização da capacidade de carregamento para telemóveis, de 5 de junho de 2009, foi um dos primeiros passos neste sentido, e permitiu iniciar o diálogo com as empresas de telemóveis no que concerne à adoção voluntária do micro-USB para efeitos de interoperabilidade e diminuição de lixo eletrónico. É por volta desta altura que começam a proliferar pelo mercado carregadores compostos por duas peças: um cabo micro-USB e um adaptador de corrente. Estes têm um impacto ambiental menor e conferem vantagens económicas para o consumidor pois, ao permitir trocar o cabo, a parte mais frágil e mais propícia a deixar de funcionar, o consumidor prolonga a vida do adaptador de corrente.
A União Europeia continuou os seus esforços no sentido de reduzir o e-waste e, para tal, apostou na padronização dos carregadores com a Diretiva 2014/53/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014 e com um novo Memorando de Entendimento emitido a 20 de março de 2018. Neste memorando, é adotado o USB-C como a nova solução comum para o carregamento de equipamentos eletrónicos, persistindo o caráter voluntário de adoção como no já referido memorando de 2009.
É neste contexto que temos de analisar a nova prática comercial de não incluir adaptadores de corrente juntamente com os telemóveis, procurando dar uma resposta à questão da admissibilidade desta prática.

Oferecendo uma resposta breve, podemos dizer que ao abrigo das regras de mercado livre, e desde que informe devidamente o consumidor, o profissional pode deixar de incluir o adaptador de corrente nas caixas de telemóvel, existindo já uma decisão neste sentido no Brasil[1]. O desequilíbrio na relação comercial em análise surge se o profissional não informar que alterou o conteúdo incluído na caixa do telemóvel, apresentando-o como se nenhuma alteração tivesse sido feita, ferindo as expectativas do consumidor.
O direito à informação está constitucionalmente garantido no art. 60.º-1 da Constituição da República Portuguesa, estando também previsto, em termos gerais, na alínea d) do art. 3.º da Lei de Defesa do Consumidor (LDC). A LDC concretiza este direito nos arts. 7.º e 8.º, relevando o último para efeitos de resolução do caso em questão, por tratar do direito à informação em particular. O art. 8.º-1-a) esclarece que “o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve, tanto na fase de negociações como na fase de celebração de um contrato, informar o consumidor de forma clara, objetiva e adequada […] nomeadamente sobre […] as características principais dos bens ou serviços”. Este artigo necessita de alguma adaptação ao caso em análise se quisermos diferenciar os acessórios e o bem principal, em vez de uma análise conjunta do conteúdo da caixa. Não obstante, mesmo que não fosse possível situar o caso em estudo no art. 8.º-1-a), o n.º 1 não apresenta um conjunto fechado de situações para as quais o profissional tem o dever de informar o consumidor. Caso contrário, o consumidor ficaria desprotegido em várias situações. A utilização do termo “nomeadamente” aponta para esse sentido, pelo que é possível enquadrar o caso em análise no espírito da norma.
Como consequência da falta de informação sobre o conteúdo da caixa, o art. 8.º-5 estabelece que “o fornecedor de bens ou o prestador de serviços que viole o dever de informar responde pelos danos que causar ao consumidor”. Este número deve ser articulado com o n.º 4 do mesmo artigo, que esclarece que, quando se verificar falta de informação que comprometa a utilização adequada do bem, o consumidor tem o direito de resolução do contrato no prazo de sete dias úteis a contar da data de receção do bem. A essencialidade do adaptador é evidente por não ser possível carregar, ou carregar eficazmente o telemóvel, recorrendo apenas ao cabo que vem incluído na caixa. Deste modo, a utilização adequada do telemóvel fica comprometida se o profissional não informar que o adaptador, ao contrário do que costuma ser a prática reiterada deste mercado, não está incluído com o telemóvel.
Assim, por efeito da violação do dever de informação pelo profissional, o consumidor tem o direito de resolução do contrato no prazo de sete dias úteis a contar da data de receção do bem, bem como o direito a indemnização, nos termos gerais.


[1] Para aceder ao documento é necessário introduzir o número de processo 1019678-91.2020.8.26.0451 e o código 9463E02

Conceito de litígio de consumo e as pessoas coletivas de utilidade pública

Doutrina

Com vista a estabelecer os princípios e as regras a que deve obedecer o funcionamento das entidades de resolução alternativa de litígios de consumo, a Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro, que transpôs a Diretiva 2013/11/UE, no n.º 2 do seu artigo 2.º, procede, para aqueles efeitos, a uma delimitação negativa do conceito de “litígio de consumo”, dele excluindo, nomeadamente, sob alínea a), “[o]s serviços de interesse geral sem contrapartida económica, designadamente os que sejam prestados pelo Estado ou em seu nome, sem contrapartida remuneratória”.

Ora, a solução normativa da alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º é decalcada da regra consagrada na alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º da Diretiva 2013/11/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, a qual exclui do seu âmbito de aplicação “os serviços de interesse geral sem caráter económico”, categoria essa prevista na Diretiva “Serviços”, cujo considerando (34) tem a seguinte redação: «De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a identificação de certas atividades, em particular de atividades que são publicamente financiadas ou prestadas por entidades públicas, como pertencentes à categoria «serviços» tem de ser efetuada caso a caso, à luz de todas as suas características, em particular quanto à forma como são prestadas, organizadas e financiadas no Estado-Membro em questão. O Tribunal de Justiça sustentou que a característica essencial da remuneração reside no facto de constituir uma contrapartida pelos serviços em questão e reconheceu que a característica da remuneração não está presente nas atividades que o Estado realize ou que se realizem em nome do Estado sem contrapartida económica no âmbito da sua missão nos domínios social, cultural, educativo e judiciário, tais como o ensino ministrado no âmbito do sistema educativo nacional, ou a gestão de regimes de segurança social que não participem em atividades económicas. O pagamento de taxas pelos destinatários, por exemplo, as propinas ou a inscrição pagas por estudantes como contributo para os encargos de funcionamento de um sistema, não constitui em si uma remuneração, porque o serviço continua a ser financiado por fundos públicos. Essas atividades não estão, por conseguinte, abrangidas pela definição de serviço do artigo 50.º do Tratado, pelo que não se incluem no âmbito de aplicação da presente diretiva.»

A partir do considerando que se acaba de transcrever, parece poder concluir-se que a categoria dos “serviços de interesse geral sem caráter económico”, igualmente excluída do âmbito de aplicação da Diretiva “Serviços” [artigo 2.º, n.º 2, alínea a)], visa contemplar um conjunto de atividades que, sendo serviços de facto, para efeitos do Direito da União, mormente o artigo 57.º do TFUE (consideram-se “serviços”, para efeitos do disposto nos Tratados, “as  prestações  realizadas  normalmente  mediante  remuneração”) – expressamente acolhido pelo 1) do artigo 4.º da Diretiva “Serviços” – devem considerar-se afastadas da noção jurídico-comunitária de “serviço”, por, em concreto, não revelarem “uma dimensão económica que seja principalmente atestada pela existência de remuneração ou contrapartida financeira, mas também – embora não necessariamente – pela finalidade de obter um lucro, ou/e de ser financiada principalmente por fundos privados”[1], independentemente da forma jurídica pública ou privada do prestador.

Sublinhe-se, ainda, que, em matéria de auxílios estatais e, em termos mais amplos, no contexto do direito da concorrência, a jurisprudência do Tribunal de Justiça vem afirmando um conceito de “empresa” que abrange “qualquer entidade que exerça uma atividade económica”, isto é, uma atividade consistente na “oferta de bens ou serviços num determinado mercado”, independentemente do estatuto jurídico ou do modo de financiamento do ente ou do facto de o serviço ser pago por aqueles que dele beneficiam. Mas certo é também que, por exemplo, no caso de ensino ministrado em certos estabelecimentos financiados, total ou principalmente, por fundos públicos, deve entender-se que o Estado “não pretende[u] envolver-se em atividades remuneradas, mas sim cumprir a sua missão nos domínios social, cultural e educativo para com a sua população”[2].

Isto posto, no caso particular das pessoas coletivas de utilidade pública (associações, fundações ou certas cooperativas), embora o estatuto de utilidade pública que lhes foi atribuído pressuponha, entre outros requisitos cumulativos, o desenvolvimento, sem fins lucrativos, de uma atividade de intervenção em favor da comunidade em áreas de relevo social e o não desenvolvimento, a título principal, de atividades económicas em concorrência com outras entidades que não possam beneficiar do estatuto de utilidade pública (cf. artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro, na sua redação atual, que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 391/2007, de 13 de dezembro), se se constatar, nomeadamente através das suas demonstrações financeiras, que a sua maior fonte de rendimentos consiste em prestações de serviços, nesse caso, ainda que a política de preços a que obedecem os serviços pelas mesmas prestados tenha em vista a promoção de um acesso generalizado pelos beneficiários associados (inclusive aqueles que aufiram baixos rendimentos), deve concluir-se que tais pessoas coletivas desenvolvem profissionalmente uma atividade económica com vista à obtenção de vantagens patrimoniais (o que não se confunde, necessariamente, com escopo lucrativo), não sendo, portanto, prestadoras de serviços não económicos de interesse geral.

Veja-se, a título exemplificativo, o caso da Fundação Inatel. Por intermédio do Decreto-Lei n.º 106/2008, de 25 de junho, foi concretizada a extinção do INATEL – Instituto Nacional para o Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores, I. P. (artigo 1.º), e instituída, pelo Estado Português, uma fundação privada de utilidade pública – a Fundação INATEL (artigos 2.º e 7.º) –, que sucedeu ao INATEL, I.P. em todos os seus direitos e obrigações, bem como na prossecução dos seus fins de serviço público (artigo 3.º) – nomeadamente, a promoção das melhores condições para a ocupação dos tempos livres e do lazer dos trabalhadores, no ativo e reformados, desenvolvendo e valorizando o turismo social, a criação e fruição cultural, a atividade física e desportiva, a inclusão e a solidariedade social (artigo 5.º) –, deixando a pessoa coletiva de integrar a administração central do Estado – e, mesmo, a Administração Pública (cf. artigo 2.º, n.º 4 do CPA de 2015) –, epassando a assumir natureza jurídica mais consentânea com as características e o tipo de atividades que prossegue (cf. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 106/2008, de 25 de junho). Mas, por outro lado, mediante consulta das mais recentes demonstrações financeiras da Fundação INATEL, disponíveis online em http://www.inatel.pt/, verifica-se que a maior fonte de rendimentos da Fundação INATEL consiste nas “prestações de serviços” (cf. alínea a) do artigo 7.º dos Estatutos da Fundação INATEL, aprovados em anexo ao Decreto-Lei n.º 106/2008, de 25 de junho), que assumem um peso de cerca de 50 % no total de rendimentos auferidos, enquanto os “subsídios à exploração”, atribuídos, na sua esmagadora maioria, pelo IGFSS – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. e pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (cf. alíneas e) e f) do artigo 7.º dos Estatutos da Fundação INATEL), representam cerca de 25 % do universo de rendimentos.


[1] Conclusões do advogado-geral Michal Bobek apresentadas em 15 de novembro de 2018, no Processo C-393/17 (Openbaar Ministerie v Freddy Lucien Magdalena Kirschstein and Thierry Frans Adeline Kirschstein) do Tribunal de Justiça, em sede de pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hof van beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso de Antuérpia, Bélgica), n.ºs 45 a 99, em especial n.ºs 64 e 74.

[2] Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 27 de junho de 2017, proferido no Processo C-74/16 (Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania c. Ayuntamiento de Getafe), em sede de pedido de decisão prejudicial do Juzgado Contencioso-Administrativo n.º 4 de Madrid (Tribunal do Contencioso Administrativo, n.º 4 de Madrid, Espanha), n.ºs 41 a 51.

Mais questões sobre arbitragem de consumo – Ac. do TRP, de 28/01/2021

Jurisprudência

Ainda há poucos dias publicámos aqui um breve comentário a uma decisão jurisprudencial em matéria de arbitragem de consumo. Chamados à atenção pelo Dr. Carlos Filipe Costa para outra decisão proferida neste domínio no início deste ano, procedemos agora à sua análise.

Está em causa o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto (TRP) no passado dia 28 de janeiro, a qual nos parece também ser bastante acertada no que respeita a todos os aspetos tratados.

Neste acórdão, o TRP trata várias questões, decidindo, em resumo, o seguinte:

1) O prazo para a prolação da sentença arbitral é o prazo previsto no art. 43.º da Lei de Arbitragem Voluntária (12 meses, com possibilidade de sucessivas prorrogações) e não o prazo previsto no art. 10.º-5 e 6 da Lei n.º 144/2015, reproduzido no art. 17.º do Regulamento do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto – CICAP (90 dias, com possibilidade de duas prorrogações por período igual).

A decisão parece-nos totalmente adequada. Como já foi defendido[1], o prazo de 90 dias parece estar pensado sobretudo para a mediação e outros meios não adjudicatórios de resolução de litígios, suscitando dificuldades a sua aplicação à arbitragem. Pensando na tramitação típica de um processo de arbitragem, que envolve a troca de articulados entre as partes, a produção de prova e a realização de audiências, o prazo de 90 dias pode ser insuficiente.

O TRP segue, neste aspeto, o entendimento já anteriormente defendido no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21/1/2020, referido em comentário ao nosso último post sobre esta matéria.

2) O prazo de 12 meses para a prolação da sentença arbitral conta a partir da data da designação do árbitro.

Só a partir desse momento se pode considerar iniciado, para este efeito, o processo arbitral, uma vez que os poderes jurisdicionais do tribunal arbitral não podem ser anteriores a esse momento. Também aqui se reconhece, tal como na decisão que analisámos há alguns dias, a necessidade de separar claramente o processo de mediação do processo de arbitragem.

3) Não determina o encerramento automático do processo arbitral a ultrapassagem do prazo de 15 dias a contar da data da audiência para notificação da sentença arbitral às partes, previsto no art. 15.º do Regulamento do CICAP.

O incumprimento desta regra não preclude o dever de proferir a sentença arbitral, ainda que em momento posterior, não constituindo, portanto, fundamento de anulação da sentença arbitral.

Uma decisão em sentido oposto seria contrária ao interesse das partes no sentido da celeridade processual. A anulação da decisão implicaria que o processo voltasse ao início, repetindo-se todos os passos anteriores. Ora, se apenas falta a prolação da sentença e não existe qualquer outro problema com o processo, seria manifesta a irrazoabilidade da consequência.

4) O dever de fundamentação da decisão arbitral não é idêntico ao de uma decisão judicial, mas deve “ter o conteúdo mínimo exigível que permita apreender o sentido, as razões e o percurso racional seguido pelo árbitro na interpretação dos meios de prova”.

Concorda-se com a argumentação do tribunal. Já se defendeu[2] que o critério essencial para determinar o alcance do dever de fundamentação é o da inteligibilidade da decisão para as partes. Será inteligível a decisão que as partes puderem compreender, tendo em conta o caso concreto. O grau de fundamentação não deve, assim, ser igual em todas as situações, dependendo da complexidade, devendo ser mais bem explicada a matéria de facto, de direito ou ambas, consoante a dificuldade da questão em termos de compreensão. Numa situação simples, admite-se que a fundamentação pode ser sucinta, bastando, assim, em princípio, o mínimo para que remete a ideia de que só a falta absoluta de fundamentação constitui fundamento de anulação. Deve, no entanto, salientar-se que o aspeto essencial não é a extensão (ou a quantidade) da motivação, mas o seu conteúdo. A necessidade de uma análise crítica da prova também depende das circunstâncias do caso. Quando, para a compreensão da decisão, for necessário perceber como é que o tribunal se posicionou face à prova produzida, é anulável a sentença que não o explique, uma vez que é posta em causa a sua inteligibilidade para as partes.

No caso em análise, a fundamentação ultrapassava, em muito, o mínimo exigido pelo Direito.

5) A ação de anulação da sentença arbitral não visa resolver os problemas causados à parte vencida no processo pela ausência de possibilidade de recurso dessa mesma decisão.

Os fundamentos para a anulação da decisão são essencialmente formais, não servindo esta ação para o tribunal estadual avaliar se a decisão proferida pelo tribunal arbitral foi correta do ponto de vista, quer dos factos, quer do Direito. Em suma, o TRP não anula a decisão arbitral e revela uma total compreensão da arbitragem em geral e da arbitragem de consumo em particular.


[1] Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2017, pp. 129 e segs..

[2] Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2017, pp. 95 e segs..

Tribunal competente e fornecimento de água – Ac. do TRL, de 27/04/2021

Jurisprudência

A questão de saber que tribunais são competentes para as ações de cobrança de dívidas relativas ao contrato de fornecimento de água tem suscitado alguma discussão na doutrina e na jurisprudência ao longo das últimas décadas.

O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu um acórdão no passado dia 27 de abril de 2021, no qual se defende a orientação dominante e que nos parece ser a mais correta.

Apesar da referência a serviços públicos essenciais, os contratos a que a Lei n.º 23/96 se refere são contratos de direito privado, independentemente de o prestador de serviço ser uma entidade pública ou privada, sendo competentes para a resolução dos litígios os tribunais comuns e não os tribunais administrativos e fiscais.

O TRL foi chamado a pronunciar-se sobre a questão no âmbito de um recurso interposto pela AdC – Águas de Cascais, S.A., que não se conformou com a decisão do tribunal judicial de 1.ª instância de absolver o réu da instância com fundamento na sua incompetência em função da matéria.

O TRL revogou a decisão impugnada, devolvendo o processo ao tribunal de 1.ª instância. Defende-se na decisão que “a dívida de consumo de água não é uma dívida fiscal emergente de uma relação jurídica-tributária”.

Como também refere o TRL, a questão encontra-se, atualmente, expressamente resolvida. Com efeito, resulta do art. 4.º-4-e) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que estão “excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (…) a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”. Esta norma foi introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, podendo ler-se na Exposição de Motivos relativa ao Projeto de Lei n.º 167/XIII/4, que deu origem à referida Lei, que “esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo”. Não se trata, portanto, de um novo regime, sendo a nova norma apenas interpretativa.

A norma e a respetiva explicação levantam, no entanto, um problema interpretativo adicional, uma vez que se faz referência a “relações de consumo”. Ora, o âmbito da Lei n.º 23/96 é mais alargado, protegendo-se todos os utentes, independentemente de serem ou não consumidores. Deve interpretar-se em conformidade o novo art. 4.º-4-e), aplicando-se a regra a qualquer litígio relativo a serviços públicos essenciais, independentemente de o utente ser um consumidor ou um profissional.

O TRL não se pronuncia sobre esta questão, que teria sido interessante, uma vez que o réu é um condomínio (que pode ou não ser qualificado como consumidor). Parece assumir-se na decisão a existência de uma relação de consumo em todos os casos em que se aplica a Lei n.º 23/96. Para um aprofundamento desta questão, recomendamos a leitura de um texto citado no acórdão, que corresponde à tese de mestrado de Cátia Sofia Ramos Mendes, colaboradora do NOVA Consumer Lab ao longo de vários anos e que tem como título “O Contrato de Prestação de Serviços de Fornecimento de Água”. Foi defendida em setembro de 2015 na NOVA School of Law e encontra-se disponível aqui.

Questões sobre arbitragem de consumo – Ac. do TRL, de 11/03/2021

Jurisprudência

No dia 11 de março de 2021, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) proferiu uma decisão muito relevante em matéria de arbitragem de consumo, no âmbito de uma ação de anulação de uma decisão arbitral do Centro de Arbitragem do Setor Automóvel (CASA).

Foram várias as questões (processuais) tratadas nesta decisão, decidindo o TRL, em resumo, o seguinte:

1) A Lei n.º 63/2019, de 16 de agosto, que veio introduzir na Lei de Defesa do Consumidor um mecanismo de arbitragem (dita) necessária para o profissional no caso de o consumidor assim o determinar, aplica-se a processos que se iniciem após a data da sua entrada em vigor.

Neste sentido, defende o TRL que “a Lei n.º 63/2019 não preconiza uma mutação da ordem jurídica intolerável e opressiva dos mínimos de certeza e segurança, vindo apenas facultar ao consumidor uma forma adicional mais acessível de fazer valer os seus direitos, não se congeminando uma expetativa da outra parte a uma «decisão fora da arbitragem» tutelável pelo Direito”. Este argumento está em linha com o que é referido na decisão arbitral: “aquilo que a empresa poderia alegar é que a arbitragem é uma forma mais acessível ao consumidor. Porém, parece-nos que o argumento de que a parte tinha a expectativa de que a outra tivesse maior dificuldade em exigir o cumprimento não é atendível”.

2) Os processos nos centros de arbitragem de consumo têm várias fases, relevando, para este efeito, o momento em que dá entrada o requerimento de arbitragem (e não o momento em que se inicia o processo, na fase da informação ou da mediação).

Neste caso, o consumidor tinha recorrido ao CASA antes da entrada em vigor do novo regime, mas o processo apenas transitou para arbitragem já depois da entrada em vigor. O TRL considera que os procedimentos anteriores à arbitragem são distintos desta e devem ser separados para efeito de aplicação do regime vigente. Assim, o processo arbitral teve início já com o novo regime em vigor, pelo que o consumidor podia impor à empresa a resolução do litígio por arbitragem.

3) A parte que se recusa a proceder ao pagamento do preparo relativo à intervenção do perito no processo arbitral pode, se for informada sobre a referida consequência, ser impedida de colocar questões ou de pedir esclarecimentos ao perito durante a audiência de julgamento.

Neste caso, a demandada, notificada para o efeito, não pagou os cerca de € 30 indicados nem se pronunciou sobre as questões submetidas ao perito. O TRL defende que, “segundo o princípio da autorresponsabilidade das partes, as partes sofrem as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo, que fazem a seu próprio risco”.

4) A ação de anulação não permite a reapreciação da prova produzida.

A demandada pretendia que o TRL reavaliasse a prova produzida, alterando a decisão em matéria de facto. Esta reavaliação poderia ser feita no âmbito de um recurso da decisão arbitral, mas não de uma ação de anulação.

Em suma, o TRL julga improcedente a ação e não anula a decisão arbitral. Trata-se de um acórdão com muita qualidade e relevância prática significativa para a arbitragem de consumo.

Inteligência Artificial – Recomendações universais da UNESCO em discussão

Doutrina, Legislação

A UNESCO apresentou o draft da sua “Recommendation on the Ethics of Artificial Intelligence (AI)” que, a ser aprovado, será o primeiro instrumento normativo global sobre a matéria.

O Comité Especial Intergovernamental de peritos da UNESCO (CEI) discutiu o documento numa primeira reunião, entre 26 e 30 de abril, a que se seguirá outra, prevista para entre 21 e 25 de junho. O vídeo dos trabalhos encontra-se disponível aqui, nas seis línguas oficiais (inglês, francês, espanhol, russo, árabe e chinês).

Esta iniciativa ocorre poucos dias após a Comissão Europeia anunciar o novo pacote legislativo que contém uma Proposta de Regulamento relativo à Inteligência Artificial (IA), com o primeiro quadro jurídico comunitário sobre a matéria, aqui divulgado e algum tempo depois da União Europeia aprovar as suas próprias “Ethics Guidelines on Artificial Intelligence”, elaboradas pelo grupo de peritos que criou para o efeito, o “High Level Expert Group on AI”, apresentadas neste blog aqui.

Na sua 40ª sessão, em novembro de 2019, a Conferência Geral da UNESCO decidiu desenvolver um instrumento de definição de padrões internacionais sobre a ética da Inteligência Artificial tendo, desde então, liderado um esforço multidisciplinar, multicultural e pluralista que permitiu a elaboração de um relatório preliminar e um primeiro draft da Recomendação. Em setembro de 2020, foi distribuído aos Estados Membros para recolha dos seus comentários que foram tidos em consideração para a preparação do relatório final e do draft da Recomendação sobre a Ética da IA agora em discussão.

Nas reuniões do CEI será consensualizado o texto que constituirá o draft final da Recomendação, a ser submetido aos Estados Membros para adoção na 41ª sessão da Conferência Geral da UNESCO.

Se adotada, a Recomendação será o primeiro instrumento normativo global neste campo de crítica importância em todo o mundo.

A União Europeia pretende aprovar um Regulamento relativo à Inteligência Artificial, de aplicação tendencialmente universal, como tem vindo a acontecer com o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), com impacto em países terceiros que se relacionam com a UE e já tem as suas Orientações relativas à Ética na Inteligência Artificial.

A UNESCO prepara Recomendações universais sobre o tema.

Destacam-se, como diferenças relevantes entre o futuro Regulamento e a futura Recomendação, o facto de aquele ser vinculativo e esta indicativa, bem como o facto de o Regulamento assentar numa análise de risco (risk assessement), excluindo da sua aplicação o que considera ter risco mínimo ou nenhum e a Recomendação abranger nas suas considerações éticas toda a IA, independentemente do nível de risco que comporte.    

A UNESCO enuncia a ideia de soberania da informação (data sovereignty) e a necessidade de a manter, a par do incentivo à partilha de informação (data sharing).

Esta é a quadratura do círculo que todos procuram. É preciso que os dados circulem, por serem fundamentais à eficácia da inteligência artificial e ao desenvolvimento dos negócios e da economia e é desejável que cada individuo decida sobre os seus dados e seja protegido. O ponto final aqui serve para evitar avançar para as questões críticas “protegido de quem e de quê”, já que essas além de poderem não gerar consensos, são essencialmente desconhecidas e em permanente e muito rápida evolução.

O fim (tentado) da era das “letras pequeninas”

Legislação

Já em vários textos deste Blog falámos do regime das cláusulas contratuais gerais enquanto instrumento de proteção do consumidor, contraente mais fraco, que merece ampla proteção nestas situações.

Relembrando, as cláusulas contratuais gerais são, nos termos do art. 1.º do DL 446/85 de 25 de outubro (LCCG), as cláusulas elaboradas sem prévia negociação individual, que o proponente se limita a subscrever ou aceitar. A estas, aplica-se o regime da LCCG, sobre o qual incidiu a alteração de que aqui se falará.

Precisamente por não haver negociação individual, são impostos especiais deveres de informação e comunicação, nos arts. 5.º e 6.º, sob pena de exclusão das cláusulas do contrato, por força do artigo 8.º. 

A este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de 28 de janeiro de 2021, já comentado neste blog, e que segue uma linha jurisprudencial já bem sedimentada, relembrou que não basta cumprir formalmente os deveres de informação, expondo as informações relevantes sem mais. É necessário que esse dever seja cumprido segundo critérios de razoabilidade, cumprindo materialmente o seu propósito de dar a conhecer todos os aspetos do contrato ao consumidor. Afinal, é essa a sua ratio. 

Infelizmente, nestes contratos de adesão existe uma prática muito frequente de incluir em letras de menor tamanho informações bastante relevantes. Um consumidor medianamente atento provavelmente não irá reparar nestas cláusulas, pequenas no seu tamanho, e com um grande impacto normalmente associado.

Até agora esta questão das “letras pequeninas” tem sido enquadrada no incumprimento dos deveres de informação e comunicação, previstos nos arts. 5.º e 6.º. Neste sentido, veja-se, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de maio de 2008, ou o  Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13 de outubro de 2016

No entanto, foi esta semana aprovado na Assembleia da República o Projeto de Lei nº 532/XIV/2.ª (BE e PEV), que “procede ao reforço da transparência e dos efeitos da proibição de cláusulas gerais nos contratos de adesão”, alterando pela quarta vez o Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de outubro (LCCG). 

No art. 1º deste Projeto de Lei, enuncia-se que esta alteração visa impor que as cláusulas dos contratos que incluem cláusulas contratuais gerais sejam redigidas com letra não inferior a tamanho 11, ou não inferior a 2.5 milímetros, e com um espaçamento entre linhas não inferior a 1.15. 

Para tanto, é adicionada ao art. 21.º, sob a epígrafe “cláusulas absolutamente proibidas”, a alínea i), acrescentando ao seu elenco as cláusulas que violem as indicações objetivas referidas supra. 

Vejamos: nos termos da LCCG, são proibidas as cláusulas contrárias à boa fé, à luz do art. 15.º. Trata-se, neste caso, de um critério subjetivo, cabendo ao intérprete a tarefa de, caso a caso, verificar se determinada cláusula contraria este princípio geral de direito.

Nas relações com consumidores finais, temos ainda as cláusulas absolutamente proibidas (art. 21.º) e as cláusulas relativamente proibidas (art. 22.º).

Ao passo que as cláusulas relativamente proibidas permitem ao tribunal a sua apreciação casuística, ainda
que segundo um modelo objetivo, as cláusulas absolutamente proibidas são-no independentemente de valoração judicial, desde que constem do elenco previsto. 

Assim, nas cláusulas absolutamente proibidas não há que fazer um juízo subjetivo. Se a situação se elenca num dos casos previstos nesse artigo, a cláusula será necessariamente nula, por força do art. 12.º. 

Aplaudimos a intenção do legislador que, ao incluir esta prática no elenco do art. 21.º, tentou resolver uma situação que já há muito merecia uma tutela mais efetiva e, de certo modo, mais objetiva. Contudo, a esta alteração aplicar-se-ão os habituais problemas que decorrem de criar critérios objetivos para situações amplíssimas.

É que convém relembrar que nada obsta a que, por exemplo, de um cartaz constem determinadas cláusulas contratuais, que serão gerais por não haver prévia negociação. Quer isto dizer que, por exemplo, cláusulas de fidelização podem estar expostas em letras pequenas no referido cartaz à porta da loja, sendo o consumidor atraído pelo preço convidativo que daí consta em letras muito maiores. 

Assim, aplicando-se as novas regras estes casos, será proibida a utilização de tamanho inferior a 11 ou 2.5 milímetros. Porém, será que num cartaz esse tamanho assegura o efetivo conhecimento da cláusula por parte do consumidor? Cremos que não. Possivelmente esta será uma das estratégias utilizadas para continuar a dissimular informações importantes neste tipo de contratos. 

 Posto isto, e para concluir, o primeiro passo para a mudança consiste em reconhecer a sua necessidade. O Projeto de Lei agora aprovado é, pelo menos, o início de uma consciencialização da frequência e nocividade destas práticas, já há muito alertada pela doutrina e pela jurisprudência. Se, finalmente, será capaz de cabalmente proteger os consumidores da sua verificação? Temos as nossas dúvidas, mas mantemo-nos otimistas. 

O papel da propriedade industrial na proteção do consumidor

Legislação

A propriedade industrial é uma área do direito da propriedade intelectual que visa “garantir a lealdade da concorrência, pela atribuição de direitos privativos sobre os diversos processos técnicos de produção e desenvolvimento da riqueza”[1]. A proteção deste tipo de criações intelectuais é concedida através de vários institutos jurídicos, nomeadamente a patente, a marca, o registo de desenhos e modelos industriais, indicações geográficas, entre outros. Sendo uma área do direito que interage com várias outras, importa perceber o papel que a propriedade industrial tem na proteção dos consumidores.

O principal instrumento legal relativo à propriedade industrial em Portugal é o Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de dezembro, que aprova o novo Código da Propriedade Industrial, transpondo as Diretivas (UE) 2015/2436 e (UE) 2016/94. Neste, são várias as referências à especial atenção que tem de ser garantida ao consumidor.

Vejamos.

O registo de uma marca é um ato administrativo realizado junto do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e que está associado a vários fundamentos e exige o cumprimento de certas formalidades. Um dos motivos para recusa do registo da marca será a tentativa de induzir o consumidor em erro através da tentativa da reprodução de marca anteriormente registada para produtos (ou serviços) idênticos ou afins que poderiam induzir o consumidor em erro ou confusão. De igual modo é recusado o registo de uma marca que apresente elementos (como a bandeira nacional) que poderiam levar o consumidor a crer que se trata de um produto ou serviço proveniente de uma entidade pública nacional (art. 231.º-2-a)). Estas disposições legais não são exclusivas às marcas, existindo normas semelhantes relativas aos logótipos (art. 289.º-1-b)) e indicações geográficas (art. 302.º-2).

Para além de marcas que possam tentar induzir o consumidor em erro por reproduzirem outras marcas, há a possibilidade das próprias marcas serem enganosas: uma marca com o nome de “Motas Novas” que só venda motociclos usados estará, naturalmente, a distorcer a realidade dos seus produtos. Para estas situações a lei prevê um regime diferente do anterior: a marca deverá ter o seu registo caducado se “tornar suscetível de induzir o público em erro, nomeadamente acerca da natureza, qualidade e origem geográfica desses produtos ou serviços, no seguimento do uso feito pelo titular da marca, ou por terceiro com o seu consentimento, para os produtos ou serviços para que foi registada” (art. 268.º-2-b)). Como tal, a expectativa do consumidor é essencial para que a marca seja um elemento que identifique e distinga produtos e serviços.

Além de incluir o consumidor em normas de direito substantivo, é interessante ver que a lei também dá relevância ao consumidor em questões processuais.

Existe a possibilidade de apresentar junto do INPI um pedido de declaração de nulidade de um registo de marca (art. 262.º) ou de um desenho ou modelo (art. 204.º) quando existirem fundamentos para invalidar esse mesmo registo. Tanto num caso como no outro, a lei considera que qualquer pessoa (inclusive um consumidor[2] – individualmente ou representado através de uma associação de consumidores, desde que tenha capacidade para demandar ou ser demandado/a), deverá ser encarado como um interessado com legitimidade. Não só os consumidores são interessados com legitimidade num processo de nulidade de registo de marca ou de desenho ou modelo, como também o são na determinação de sanções acessórias. Quando os tribunais são chamados a decidir num processo judicial relacionado com esta matéria, podem aplicar sanções acessórias relativas ao destino dos bens em relação aos quais tenha havido violação do direito de propriedade industrial. Estas medidas terão de ser tomadas de forma adequada e proporcional, tendo sempre em conta os legítimos interesses de terceiros, em particular os interesses dos consumidores (art. 348.º).

Todos os produtos e serviços adquiridos por um consumidor são (diretamente ou indiretamente) criações intelectuais. Não só o produto final como a imagem. O desenho, a marca e o logótipo do produtor também o são. Desta forma, é essencial evitar que haja produtos diferentes a serem dissimulados como sendo produtos iguais. Não só isto cria problemas a nível económico como também poderá causar danos gravíssimos nos consumidores: alimentos que usam a imagem ou marca de outros produtos com padrões, qualidades e naturezas diferentes são um risco de saúde para os consumidores que possam ter alergias alimentares ou necessidade de outros cuidados especiais. Como tal, é percetível a importância que a lei dá à proteção dos consumidores, reconhecendo a urgência de garantir que estes são devidamente informados. O direito à informação dos consumidores vem previsto no art. 60.º-1 da Constituição da República Portuguesa, que refere que “os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação […]”[3]. É com base neste preceito constitucional que a lei procura garantir que a informação à qual o consumidor tem acesso é autêntica, nomeadamente na informação que o consumidor encontra quando interage com um produto ou serviço. Caberá ao Estado e às autoridades garantir que a informação é verdadeira e precisa, atuando na primeira linha de combate às manifestações de propriedade industrial que possam vir a confundir o consumidor ou a induzi-lo em erro.


[1] Art. 1.º do DL n.º 110/2018, de 10 de dezembro. Todas as referências legais neste texto serão relativas a este diploma.

[2] Apesar do legislador não utilizar o conceito de consumidor, “qualquer pessoa singular ou coletiva” com legitimidade pode apresentar o pedido junto do INPI. Como tal, consumidores e não consumidores estarão abrangidos neste conceito amplo.

[3] A proteção dos consumidores no texto constitucional em vigor foi anteriormente abordada neste blog aqui.