O caso Schufa: credit scoring como decisão automatizada baseada no processamento de dados pessoais

Doutrina

No último texto, escrevi um texto introdutório sobre a avaliação da solvabilidade (credit scoring) na Diretiva 2025/2223, realçando que o regime se centra no interesse do consumidor.

A credit scoring também é, no entanto, uma atividade de tratamento de dados pessoais, o que torna aplicável o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD). Se a credit scoring for realizada através de ferramentas de IA, a classificação de crédito será uma decisão total ou parcialmente automatizada e, portanto, serão igualmente aplicáveis as disposições do artigo 22.º do RGPD. Além disso, e de um modo geral, qualquer atividade de tratamento de dados deve respeitar o princípio da privacidade desde a conceção (art. 25.º do RGPD), de acordo com o qual as empresas/organizações são incentivadas a implementar medidas técnicas e organizacionais, nas fases iniciais da conceção das operações de tratamento, de forma a salvaguardar os princípios da privacidade e da proteção de dados desde o início.

A avaliação da solvabilidade vista pelo RGPD tem três aspetos importantes: (1) quem é responsável pelo tratamento de dados quando a credit scoring é externalizada; (2) como distinguimos uma classificação totalmente automatizada de outra que não o é; (3) que informações devemos utilizar (e quais não devemos utilizar) para realizar a avaliação da solvabilidade.

As duas primeiras questões foram resolvidas ou esclarecidas pela conhecida Sentença Schufa do TJUE. A Sentença Schufa é a primeira sentença do TJUE que interpreta o art. 22.º do RGPD. Fá-lo num caso de crédito ao consumo, mas as suas considerações estendem-se a qualquer decisão total ou parcialmente automatizada. O conflito é fácil de explicar: um requerente de crédito junto de um banco médio na Alemanha vê o seu pedido recusado e, quando pede explicações ao banco, este escuda-se no facto de a Schufa (entidade de avaliação de crédito) lhe ter enviado uma pontuaçãonegativa; quando recorre à Schufa, esta escuda-se no facto de ter sido o banco a decidir recusar o crédito e de o seu algoritmo ser um segredo comercial que não tem a obrigação de partilhar.

Deste caso, podem extrair-se várias conclusões claras: em primeiro lugar, tanto a entidade credora como a entidade avaliadora são responsáveis pelo tratamento das atividades de tratamento que cada uma realiza. Consequentemente, devem responder ao requerente de crédito sem se escudarem na proteção de segredos comerciais, uma vez que uma explicação compreensível não tem de ser exaustiva nem pôr em risco o segredo algorítmico. Em segundo lugar, o TJUE reforça a ideia já exposta pelo Grupo de Trabalho do Artigo 29.º sobre as decisões automatizadas: se a intervenção humana é meramente simbólica, estamos perante uma decisão totalmente automatizada, na medida em que não há uma intervenção humana significativa. No entanto, reforça ainda mais este último critério: poderíamos dizer que, para evitar a qualificação de decisão automatizada, deve haver uma intervenção humana «verdadeiramente significativa» (Cotino Hueso). Por último, recorda o tribunal, embora isso já seja feito pelo próprio artigo 22.º do RGPD (com uma técnica melhorável), que uma decisão totalmente automatizada que viole os direitos e liberdades do titular dos dados pessoais não será conforme com o RGPD, por mais que sejam formalmente cumpridos os requisitos estabelecidos por essa disposição.

Quando é que uma intervenção humana é «verdadeiramente significativa»? Tendo em conta tanto o acórdão Schufa como as Orientações do Grupo de Trabalho do artigo 29.º e certos aspetos do Regulamento da IA, proponho a seguinte check-list para que um consumidor que solicita crédito possa avaliar se a decisão de crédito (e também a classificação de crédito) é uma decisão totalmente automatizada ou não:

– A pessoa que intervém no processo (por exemplo, o operador do banco) tem formação suficiente na matéria sobre a qual deve decidir?

– A pessoa envolvida no processo tem formação suficiente em IA (AI Literacy)? O artigo 4.º do Regulamento Inteligência Artifical (RIA) refere-se à formação em IA; este requisito não deve ser entendido como sinónimo de conhecimentos de programação, mas como conhecimentos suficientes para poder avaliar criticamente (e, se for caso disso, contradizer) as sugestões da IA. Portanto, isso irá variar de acordo com as circunstâncias: o operador do banco não deve ter o mesmo nível de formação em IA que o consumidor, por exemplo.

– A classificação de crédito é acompanhada de argumentos suficientes e compreensíveis? A transparência e a explicabilidade são um binómio muito interessante: a IA deve ser transparente, mas também compreensível. De nada serve fornecer o código-fonte de um programa a uma pessoa que não sabe programar. Este binómio permite traçar uma gama de informações: suficiente, e não excessiva; para que o destinatário possa compreendê-la sem grandes esforços ou conhecimentos especializados. No direito do consumo, as condições gerais devem ser transparentes e compreensíveis; e também pode ser considerado falta de transparência causar indigestão ou «intoxicação» ao consumidor, ou esconder entre uma longa lista de condições gerais aspetos essenciais do contrato.

– A pessoa tem autoridade formal e capacidade material (tempo disponível) para questionar e, se necessário, contradizer as sugestões da IA? É importante detectar o risco de preconceitos acomodatícios nas pessoas que lidam com essas sugestões automatizadas. Se elas podem intervir, mas não o fazem por preguiça ou sobrecarga de trabalho, é como se não interviessem.

– A empresa ou instituição está a tomar medidas formativas para que o seu pessoal tenha formação em IA e para prevenir preconceitos?

– O nível de seguimento das sugestões automatizadas por parte do pessoal é verificado periodicamente?

A última das questões indicada também é interessante em relação à evolução tecnológica: o que é informação relevante para avaliar a fiabilidade do requerente de crédito? Acima, mencionou-se como se passou da utilização de informação negativa de solvência (ficheiros de maus pagadores) para a utilização de informação tanto positiva como negativa (ficheiros mistos). No entanto, a crescente produção de dados pessoais, aliada à também crescente capacidade de análise de dados por parte dos sistemas de IA, permite que, através de técnicas de perfilagem e microsegmentação, se obtenha informação inferencial suficientemente fiável sobre o comportamento presumido ou futuro de um indivíduo. Isto permite que, hoje em dia, qualquer dado pessoal possa ser um dado relevante para a credit scoring (all data is credit data). Esta realidade obriga a uma interpretação restritiva do que entendemos por informação «relevante», pois, caso contrário, poderia ser admitida a utilização de dados de utilização de contas de plataformas (Netflix, Spotify e outras), o tempo de leitura das condições gerais online ou a rapidez com que os cookies são aceites como dados relevantes para introduzir numa ferramenta de IA para a pontuação de crédito. Não será considerada informação «relevante» a obtida a partir de redes sociais, nem as categorias especiais de dados do art. 9.º do RGPD, uma vez que o art. 18.3 DCCC/2023 proíbe o seu tratamento para efeitos de credit scoring. Serão considerados relevantes dados como os rendimentos e as despesas do consumidor e outras circunstâncias financeiras e económicas que sejam necessárias e proporcionais à natureza, à duração, ao valor e ao risco do crédito para o consumidor (art. 18.3 DCCC/2023).

O facto de todos os dados poderem ser potencialmente relevantes para a credit scoring representa um problema de privacidade coletiva: a nossa responsabilidade individual ao navegar, rejeitando cookies de navegação (ou superando a fadiga da «gestão de opções»), já não é tão determinante para nos proteger de eventuais invasões da nossa privacidade, na medida em que deve partilhar protagonismo com o perfil sintético e a microsegmentação a partir de metadados ou características externas da população. Imaginemos uma pessoa muito consciente da proteção da sua privacidade digital: rejeita cookies ou «gere opções» sempre que pode, não ativa a Internet nem a geolocalização no seu telemóvel, a menos que precise de fazer consultas pontuais, não descarrega aplicações desnecessárias… Mesmo assim, a contaminação de dados que milhares de pessoas semelhantes a essa pessoa realizam permite que uma ferramenta de IA de perfilagem infira como o requerente do crédito se comportará. Como salienta Diogo Morgado Rebelo, a padronização de padrões e hábitos de consumo levaria à imposição indireta de identidades heteroconstruídas ou expropriadas aos requerentes de crédito.Perante esta situação, podem ocorrer situações de discriminação indireta (ou discriminação proxy), que não só seriam contrárias ao direito à igualdade e à não discriminação, como também podem comprometer o acesso à habitação, por exemplo. Mencionei situações de discriminação proxy e de discriminação indireta. Não são exatamente a mesma coisa. Falamos de discriminação indireta quando uma norma (ou um critério de política de crédito) formalmente neutra acaba prejudicando sistematicamente grupos específicos da população. Não é uma situação nova nem associada à inovação tecnológica: nos testes de acesso à polícia ou ao corpo de bombeiros, as notas para homens e mulheres não são idênticas, assim como nas competições desportivas, precisamente para evitar situações de discriminação indireta. Um exemplo relacionado com algoritmos foi o tratado pelo Tribunal Ordinário de Bolonha na sua sentença de 27 de novembro de 2020, em relação ao algoritmo da Glovo para a pontuação dos entregadores, onde recordou que «una differenza di trattamento può consistere nell’effetto sproporzionatamente pregiudizievole di una politica o di una misura generale che, mesmo que formulada em termos neutros, produz uma discriminação em relação a um determinado grupo», utilizando jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (Acórdão de 13 de novembro de 2007, D.H. e a. c. República Checa [GC] (n.º 57325/00), ponto 184; Acórdão de 9 de junho de 2009, Opuz c. Turquia (n.º 33401/02), ponto 183. Acórdão de 20 de junho de 2006, Zarb Adami c. Malta (n.º 17209/02), ponto 80).

A discriminação proxy é uma forma de discriminação indireta, mas que tem alguns elementos diferenciadores: utiliza dados como proxy no âmbito de atividades de perfilagem algorítmica com a intenção sub-reptícia de avaliar negativamente ou excluir certos grupos populacionais ou indivíduos com características determinadas. Trata-se, portanto, de uma forma de discriminação próxima da fraude, na medida em que utiliza determinados dados como «dados de cobertura» (dados de cobertura ou proxy) para atingir fins não pretendidos ou mesmo proibidos pela atividade de tratamento de dados que está a ser realizada. Todo o tratamento de dados deve ser realizado com uma finalidade (art. 5.º-1-b) RGPD), e a expressão e descrição da finalidade do tratamento condiciona os restantes princípios do tratamento de dados do art. 5 RGPD. A finalidade do tratamento de dados para avaliação de solvabilidade consiste em determinar as capacidades de cumprimento do contrato de crédito do potencial mutuário, não excluir certos requerentes por razões alheias à sua capacidade de cumprimento. Por outro lado, a partir de 20 de novembro de 2026, a avaliação deverá ser realizada «no interesse do consumidor», e não parece que excluir certos consumidores do acesso ao mercado de crédito por razões diferentes das da sua capacidade de cumprimento favoreça «o interesse do consumidor».

Vejamos agora um exemplo de discriminação proxy, recordando um post de há pouco mais de um ano sobre o direito ao esquecimento oncológico: o Parlamento Europeu solicitou aos Estados-Membros que adotassem medidas tendentes a evitar a discriminação sofrida por doentes com cancro que tinham sobrevivido à doença no acesso aos mercados de crédito e de seguros. Estas medidas foram adotadas por vários países, entre os quais Portugal e Espanha, que foram dos primeiros a fazê-lo. Se uma entidade credora desejasse evadir a proibição desta norma, poderia sentir-se tentada a pontuar negativamente conjuntos de dados em princípio neutros, mas que permitissem inferir que o requerente do crédito tinha sofrido de cancro.

A melhor forma de prevenir situações de discriminação indireta e discriminação por procuração é promover uma formação adequada em IA, tanto do pessoal que trabalha nas instituições de crédito como dos requerentes de crédito, bem como a necessária transparência e explicabilidade das ferramentas de IA de credit scoring, em três momentos igualmente importantes: (1) a sua conceção e melhoria; (2) a sua aplicação; e (3) a explicação posterior que deve ser dada ao requerente, especialmente se o crédito lhe for recusado. Este último ponto é obrigatório nos termos do artigo 18.º-8 DCCC/2023 e poderá tornar-se um exemplo prático do efeito direto da norma se não for transposto atempadamente e as instituições de crédito não ajustarem a sua política interna a essa exigência.

A omissão que custa milhões: o confronto entre a DECO e as operadoras de telecomunicações

Doutrina

Por Ved Bagoandas & Tiago Ribeiro Longa

No competitivo mercado das telecomunicações, as operadoras recorrem a um vasto leque de estratégias comerciais para conquistar novos clientes e fidelizar os já existentes. Campanhas promocionais com descontos temporários, ofertas de equipamentos “gratuitos”, pacotes de serviços aparentemente mais vantajosos e comunicações persuasivas são apenas alguns dos métodos mais comuns. Estas práticas, muitas vezes apresentadas como oportunidades imperdíveis, têm como objetivo captar a atenção do consumidor e levá-lo a aderir a contratos que, à primeira vista, parecem irresistíveis.

Uma prática particularmente frequente entre as operadoras de telecomunicações é a negociação direta com o cliente quando o período de fidelização se aproxima do fim. Nessa fase, as empresas procuram evitar a rescisão do contrato oferecendo condições especiais, descontos ou vantagens exclusivas para persuadir o consumidor a renovar. Essas técnicas procuram aproveitar os vieses cognitivos dos consumidores, particularmente o chamado «viés do status quo», ou seja, a tendência das pessoas agirem da mesma forma, a menos que exista uma razão poderosa para mudar. Esse viés inibe a propensão à mudança e pode ser facilmente ativado pelas empresas quando elas detectam que o consumidor tomou a decisão de mudar e lhe oferecem um argumento para manter o status quo.

Este mecanismo, embora pareça benéfico, gera frequentemente situações em que dois clientes com o mesmo plano pagam valores diferentes. As variações podem resultar da antiguidade do cliente, da capacidade de negociação individual ou, simplesmente, da estratégia comercial adotada no momento. Assim, quem demonstra intenção de cancelar o serviço pode, paradoxalmente, conseguir tarifas mais baixas do que outro consumidor que permaneceu fiel sem contestar o preço, criando um cenário de desigualdade difícil de compreender para o consumidor comum.

Nos últimos dias, o setor das telecomunicações em Portugal voltou a estar no centro das atenções após uma decisão histórica dos tribunais a favor da DECO (Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor). A sentença condena as operadoras MEO, NOS e NOWO a reembolsar cerca de 40 milhões de euros a mais de 1,6 milhões de clientes, por aumentos de preços considerados ilegais, ocorridos entre 2016 e 2017.

De acordo com a decisão, as empresas alteraram unilateralmente os valores das mensalidades, sem garantirem aos consumidores a informação clara e prévia a que estavam obrigadas, nem a possibilidade de rescindir o contrato sem custos. O tribunal considerou que as comunicações enviadas na altura não cumpriam os requisitos de transparência, tornando nulas as alterações contratuais.

Um dos pontos centrais da decisão judicial prende-se com a violação do artigo 48.º da Lei das Comunicações Eletrónicas, entretanto revogada pela Lei n.º 16/2022, de 16 de agosto, que obriga as operadoras a comunicar de forma clara, adequada e atempada qualquer alteração contratual, concedendo ao cliente o direito de rescindir o contrato sem custos caso não aceite as novas condições. O tribunal entendeu que a MEO, a NOS e a NOWO não cumpriram este dever legal quando procederam aos aumentos de preços entre 2016 e 2017, limitando-se a enviar comunicações ambíguas que não permitiam ao consumidor perceber plenamente o impacto das alterações nem exercer, de forma informada, o seu direito de oposição.

Acresce referir que tal conduta consubstancia uma prática comercial desleal, por se enquadrar numa omissão enganosa, nos termos do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março.

Na prática, tal situação produziu efeitos, na medida em que os consumidores fidelizados se viam confrontados com a alternativa de aceitar o aumento de preços ou suportar o pagamento de uma penalização em virtude do período de fidelização. Na maioria dos casos, optaram pela aceitação do aumento, por representar a solução, de um ponto de vista económico, menos onerosa.

O presente caso corresponde a uma violação do preceituado na alínea a) do n.º 1 do referido artigo 9.º, configurando-se como uma omissão enganosa por ser contrária à diligência profissional. Tendo em conta todas as circunstâncias do meio de comunicação, a omissão da informação relativa ao direito do consumidor a resolver o contrato sem suportar os encargos decorrentes da fidelização induziu os consumidores a uma perceção incorreta das circunstâncias reais do caso, levando-os a tomar uma decisão de transação que, em princípio, não teriam tomado de outro modo e não lhes permitindo uma decisão negocial livre e esclarecida.

Por fim, importa realçar que, nos casos de prestação de serviços de comunicações eletrónicas, exige-se que as empresas prestadoras de serviços adotem um comportamento correto e adequado perante os seus consumidores, orientadas pelo princípio da boa-fé e pelos deveres de lealdade durante a formação e vigência dos contratos. Deve, em especial, ser assegurado o direito à informação clara, completa e objetiva, relativamente a todos os elementos necessários à contratação de um serviço.

A sentença judicial inclui três decisões. A primeira é, conforme mencionado anteriormente, a nulidade dos aumentos de preços, por violarem a Lei das Comunicações Eletrónicas. A segunda é a condenação das operadoras a restituírem aos consumidores os valores indevidamente cobrados, incluindo juros de mora. Por fim, a terceira consiste na condenação das operadoras a divulgarem a decisão judicial através dos seus meios de comunicação, bem como de anúncios públicos, de forma a salvaguardar que os consumidores lesados se possam informar sobre o direito à restituição.

No entanto, esta sentença é de um tribunal de primeira instância, pelo que ainda não transitou em julgado, tendo as operadoras a possibilidade de recorrer para os tribunais superiores.

Credit scoring na Diretiva 2025/2223 e o interesse do consumidor

Doutrina

1. O que é e para que serve a avaliação da solvabilidade

A avaliação da solvabilidade (que pode ser designada, em inglês, por credit scoring) é uma análise que o credor, num contrato de crédito, realiza ao potencial mutuário para estimar a sua capacidade de cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito (ver, por exemplo, o artigo 4.º, n.º 1-c), do Decreto-Lei 74-A/2017).

Um contrato de crédito é um contrato duradouro. As obrigações do mutuário não se reduzem ao pagamento, embora, evidentemente, a obrigação de pagamento seja fundamental. O mutuário também deve fornecer informações suficientes sobre a sua situação financeira e fazê-lo de forma honesta.

Do ponto de vista da sua execução, as técnicas de avaliação da solvabilidade podem ser divididas em tradicionais (baseadas em julgamentos relacionais) ou automatizadas (utilizando técnicas de tratamento automatizado da informação, juntamente com «algoritmos», no sentido mais amplo do termo). Em qualquer uma das modalidades, é composta por três fases: (1) recolha de informações; (2) tratamento ou processamento de informações; e (3) classificação de crédito. As técnicas tradicionais baseiam-se no conhecimento subjetivo do pessoal da entidade (relacional) sobre as características do requerente. Estão sujeitas a preconceitos, enviesamentos ou informação incompleta. A utilização de algoritmos objetivou, na maioria das vezes, a avaliação da solvabilidade, embora noutras tenha provocado uma padronização dos preconceitos ou enviesamentos de quem concebe o algoritmo.

A classificação de crédito indica se o requerente do crédito é fiável, de risco médio ou de alto risco. Isto permite decidir sobre a concessão (ou não) do crédito ou se se fixa uma taxa de juro mais elevada ou garantias adicionais de pagamento.

Como se pode imaginar, todas as partes envolvidas na celebração e execução de um contrato de crédito estão interessadas no bom andamento do contrato. Os interesses de cada parte são, no entanto, diferentes, e convém ter isso em mente, pois em situações específicas eles podem ser excludentes e sobrepor-se.

As instituições de crédito estão interessadas na viabilidade do contrato, no reembolso do capital mutuado e no pagamento dos juros acordados.

O mercado de crédito está igualmente interessado na viabilidade do contrato, mas não tanto de forma singular, como o banco, mas no sentido de evitar uma acumulação excessiva de ativos tóxicos que possa gerar uma crise de confiança como a que se viveu após 2008.

O Estado está igualmente interessado na viabilidade do contrato, embora para evitar que uma eventual crise de confiança no mercado de crédito leve a uma crise da dívida. Esta situação também a vivemos na UE após a crise de 2008.

Last, but not least, o interesse do consumidor na viabilidade do contrato reside em prevenir o seu próprio sobreendividamento. Como bem afirma Leonor Gomes Martins, «o crédito ao consumo passou a ser visto como uma ferramenta quase inevitável para gerir a vida financeira diária das famílias, e não apenas associado à compra de bens mais valiosos, pois muitas destas encontram-se numa situação em que o seu rendimento não é suficiente para cobrir as despesas correntes». Esta realidade não se limita a Portugal e parece estar a aumentar nos últimos anos, o que é preocupante.

À luz do exposto, parece lógico que a avaliação da solvabilidade seja uma atividade inerente à prática bancária, apesar de só recentemente ter sido introduzida como obrigação nas normas relativas ao crédito ao consumo. No entanto, a partir da crise de 2008, tornou-se evidente que era necessário introduzir normas relativas à avaliação da solvência creditícia dos requerentes de crédito no âmbito da promoção dos chamados empréstimos responsáveis.

2. Breve cronologia normativa da credit scoring na UE e situação atual em Espanha e em Portugal

A promoção dos empréstimos responsáveis foi tentada com pouco sucesso na Proposta de Diretiva relativa aos Contratos de Crédito ao Consumo de 2002, como explica com grande clareza Esther Arroyo. A Diretiva relativa aos Contratos de Crédito ao Consumo de 2008 (DCCC/2008) não incorpora a noção de crédito responsável, mas introduz os primeiros critérios relativos à avaliação da solvabilidade creditícia no artigo 8.º, n.º 1, segundo o qual: «Os Estados-Membros devem assegurar que, antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante avalie a solvabilidade do consumidor com base em informações suficientes, se for caso disso obtidas do consumidor e, se necessário, com base na consulta da base de dados relevante». Esta disposição foi transposta nos diferentes Estados-Membros da UE com uma redação semelhante. Em Portugal, o artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho; em Espanha, o artigo 14.º da Lei n.º 16/2011, de 24 de junho.

Em 2014, foi publicada a Diretiva UE 2014/17, de 4 de fevereiro, relativa aos contratos de crédito aos consumidores para imóveis de habitação, que regula a obrigação de avaliação da solvabilidade no seu artigo 18.º, n.º 1, segundo o qual: «Os Estados-Membros asseguram que, antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante proceda a uma rigorosa avaliação da solvabilidade do consumidor. A avaliação deve ter devidamente em conta os fatores relevantes para verificar a probabilidade de o consumidor cumprir as obrigações decorrentes do contrato de crédito». Esta norma foi adaptada às legislações nacionais. No caso de Portugal, através do Decreto-Lei 74-A/2017, de 23 de junho, no seu artigo 16.º; no caso de Espanha, na Lei 5/2019, de 14 de março, no seu artigo 11.º.

À margem dos detalhes regulamentares nas diferentes normas de transposição nacional, pode-se apreciar no sublinhado de ambas as diretivas o efeito da crise económica de 2008, provocada, entre outras razões, por uma política de crédito pouco responsável. De acordo com a DCCI/2014, a avaliação da solvabilidade deve ser «rigorosa» (não teria já de o ser anteriormente?) e deve ter em conta «fatores relevantes» para verificar a probabilidade de o consumidor cumprir as obrigações do contrato de crédito.

A expressão «fatores relevantes» (em contraste com «informações suficientes», que é a expressão de 2008) faz referência indireta a um debate interessante sobre quais as informações que devem ser tidas em conta na avaliação da solvência creditícia: (1) apenas informações negativas, como incumprimentos, atrasos, falências, etc., contidas em ficheiros de incumpridores; ou, (2) juntamente com as anteriores, informações positivas de solvência, como nível de rendimentos, poupanças, estabilidade laboral ou património? Os chamados ficheiros mistos de solvabilidade (ou seja, aqueles que incorporam informações positivas e negativas) oferecem uma imagem mais completa do requerente de crédito, evitando que requerentes fiáveis sejam excluídos do acesso ao crédito por uma entrada nos ficheiros de incumpridores.

O panorama normativo em matéria de credit scoring na UE é completado pela Diretiva UE 2023/2225, de 18 de outubro, relativa aos contratos de crédito aos consumidores (DCCC/2023), e pelo Regulamento UE 2024/1689, de 13 de junho, relativo à Inteligência Artificial (Regulamento IA). A DCCC/2023, que revoga a DCCC/2008, regula novamente a avaliação da solvabilidade no artigo 18.º, segundo o qual: «Os Estados-Membros devem exigir que, antes da celebração de um contrato de crédito, o mutuante proceda a uma avaliação rigorosa da solvabilidade do consumidor. Essa avaliação deve ser efetuada no interesse do consumidor, a fim de evitar práticas de concessão de empréstimos irresponsáveis e o sobreendividamento, e deve ter devidamente em conta os fatores relevantes para verificar a probabilidade de o consumidor cumprir as suas obrigações decorrentes do contrato de crédito».

O artigo 18.º do DCCC/2023 é muito mais extenso, mas o texto em negrito permite-nos perceber que a UE tomou partido a favor do interesse do consumidor ao obrigar a realização de avaliações de solvência. Se a proteção do interesse do consumidor na avaliação da solvabilidade for incompatível com a dos outros três interesses concorrentes, o interesse do consumidor deve prevalecer sobre os demais. É importante ter este aspeto em conta em futuros projetos de transposição normativa. Por enquanto, nem Espanha nem Portugal publicaram propostas de transposição, apesar de a norma dever ser transposta para os ordenamentos jurídicos nacionais até 20 de novembro de 2025, o mais tardar. O prazo máximo para transposição é 20 de novembro de 2025; as medidas da DCCC/2023 serão aplicáveis a partir de 20 de novembro de 2026 (art. 48.1). A partir dessa data (26 novembro 2026), a DCCC/2023 terá efeito direto, ou seja, os consumidores poderiam invocá-la como norma diretamente aplicável (TJUE Caso Van Gend en Loos). A proximidade do prazo de transposição e a ausência de propostas normativas nacionais em Espanha e Portugal tornam também aconselhável que as entidades credoras adaptem a sua política de crédito a esta norma, a fim de prevenir possíveis reclamações dos consumidores.

Por fim, o Regulamento IA considera que os sistemas de IA de alto risco são aqueles destinados a ser utilizados para avaliar a solvência de pessoas singulares ou estabelecer a sua notação de crédito (Anexo III.5.a). Isto implica que deverão cumprir requisitos de comercialização na UE mais rigorosos, previstos no Capítulo III.

Pesquisa Online na Era da IA Generativa: Transparência ou Ilusão?

Doutrina

As ferramentas de inteligência artificial generativa têm transformado a forma como os consumidores procuram informação online, nomeadamente quando querem contratar um serviço ou adquirir um produto. Já não é incomum colocar perguntas diretamente a estas ferramentas — como o ChatGPT ou o Gemini —, por exemplo: «Qual é o frigorífico com melhor relação custo-benefício no mercado?». A resposta surge em segundos, em linguagem natural, convincente e aparentemente neutra.

Além disso, mesmo nos motores de busca tradicionais, o consumidor pode já deparar-se com respostas geradas por IA apresentadas logo antes da lista de resultados — como sucede, por exemplo, no Google com os denominados AI Overviews. Essas mudanças alteram estruturalmente a experiência de pesquisa e colocam desafios relevantes para o Direito do Consumo.

Quanto aos motores de busca, até muito recentemente o resultado era sempre apresentado na forma de uma lista de páginas correspondentes à pesquisa realizada, com clara distinção entre resultados patrocinados e não patrocinados. Em grande parte das situações isso continua a verificar-se, ainda que já se notem alterações com a integração de respostas de IA nas páginas de resultados.

No modelo tradicional, sem IA incorporada, o facto de as hiperligações patrocinadas surgirem em posição de destaque, aliado à prática de alguns motores de busca de priorizar serviços próprios nas respostas – como o Google Flights e o Google Hotels – mostra que a ordenação e até a própria exibição dos resultados não são neutras.

Com a integração de IA, acrescenta-se ainda o risco de o consumidor interpretar a resposta sintetizada como suficiente ou mais fiável, desviando a atenção das alternativas exibidas. Mesmo quando se mantêm elementos complementares — como a secção «outras pessoas pesquisaram», presente no Google, que pode ampliar o horizonte informativo —, permanece a dúvida: em que medida a forma de apresentar resultados, tanto na modalidade tradicional como com IA integrada, afeta a perceção do consumidor sobre quais opções são mais relevantes ou vantajosas?

Já no caso de pesquisas feitas diretamente em ferramentas de IA, o modo de apresentação do resultado é substancialmente diferente. A resposta surge de forma unificada, convincente e aparentemente imparcial, sem clareza sobre as fontes utilizadas nem sobre os critérios que levaram a ferramenta a «optar» por determinado produto ou serviço. O consumidor pode perguntar ao sistema quais foram as fontes utilizadas e assim aprofundar a pesquisa, mas essa informação, em regra, não é dada automaticamente.

O risco agrava-se porque, se é certo que o consumidor consegue identificar se uma hiperligação exibida por um motor de busca é patrocinada, nas respostas geradas por IA essa distinção não é sinalizada. Assim, embora até ao momento não haja evidências conhecidas de que estas ferramentas priorizem publicidade, a opacidade dos seus modelos impede que se afirme com segurança que conteúdos patrocinados não tenham um peso desproporcionado na elaboração da resposta. Essa possibilidade de reapresentação de informação patrocinada como se fosse imparcial dilui fronteiras relevantes e pode influenciar a decisão de consumo de forma indesejada. A questão exige atenção, já que a forma natural e assertiva como estas ferramentas comunicam tende a reforçar a perceção de fiabilidade e aumentar o impacto de eventuais enviesamentos.

Convém notar ainda que esta distinção entre pesquisa tradicional e pesquisa feita em ferramentas de IA generativa tende a tornar-se menos clara. Como mencionado, já existem motores de busca que incorporam modelos de IA nas próprias páginas de resultados, apresentando, antes ou ao lado da lista de hiperligações, uma resposta sintetizada de imediato.

Portanto, o consumidor que recorre ao método «tradicional» de pesquisa pode, na prática, estar também a interagir com uma IA generativa, nem sempre com a devida sinalização e geralmente sem opção de ocultar essa camada de resposta. Neste caso, somam-se duas camadas de opacidade: a falta de transparência sobre os critérios de exibição dos resultados e a dificuldade acrescida de compreender como a resposta automatizada foi construída, sem que se saiba qual é o peso efetivo que essa síntese exerce nas decisões de consumo.

Do ponto de vista legislativo, os riscos não são inteiramente novos. O Código da Publicidade exige que a natureza comercial de uma mensagem seja claramente identificada e não oculta, enquanto o Regime das Práticas Comerciais Desleais proíbe condutas enganosas que possam comprometer a autonomia do consumidor. A Lei de Defesa do Consumidor também é relevante, ao consagrar o direito à informação e o direito à educação para o consumo. O Regulamento da Inteligência Artificial, por sua vez, estabelece obrigações de transparência para sistemas de IA, incluindo os generativos, impondo que os utilizadores sejam informados, de forma compreensível, de que estão a interagir com uma IA.

Quanto aos motores de busca tradicionais, o Regulamento dos Serviços Digitais impõe regras de transparência quanto à identificação da publicidade e à explicação dos principais critérios de ordenação dos resultados. Quando esses motores passam a incorporar respostas geradas por IA, mantêm-se essas obrigações, mas acrescem também, em princípio, os deveres de transparência previstos no Regulamento da Inteligência Artificial.

Já as ferramentas de IA generativa autónomas não se enquadram diretamente na categoria de motores de busca, pelo que o Regulamento dos Serviços Digitais é, em princípio, inaplicável. Ainda assim, o Regime das Práticas Comerciais Desleais, o Código da Publicidade, a Lei de Defesa do Consumidor e o próprio Regulamento da Inteligência Artificial podem ser invocados, por exemplo, quando a apresentação da informação não seja suficientemente clara, quando se diluam fronteiras entre conteúdos comerciais e não comerciais ou quando a forma de resposta limite a autonomia do consumidor.

Ainda que algumas ferramentas de IA generativa incluam avisos genéricos — como a mensagem «O ChatGPT pode cometer erros. Considere verificar informações importantes.» —, tais disclaimers podem não ser suficientes quando a pesquisa envolve bens ou serviços de consumo. Nestes casos, o risco não se limita a erros factuais ou desatualização, mas abrange também a possibilidade de conteúdos patrocinados ou enviesados serem apresentados como se fossem informação imparcial. Assim, torna-se necessário refletir sobre mecanismos de aviso mais específicos, que alertem para riscos económicos concretos e ajudem o consumidor a identificar a natureza comercial de determinadas respostas.

Neste contexto, a educação para o consumo assume um papel essencial: é preciso reforçar a literacia digital, ajudando os consumidores a compreender que uma resposta automatizada não equivale a uma síntese neutra. A legislação aplicável já oferece uma base sólida, ao exigir transparência e proibir determinadas práticas, mas persiste o desafio de aplicá-las de forma eficaz a este novo cenário. Mecanismos de aviso adaptativos — que hoje já surgem em contextos de saúde, por exemplo — poderiam também alertar para riscos em matéria de consumo, contribuindo para que o consumidor continue capaz de tomar decisões livres e informadas mesmo perante sistemas opacos.

Crédito ao consumo e os portugueses: uma relação de dependência?

Doutrina

Atualmente, a comunicação social está inundada de notícias referentes a um aumento do recurso ao crédito ao consumo, dando nota de que esta tendência de crescimento se mantém há 16 meses consecutivos. Este fenómeno, que parece anunciar o crédito ao consumo como acessível e a opção perfeita para um consumidor que se vê numa situação de necessidade ou apenas de tentação, aparenta ter razões que não se prendem apenas com o desejo de adquirir bens.

Com base no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, que transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva n.º 2008/48/CE, de 23 de abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores, podemos definir estes como o contrato pelo qual um credor (pessoa singular ou coletiva no exercício da atividade comercial ou profissional) concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartão de crédito, ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante. Neste contexto, a figura da Taxa Anual de Encargos (TAEG) é central, constituindo um elemento obrigatório e relevante ao longo da fase pré-contratual e no próprio momento da celebração do contrato, pois permite ao consumidor comparar as propostas apresentadas por eventuais financiadores.

À primeira vista, parece que os portugueses recorrem ao crédito ao consumo apenas com a finalidade de adquirir algo valioso. Segundo dados do Banco de Portugal, bancos e financeiras concederam aos consumidores um montante recorde de 5,3 mil milhões de euros entre janeiro e julho, o que se traduz numa subida de 9% relativamente ao mesmo período do ano passado, destacando-se os empréstimos para satisfazer necessidades de maior valor, nomeadamente para compra de carro e lar. Observando estes números, podemos afirmar que os portugueses valorizam a compra de bens próprios duradouros (ter o seu próprio carro, o seu próprio lar), mas não deixa de ser preocupante a tendência que se está a criar: muitas famílias recorrem a empréstimos pois de outra forma não teriam capacidade de comprar bens de valor mais avultado.

Mas não só. Entre 2021 e 2023, Portugal viveu um período de forte inflação, provocado pelo pós-pandemia, mas principalmente pela guerra na Ucrânia, o que minou substancialmente o poder de compra das classes média e média baixa. O crédito ao consumo passou a ser visto como uma ferramenta quase inevitável para gerir a vida financeira diária das famílias, e não apenas associado à compra de bens mais valiosos, pois muitas destas se veem na situação de o seu rendimento não ser suficiente para suprir despesas correntes. Mesmo após este período, o poder de compra das famílias portuguesas não se alterou de forma significativa, sendo que os preços se mantiveram elevados e o aumento dos salários não se fez acompanhar.

Em Portugal ou em qualquer parte do mundo, em momentos de necessidade, as alternativas disponíveis tendem a parecer sempre mais apelativas. É neste contexto que o sistema financeiro se apresenta não só como uma solução, mas como promotor de algo que pode ser muito perigoso para os consumidores: as instituições financeiras apresentam o crédito ao consumo como simples e prático, como algo banalizado e não excecional, com grandes marcas a celebrar acordos com grandes superfícies para oferecer opções de crédito logo no momento da compra, sem nunca alertar para o risco de um endividamento descontrolado. O que tende a acontecer é que um consumidor em situação de necessidade vai, incentivado por todo este marketing agressivo, olhar para o crédito como a resolução para o seu problema de forma imediata, não ponderando as consequências futuras, acabando por se endividar (já estando previamente numa posição de fragilidade), o que pode levar a endividamentos sucessivos. Mas não nos podemos esquecer que, mesmo sem a necessidade financeira imediata, muitos recorrem ao crédito, aliciados pela oportunidade de satisfazer desejos de consumo.

Desta forma, é possível concluir que os portugueses estão de alguma forma dependentes do crédito ao consumo que, se antes era visto como um meio de sustento a uma cultura de consumo imediato e a um modo de vida moderno, como algo ocasional, hoje em dia é indispensável para a sobrevivência, o que diz muito sobre o estado de uma economia que força as famílias a endividarem-se para manter o seu nível de vida. Porém, não nos podemos esquecer que o crédito ao consumo também atua como motor do consumismo, deixando para trás a ideia de que é o trabalho e a disciplina que permitem alcançar conquistas deste tipo.

Não negando que a economia beneficia do aumento do consumo que é possível por meio de crédito, a ilusão criada por esta corrida ao mesmo tem razões e consequências por trás que não devem ser ignoradas.

Vishing, IA e o direito à saúde psicológica: o consumidor na era das chamadas telefónicas indesejadas

Doutrina

Chamadas não consentidas. Anedotas e realidade normativa

Gostaria de começar uma sequência de reflexões no blog do NOVA Consumer Lab com uma experiência pessoal, embora não seja exatamente fruto de uma viagem como a de Jorge Morais Carvalho. Não sei quantas vezes isto aconteceu convosco nos últimos meses (contem a experiência nos comentários, talvez sejamos muitos):

A qualquer hora do dia, um número de telefone identificado liga. Às vezes, o meu próprio telemóvel adiciona uma etiqueta de «suspeito de spam» acompanhada de um sinal de STOP; outras vezes, não. Ocasionalmente, o número parece telemóvel e outras parece fixo. O horário em que recebi chamadas vai das 9 da manhã à meia noite. As mais incómodas são as que ocorrem na hora da sesta, porque interrompem o descanso; mas não são menos desagradáveis as que ocorrem durante o horário de trabalho (a primeira impressão é que nos ligam por algo urgente, especialmente quando realmente se espera receber alguma chamada) ou as que ocorrem à noite (será que aconteceu alguma coisa à minha família ou a um amigo?).

Tenho o hábito de atender essas chamadas, apesar do aviso de spam, para surpresa dos meus amigos e familiares. As respostas que recebo são as seguintes:

(1) silêncio e desligamento da chamada em menos de 10 segundos;

(2) voz robótica a dizer «o seu trabalho é muito importante para nós» / «foi selecionado para uma oferta de emprego»;

(3) pessoa humana que me cumprimenta em nome de uma empresa de call center para me fazer uma oferta de mudança de empresa.

Se tenho o telefone em silêncio e vejo uma chamada perdida desses números, retorno a chamada, para maior surpresa dos meus amigos e familiares; e… o meu telefone indica que «o número marcado não existe», para meu espanto e, espero, dos leitores deste blog: como é que não existe se tenho uma chamada perdida dele!

Em Espanha, de acordo com dados do Instituto Nacional de Cibersegurança (INCIBE), desde a entrada em vigor do plano anti-fraudes em março de 2025, as operadoras de telefonia bloquearam cerca de 48 milhões de chamadas fraudulentas. Em Portugal, a ANACOM recebeu em 2025 70 reclamações por este tipo de práticas, mais do dobro do que em 2024 (cerca de 30). A nível mundial, no primeiro trimestre de 2025, foram detetadas 12,5 mil milhões de chamadas suspeitas de serem spam (137 milhões de chamadas por dia).

Estas chamadas pretendem explorar as vulnerabilidades da população, especialmente dos grupos mais vulneráveis. A frase que acabou de ler não é uma redundância: perante determinadas ferramentas de IA, todos somos vulneráveis, uma vez que a vulnerabilidade digital está relacionada com a fonte (IA, tratamento massivo de dados, perfilagem, padrões obscuros); e esta vulnerabilidade digital afeta ainda mais os grupos vulneráveis clássicos (menores, migrantes, idosos…). No caso das chamadas fraudulentas, o grupo mais exposto são os idosos. Precisamente, em junho de 2024, numa operação conjunta das forças de segurança espanholas e portuguesas, foram detidas 54 pessoas responsáveis por roubar pelo menos 84 vítimas através de táticas de vishing e engenharia social.

Tanto Espanha como Portugal propuseram alterações à Lei dos Serviços de Atendimento ao Cliente e à Lei das Comunicações Eletrónicas, respetivamente, com o objetivo de facilitar a identificação e o bloqueio deste tipo de chamadas.

Estas iniciativas pretendem, e devem ser saudadas, eliminar esta prática e os danos que ela causa. No entanto, por um lado, trata-se, por enquanto, de meras propostas de alteração; por outro, não contemplam medidas reativas para as situações em que a referida prática já ocorreu. É importante lembrar que estas não são apenas um meio eficaz para a prática de fraudes, mas que a repetição dessa prática em todos os tipos de população e a qualquer hora do dia gera um estado de inquietação latente dificilmente compatível com uma vida saudável.

O direito à saúde psicológica dos consumidores. Visão comparada Espanha – Portugal

O direito à saúde dos consumidores é reconhecido a nível constitucional tanto em Espanha como em Portugal:

– O artigo 60.º, n.º 1, da Constituição portuguesa estabelece que «Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à proteção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos».

– O artigo 51.1 da Constituição espanhola estabelece que os poderes públicos devem garantir a defesa dos consumidores e utilizadores, protegendo, através de procedimentos eficazes, a segurança, a saúde e os legítimos interesses económicos dos mesmos.

O desenvolvimento do direito à saúde dos consumidores na regulamentação do consumo centrou-se na proteção da saúde física. Assim se pode observar nos artigos 3.º, alínea b), 5.º e 10.º, alínea a), da Lei de defesa do consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 , de Julho); e nos artigos 8.1.a, 11, 14, 15 e outros do Texto Reunido da Lei Geral para a Defesa dos Consumidores e Utilizadores (Real Decreto Legislativo 1/2007, de 16 de novembro). Tanto a regulamentação portuguesa como a espanhola utilizam sempre a dupla «saúde e segurança». O caso da regulamentação portuguesa é ainda mais claro, uma vez que fala de «saúde e segurança física» e não apenas de «saúde», como a norma espanhola.

A vertente psicológica do direito à saúde dos consumidores é pouco explorada. Em 2023, o Parlamento Europeu publicou um relatório em que sublinha a necessidade de proteger tanto a saúde física como a saúde mental (p. 3, alínea C). Este relatório salienta igualmente que «a tecnologia digital pode trazer benefícios importantes ao ligar zonas remotas e proporcionar meios acessíveis e económicos de apoio psicológico, mas que, ao mesmo tempo, a omnipresença dos smartphones e das tecnologias digitais, como as aplicações móveis e as redes sociais, representa um risco para a saúde mental e o isolamento social». No entanto, o texto centra-se fundamentalmente nas consequências do uso excessivo das tecnologias digitais, especialmente na população jovem e infantil. Embora seja verdade que as chamadas falsas não seriam possíveis sem o uso das tecnologias digitais atuais, não estamos a falar exatamente da mesma coisa. De qualquer forma, a proteção e a promoção da saúde mental são uma preocupação da Comissão Europeia, como demonstram os documentos emitidos desde 2023 sobre uma abordagem integral da saúde mental na UE. É de salientar, no entanto, que esses documentos não fazem referência explícita à saúde mental dos consumidores.

Não consegui encontrar decisões judiciais em Espanha ou Portugal, nem no Tribunal de Justiça da UE, que tratem da vertente psicológica do direito à saúde dos consumidores. No entanto, é importante lembrar que «saúde» é o «estado do indivíduo em que as funções orgânicas, físicas e mentais decorrem com normalidade». Neste termo, o Dicionário da Língua Portuguesa é mais preciso do que o Dicionário da Real Academia da Língua Espanhola, que define «saúde» como o «estado em que o ser orgânico exerce normalmente todas as suas funções», mas sem fazer referência expressa às funções orgânicas, físicas e mentais. Nesse sentido, parece razoável e coerente com a crescente preocupação da UE com a promoção e o cuidado da saúde mental preencher uma lacuna importante na aplicação da nossa regulamentação de consumo: os consumidores têm direito à saúde e à segurança, não apenas física, mas também mental.

Fora do âmbito do direito do consumo, os danos psicológicos são reconhecidos como danos não patrimoniais, tanto em Portugal como em Espanha. Em Portugal, o artigo 70.º do Código Civil estabelece que «a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral», o que é posteriormente complementado pelos critérios de compensação de danos não patrimoniais (art. 464.º) e de cálculo da indemnização (art. 564.º). Um critério semelhante é seguido em Espanha, neste caso apoiado nos artigos 1902.º e 1103.º a 1107.º do Código Civil. Os danos psicológicos são geralmente considerados como uma categoria específica de danos morais; no entanto, considero oportuno salientar o seguinte:

– Os danos morais visam compensar o sofrimento (pretium doloris, de acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Espanha de 31 de maio de 2000), mas esse sofrimento não tem necessariamente de estar associado a uma doença psicológica (acórdão do Supremo Tribunal de Espanha de 16 de junho de 2016). Tanto é assim que o Tribunal de Justiça da UE reconheceu em várias sentenças que o medo da utilização indevida de dados pessoais após o incumprimento do RGPD constitui um dano moral indemnizável no âmbito do artigo 82.º do RGPD.

– Os danos psicológicos estão associados a uma doença psicológica, normalmente derivada de alguma circunstância traumática ou de um sofrimento. São, deste ponto de vista, danos relativos à saúde.

Para efeitos práticos, o importante é que existe uma prática consolidada de compensar o sofrimento (esteja ou não associado a uma doença psicológica) como dano moral. No entanto, para efeitos do objetivo destas reflexões, penso que é importante salientar que, neste momento, a via fundamental de proteção dos danos à saúde psicológica dos consumidores (questão que faz parte da proteção do seu direito à saúde) não se encontra nas normas de consumo, mas nas normas gerais do direito civil sobre indemnização por danos não patrimoniais.

Ações coletivas em defesa do direito à saúde psicológica dos consumidores?

Esta falta de critérios claros na regulamentação e, naturalmente, ainda mais na jurisprudência, deixa desprotegida metade do conteúdo do direito à saúde dos consumidores, se lembrarmos que, de acordo com o Parlamento Europeu, a saúde física e a saúde mental devem ser tratadas de forma igualitária.

Acrescentemos a tudo isso uma última questão: e a saúde pública psicológica?

Utilizo, emprestadas, as palavras de Ana Rita Fontes Pinto na sua dissertação “A responsabilidade civil pela perturbação psicológica (emotional distress) causada pelos meios de comunicação social”:

«O abalo psicológico que os meios de comunicação social podem provocar no ser humano é inquestionável, tomemos como exemplo a pandemia. Quanta ansiedade e stress foram causados à população pela imensidão de notícias minuto a minuto com atualizações sobre as mortes, internamentos, números de infetados?»

A reflexão, muito oportuna, sobre um dano coletivo à saúde psicológica refere-se à atuação dos meios de comunicação social durante a pandemia. Sem pretender equiparar o stress causado pelos meios de comunicação e redes sociais nos meses mais críticos (nem muito menos entrar na sua ponderação com o dever de informação e a liberdade de expressão), cabe questionar se 137 milhões de chamadas falsas por dia podem estar a causar danos coletivos à saúde psicológica dos consumidores.

Se chegarmos à conclusão de que sim (eu acredito que sim), talvez a ação coletiva contra as empresas responsáveis por essa abundância de chamadas falsas por danos psicológicos coletivos possa ser uma forma de defesa dos consumidores. Para saber mais sobre a ação coletiva, consulte o post de Leonor Gambôa Machado, publicado na semana passada.

Ações Coletivas de Consumidores: Nova Era de Defesa

Doutrina

Louis Brandeis, ex-juiz do Supreme Court dos Estados Unidos da América e defensor ativo da justiça social, dos direitos dos consumidores e da responsabilidade corporativa, conhecido por “the people’s Lawyer”, em determinado momento referiu que “[o] cargo político mais importante é o de cidadão comum”.

Brandeis foi um dos primeiros juristas a denunciar abusos das grandes empresas e a defender o direito dos consumidores à informação e à proteção contra práticas abusivas. Este juiz defendia que o envolvimento individual era crucial para garantir uma democracia saudável e justa e, talvez fruto desse contexto, surgem, mais tarde, as ações coletivas de consumidores.

As referidas ações permitem a defesa conjunta de direitos ou interesses homogéneos de um grupo de consumidores, sendo um instrumento jurídico importante de garantia de direitos e tutela efetiva e dissuasora das infrações ao direito do consumo.

Em Portugal, as ações coletivas surgem pela primeira vez na Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 52.º, n.º 3, al. a) sendo posteriormente consagradas na Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, que regula o direito de participação procedimental e de ação popular, abrangendo diversos interesses, entre eles o relativo ao consumo de bens e serviços.

A mencionada Lei consagra um regime de representação processual por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, em que o autor representa todos os demais titulares dos interesses em causa que não tenham exercido o direito de autoexclusão (opt-out). A Lei prevê ainda um regime especial de custas, de recolha de provas e de responsabilidade civil e penal.

Este regime nacional foi complementado pelo Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2020/1828 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020, relativa a ações coletivas para proteção dos interesses coletivos dos consumidores.  Esta diretiva visa harmonizar e reforçar os meios processuais para proteção dos interesses coletivos dos consumidores na União Europeia, assegurando a existência de, pelo menos, um mecanismo processual de ação coletiva eficaz e eficiente em todos os Estados-Membros.

O Decreto-Lei n.º 114-A/2023 trouxe mudanças significativas para as ações coletivas no âmbito do direito do consumo em Portugal, alinhando a legislação nacional com a Diretiva (UE) 2020/1828. Entre as principais novidades, destacam-se critérios mais rigorosos para associações e fundações que pretendam representar consumidores em tribunal, exigindo independência, transparência no financiamento e ausência de conflitos de interesses. A Direção-Geral do Consumidor assume um papel central, sendo responsável pela designação das entidades qualificadas e pela comunicação com a Comissão Europeia e outros Estados-Membros.

Outra inovação importante é a possibilidade de entidades estrangeiras, reconhecidas noutros países da União Europeia, intentarem ações coletivas em Portugal, e vice-versa. Para proteger consumidores não residentes, o regime opt-in foi adotado, exigindo manifestação expressa de vontade para serem representados em processos transfronteiriços. O Decreto-Lei n.º 114-A/2023 também regula o financiamento por terceiros, impondo limites à remuneração dos financiadores e proibindo situações de dependência ou concorrência entre financiador e demandado.

Como já é apanágio da área do direito do consumo, o referido diploma incentiva a resolução extrajudicial de conflitos, obrigando a uma consulta prévia ao profissional antes de recorrer ao tribunal para medidas posteriores. Além disso, estabelece um regime especial de prescrição, facilitando o acesso dos consumidores à justiça ao interromper prazos enquanto decorrem as ações coletivas. Ademais, as regras sobre indemnizações foram clarificadas, prevendo critérios para identificação dos lesados, distribuição proporcional dos valores, assim como para destinação dos montantes não reclamados.

Por fim, o Decreto-Lei n.º 114-A/2023 reforça a transparência e a divulgação das ações coletivas, obrigando à publicação das decisões e à prestação de informações detalhadas tanto pelos demandantes como pela autoridade competente. Isenta, também, consumidores e associações de custas processuais e prevê sanções para incumprimento das decisões judiciais. Estas medidas visam tornar as ações coletivas mais acessíveis, eficazes e transparentes, promovendo uma maior proteção dos direitos dos consumidores em Portugal.

A jurisprudência recente tem vindo a ilustrar, de forma concreta, o impacto do Decreto-Lei n.º 114-A/2023 na prática das ações coletivas em Portugal, destacando-se algumas particularidades. No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de março de 2025, Processo n.º 5623/23.7T8BRG.S1 (Relatora: Catarina Serra), o tribunal valorizou a autonomia das ações populares face ao processo penal, sublinhando que o novo regime reforça a tramitação própria e a independência destas ações, mesmo quando envolvem ilícitos criminais ou contraordenacionais.  

Já no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2024, Processo n.º 607/24.0T8GMR.G1.S1 (Relator: Jorge Leal), foi dada especial atenção à legitimidade das associações de consumidores e à necessidade de concretização dos pedidos e da causa de pedir, em linha com as exigências de transparência e rigor introduzidas pelo novo diploma.  

Por sua vez, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30 de abril de 2025, Processo n.º 3106/23.4T8GMR.G2 (Relator: António Pereira), destacou a admissibilidade de pedidos de indemnização coletiva e a importância da correta identificação da entidade demandada, refletindo as preocupações do Decreto-Lei n.º 114-A/2023 quanto à clareza processual e à proteção efetiva dos lesados.  

Além disso, os tribunais têm aplicado as novas regras sobre a publicação das decisões, a gestão e distribuição das indemnizações e a necessidade de transparência e independência das entidades demandantes, como se observa nos pedidos e decisões que remetem para a designação de entidades responsáveis pela administração dos montantes devidos aos lesados.  O regime de financiamento por terceiros e a obrigatoriedade de consulta prévia ao profissional antes da propositura da ação também têm sido referidos como garantias adicionais de equilíbrio e boa-fé processual.  

Em suma, pelo que podemos interpretar da jurisprudência recente, parece-nos que o Decreto-Lei n.º 114-A/2023 já está a ser utilizado como um instrumento legislativo fundamental para a efetivação dos direitos dos consumidores, promovendo maior segurança jurídica, transparência e eficácia nas ações coletivas em Portugal.

Henry David Thoreau, no seu grande ensaio “Desobediência Civil” referia que “[j]amais haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que este venha a reconhecer o indivíduo como um poder mais alto e independente, do qual deriva todo seu próprio poder e autoridade, e o trate da maneira adequada”. Talvez as ações coletivas de consumidores, cada vez mais reguladas, possam vir a trazer resultados reais a este grupo de indivíduos e contribuir para o fortalecimento da sua posição perante o Estado e o mercado, promovendo uma efetiva proteção de seus direitos e interesses, ao mesmo tempo em que reafirmam o papel do indivíduo como fundamento e limite do poder coletivo.

Desafios da proteção do consumidor em Timor-Leste e o papel essencial a desempenhar pelas Universidades

Doutrina

Por João Fernandes Moreira (1)

O Direito do Consumo tem sido erigido em Timor-Leste por via de uma forte influência lusófona (e europeia), apesar da distância física que separa o seu território do velho continente europeu.

A ligação histórica, linguística, cultural e religiosa que une Portugal a Timor-Leste sobreviveu à ocupação da República da Indonésia entre 1975 e 1999 e, atualmente, apesar de todos os obstáculos existentes, o ordenamento jurídico timorense é composto por legislação totalmente redigida em língua portuguesa, sendo que apenas alguns diplomas são traduzidos oficialmente para a outra língua oficial do país (o tétum), observando-se o n.º 1 do artigo 13.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste. Perante uma eventual divergência entre os textos publicados, dá-se sempre prevalência à versão em língua portuguesa (cfr. n.º 3 do artigo 3.º da Lei n.º 1/2002, de 7 de agosto).

Contudo, sendo a língua portuguesa fluentemente falada por apenas 30% da população timorense (segundo os dados constantes nos Censos da População do ano de 2015), há uma forte limitação do efetivo conhecimento do Direito legislado em Timor-Leste. Verifica-se, assim, uma realidade assente na ideia de “Law in books, law in action”, expressão de Roscoe Pound, de 1910, colocando-se um problema de conhecimento e respeito da lei em vigor por parte dos membros da sociedade, seus destinatários.

A influência jurídica portuguesa no Direito do Consumo timorense não se manifesta só na Constituição, mas também em inúmeros diplomas infraconstitucionais, de natureza legal e administrativa, que foram sendo produzidos e publicados desde a independência em 2002. A Lei n.º 8/2016, de 8 de julho, a Lei de Proteção do Consumidor (LPC), é o principal diploma legal que estabelece as normas destinadas à defesa do consumidor em Timor-Leste. Uma lei emergente da consagração dos direitos dos consumidores no artigo 53.º da Constituição da República Democrática de Timor-Leste, que segue uma redação inspirada no artigo 60.º da homóloga Constituição portuguesa.

A LPC também não é exceção, tratando-se de um diploma legal que adotou uma redação similar à utilizada na Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, de Portugal, designadamente na sua 6.ª versão, após a entrada em vigor da Lei n.º 47/2014, de 28 de julho.

Apesar de seguir uma redação simples e clara, destinada a uma fácil interpretação, mesmo para um leitor que não tenha conhecimentos jurídicos, a LPC encontra a suas dificuldades de implementação prática em resultado do obstáculo do fraco conhecimento da língua portuguesa por parte da maioria da população timorense.

Tratando-se de um país em desenvolvimento, onde a literacia do consumo é muito diminuta, o consumidor médio de Timor-Leste assume uma posição de muito maior vulnerabilidade se comparado com o consumidor (sempre vulnerável) português ou europeu. Perante este facto, a LPC, na alínea c) do artigo 5.º e artigo 8.º, prevê o direito aos consumidores de acederem a um concreta formação e educação para o consumo, tendo em vista a realização da sua plena liberdade de escolha no mercado, em paralelo com a solução legal resultante da alínea c) do artigo 3.º e artigo 6.º da LDC portuguesa. Todavia, apesar da louvável intenção do legislador timorense, ao impor ao Estado a competência para “incentivar e promover a realização de ações de sensibilização para o consumo”, ditando, igualmente, este mesmo dever de formar os consumidores às associações de consumidores e aos serviços públicos de rádio e televisão, a experiência prática demonstra que os resultados têm sido muito limitados.

Perante este cenário, urge refletir sobre o papel fundamental que os estabelecimentos de ensino superior dos países em desenvolvimento, sobretudo as universidades públicas, podem, e devem, assumir na concretização deste direito à formação e educação do consumidor, enquanto concretização de atribuições de interesse público e coletivo do país. Apesar de a lei não mencionar expressamente os estabelecimentos de ensino superior, estas instituições, enquanto espaços de estudo e pensamento, têm as condições adequadas para trabalharem na materialização da defesa do consumidor, seguindo o exemplo do que se tem feito em muitas Universidades portuguesas.

Propõe-se a possível criação de uma nova unidade de investigação na Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL), a única universidade pública do país, destinada a trabalhar exclusivamente na área do Direito do Consumo em Timor-Leste. Observando o contexto de mercado do país, esta unidade iria contribuir para a formação dos primeiros especialistas e investigadores timorenses nesta área de conhecimento, realizar conferências e seminários de carácter internacional, bem como trabalhar conjuntamente com os serviços do Governo de Timor-Leste competentes nas matérias do direito do consumidor, para trabalhar na melhoria da qualidade da legislação em vigor no país. O atual desinteresse académico relativamente ao Direito do Consumo em Timor-Leste faz com que para a concretização efetiva desta ideia pareça necessário que uma iniciativa que provenha parceiros internacionais, designadamente oriundos de Portugal, como única forma de surgir o primeiro estímulo na criação de um projeto pioneiro para o estudo e investigação do Direito do Consumo timorense.

Face à insuficiente concretização da proteção do consumidor, as Universidades devem assumir um papel de destaque ao colmatar o vazio deixado pela inação das entidades legalmente incumbidas de promover o aumento da literacia de consumo, sendo que a esperança reside na possibilidade de haver uma futura cooperação académica com uma iniciativa proveniente de Portugal.

(1) Licenciado pela Faculdade de Direito do Porto. Técnico Superior da Direção de Assuntos Jurídicos da Reitoria da Universidade Nova de Lisboa.

Preços misteriosos e água gratuita: reflexões de uma viagem aos EUA

Doutrina

Viajar é conhecer outras culturas, outras realidades, outros hábitos, outras práticas. É perceber que, também no que respeita ao consumo, há diferenças legais e culturais relevantes.

Numa recente viagem aos EUA de férias, percebi que há algumas diferenças relevantes que me parece interessante partilhar. Num caso, as diferenças não colocam a realidade portuguesa num bom cenário, noutros o consumidor português encontra-se mais bem protegido. É importante notar que, nos EUA, existem diferenças muito significativas de Estado para Estado.

Começo pelos preços e pela sua indicação.

Na maioria das lojas de uma região da Flórida que visitei, o preço não se encontra afixado ou não é visível. Isto significa que o cliente não sabe, à partida, quanto é que tem de pagar para comprar a coisa.

Isso implica perguntar. E estar, por isso, em contacto com o representante da empresa, que assim já se apercebeu do interesse da pessoa e pode, com as técnicas que tiver, interagir, pressionar, convencer. Muitas vezes, não é apenas indicar o preço. É mostrar melhor essa e outras coisas, relevando as características que entender, que lhe parecerem melhores para que o consumidor decida comprar.

Além da omissão da indicação do preço, este, quando indicado ou transmitido, não é o preço final. Ainda é necessário acrescentar o imposto ou impostos sobre o consumo que forem aplicáveis. Assim, se um café custa dois dólares – e o café nunca custa apenas dois dólares –, o preço a pagar será sempre superior, e desconhecido sem contas incertas.

Os impostos dependem do estado, do município, da localidade, pelo que é sempre surpreendente o que nos é dito para pagar. Bem podemos querer gastar as últimas moedas que temos na carteira, bem contadas e ajustadas ao que escolhemos. No final, são mais uns cêntimos. E acabamos por sair com mais moedas do que aquelas com que entrámos.

Em restaurantes, há ainda a surpresa do serviço acrescentado ao valor da refeição. Nunca é certo o que será cobrado. Cinco por cento. Dezoito por cento. Vinte por cento. E ainda é muito apreciada uma gorjeta adicional.

Em Portugal, o cliente sabe sempre o que tem de pagar, incluindo o preço da coisa, os impostos e quaisquer outros valores incluídos no preço. O valor indicado tem de ser o valor total.

As empresas têm, assim, um custo acrescido associado à indicação do preço em cada contexto, em função das taxas aplicáveis. Num contexto, como o dos EUA, em que o imposto sobre o consumo pode variar de cidade para cidade, poderia ser realmente muito exigente obrigar a indicar o preço final em cada caso. Ainda assim, tal permitiria ao cliente tomar uma decisão mais esclarecida.

Imagem gerada por IA

Em sentido inverso, a água é realmente gratuita para o cliente. Pede-se água em qualquer restaurante, e vem água da torneira, fresquinha, reposta regularmente, sem qualquer custo. A não ser o custo da refeição, claro.

Bem sabemos, como aqui já se deixou escrito, que, em Portugal, o cliente também tem direito a copos de água gratuitos. No entanto, generalizou-se nos últimos tempos a prática de encher umas garrafinhas bonitas com água da torneira e cobrar por esse “serviço”. Em alguns casos, a água é apresentada como tratada, depurada, quem sabe benzida pelo Deus dos líquidos puros. Ainda que assim seja, esta parece ser apenas uma prática destinada a contornar a obrigação de fornecer copos de água gratuitos.

É certo que é uma prática relativamente sustentável, em comparação com a tradição portuguesa, uma vez que se evita a utilização de muitas garrafas de plástico. Cumpre-se um dos objetivos. Mas à custa dos direitos dos clientes.

Nos EUA, tal como aliás em muitos outros países, mesmo europeus, a prática é limpa, linear, comum. O cliente não se sente mal por pedir e beber água.

Mesmo de férias, o consumo não nos larga. E é uma boa oportunidade para pensarmos em diferentes realidades e nos aspetos positivos e negativas de outras práticas.

Sistemas de Recomendação, nudging e o Direito do Consumo

Doutrina

Sistemas de recomendação estão largamente empregados na experiência digital cotidiana dos consumidores — seja ao navegar por redes sociais, escolher um filme, fazer compras online ou interagir com conteúdos selecionados algorítmica e continuamente para si. Esses sistemas, largamente utilizados por plataformas digitais, podem influenciar de forma significativa as escolhas dos consumidores. Uma das técnicas mais recorrentes nesse contexto é o nudging — estratégia de design que orienta o comportamento por meio da forma como as opções são organizadas, apresentadas ou destacadas, sem, entretanto, eliminar totalmente a liberdade de escolha.

Determinados casos de nudging, no entanto, podem configurar os chamados dark patterns — práticas de design que, em vez de facilitar escolhas conscientes, acabam por comprometer a autonomia do usuário ao interferir de forma opaca ou desproporcional no seu processo decisório. Essas práticas podem explorar vieses cognitivos, ocultar ou desvalorizar opções relevantes, induzindo assim decisões que favorecem os objetivos comerciais da plataforma, em detrimento dos melhores interesses do consumidor. Em sistemas de recomendação, isso ocorre, por exemplo, quando o design favorece conteúdos que maximizam o tempo de permanência ou o consumo impulsivo, induzindo o utilizador a certas escolhas à sombra da transparência sobre os critérios subjacentes à personalização das recomendações.

Essa influência, portanto, nem sempre ocorre de forma positiva: certos casos de nudging podem, na prática, produzir efeitos intrusivos e indesejáveis. No entanto, cabe notar que uma mesma estratégia pode ser percebida de forma distinta por diferentes usuários, o que evidencia o quanto a fronteira entre influência legítima e manipulação pode ser difícil de definir na prática.

Ao reduzir o ônus decisório que recai sobre os consumidores e destacar certos caminhos de ação, o nudging pode facilitar a navegação e ser benéfico na medida em que contribui para enfrentar o problema da sobrecarga informacional. Porém, ao fazê-lo, pode também comprometer a tomada de decisões informadas, sobretudo quando não há um nível adequado de conhecimento ou consentimento por parte do consumidor. O problema, portanto, não está na técnica em si, mas no modo como ela é implementada e nos efeitos que produz sobre a autonomia individual.

Embora o AI Act não seja, em essência, um diploma voltado à proteção do consumidor, pode contribuir para esse objetivo ao proibir determinados sistemas de IA e estabelecer obrigações de transparência proporcionais ao grau de risco de outros, de acordo com critérios definidos no próprio regime. No caso dos sistemas de recomendação, exigências rigorosas no sentido de que os utilizadores sejam informados de maneira compreensível sobre a lógica e os principais parâmetros por detrás da personalização das recomendações podem esbarrar na questão da opacidade ainda inerente a muitos desses sistemas. Trata-se do conhecido problema da black box, que pode ser entendido, de forma simples, como a impossibilidade de explicar de maneira eficaz e compreensível a lógica por detrás do funcionamento desses sistemas.

Além disso, não se deve perder de vista que exigências excessivamente técnicas ou densas em termos de transparência podem gerar um efeito contrário ao pretendido, ao sobrecarregar o utilizador com informações que dificultam — em vez de facilitar — a tomada de decisão. Trata-se, ironicamente, de um obstáculo que os próprios sistemas de recomendação — frequentemente por meio de técnicas de nudging — buscam (ou deveriam buscar) minimizar.

O conceito emergente de bright patterns — estratégias de design que priorizam os interesses e a autonomia do consumidor — oferece uma pista de como o design algorítmico pode evoluir num sentido mais ético. Uma questão crucial, nesse cenário, consiste em traçar parâmetros que garantam que o nudging seja utilizado de forma mais adequada à salvaguarda dos direitos dos consumidores — especialmente no que toca à sua autonomia decisória. O AI Act, mesmo não sendo destinado à proteção do consumidor, pode desempenhar um papel de relevo ao pressionar por arquiteturas de escolha mais transparentes e alinhadas com os direitos desses agentes.

Assim, embora outros instrumentos — como, por exemplo, o regime das práticas comerciais desleais — ofereçam salvaguardas mais evidentes no campo da proteção do consumidor, é importante reconhecer o contributo indireto que o AI Act pode oferecer quando aplicado a sistemas de recomendação baseados em IA. Ao lado de outros regimes normativos, o AI Act ajuda a compor um quadro regulatório que requer ser interpretado de forma integrada. Essa leitura sistémica do Direito é essencial para enfrentar assimetrias estruturais entre consumidores e plataformas digitais, promovendo escolhas mais informadas, transparentes e compatíveis com seus direitos e legítimos interesses.