Uma nova era de responsabilidade civil extracontratual por danos causados por inteligência artificial

Legislação

À medida que a Inteligência Artificial (“IA”) continua a remodelar o nosso mundo, os criadores e utilizadores de sistemas IA enfrentam um cenário de responsabilidade civil em evolução. Neste post, vamos analisar a proposta de Diretiva de Responsabilidade por danos causados por IA (a AI Liability Directive – “AILD”) e explorar os seus elementos-chave relativamente ao regime de responsabilidade civil extracontratual que consagra.

Compreender a proposta AILD

Tal como explorámos numa publicação anterior, na UE, a responsabilidade extracontratual por danos causados pela IA funcionará num sistema de duas vias, sendo uma delas amplamente harmonizada, graças à proposta de Diretiva relativa à responsabilidade pelos produtos defeituosos (a Product Liability Directive – “PLD”). A outra via envolve um regime de responsabilidade em grande parte não harmonizado, composto pela AILD, que deixa uma margem de manobra substancial aos Estados-Membros, ao abrigo das regras do direito nacional em matéria de responsabilidade civil.

Suponhamos que um sistema de IA causa danos a um consumidor. De acordo com a proposta da PLD, esta situação envolve em regra responsabilidade objetiva, em que a parte lesada teria de provar o defeito do produto, o dano e o nexo de causalidade entre os dois. No caso particular de sistemas de IA, contudo, determinar o nexo de causalidade e o defeito pode ser uma tarefa complexa, razão pela qual a PLD consagra presunções de defeito, nexo de causalidade, ou ambos, para aliviar o ónus da prova para os consumidores.

Se o regime a aplicar for o da AILD, então a abordagem será diferente. Esta Diretiva centra-se principalmente em aspetos processuais, com o objetivo de harmonizar as regras para o acesso a informação e o ónus da prova quando se trata de responsabilidade extracontratual baseada na culpa por danos causados por sistemas IA. Por outras palavras, esta Diretiva procura harmonizar o regime processual de pedidos de responsabilidade civil, deixando os requisitos dessa responsabilidade (danos, culpa, nexo de causalidade, etc.) para os Estados-Membros regularem.

Âmbito de aplicação:

No que toca ao seu escopo, a Proposta AILD aplica-se a casos de responsabilidade civil extracontratual subjetiva, nos casos em que o dano é causado por um sistema de IA[1]. No entanto, a AILD não especifica quem pode estar sujeito a estas regras de responsabilidade. De facto, a proposta limita-se a incluir o conceito de “demandado” como a pessoa contra a qual é apresentado um pedido de indemnização. Isto alarga a sua aplicabilidade para além dos criadores, potencialmente abrangendo utilizadores profissionais e não profissionais e até os próprios consumidores.

No entanto, é relevante mencionar que, embora a proposta não defina quem pode ser responsável por danos, esta limita aqueles a quem as suas disposições se aplicam. Com efeito, o n.º 1 do artigo 3.º menciona potenciais demandados: fornecedores, utilizadores e fabricantes de produtos. Isto significa que os direitos e obrigações aqui consagrados estarão provavelmente vinculados aos atores definidos no Regulamento Inteligência Artificial.

Divulgação e acesso a informação:

Uma parte importante da proposta AILD é o artigo 3.º, que regula a divulgação e o acesso à informação no âmbito destes processos de responsabilidade civil. Esta disposição estabelece deveres específicos de divulgação para os potenciais demandantes quando confrontados com pedidos de indemnização decorrentes de danos causados por sistemas de IA de alto risco.

Para que um potencial requerente possa recorrer ao artigo 3.º do AILD, é necessário que:

  • o potencial requerente apresente factos e provas que apoiem a plausibilidade do seu pedido de indemnização (n.º 1, segundo parágrafo, do artigo 3.º);
  • o potencial requerido tenha recusado o acesso às informações necessárias, apesar de as ter à sua disposição (n.º 1, primeiro parágrafo, do artigo 3.º).

A proposta AILD exige que o potencial requerente adote todos os esforços razoáveis para obter os elementos de prova junto do potencial requerido antes de solicitar uma decisão judicial (n.º 2 do artigo 3.º). Se o potencial requerido não cumprir a ordem judicial de divulgação, as consequências são significativas, levando a uma presunção ilidível de incumprimento de um dever de diligência (n.º 5 do artigo 3.º). Esta presunção pode ser utilizada como presunção (ilidível) de um nexo de causalidade entre a culpa do requerido e o dano produzido pelo sistema de IA (n.º 1, alínea a), do artigo 4.º), como veremos mais adiante.

Eis o que isto significa na prática: Suponhamos que alguém sofre um dano devido a um sistema de IA de alto risco e decide apresentar uma queixa. De acordo com a proposta AILD, pode solicitar uma ordem judicial para que o potencial requerido revele provas e informações. No entanto, há uma condição essencial: o caso deve envolver sistemas de IA de alto risco, de acordo com a classificação do Regulamento Inteligência Artificial.

Ónus da prova:

A proposta AILD contém duas presunções significativas que ajudam a aliviar o ónus da prova dos requerentes:

  • O n.º 5 do artigo 3.º cria a presunção de incumprimento de um dever de diligência, que descrevemos acima, e
  • O artigo 4.º trata da causalidade entre a culpa do requerido e o resultado do sistema de IA.

Estas presunções são componentes cruciais da proposta AILD, simplificando o processo de determinação da responsabilidade nos casos de responsabilidade por danos que envolvam IA. De facto, pode ser muitas vezes difícil determinar as características exatas dos modelos de IA que foram mais relevantes para o resultado. Para fazer face a este risco de opacidade, o artigo 4.º da proposta AILD introduz uma presunção ilidível. Esta presunção refere-se especificamente ao nexo de causalidade entre a culpa, que deve incluir, pelo menos, a violação de um dever de diligência, e o resultado produzido pelo sistema.

Nesse sentido, para se valer desta presunção, o requerente deve demonstrar com êxito os seguintes elementos (artigo 4.º, n.º 2):

  • o requerente demonstrou ou o tribunal presumiu a culpa do requerido, devido ao incumprimento do dever de diligência previsto acima[2] ;
  • pode ser considerado razoavelmente provável, com base nas circunstâncias do caso, que a falha tenha influenciado o resultado produzido pelo sistema de IA ou a incapacidade do sistema de IA para produzir um resultado;
  • o requerente demonstrou que o resultado produzido pelo sistema de IA ou a falha do sistema de IA em produzir um resultado deu origem ao dano.

É importante notar que esta presunção não abrange a determinação da culpa em si, a existência – ou inexistência – de uma ação por parte da IA, a existência e o âmbito do dano, ou o nexo de causalidade entre a ação da IA e o dano. Ademais, ao contrário do artigo 3.º, o artigo 4.º não limita o seu âmbito de aplicação aos sistemas de IA de alto risco, abrangendo assim todos os sistemas de IA. Na verdade, define mesmo no n.º 5 que se o pedido de indemnização visar um sistema de IA que não seja de alto risco, a presunção estabelecida no n.º 1 só se aplica se o tribunal nacional considerar excessivamente difícil para o requerente provar o nexo de causalidade aí mencionado.

A proposta AILD não oferece, no entanto, uma definição de culpa, deixando ao critério dos Estados-Membros a forma como a definem nos seus sistemas jurídicos. Esta abordagem proporciona flexibilidade aos países para adaptarem o conceito de culpa aos seus quadros jurídicos atuais. No entanto, também implica que os criadores de sistemas de IA têm de ter em atenção a forma como o conceito é interpretado na jurisdição em que os seus sistemas são utilizados.

Comentários sobre a proposta da AILD

Nesta secção, aprofundamos considerações específicas e potenciais desafios relacionados com a AILD. A compreensão dessas nuances ajudará os criadores de sistemas de IA e consumidores a navegar em matérias de responsabilidade por danos causados por IA com maior confiança.

O primeiro aspeto importante a abordar é transposição de categorias de sistemas de IA (ex. sistemas de alto risco) do Regulamento Inteligência Artificial para a Proposta AILD, como feito no artigo 3.º desta. A categoria de alto risco definida pelo Regulamento Inteligência Artificial pode nem sempre se alinhar perfeitamente com aquilo que seria expectável de um regime processual harmonizado em termos de responsabilidade por danos causados por sistemas de IA. Este desalinhamento pode resultar em situações onde sistemas não são incluídos neste regime, quando deviam, e vice-versa.

Por exemplo, existem sistemas de IA que não são classificados como de alto risco e que podem ainda assim causar danos significativos aos indivíduos, mesmo que não apresentem o mesmo nível de risco para a sociedade em geral. É neste sentido que, por exemplo, a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados sugeriu alterar tanto o mecanismo de divulgação de informação como a presunção do artigo 4.º para que sejam desligados da definição de sistemas de alto risco e se apliquem a todos os sistemas de IA.

Por outro lado, ao centrar-se nos sistemas de alto risco, a AILD parece ignorar os sistemas que são considerados proibidos ao abrigo do Regulamento Inteligência Artificial. Tendo em conta os efeitos especialmente negativos que estes sistemas acarretam, a proposta AILD deve ser atualizada de modo a abranger os danos infligidos pela sua utilização. Atualmente, a proposta não aborda explicitamente estas situações. Esta falha cria potenciais ambiguidades e incertezas quanto à responsabilidade dos criadores e utilizadores de sistemas de IA proibidos. Por último, a prova de falhas em sistemas de IA representa um desafio substancial para as pessoas lesadas por sistemas de IA. Este desafio decorre das complexidades dos modelos em causa, em especial quando se trata de revelar quais as características que influenciaram significativamente o resultado produtor do dano. Assim, mesmo com os desenvolvimentos processuais trazidos pelo AILD, ao não se regular em concreto a definição de culpa, eventuais lesados terão ainda de provar elementos como dolo ou negligência do demandado, o que pode ser particularmente difícil.


[1] De acordo com a definição de IA adotada no Regulamento Inteligência Artificial, ainda em processo legislativo.

[2] O artigo 4.º do AILD consagra outros requisitos que obrigam o requerente a provar que o dever de diligência foi violado, quando se trata de sistemas de IA de alto risco, relacionados com o incumprimento das obrigações consagradas no Regulamento Inteligência Artificial.

Crédito ao consumo, avaliação da solvabilidade e esquecimento oncológico à luz da Diretiva 2225/2023

Doutrina

No dia 18 de outubro de 2023, foi adotada a nova Diretiva 2225/2023 relativa aos Contratos de Crédito aos Consumidores (DCCC). O diploma é o resultado de um debate no seio das instituições europeias para atualizar a anterior Diretiva do Crédito aos Consumidores (de 2008), que resultou na publicação, em 2021, da Proposta de Diretiva relativa aos Contratos de Crédito aos Consumidores.

A avaliação da solvabilidade (ou credit scoring) pode ser definida como o tratamento de dados sobre o potencial consumidor pelo credor no contexto de um contrato de crédito, a fim de avaliar a sua solvabilidade e quantificar o risco de crédito. Por outras palavras, o risco de não pagamento por parte do consumidor devido à sua falta de solvabilidade antes da concessão do crédito ou durante a sua vigência.

Antes de entrarmos na avaliação da solvabilidade tal como regulada no DCCC, convém recordar que estamos perante uma Diretiva, ainda que de harmonização total. De acordo com o artigo 48.º do DCCC, o prazo para a transposição desta Diretiva é 20 de novembro de 2025, sendo as regras nacionais de transposição aplicáveis a partir de 20 de novembro de 2026. Só se não for transposto para o direito nacional é que o texto em apreço produzirá efeitos diretos. Tudo isto faz com que as reflexões publicadas sobre a recém-publicada DCCC sejam extremamente oportunas, na medida em que o seu articulado se encontra pendente de transposição nacional nos próximos dois anos. O Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, apenas menciona a obrigação do mutuante de avaliar a solvabilidade do candidato, mas não com o pormenor regulamentado pelo DCCC.

Tanto na Proposta de Diretiva como na versão finalmente publicada da Diretiva, a avaliação da solvência ganhou importância em comparação com a Diretiva de 2008, que apenas menciona esta questão três vezes. A avaliação da solvência tornou-se muito importante, especialmente após a crise de 2008, que foi causada, entre outros fatores, por um sobreendividamento da população. É por isso que a nova DCCC se preocupa em promover práticas responsáveis no mercado do crédito, entre as quais a avaliação da solvabilidade prévia efetuada no interesse do consumidor. O considerando 53 da DCCC estabelece que os Estados-Membros devem adotar medidas adequadas para promover práticas responsáveis em todas as fases da relação de crédito, tais como avisos sobre os riscos em caso de não pagamento ou de sobreendividamento. Mais adiante, o mesmo considerando refere que os mutuantes devem ser responsáveis pelo controlo individual da solvabilidade do consumidor.

A avaliação da solvabilidade está regulamentada nos artigos 18º e 19º da DCCC, que devem ser interpretados em conformidade com os considerandos 53 a 57 da DCCC.

Nos termos do n.º 1 do artigo 18.º da DCCC, os Estados-Membros devem exigir que o mutuante efetue uma avaliação aprofundada da solvabilidade do consumidor antes de celebrar um contrato de crédito. A avaliação da solvabilidade é uma condição prévia essencial para a concessão do crédito e deve ser efetuada de acordo com três critérios orientadores: (1) deve ser efetuada no interesse do consumidor; (2) deve ter por objetivo evitar práticas de empréstimo irresponsáveis e o sobreendividamento; e (3) deve ter devidamente em conta os fatores relevantes para verificar as perspetivas de cumprimento pelo consumidor das obrigações decorrentes do contrato de crédito.

De acordo com o considerando 54 do DCCC, é essencial que a capacidade e a vontade do consumidor de reembolsar o crédito sejam avaliadas e testadas antes da celebração do contrato de crédito. Esta avaliação é tão fundamental que o crédito só deve ser concedido ao consumidor se o resultado da avaliação da solvabilidade indicar que as obrigações decorrentes do contrato de crédito são suscetíveis de serem cumpridas em conformidade com os termos do contrato de crédito (55 DCCC). O n.º 6 do artigo 18.º da DCCC retoma este critério, mas remete para os regulamentos nacionais de transposição da DCCC a obrigação dos Estados-Membros de assegurarem o seu cumprimento. Por conseguinte, será fundamental conhecer a evolução das legislações nacionais no que diz respeito aos efeitos da avaliação da solvabilidade do consumidor.

Embora uma avaliação positiva da solvabilidade seja um requisito prévio para a concessão de crédito, uma avaliação positiva não obriga o mutuante a conceder o crédito (considerando 54 DCCC), sem prejuízo do dever do mutuante de informar o requerente dos critérios e dados utilizados na avaliação da solvabilidade e de lhe permitir solicitar uma revisão da avaliação (considerando 56 DCCC in fine).

O último dos requisitos do artigo 18.º, n.º 1 do DCCC, tendo em conta os fatores relevantes para verificar as perspetivas de cumprimento, condiciona a informação que pode ser tratada para a avaliação da solvabilidade: devem ser avaliados todos os fatores necessários e relevantes que possam influenciar a capacidade de o consumidor reembolsar o crédito.

O n.º 2 do artigo 18.º do DCCC clarifica este critério. Devem ser tidas em conta (1) informações pertinentes e precisas sobre os rendimentos e as despesas do consumidor; bem como (2) informações sobre “outras circunstâncias”, financeiras e económicas, necessárias e proporcionais à natureza, à duração, ao valor e aos riscos do crédito. O primeiro dos elementos a avaliar, o extrato de contas do requerente de crédito, é pouco interpretativo e deve ser fornecido de forma completa e atualizada em todos os casos de pedido de crédito ao consumo. O segundo, em contrapartida, deverá ser ajustado em cada caso em função das características do crédito solicitado (natureza, duração, valor e riscos): pode entender-se que quanto maior for a duração, o valor e os riscos do crédito, mais abundantes e precisas deverão ser as informações sobre o consumidor que solicita o crédito.

Mas que informações? O n.º 2 do artigo 18.º do DCCC inclui uma lista aberta de dados que podem ser avaliados: dados sobre os rendimentos ou outras fontes de reembolso, informações sobre ativos e passivos financeiros ou informações sobre outros compromissos financeiros. A própria redação do artigo deixa claro que podem ser fornecidos outros dados relativos à “situação financeira e económica” do consumidor não incluídos na lista. A delimitação das informações que podem ser avaliadas na avaliação de solvabilidade, juntamente com o objetivo da avaliação de solvabilidade, delimita a concretização do princípio da minimização dos dados neste domínio.

A proibição do tratamento de dados relativos às doenças oncológicas do requerente é coerente com a Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2022, sobre o reforço da Europa na luta contra o cancro, que “apela à integração na legislação pertinente da União do direito a ser esquecido para os sobreviventes de cancro, a fim de evitar a discriminação e melhorar o seu acesso aos serviços financeiros”. Países como a França, os Países Baixos, a Bélgica e o Luxemburgo foram pioneiros na conceção de tais medidas. Portugal publicou, em 2021, a Lei n.º 75/2021, de 18 de novembro, que reforça o acesso ao crédito e aos contratos de seguro por parte das pessoas que tenham superado ou atenuado situações de risco agravado de saúde (não apenas cancro), proibindo práticas discriminatórias contra as mesmas. No que respeita ao tratamento de dados no âmbito da avaliação da solvabilidade, o artigo 2.º desta lei proíbe a utilização, pelas instituições de crédito ou seguradoras, de qualquer tipo de informação de saúde relativa a uma situação clínica que origine um risco grave.

É também interessante notar, no que diz respeito às informações que devem consubstanciar a avaliação da solvabilidade, o disposto no n.º 11 do artigo 18.º do DCCC: a avaliação da solvabilidade não deve basear-se apenas no historial creditício do consumidor. Por outras palavras, a avaliação da solvabilidade não pode basear-se apenas nos dados negativos ou de insolvência do consumidor, mas deve integrar outros dados (positivos) que permitam obter um perfil completo do historial financeiro do consumidor. Esta possibilidade representa um passo em frente relativamente ao disposto no artigo 20.º da lei espanhola relativa à proteção de dados, quanto aos sistemas de informação de crédito, segundo o qual “presume-se lícito o tratamento de dados pessoais relativos ao incumprimento de obrigações pecuniárias, financeiras ou creditícias por parte dos sistemas comuns de informação de crédito”, desde que se verifiquem determinadas condições.

É de notar que grande parte da informação que alimenta a avaliação da solvabilidade será fornecida pelos próprios requerentes, que devem ser honestos e fornecer informações completas, exatas e relevantes (cf. n.º 7 do artigo 18.º do DCCC). Tal não significa que os requerentes consintam no tratamento dos seus dados para efeitos da avaliação da solvabilidade, mas que cumprem um ónus, tal como o mutuante, de avaliar a solvabilidade do requerente de crédito. Isto significa que a base legítima para o tratamento de dados é o cumprimento de uma obrigação legal (artigo 6.º, n.º 1, alínea c), do RGPD): tanto no caso dos dados fornecidos pelo requerente consumidor como dos dados obtidos pelo mutuante por sua própria conta.

Os dois primeiros requisitos do n.º 1 do artigo 18.º do DCCC são os princípios orientadores de qualquer avaliação da solvabilidade. O objetivo da avaliação da solvabilidade é evitar o sobreendividamento e as práticas irresponsáveis de concessão de crédito aos consumidores. Esta situação prejudica tanto o mercado de crédito como os consumidores, pelo que se coloca a questão de saber se o objetivo do controlo do sobreendividamento é preservar o bom funcionamento do mercado ou a qualidade de vida dos consumidores. A resposta, no caso da DCCC, é clara: tanto o n.º 1 do artigo 18.º como o artigo 54.º estabelecem que a avaliação da solvabilidade deve ser efetuada “no interesse do consumidor”. Por conseguinte, a finalidade do tratamento de dados no caso da avaliação da solvabilidade será a seguinte: tratamento de dados para avaliação da solvabilidade, para prevenção do sobreendividamento e de práticas de empréstimo irresponsáveis, a fim de evitar que prejudiquem a qualidade de vida dos consumidores.

Os procedimentos de avaliação da solvabilidade devem ser transparentes e devidamente documentados, em conformidade com o n.º 4 do artigo 18.º. Um procedimento de avaliação deficiente não deve ser utilizado pelo mutuante para alterar as condições do contrato em detrimento do consumidor. A especificação destas duas obrigações será deixada a cargo da regulamentação de cada Estado-Membro.

Sempre que a avaliação da solvabilidade envolva o tratamento automatizado de dados pessoais (pontuação de crédito), o consumidor requerente deve poder solicitar e obter a intervenção humana do mutuante para: (1) explicar, de forma clara e compreensível, a avaliação de crédito, incluindo a sua fundamentação, riscos, significado e efeitos na decisão de crédito; (2) permitir que o consumidor exprima os seus pontos de vista ao mutuante e, se o considerar adequado, (3) solicitar uma revisão da avaliação de crédito e da decisão de crédito. Esta obrigação é coerente com o artigo 22.º do RGPD, nos termos do qual todas as pessoas em causa têm o direito de não ficar sujeitas a uma decisão baseada exclusivamente no tratamento automatizado de dados, incluindo a definição de perfis, que produza efeitos na sua esfera jurídica ou que a afete significativamente de forma similar (como um perfil de solvabilidade), salvo determinadas exceções previstas no n.º 2 do artigo 22.º.

Por último, o artigo 19.º do DCCC estabelece determinadas disposições relativas às bases de dados (públicas e privadas – n.º 3 do artigo 19.º do DCCC) que podem ser consultadas pelos mutuantes em caso de crédito transfronteiriço. Está prevista a obrigação de cada Estado-Membro garantir que os mutuantes de outros Estados-Membros possam aceder às bases de dados utilizadas no seu território para a avaliação da solvabilidade dos consumidores em condições não discriminatórias (n.º 1 do artigo 19.º do DCCC), desde que os mutuantes estejam sob o controlo da autoridade nacional competente e cumpram o RGPD. No que diz respeito a este trabalho, as bases de dados devem conter, pelo menos, dados negativos de solvabilidade (n.º 4 do artigo 19.º do RGPD), não devem tratar categorias especiais de dados ou dados obtidos a partir de redes sociais (n.º 5 do artigo 19.º do RGPD) e as suas informações devem ser atualizadas e exatas (n.º 7 do artigo 19.º do RGPD). Quando a recusa de um pedido de crédito se basear na consulta de uma base de dados, o mutuante deve informar o consumidor, gratuitamente e sem demora, do conteúdo e dos pormenores da consulta e das categorias de dados tidos em conta (artigo 19.º, n.º 6, do DCCC).

A step backwards from the European Union in Consumer ADR?

Legislação

On 17 October 2023, the European Commission presented a set of proposals and recommendations to revise the legal framework for the consumer alternative dispute resolution (CADR), which includes the following main documents:

Proposal for a Regulation of the European Parliament and of the Council repealing Regulation (EU) No 524/2013 and amending Regulations (EU) 2017/2394 and (EU) 2018/1724 with regards to the discontinuation of the European ODR Platform;

– Proposal for a Directive of the European Parliament and of the Council amending Directive 2013/11/EU on alternative dispute resolution for consumer disputes, as well as Directives (EU) 2015/2302, (EU) 2019/2161 and (EU) 2020/1828;

– Commission Recommendation (EU) 2023/2211 of 17 October 2023 on quality requirements for dispute resolution procedures offered by online marketplaces and Union trade associations.

The Report from the Commission to the European Parliament, the Council and the European Economic and Social Committee on the application of Directive 2013/11/EU of the European Parliament and of the Council on alternative dispute resolution for consumer disputes and Regulation (EU) No 524/2013 of the European Parliament and of the Council on online dispute resolution for consumer disputes has also been made public as a supporting document.

Overall, although several provisions may represent a step forward in the field of CADR, the European Union plans to take a significant step backwards in this area, at least in comparison with the 2013 legislative package.

So far, it was possible to identify three different phases in the evolution of the EU policy on ADR:

– First phase – Identification of the problem and adoption of non-binding instruments;

– Second phase – Adoption of binding instruments with a sectoral impact, applicable to all means of ADR or to means of CADR on specific issues;

– Third phase – Adoption of binding CADR instruments.

We are probably now heading towards a fourth phase of slowdown and disinvestment in this field.

Obviously, the European Commission does not present the legislative package adopted for discussion in this light. One can, however, easily see a clear trend in this direction.

Given the substantial differences between the Member States in terms of models and commitment to CADR, the solution is justified. Although I believe that alternative dispute resolution is the right way forward in this and other areas, I admit that the role of the European Union could be reduced by helping the Member States to implement the mechanisms they deem appropriate and, if possible, by financially supporting the organisations that resolve disputes.

The following is an analysis of the eight main aspects in which this legislative package, in particular the Proposal for a Directive, is innovative[1].

  • Discontinuation of the European ODR Platform

In an article published in 2016[2], Joana Campos Carvalho and I had already predicted that the sad end of the platform would be in sight if significant changes were not made to the system provided for in Regulation (EU) No 524/2013 and some of its provisions. The number of cases was already low then and, over the years, it certainly has not increased.

Three main problems were identified.

Firstly, the lack of information about the existence of the platform. Although it was rightly required that the trader informed the consumer about the platform, nothing was done to ensure that this information was actually provided in a way that was easily accessible to the consumer. We therefore proposed the creation of a EU logo, which would have to be displayed on the homepage of the trader. Without information, both consumers and professionals are unlikely to take part in the project.

Secondly, the platform had very little flexibility and was not in line with some of the most successful national CADR systems. In fact, in cases where CADR is imposed on traders by national legislation, the platform had no mechanism to allow the process to move forward without the cooperation of the trader. If the CADR is imposed on them, the platform could never allow the trader to block the continuation of the process.

Thirdly, the Regulation was distrustful of CADR entities, not allowing them to contact the trader directly to convince them of the advantages of CADR before deciding whether or not to accept the procedure.

In practical terms, the shutdown of the platform will have very little impact on CADR, since it has always had very little use over the last ten years.

However, from a symbolic point of view, it is a landmark step in the EU’s policy and the main reason for the conclusion that the European institutions have clearly disinvested in this area. Nevertheless, the courage to back down from a solution that has not worked is to be commended.

  • Duties to inform and respond

The Proposal for a Directive removes the duty of the trader to inform the consumer about the CADR if they are not bound to take part in a CADR procedure.

Whilst it is true that traders have an excessive number of information duties resulting from EU legislation (in many cases, on top of those resulting from purely national rules), it is nonetheless symbolic that the aim of reducing bureaucracy and the associated costs comes at the cost of a rule in such a relevant area.

This information had one objective: to make the CADR known to consumers. If the information is no longer provided, the likelihood of consumers knowing about the system and realising whether the trader is bound by it decreases dramatically.

It can be said that this is a cost rationalisation measure for businesses, which may well be justified, but it cannot be said that it will encourage greater participation in the CADR.

On the other hand, it is now compulsory for the trader to reply to the CADR entity within a maximum of 20 days. The response can be to participate or not participate in the procedure, in cases where it is not binding under national law, but the trader cannot fail to respond.

The effectiveness of this measure will essentially depend on the consequences envisaged internally in the event of a lack of response.

In terms of information duties, the simplification of procedures for CADR entities should be emphasised. This measure is positive, as some of these entities are more like centres of bureaucracy than of dispute resolution. It is strange, however, that there is no longer a requirement to report on the training of the individuals who manage the CADR procedures. This training is very important for the quality of the system, and it is anticipated that removing this duty to report could have the effect of reducing training time and, consequently, reducing the quality of the procedures.

  • Extended scope of application

The scope of application of the Directive is extended to include non-contractual consumer relationships, particularly as regards the pre-contractual phase, and legal obligations.

This is a step in the right direction, although I think it would be preferable to extend the scope of application to all consumer disputes, possibly excluding only those that it would not be appropriate to resolve through ADR. I find it difficult to specify which disputes would be excluded from the scope of the Directive if the path I suggest were to be followed, which demonstrates the advantages of the extension.

  • Bundling similar cases

In order to make the system more flexible and procedures more efficient, it is now possible to bundle similar cases involving the same trader.

I think we could go a little further and allow, in some situations, with the authorisation of the parties involved, the bundling of similar cases even if two or more different traders are involved.

  • Prior contact with the CADR entity

The CADR bodies will still be able to refuse to deal with a dispute on the grounds that the consumer did not first try to contact the trader to resolve the dispute.

However, if the amendment is approved, the Directive will provide that CADR bodies may not impose disproportionate conditions in this regard. Recital (12) gives two examples: (i) “the obligation to use the company escalation system after a first negative contact with the complaints handling service” and “the obligation to prove that a specific part of a company’s after sales service was contacted”.

  • Disputes with traders established outside the European Union

The Proposal for a Directive clarifies that the ADR entities must handle disputes in cases where the consumer is a resident of the Member State in question and the trader is based in a country outside the European Union.

This is a good solution, although attention is drawn to the difficulty, in many of these cases, of contacting the trader and, if necessary, managing the procedure, including for linguistic reasons.

  • Accessibility

Article 5-2 of the Proposal for a Directive expressly provides that (i) consumers may submit the complaint and access the paper file at their request, (ii) that tools relating to digital procedures are “easily accessible and inclusive” and that, (iii) in the event that the procedure is automated, the parties are granted a right to a review of the decision by a natural person.

The rationale for providing for these rights is understandable, although it should be emphasised that these are burdens that can be significant in practice for CADR entities.

  • CADR contact point

One of the main innovations introduced by the Directive is the creation of a CADR contact point, which must be designated in each Member State, to assist consumers and traders.

Member States will have to make a first decision in this regard: will the CADR contact point be competent only for cross-border disputes or also for domestic disputes?

This question may be relevant to answering the second one: who should be the CADR contact point in each Member State?

The rule points to a preference for the contact point to operate in the European Consumer Centre, but this will probably only make sense in two cases: (i) the contact point is only intended to assist in cross-border disputes; (ii) the European Consumer Centre of the Member State concerned has powers extended to domestic disputes.

In any case, the success of this measure will essentially depend on its practical application. A contact point that effectively provides assistance to consumers and traders can add value to the system, helping to fulfil the objective of increasing access to the ADR network.


[1] Issues related to online marketplaces are not analysed: (i) on the one hand, the relationship between this regime and Art. 21 of the Digital Services Act; (ii) on the other hand, Recommendation (EU) 2023/2211, indicated in the second paragraph of the text.

[2] “Online Dispute Resolution Platform – Making European Contract Law More Effective”, in Alberto De Franceschi (ed.), European Contract Law and the Digital Single Market, Intersentia, Cambridge, 2016, pp. 245-266.

O consumidor na nova era da sustentabilidade das embalagens alimentares

Doutrina

A transição para sistemas alimentares mais sustentáveis, que a União Europeia (UE) tem impulsionado desde a adoção do Pacto Ecológico Europeu e da Estratégia do Prado ao Prato, abrange não só os alimentos mas também todos os outros inputs funcionais e necessários à sua produção, distribuição e consumo.

Nestes moldes, o legislador europeu tem progressivamente vindo a reconhecer o impacto negativo que o food packaging e os seus resíduos têm no ambiente e a consequente necessidade de eliminar ou minimizar esse impacto. Este processo legislativo começou nomeadamente com a adoção da Diretiva (UE) 2019/604 – transposta em Portugal através do Decreto-Lei n.º 78/2021 – que impôs restrições de uso de determinados produtos de plástico de utilização única, incluindo recipientes para alimentos e bebidas e copos feitos de poliestireno expandido.

A Comissão Europeia deu seguimento a esta legislação específica publicando, em novembro do ano passado, uma Proposta de regulamento relativo a embalagens e resíduos de embalagens, que se encontra atualmente em fase de discussão a nível europeu. A proposta visa reformar profundamente o quadro jurídico em vigor que regulamenta o fabrico das embalagens, bem como a gestão dos seus resíduos, partindo do pressuposto de que esse quadro é obsoleto (data, de facto, de 1994) e inadequado para garantir a sustentabilidade ambiental do packaging.

Para este efeito, a proposta em causa estabelece um amplo leque de requisitos de sustentabilidade para as embalagens, muitos dos quais têm relevância direta para as embalagens alimentares, como por exemplo:

– Taxas progressivas de incorporação de material reciclado nas garrafas de plástico de utilização única;

– Restrições de uso de determinados formatos (por exemplo, as saquetas de açúcar ou sal que são tipicamente disponibilizadas nos estabelecimentos do canal horeca);

– A obrigação de que as cápsulas de cafés e as saquetas de chá sejam compostáveis.

A proposta de lei europeia coloca também ênfase na necessidade de que as embalagens alimentares sejam reutilizáveis, ou seja, possam desempenhar a mesma função para que foram concebidas múltiplas vezes. Neste sentido, a proposta estabelece metas obrigatórias progressivas de reutilização, em especial para as empresas do setor das bebidas alcoólicas e não alcoólicas.   

Esta nova legislação, portanto, abre uma nova era para as embalagens alimentares: a era da sustentabilidade.

Neste contexto, os consumidores são chamados a desempenhar um papel fundamental, pois são os atores que permitem que, depois da sua utilização, as embalagens alimentares sejam:

– Separadas, recolhidas e encaminhadas para serem subsequentemente tratadas e valorizadas (por exemplo, como material reciclado) da forma mais apropriada; ou

– Reutilizadas quando forem concebidas para esta finalidade.

Posto isso, é essencial que o advento de soluções de food packaging mais sustentáveis seja acompanhado por hábitos de consumo igualmente mais sustentáveis. Algo que só se pode alcançar capacitando os consumidores através de campanhas de sensibilização e da disponibilização da relevante informação ambiental diretamente nas embalagens.

De facto, a rotulagem constitui uma ferramenta particularmente eficaz para ajudar o consumidor a adotar o comportamento mais correto do ponto de vista ambiental na gestão doméstica dos resíduos das embalagens. Para esta matéria específica, a proposta da Comissão Europeia atualmente em discussão pretende assegurar maior harmonização no mercado comunitário, garantindo desta forma o mesmo nível de proteção do ambiente e dos interesses dos consumidores em toda a UE.

Efetivamente, nos últimos anos, vários países europeus introduziram disposições nacionais para a rotulagem ambiental das embalagens.  É o caso de França, onde desde 2022, conforme o artigo L541-9-3 do Code de l’environnement, as embalagens recicláveis devem ostentar um ícone especifico (o logo ‘Triman’) e menções funcionais à sua triagem pós-consumo. Mais recentemente, Itália seguiu o mesmo caminho (Decreto Legislativo 3 settembre 2020 n. 116), enquanto, em Portugal, a rotulagem ambiental das embalagens é atualmente regulamentada através de um sistema voluntário, que tem já bastante expressão no segmento food.

Portanto, neste momento, coexistem no mercado comunitário vários sistemas de rotulagem ambiental das embalagens. Desta forma, a mesma embalagem comercializada em diversos mercados internacionais poderá vir a ostentar, em simultâneo, pictogramas e/ou instruções diferentes para a sua triagem depois da utilização. Aliás, a legislação portuguesa – designadamente o artigo 28.º, n.º. 2, do Decreto-Lei n.º 157-D/2017 (UNILEX) – permite expressamente tal coexistência no mercado nacional no caso das embalagens rotuladas em conformidade com a legislação de outros Estados-membros da UE. No entanto, se não se esclarecer de forma inequívoca que um determinado ícone e/ou menções se referem a um mercado específico, existe o risco concreto de que o consumidor não elimine os resíduos da embalagem como deve fazer.

Que, a nível europeu, o objetivo último seja a definição de um quadro jurídico mais harmonizado para a rotulagem ambiental das embalagens não se infere apenas da proposta legislativa atualmente em discussão.

Em fevereiro deste ano, a Comissão Europeia abriu um procedimento de infração contra a França. Segundo o executivo comunitário, para além de não ter sido previamente notificada em conformidade com a Diretiva (UE) 2015/1535, a legislação francesa em matéria de rotulagem ambiental das embalagens integra uma violação do princípio da livre circulação das mercadorias, exigindo-se tal marcação também no caso das embalagens fabricadas noutros países da UE. Além disso, questiona-se a proporcionalidade da normativa francesa pois, devendo utilizar-se mais material no fabrico das embalagens para efeito das informações ambientais que têm de figurar no rótulo, vai consequentemente aumentar a quantidade de resíduos dessas embalagens.

O novo sistema de rotulagem ambiental europeu para as embalagens (alimentares e não) e para os respetivos ecopontos deverá aplicar-se a partir de 2028. Resta-nos ver, no entanto, se esta medida será suficiente para sensibilizar os consumidores a efetuar a triagem dos resíduos das embalagens na sua própria casa tal como indicado na rotulagem. As disposições legais e os esforços da indústria alimentar que visam tornar as embalagens mais sustentáveis serão frustrados caso os padrões de consumo não evoluam no mesmo sentido.

50% de noção (ou breve reflexão sobre o conceito de «preço mais baixo anteriormente praticado»)

Doutrina

Chegada a época franca do frio e das castanhas, aproxima-se também sem pudores a época dos descontos apocalípticos, das sextas-feiras negras e dos fatídicos dias em que milhares de adultos (em Portugal e no mundo inteiro) renunciam temporariamente à sua dignidade para, num salto mais comprido ou num atropelo mais bem conseguido, sem piedade pelo próximo, arrecadarem de irresistíveis prateleiras milimetricamente organizadas os afamados brinquedos com “descontos nunca antes vistos”.

Mas será mesmo assim? Procurei, de forma perfunctória e sem qualquer pretensão de rigor científico, em 2022 e agora, em 2023, comparar os preços de determinados produtos ao longo do ano e durante este período promocional escatológico. Cheguei à conclusão de que, em muitos casos, bens que em período promocional e com “50% de desconto” apresentavam um determinado preço, eram vendidos a um preço muito semelhante, sem descontos, meses antes, no mesmo estabelecimento comercial.

Não é uma novidade. Uma breve pesquisa pela Internet permite encontrar diversas queixas de particulares e até mesmo de associações ligadas à defesa do consumidor que vão no mesmo sentido da conclusão da minha pesquisa: muitos estabelecimentos comerciais manipulam o preço ao longo do ano de modo a que, embora cumprindo de forma literal o que se encontra legalmente estabelecido, o desconto real para o consumidor seja quase nulo.

O Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, que regula as práticas comerciais com redução de preço nas vendas a retalho praticadas em estabelecimentos comerciais, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro, que transpôs parcialmente a Diretiva (EU) 2019/2161 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa à defesa dos consumidores (Diretiva Omnibus, já abordada no Blog aqui e aqui), determina, no artigo 6.º, que durante a realização de práticas comerciais com redução de preço, nas modalidades de venda previstas, os letreiros devem exibir de forma clara o novo preço e o preço mais baixo anteriormente praticado. O preço mais baixo anteriormente praticado é, na aceção dada pelo diploma, “o preço mais baixo a que o produto foi vendido nos últimos 30 dias consecutivos anteriores à aplicação da redução do preço” (artigo 3.º, n.º 2, alínea a)).

É evidente que à teleologia da norma subjaz uma proteção e segurança acrescida para o consumidor e não o seu oposto. A leitura dos Considerandos da primitiva Diretiva 98/6/CE do Parlamento e do Conselho, relativa à defesa dos consumidores em matéria de indicações dos preços dos produtos, possibilita inferir de forma clara que o que está em causa é o direito que o consumidor tem a um funcionamento honesto do mercado e à informação “precisa, transparente e inequívoca” sobre os preços dos produtos que lhe estão a ser oferecidos.

No mesmo sentido vai o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 109-G/2021 ao declarar que o objetivo de se tomarem por referência os preços praticados nos 30 dias anteriores à redução do preço, incluindo aqueles que o sejam em eventuais períodos de saldos ou de promoções, é garantir uma maior proteção dos consumidores no âmbito das práticas comerciais de redução de preço e assegurar um maior equilíbrio do mercado, acrescentando que as comparações com preços de referência devem ser efetivamente reais, “por forma a assegurar a livre e esclarecida formação de vontade pelos consumidores”.

Não se trata, pois, de um assunto de mera aritmética. Ao adotar esta redação, o legislador teve a pretensão de assegurar que, ao apresentar o preço mais baixo praticado nos 30 dias anteriores à data da redução do preço, o consumidor pudesse fazer uma comparação razoável entre o valor mais baixo que o profissional esteve disposto a atribuir a um determinado bem e o valor desse bem com desconto, a fim de ter uma ideia real da poupança final.

Sabemos que, no que diz respeito aos preços dos produtos, há flutuações de mercado, inflação, e muitos outros fatores que têm impacto na variação do valor final. Por outro lado, pese embora o meu inexperto estudo de mercado me tenha dado sinais de alarme, também é certo que poderá não ser uma prática absolutamente generalizada.

Contudo, a verdade é que, pelo menos nalguns casos, podemos afirmar com segurança que estamos perante um insólito paradoxo, que nos poderá até mesmo remeter para o conceito de prática comercial desleal: o cumprimento formal de uma norma e a concomitante violação da ratio que a preside.

Adaptando livremente um adágio conhecido, “a ignorância do consumidor nunca aproveitará ao próprio”, a verdade é que, em 2023, o “consumidor médio” tem acesso a um conjunto de ferramentas que lhe permite acompanhar a evolução dos preços dos produtos e até mesmo comparar com os preços praticados em diversos estabelecimentos comerciais. Ainda assim, nesta relação assimétrica, incumbe às empresas não só cumprir o que se encontra disposto na lei, mas também promover uma conduta profissional ética que respeite o princípio da boa-fé e a contraparte do negócio.

Os exercícios de benchmarking legal e regulatório são sempre interessantes e permitem conhecer as boas (e más) práticas que poderão (ou não), no futuro, ser adotadas (ainda que com adaptações).

Nos EUA, há cerca de 50 anos, a Federal Trade Commission (FTC)[1] decidiu[2] que a melhor forma de evitar práticas abusivas ou enganadoras no que diz respeito aos preços seria a ausência de enforcement nesta matéria, partindo do princípio que a livre concorrência faria naturalmente a regulação do mercado. Contudo, a realidade provou que nem sempre é assim[3] e as ações judiciais coletivas relacionadas com práticas enganosas de indicação de preços (deceptive pricing practices) têm-se sucedido[4][5].

Ainda assim, parece-me interessante o caminho seguido pela FTC nas suas Guides Against Deceptive Pricing[6]. Nestas orientações, a FTC define cinco situações distintas: (i) comparação com preço anteriormente praticado (former price comparisons); (ii) comparação de preços entre retalhistas (retail price comparisons; comparable value comparisons); (iii) publicidade de preços de retalho estabelecidos ou “PVP recomendado” (advertising retail prices which have been established or suggested by manufacturers or other nonretail distributors); (iv) ofertas de produtos na compra de outro produtos (bargain offers based upon the purchase of other merchandise); e (v) comparações de preços com critérios iguais quando se trata de situações distintas (miscellaneous price comparisons).

Para os propósitos deste texto gostaria de me deter apenas na primeira orientação: comparação com o preço anteriormente praticado. Nesta orientação, a FTC define o preço anteriormente praticado como o preço verdadeiro pelo qual o artigo foi vendido ao público de forma regular, durante um período considerável e estável, e apenas admite como verdadeira a prática de redução de preço que tenha como referência os preços praticados com este critério. Caso a redução de preço apresentada tenha como base um preço anteriormente praticado artificialmente inflacionado, a oferta é considerada falsa ou enganadora[7].

Esta construção normativa alicerçada no princípio da boa-fé onera o profissional e permite adicionar um critério interpretativo importante para a definição do conceito. A comunicação correta e verdadeira da informação relativa ao preço anteriormente praticado é essencial para a formação do animus contrahendi do consumidor que, quando compra um bem com redução de preço, fá-lo por acreditar que vai pagar um preço inferior ao preço de venda habitual e que, naquele momento, conhece qual é a diferença real entre os dois preços.

Por outro lado, o critério de estabilidade e de continuidade temporal do preço anteriormente praticado previne manipulações abusivas ou alterações arbitrárias por parte do profissional e viabiliza um controlo maior do lado do consumidor. A utilização destes parâmetros obriga, como se pode constatar pelo exemplo dos EUA, a uma vigilância mais constante e mais apoiada no poder coercitivo, mas pode significar também uma proteção mais eficaz do consumidor.

Perante o exposto, impõe-se, pois, avaliar a aplicação do artigo 3.º, n.º 2, alínea a) do Decreto-Lei n.º 70/2007 e questionar se a definição de “preço mais baixo anteriormente praticado” tal qual como se encontra descrita nos termos atuais serve de facto os interesses do consumidor; ou se não será tempo de adotar novos critérios que componham uma definição mais robusta e menos permeável a manipulações e violações diretas de direitos fundamentais dos consumidores, como são o direito à informação e à transparência.


[1] Agência governamental americana com a missão de regulamentar e promover a proteção dos consumidores, instituída em 1914 pelo Federal Trade Commission Act (https://www.ftc.gov/about-ftc/history).

[2] https://scholarship.law.stjohns.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=&httpsredir=1&article=4332&context=lawreview

[3] https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/00222429231164640 apud https://news.nd.edu/news/disclosing-true-normal-price-recommended-to-protect-consumers-from-deceptive-pricing/  

[4] https://risnews.com/promotional-pricing-right-side-law

[5] https://content.next.westlaw.com/practical-law/document/I6dfb3ee4077511e89bf099c0ee06c731/Beware-of-the-Sale-Complying-with-Promotional-Pricing-Guidelines?viewType=FullText&transitionType=Default&contextData=(sc.Default)

[6] Disponíveis no Code of Federal Regulations, em https://www.ecfr.gov/current/title-16/chapter-I/subchapter-B/part-233, § 233.1 a § 233.5

[7]If the former price is the actual, bona fide price at which the article was offered to the public on a regular basis for a reasonably substantial period of time, it provides a legitimate basis for the advertising of a price comparison. Where the former price is genuine, the bargain being advertised is a true one. If, on the other hand, the former price being advertised is not bona fide but fictitious—for example, where an artificial, inflated price was established for the purpose of enabling the subsequent offer of a large reduction—the “bargain” being advertised is a false one; the purchaser is not receiving the unusual value he expects. In such a case, the “reduced” price is, in reality, probably just the seller’s regular price.

Haverá lojas de segunda mão no Metaverso?

Doutrina

O conceito de Metaverso tem estado em declínio, no entanto, investigadores continuam a avançar no desenvolvimento de tecnologias de dispositivos de realidade virtual e aumentada, com o objetivo de aperfeiçoar a experiência do mundo virtual tridimensional. A perspetiva de um futuro onde cidades são duplicadas em reinos virtuais e as nossas vidas estão entrelaçadas com avatares continua a ser uma possibilidade. Este potencial futuro depende da capacidade que as realidades virtuais terão de replicar com precisão as nossas experiências atuais. Contudo, o atual quadro jurídico pode revelar-se inadequado para lidar com as complexidades resultantes destes avanços.

Uma questão notável gira em torno da revenda de bens adquiridos dentro destes espaços virtuais. Atividade tão comum na atual realidade pode gerar maiores problemas quando transportada para um mundo virtual, devido a entendimentos relativos aos direitos autorais e a doutrina do esgotamento.

A conhecida doutrina do esgotamento proclama que, após a aquisição legítima de um bem com direitos autorais, seu proprietário pode efetuar a revenda sem a necessidade de autorização do detentor dos direitos autorais. Por exemplo, é possível comprar e revender um livro físico sem autorização adicional do editor, autor ou qualquer outra pessoa. A ideia subjacente é que, uma vez que um bem com direitos autorais é vendido legalmente, os direitos autorais de distribuição são esgotados, impedindo-os de exigir uma compensação adicional pela sua revenda.

Entretanto, este princípio não se aplica de forma harmoniosa aos bens digitais. Neste caso, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem duas compreensões distintas. No caso UsedSoft de 2012, que dizia respeito à revenda de software, o tribunal estabeleceu que quando é concedida uma licença que permite o uso indefinido do software em troca de uma taxa, este arranjo qualifica-se como venda. Consequentemente, o princípio do esgotamento é aplicável, permitindo ao adquirente revender o software sem a necessidade de obter permissão do detentor dos direitos autorais.

Por outro lado, uma posição diferente surgiu na decisão Tom Kabinet em 2018 envolvendo a revenda de eBooks. Neste caso, o TJUE decidiu que, mesmo que um eBook seja disponibilizado para download por período indefinido e o consumidor pague uma taxa, a presença de conteúdo com direitos autorais para além do software desencadeia uma comunicação ao público, em vez de distribuição. Como resultado, a doutrina do esgotamento é considerada inaplicável e a revenda de tais produtos digitais dependerá da autorização do titular dos direitos autorais.

Para determinar se um bem digital num ambiente de realidade virtual é mais semelhante a um software, aplicando o raciocínio do UsedSoft, ou a um eBook, com base na decisão Tom Kabinet, é importante avaliar a proteção dos direitos autorais que esses bens irão englobar. A lei de direitos autorais da UE protege criações intelectuais que refletem a personalidade do autor, manifestada pelas suas escolhas livres e criativas. Além disso, o tribunal europeu já decidiu na decisão InfoPaq que meras partes da obra já podem ter proteção de direitos autorais.

Especificamente no caso dos videogames, o TJUE decidiu que a proteção de direitos autorais se aplica à criação como um todo, incluindo todas as suas partes de originais, nomeadamente o software, bem como os elementos gráficos e sonoros. É possível transpor, mutatis mutandis, este entendimento para uma realidade virtual. Assim, é razoável assumir que os vários componentes dos mundos virtuais podem ser protegidos por direitos autorais devido à expressão da originalidade dos criadores durante o processo de desenvolvimento.

Dado isso, a proteção de direitos autorais para bens digitais numa realidade virtual vai além do software. Isso aproxima os bens digitais comercializados em mundos virtuais aos eBooks atuais, uma vez que a existência de direitos autorais para além do software foi um fator relevante na decisão Tom Kabinet. Portanto, utilizando esse precedente legal como princípio orientador, quando um consumidor compra um item digital dentro de uma realidade virtual, como o Metaverso, a sua capacidade de revendê-lo dependerá da autorização concedida pelo detentor dos direitos autorais (presume-se que seja a empresa desenvolvedora).

Este cenário difere da garantia convencional oferecida aos consumidores ao adquirir bens físicos, onde a possibilidade de revenda é concedida. Em vez disso, a viabilidade de revender itens digitais dentro de uma realidade virtual dependerá de acordos contratuais, muitas vezes ocultos nos termos de uso raramente lidos.

No cenário atual de eBooks, as empresas comercializam os seus produtos como “vendas” enquanto estabelecem acordos de licenciamento que não transferem a propriedade para os compradores. Em essência, os compradores pagam pela autorização de usar o conteúdo digital perpetuamente em dispositivos designados. Isso explica por que os livros digitais adquiridos em plataformas como Kindle ou Kobo não podem ser transferidos, revendidos ou doados, mas apenas lidos na sua biblioteca pessoal.

Se uma abordagem semelhante for adotada para realidades virtuais, como o Metaverso, a capacidade dos consumidores de revender itens adquiridos, sejam roupas, casas ou obras de arte virtuais, seria severamente limitada. Dependendo dos termos contratuais da plataforma, sua utilização pode estar limitada ao armazenamento nas contas dos usuários, não podendo existir, por exemplo, lojas de segunda mão no Metaverso.

No contexto de tecnologias emergentes como blockchain e NFTs (Tokens Não Fungíveis), muitos bens digitais em realidades virtuais são adquiridos como investimento, impulsionados pela possibilidade de revenda para obter lucro. Por exemplo, Decentraland é uma plataforma de realidade virtual que utiliza as suas criptomoedas para permitir aos utilizadores adquirir ativos virtuais, como roupas e imóveis virtuais. No entanto, como mencionado anteriormente, é possível que a legalidade de revenda de tais ativos varie de acordo com os termos de uso, podendo depender da autorização prévia do detentor dos direitos autorais.

Em conclusão, a perspetiva de ter um mercado de segunda mão de bens virtuais no Metaverso e em realidades virtuais semelhantes está intimamente ligada aos acordos contratuais estabelecidos com a plataforma, em vez de ser inerente ao consumidor, como acontece com bens físicos. O cenário atual, moldado por tecnologias emergentes, urge por uma maior proteção ao consumidor, vulnerável aos termos de uso destas plataformas que regem as transações virtuais.

Uma proposta de proibição de produtos fabricados com recurso a trabalho forçado no mercado da UE

Doutrina, Legislação

No dia 14 de setembro de 2022, a Comissão Europeia apresentou a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho sobre a proibição de produtos fabricados com recurso ao trabalho forçado no mercado da União Europeia, tendo sido agora aprovada, no passado outubro, sem votos contra, por duas comissões do Parlamento Europeu.

Numa altura em que muito se debate sobre sustentabilidade na UE – com especial ênfase, é preciso dizê-lo, na sustentabilidade ambiental – é com entusiasmo que se recebe a notícia de uma proposta de regulamentação que tutela diretamente o S dos pilares ESG. Depois da Diretiva do Reporte de Sustentabilidade e da Proposta de Diretiva relativa ao Dever de Diligência das Empresas (DDD), diplomas que recaem diretamente sobre as obrigações das empresas, surge então agora uma proposta especificamente vocacionada para limitar a comercialização de bens que resultem de trabalho forçado, que vem intervir diretamente sobre os bens e não criando propriamente novas regras para as empresas. A viabilização desta Proposta depende da aprovação do Parlamento Europeu e do Conselho, sendo o Regulamento depois aplicado a todos os Estados-Membros 24 meses após a respetiva entrada em vigor.

Esta iniciativa é, em geral, de aplaudir. É uma iniciativa relevante que dignifica e densifica os princípios comunitários e multilaterais de defesa dos direitos humanos, sendo sobretudo de salientar a ousadia de se iniciar um movimento legislativo que, a ser aprovado, comportará consequências muitíssimo expressivas no panorama do comércio europeu. Se pensarmos, por exemplo, dentro do setor têxtil, apenas nos bens de vestuário produzidos com algodão como matéria-prima, uma em cada cinco peças dessa roupa envolve trabalho forçado na sua produção, sendo, por isso, eliminável do comércio europeu. Não se descarte, por isso, a coragem subjacente à elaboração desta Proposta – ela comporta uma alteração notável do quadro vigente e não se refreia pela circunstância de os consumidores europeus poderem vir a encontrar as prateleiras mais folgadas, com todas as consequências que daí advêm para vários setores.

Não deixa também de ser uma proposta visionária, no sentido em que acolhe as preocupações cada vez mais crescentes dos consumidores europeus em relação à questão.

Sobre os aspetos positivos desta Proposta:

• É de ressaltar, em particular, a potencialidade da sua aplicação aos bens comercializados por todas as empresas – micro, pequenas, médias e grandes empresas – e por todos os operadores económicos, o que significa que tem a potencialidade de impactar (finalmente) absolutamente todos os consumidores europeus que compram bens. Será, neste sentido, uma boa ultrapassagem (ou complemento) das limitações da DDD, ainda que apenas em termos de sustentabilidade social.

• É de aplaudir a ideia de implementação de entidades de investigação do histórico da cadeia de abastecimento dos bens que ingressam no mercado europeu, entidades e competências essas que mais cedo ou mais tarde teriam de ser criadas/adaptadas na União de forma a honrar a expiação do problemático fenómeno do trabalho forçado. De acordo com a Proposta, as autoridades competentes conduzirão investigações e decidirão na sequência dessas investigações. As decisões destas autoridades deverão depois ser comunicadas às autoridades aduaneiras, que serão responsáveis pela identificação dos produtos em causa e pela realização de controlos das importações e exportações na fronteira da UE. Infelizmente, a atribuição deste controlo dividido entre autoridades nacionais e autoridades aduaneiras não prima pela melhor abordagem ao problema, deixando uma larga margem ao contorno do sistema arquitetado .

• A Proposta sugere a criação de uma base de dados relativa a zonas e produtos com exposição ao risco de utilização de trabalho forçado, sendo útil às empresas que queiram contornar fornecedores problemáticos. Este é um aspeto positivo, sobretudo pela transparência e acesso aberto a toda a comunidade, ainda que tivesse sido relevante pensar-se em formas de tornar essa comunicação eficaz junto do consumidor. Apesar de tudo, é um passo bastante importante a assinalar, sobretudo pelo quadro absolutamente dúbio e cinzento que se encontra atualmente nesta matéria.

• É de felicitar o estabelecimento de critérios específicos para a avaliação do risco de os operadores económicos estarem imiscuídos ou não em cadeias de abastecimento enformadas por escravatura moderna. Estes critérios serão muito úteis à condução da investigação que a entidade responsável por este controlo terá de levar a cabo, levantando o véu daqueles que são os sinais de alarme a que empresas, consumidores e mesmo entidades públicas devem estar atentos no momento da contratação.

A avaliação terá em conta os seguintes critérios (não exaustivos):

(i) Observações apresentadas por pessoas singulares ou coletivas ou por qualquer associação sem personalidade jurídica;

(ii) Indicadores de risco e outras informações, que devem basear-se em informações independentes e verificáveis, incluindo relatórios de organizações internacionais, em especial da Organização Internacional do Trabalho, da sociedade civil e de organizações empresariais, e ter em conta a experiência adquirida com a aplicação da legislação da União que estabelece requisitos de dever de diligência em matéria de trabalho forçado;

(iii) A base de dados sobre zonas ou produtos com exposição ao risco de utilização de trabalho forçado;

(iv) Informações e decisões codificadas no sistema de informação e comunicação, incluindo quaisquer casos anteriores de cumprimento ou incumprimento da proibição por parte de um operador económico;

(v) Informações solicitadas pelas autoridades competentes a outras autoridades pertinentes sobre se os operadores económicos objeto de avaliação estão sujeitos ao dever de diligência em matéria de trabalho forçado e exercem esse dever em conformidade com a legislação aplicável da União ou com a legislação dos Estados-Membros que estabeleça requisitos de dever de diligência e de transparência no que diz respeito ao trabalho forçado.

Se a iniciativa é sem dúvida para se elogiar, ocorre, ainda assim, que apresenta também alguns problemas e limitações que podem e devem ser consideradas no futuro do procedimento legislativo.

Além das que foram já sendo assinaladas, é de destacar pela negativa a proposta de destino a oferecer aos bens que venham a ser considerados produzidos em condições de trabalho forçado.

São dois os cenários:

(i) Se, antes da colocação dos bens no mercado, se detetar que o bem não cumpre os requisitos, as autoridades competentes determinarão a proibição de venda no mercado da UE.

(ii) No entanto, se os bens já estiverem no mercado, será ordenada a retirada e eliminação desses bens, a expensas do operador económico, bem como a proibição de exportação desses bens (“os operadores económicos que tenham sido objeto de investigação [devem retirar] do mercado da União os produtos em causa já disponibilizados e [mandá-los] destruir, inutilizar ou de outra forma eliminar” – Considerando 27).

Ainda que a solução do ponto (i) se compreenda, obviamente que a solução do ponto (ii) não pode passar por este desfecho. O bem jurídico que se pretende proteger com a criação deste Regulamento será sobretudo o da proteção da integridade física dos “trabalhadores” (e, no máximo, a expectativa do consumidor ético e de outras entidades), que não sai protegida com a retirada do bem do mercado. Antes pelo contrário, esta consequência é desastrosa para os princípios de sustentabilidade ambiental que pautam a agenda da UE por estes dias. Não pode a UE tratar um bem fruto de escravatura moderna como se de um bem perigoso se tratasse. A situação é exatamente a inversa: a produção do bem é que tornou perigosa a situação para o “trabalhador”. Retirar o bem do mercado não oferece nenhuma vantagem para nenhum deles, ainda que se compreenda que é uma medida de desincentivo ao operador económico. Mesmo que a solução venha a ser a de doar os bens (pelo menos os perecíveis) – que seria uma solução, em geral, mais sustentável – tal não ultrapassa o problema de não responder à verdadeira motivação de criação do Regulamento. Devem, pois, encetar-se medidas de combate à escravatura moderna, sem dúvida, mas em harmonia com todos os pilares da sustentabilidade e em fidelidade à solução do problema de facto.

As alternativas existem.

Comparação da Proteção do Utilizador Profissional e do Consumidor nas Plataformas Digitais

Doutrina

No passado mês de agosto, foi publicado em Diário da República o Decreto-Lei n.º 68/2023, de 16 de agosto, que vem, finalmente, estabelecer coimas para o incumprimento dos  deveres previstos no Regulamento (UE) 2019/1150 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 relativo à promoção da equidade e da transparência para os utilizadores profissionais de serviços de intermediação em linha (Regulamento).

Este Regulamento concentra, num único documento, matérias que, no que à proteção do consumidor diz respeito, estão distribuídas por inúmeros diplomas europeus (nomeadamente, as Diretivas (UE) 2019/771 e (UE) 2019/770, a Diretiva (UE) 2019/2161 e o Regulamento (UE) 2022/2065), que estão atualmente refletidos nos mais variados diplomas nacionais.

Assim, o presente texto propõe-se a comparar a proteção conferida aos consumidores com aquela conferida aos utilizadores profissionais de serviços de intermediação em linha.

Em primeiro lugar, cumpre esclarecer qual o papel que, em termos práticos, cada um destes intervenientes tem na relação triangular típica das plataformas digitais. Para tal, o exemplo que se afigura como típico será o das plataformas digitais de transporte, como é o caso da Uber ou da Bolt. Nessa sede, o consumidor será o cliente, o utilizador profissional o condutor e o prestador de serviços de intermediação em linha a plataforma.

Quanto ao regime que protege os utilizadores profissionais, este prevê, à semelhança do que decorre do direito do consumo, deveres de transparência na comunicação por parte dos prestadores de serviços de intermediação em linha (doravante “plataforma”).

Destaca-se, em especial, a necessidade de as cláusulas contratuais gerais estarem disponíveis em local acessível em todas as fases da relação contratual, incluindo em momento prévio à contratação.

Por outro lado, no que ao conteúdo mínimo das cláusulas contratuais gerais diz respeito, é possível afirmar que, quanto a determinados tópicos, o legislador foi mais longe na proteção do utilizador profissional, conferindo-lhe um direito à transparência quanto à afetação dos direitos de propriedade intelectual. Ainda no tópico da proteção da propriedade intelectual do utilizador profissional, o legislador adotou um papel protecionista, ao munir o utilizador profissional de conhecimento quanto ao regime aplicável às informações fornecidas ou geradas pelo próprio, no contexto do serviço de intermediação em linha.

Ao contrário do que se poderia esperar, não são raros os tópicos em que a proteção do utilizador profissional vai além da proteção do consumidor.

Outro exemplo prático desta abordagem, é o requisito, imposto pelo Regulamento, de as plataformas notificarem, num suporte duradouro, os utilizadores profissionais de qualquer proposta de alteração das suas cláusulas contratuais gerais.

Ainda que esta seja a abordagem de muitas empresas, de facto não existe na jurisdição portuguesa uma obrigação tão expressa quanto esta, que imponha a comunicação de alterações em formato duradouro. É facto que o próprio regime das Cláusulas Contratuais Gerais acaba por, indiretamente, obrigar a uma tal comunicação, por decorrência dos deveres de comunicação e informação. Sem prejuízo, não vigora entre nós uma obrigação expressa e direta que imponha uma tal comunicação em formato duradouro aquando de uma alteração das cláusulas.

Em termos práticos, a consequência que daqui advém é que haverá sempre margem para a empresa levar a tribunal a questão da comunicação efetiva dos típicos “termos e condições” a um consumidor. Por outro lado, quanto aos utilizadores profissionais, por decorrência da norma sob análise, ainda que tal opção não esteja, obviamente, proibida, existindo uma norma expressa a determinar a forma de comunicação de alterações às cláusulas, a predisposição de uma empresa para disputar o tema em tribunal será certamente mais reduzida.

Em contraste, encontramos também no âmbito do diploma que nos ocupa, direitos que podem beneficiar o consumidor. Prevê o Regulamento que as plataformas devem garantir que a identidade do utilizador profissional seja claramente visível, espelhando o disposto no artigo 45.º n.º 1 alínea b) do Decreto-Lei n.º 84/2021 de 18 de outubro. Também as obrigações de transparência quanto às classificações, vertidas no artigo 5.º do Regulamento, são semelhantes às aplicáveis à plataforma face ao consumidor, tendo estas obrigações sido introduzidas no direito do consumo por decorrência da transposição da Diretiva (UE) 2019/2161, relativa à defesa dos consumidores.

Destaca-se ainda uma outra obrigação, prevista no Regulamento, ilustrativa da opção do legislador de proteger de forma mais afincada o utilizador profissional do que o consumidor. O artigo 4.º do Regulamento limita a discricionariedade de a plataforma restringir, suspender e cessar a própria prestação de serviços. No fundo, para lançar mão da opção de restrição, suspensão ou cessação dos serviços a determinado utilizador profissional, a plataforma deve fundamentar e esclarecer o utilizador, bem como respeitar um pré-aviso de 30 dias (no caso da cessação).

Por fim, merece destaque o robusto procedimento interno de tratamento de reclamações que o legislador incumbe a plataforma de disponibilizar ao utilizador profissional, sendo este também um elemento sem paralelo no direito do consumo.

Quer o Regulamento, quer o diploma nacional de execução, encontram-se em pleno vigor e preveem coimas que poderão ir até ao valor de 5.000.000 euros.

No fundo, é possível concluir que o legislador europeu considerou que a posição frágil do utilizador profissional merece especial cuidado nos ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros, tendo conferido a profissionais informados, que agem para fins relacionados com a sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional, uma proteção mais abrangente do que ao consumidor, que em muitos casos, poderá dispor de menos informação do que o próprio utilizador profissional.                

Para os entusiastas do mundo das plataformas digitais que tenham interesse em explorar as obrigações legais impostas à parte B2B da relação triangular, recomenda-se a leitura do seguinte texto, que aborda o recente Digital Markets Act, onde são estabelecidas “regras harmonizadas que assegurem para todas as empresas (…) a disputabilidade e a equidade dos mercados no setor digital em que estejam presentes controladores de acesso, em benefício dos utilizadores profissionais e dos utilizadores finais”. Este diploma, ainda que preveja também obrigações para a fração B2B da relação triangular, restringe o seu âmbito de aplicação aos grandes players do mercado.

Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil na UE: Responsabilidade por Produtos Defeituosos

Legislação

Introdução

Nesta blogpost, vamos explorar o regime de responsabilidade por danos causados por sistemas de Inteligência Artificial (“IA”) na União Europeia (“UE”), especialmente no que diz respeito à responsabilidade por produtos defeituosos, no contexto da proposta relativa à Diretiva sobre Responsabilidade por Produtos Defeituosos (“Proposta”). O nosso objetivo será explicar as principais matérias reguladas pela Proposta, dando-lhes um pano de fundo e proporcionando uma compreensão clara de como esta proposta altera o regime atual, especialmente quando se trata de regular a responsabilidade por sistema de IA num cenário Business to Consumer.

Enquadramento geral da responsabilidade civil por danos de sistemas de IA

Antes de entrar nesse regime, importa analisar a regulação europeia em termos de IA. Este panorama é marcado por vários atos legislativos, quer já estejam em vigor, quer estejam a passar pelo respetivo processo legislativo. Assim, para compreender o quadro de responsabilidade por danos da UE, é importante contextualizá-lo num escopo mais vasto de Regulamentos e Diretivas.

Regime europeu aplicável à IA

Na UE, os sistemas de IA estão a ser objeto de regulação em duas frentes: regimes gerais e regras específicas de IA.

Começando pelo quadro jurídico geral, têm-se travado importantes debates sobre a sobreposição (e potencial ineficácia) de certos Regulamentos e Diretivas quando aplicados à IA. Os mais referidos são os seguintes:

Proteção de Dados: A IA depende fortemente de dados, especialmente de dados pessoais. A conformidade com os princípios de proteção de dados, incluindo a minimização, a limitação da finalidade, a exatidão e a responsabilidade, é uma obrigação, embora nem sempre seja fácil de alcançar na prática;

Propriedade intelectual: Para além dos dados pessoais, a legislação da UE rege outros aspetos relacionados com a IA, através de regimes como os direitos de autor, as patentes e os segredos comerciais, bem como a proteção das bases de dados. Através destes regimes, os dados (não pessoais) de treino, os inputs, os outputs e até o próprio modelo poderão ter de cumprir determinados critérios para serem abrangidos pelo escopo destes direitos. Neste sentido, dois dos temas mais atuais são a questão de saber se os sistemas de IA podem ser autores (por exemplo, para efeitos de direitos de autor), bem como a potencial violação dos direitos de autor concedida aos autores de obras que são utilizadas para treinar sistemas de IA;

Direito do Consumo: As Diretivas existentes em matéria de Direito do Consumo têm vindo a adaptar-se para englobar a IA de uma forma mais direta. Dois exemplos claros são a Diretiva relativa aos conteúdos digitais e a Diretiva relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens;

Responsabilidade Civil: Tal como acontece com o Direito do Consumo, o legislador da UE está a agir no sentido de atualizar os atuais regimes de responsabilidade para incluir sistemas tecnologicamente mais avançados, como a IA. Assim, para além da Diretiva Conteúdos Digitais e da Diretiva relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens que preveem opções para os consumidores em caso de não conformidade, o legislador europeu está atualmente a preparar a Proposta, que será analisada mais aprofundadamente adiante.

Na regulação específica da IA, a UE adota uma abordagem dupla:

Conformidade e regulamentação: O Ato da IA (AI Act) impõe obrigações principalmente aos utilizadores e criadores de sistemas de IA com base numa abordagem baseada no risco. Consoante os riscos potenciais que apresentam, os sistemas podem variar entre uma regulamentação mínima e uma proibição estrita. Os sistemas de alto risco e as partes da cadeia de abastecimento enfrentam obrigações pormenorizadas;

Responsabilidade Civil: A UE abordará a questão da responsabilidade por danos relacionados com a IA através da Diretiva sobre Responsabilidade por IA (AI Liability Directive ou “AILD”), atualmente em discussão pelo legislador da UE. No entanto, esta Diretiva centrar-se-á apenas na responsabilidade extracontratual baseada na culpa.

Responsabilidade civil por danos causados por sistemas de IA

Se nos debruçarmos especificamente sobre os quadros de responsabilidade civil, verificamos que o legislador da UE pretende abordar a responsabilidade por danos causados por sistemas de IA de duas formas:

Responsabilidade contratual: Para as relações entre consumidores e profissionais, a Diretiva Conteúdos Digitais e a Diretiva relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens preveem um regime de responsabilidade a que os consumidores podem recorrer em caso de não conformidade;

Responsabilidade extracontratual: A AILD e a Proposta da nova Diretiva regerão a responsabilidade extracontratual baseada na culpa dos sistemas de IA[1].

Com este roteiro em mente, o resto deste blogpost centrar-se-á na Proposta da nova Diretiva, abordando os seus principais elementos, como o seu âmbito material e pessoal, bem como os requisitos para desencadear a responsabilidade dos operadores económicos.

Escopo da Proposta

Ao analisar a proposta de Diretiva e o seu impacto nos sistemas de IA, é importante compará-la com as regras da atual Diretiva. Esta comparação revela duas primeiras melhorias fundamentais, relacionadas, por um lado, com o seu âmbito material e, por outro, com o seu âmbito pessoal.

Escopo material e definições

A Proposta da Diretiva representa um desenvolvimento substancial da Diretiva em vigor, ao atualizar as suas definições com conceitos tecnologicamente mais avançados, onde se incluem sistemas de IA. Para o efeito, o âmbito das regras de responsabilidade decorrente dos produtos é alargado através das seguintes definições:

Alargamento da definição de “produto”: A definição abrange agora os ficheiros de fabrico digitais e o software;

Introdução da definição de ‘componente’: Esta adição abrange qualquer elemento tangível ou intangível, ou qualquer serviço conexo que é incorporado num produto ou interligado com o mesmo pelo fabricante desse produto ou sob o controlo do fabricante;

Definição de “serviço conexo”: Um serviço conexo é definido como um serviço digital que, quando ligado a um produto, é essencial para o funcionamento normal do produto.

Estas definições atualizam o regime de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, garantindo que os produtos que incorporam elementos e serviços digitais estejam sujeitos a estas regras de responsabilidade. Este aspeto é especialmente relevante no contexto atual, em que serviços são frequentemente integrados nos produtos, como acontece com os assistentes virtuais como a Alexa e a Siri, em que a atual Diretiva dá respostas pouco claras.

Escopo pessoal e operadores económicos

Por outro lado, a Proposta também alarga as entidades que podem ser responsabilizadas por danos, introduzindo uma mudança significativa de “produtores” para “operadores económicos”. Este novo conceito alarga o âmbito de aplicação para incluir várias partes na cadeia de abastecimento, tais como o fabricante do produto, os fabricantes de componentes, os prestadores de serviços conexos, os representantes autorizados, os importadores, etc.

Embora estas novas entidades estejam abrangidas pelo âmbito de aplicação da Proposta da Diretiva, tal não significa que todas partilhem regimes de responsabilidade idênticos. Por exemplo, os importadores, os representantes autorizados e os prestadores de serviços de execução têm responsabilidade subsidiária, tornando-se responsáveis se o fabricante estiver situado fora da UE (artigo 7.º, n.º 2). Se nem o fabricante nem o importador puderem ser identificados, os distribuidores podem ser responsabilizados.

Crucialmente, é importante notar que a Proposta de Diretiva alarga a responsabilidade às entidades que prestam serviços conexos. Esta alteração constitui uma mudança conceitual, uma vez que a Diretiva se aplica tradicionalmente a produtos e não a serviços. No entanto, a inclusão é lógica, uma vez que os produtos contêm cada vez mais componentes digitais essenciais para o seu funcionamento. No contexto da “Internet of Things”, uma distinção estrita entre produtos e serviços não pode pôr em causa a responsabilidade por produtos defeituosos.

O que isto significa, em termos práticos, é que se uma empresa desenvolve um sistema de IA, que é integrado no software de um produto criado por outra, ambas as entidades podem ser responsabilizadas por defeitos do produto final. Se a parte lesada receber uma indemnização do fabricante do produto final, essa entidade pode eventualmente ter direito a uma compensação do fabricante do componente com base na legislação nacional aplicável.

Regime de responsabilidade civil ao abrigo da Proposta

Vamos agora explorar os fatores críticos que ativam a responsabilidade ao abrigo da Proposta. São eles a existência de dano e o caráter defeituoso do produto.

Relativamente ao primeiro, foram incluídas duas alterações fundamentais na Proposta:

Supressão do limiar mínimo de 500 €: A Proposta elimina o limiar de 500 € previsto na atual Diretiva, alargando assim o âmbito da responsabilidade;

Inclusão da perda ou corrupção de dados: A perda ou corrupção de dados, não utilizados exclusivamente para fins profissionais, passa a ser considerada um dano pelo qual os operadores económicos podem ser responsabilizados. No entanto, a responsabilidade continua limitada, excluindo os danos económicos. Esta limitação afeta cenários de IA como os seguros, a pontuação de crédito e situações laborais, em que os danos económicos são mais comuns.

O segundo elemento, e provavelmente o elemento central que desencadeia a responsabilidade, é o caráter defeituoso do produto.

Em termos gerais, a nova disposição sobre o carácter defeituoso assemelha-se muito ao artigo 6.º da atual Diretiva, que considera as expectativas do consumidor.

No âmbito deste quadro, são feitas duas principais melhorias:

Aprendizagem após a colocação no mercado: A Proposta alarga a responsabilidade aos defeitos que surgem depois de o produto ser colocado no mercado, ao considerar a potencial aprendizagem do sistema após o seu lançamento;

Controlo após o lançamento: Outra consideração crítica é o nível de controlo mantido pelos fabricantes ou programadores depois de o produto ser introduzido no mercado ou colocado em serviço. Assim, a Proposta prevê que a responsabilidade pelos defeitos continue até que o controlo seja abandonado. Este requisito garante que as empresas permanecem proativas na abordagem e retificação dos defeitos.

É de notar que a Proposta de Diretiva prevê situações de responsabilidade por defeitos posteriores, nomeadamente no artigo 10.º. Aqui, os operadores económicos podem não ser responsabilizados por danos causados por um produto defeituoso se demonstrarem que é provável que o defeito que causou o dano não existia quando o produto foi colocado no mercado ou em serviço. Contudo, o n.º 2 do artigo 10.º prevê exceções a esta regra. Os operadores económicos serão responsabilizados se o defeito resultar de um serviço conexo, de software (incluindo atualizações e upgrades) e da sua ausência quando necessário para a manutenção da segurança. É importante notar que estas exceções só se aplicam quando os operadores económicos mantêm o controlo sobre o produto após a sua colocação no mercado. Assim, existe um paralelo entre o n.º 1, alínea c), do artigo 6.º e o artigo 10.º, que alarga a responsabilidade aos casos de defeitos posteriores quando o operador económico mantém um grau de controlo sobre o produto.

Acesso a informação e ónus da prova

Para além das regras gerais em matéria de responsabilidade civil, a Proposta inclui disposições relativas ao acesso à informação e ao ónus da prova.

O artigo 8.º pode ser invocado para aceder a informações relativas a sistemas de IA, quer estes sejam de alto risco ou não. Trata-se de uma distinção importante em relação à AILD, que se centra principalmente nos sistemas de alto risco. Outro aspeto significativo deste artigo é a utilização do termo “demandado”, indicando que o direito de acesso à informação diz respeito principalmente a processos judiciais em curso.

No que toca ao ónus da prova, a Proposta visa aliviar o ónus da parte lesada na prova de certos elementos necessários a uma ação de indemnização.

Resumidamente, o artigo 9.º estabelece que cabe normalmente ao demandante ou à parte lesada o ónus de provar o carácter defeituoso, o dano e o nexo de causalidade entre eles. Contudo, a Proposta estabelece condições específicas que desencadeiam a presunção de defeito, de nexo de causalidade entre o defeito e o dano ou de ambos. Estas condições são as seguintes:

Condições suficientes para a presunção de defeito: (i) Incumprimento pelo requerido de uma obrigação de divulgação nos termos do artigo 8.º, n.º 1; (ii) Violação de requisitos de segurança obrigatórios; (iii) Danos causados por um mau funcionamento óbvio do produto;

Condições suficientes para a presunção de nexo de causalidade: presume-se o nexo de causalidade se for comprovado o caráter defeituoso do produto e se o dano for compatível com o mesmo. No entanto, a proposta não especifica os tipos de danos tipicamente considerados coerentes com o defeito, introduzindo potencialmente incerteza jurídica e encargos adicionais para os consumidores;

Condições adicionais de suficiência para ambas as presunções (n.º 4 do artigo 9.º): (i) O tribunal deve considerar excessivamente difícil para o requerente provar o respetivo objeto da presunção (defeito, causalidade ou ambos); (ii) O requerente deve estabelecer que o produto contribuiu para o dano, (iii) O objeto factual da presunção deve ser provável, baixando o limiar de prova do padrão normal para a mera probabilidade.

Os demandados têm a possibilidade de ilidir qualquer uma destas presunções (n.º 5 do artigo 9.º). Isto significa que podem apresentar provas ou argumentos para contestar as presunções de defeito ou de nexo de causalidade.


[1] É importante mencionar que a Proposta e em geral o regime de responsabilidade por produtos defeituosos pode também ser aplicado a relações contratuais, não estando, contudo, dependente da sua existência.

Transparência cerebral, telepat.ia e neurodireitos: Inteligência Artificial e a proteção jurídica da mente no século XXI

Doutrina

Quando não queremos que alguém saiba algo de nossa vida, não raro ouvimos aquele ditado popular: “se quer guardar bem um segredo, não o conte”. Correto? Não mais. No cenário tecnológico do século XXI, a ideia de comunicação direta de pensamentos e informações entre um indivíduo e uma Inteligência Artificial (IA) está se tornando possível, como foi demonstrada a transparência cerebral no World Economic Forum em Davos deste ano, o que expõe questões essenciais para debate sobre a proteção da mente humana e inaugura um novo domínio jurídico: os neurodireitos.

De fato, não se trata de telepatia. Outrossim, refere-se ao desenvolvimento de neurotecnologias, as quais têm muito a contribuir com usos clínicos e com a promoção da saúde da população de modo geral. Segundo a UNESCO, elas têm potencial para oferecimento de tratamentos e melhorias nas opções preventivas e terapêuticas para aqueles que sofrem de doenças neurológicas e mentais, bem como auxiliar os que não conseguem se comunicar ao traduzir a atividade cerebral em texto, voz ou imagens.

Mas as neurotecnologias vão além da área clínica. Nos últimos tempos, uma miríade de novos produtos com essas funcionalidades foi patenteada ou lançada no mercado de consumo, a exemplo dos novos Airpods da Apple (que são equipados com eletrodos aptos a medir a atividade cerebral), do Neuralink de Musk (uma interface direta entre computador e cérebro já em fase de testes em humanos que transmite sinais neuronais para dispositivos eletrônicos) e, mais recentemente, o sistema de IA da Meta, que promete decodificar o desdobramento de representações visuais no cérebro com uma resolução sem precedentes, como se pode perceber das imagens abaixo:

Fonte: Meta, 2023.

Tradicionalmente, a mente humana é considerada um santuário interno que permanece resistente à manipulação externa, diferenciando-se da natureza mais modulável e coercível do corpo tangível.  Mas essa ideia de que é o último refúgio da autonomia pessoal e do autogoverno e, em última instância, de liberdade, tem sofrido e sofrerá modificações em função justamente de neurotecnologias, dados relativos à atividade cerebral e IA, pois, com isso, poderá ser possível manipular ou influenciar indevidamente os pensamentos, as ideias, as emoções e tudo o que não é expresso, mas é processado internamente no tecido nervoso[1].

Existe um reconhecimento crescente de que dispositivos neurais não clínicos e não invasivos geram volumes substanciais de “Big Data Cerebral” que, combinado com outros tipos de dados, tornam o indivíduo completamente transparente perante quem utiliza essas tecnologias, o que gera importantes considerações científicas, éticas, de direitos humanos e regulatórias[2]. Como se viu, fornecedores estão trabalhando ativamente na criação de produtos e aplicativos que coletam e tratam dados neuronais para uma ampla gama de finalidades. Uma delas que é progressivamente aprimorada é a capacidade sem precedentes, tanto em termos de escopo quanto de precisão, de efetivamente “ler” a mente[3].

E isso pode ter diversas consequências negativas aos consumidores. Assim será, por exemplo, nos casos de utilização de dados neuronais para fins e marketing, tornando o sujeito ainda mais transparente, inclusive em seus gatilhos mentais, para fins de direcionamento de práticas comerciais e potencialmente tornando as dark patterns ainda mais efetivas; ou mesmo manipulando comportamentos ao adaptar produtos e serviços para explorar vulnerabilidades cognitivas ou emocionais, intensificando determinados tipos de emoções para que o sujeito se mantenha mais tempo na fruição de serviços digitais. Ainda, os dados neuronais podem revelar informações altamente pessoais e íntimas, como desejos, crenças e pensamentos, os quais se tem o direito de manter privados. A partir desses dados também se poderá barrar acessos a oportunidades – de consumo e outras, como o mercado de trabalho – a partir da seleção e favorecimento de pessoas com certos tipos de atividades cerebrais, o que pode resultar em discriminações contra aqueles com diversidade neurológica.

Com esses exemplos, vê-se que o potencial para uso indevido ou implementação inadequada suscita preocupações quanto à invasão nas esferas mais privadas das pessoas. Isso apresenta um espectro de riscos, incluindo neuromodulação, neurodiscriminação, homogeneização da identidade, manipulação, controle do comportamento social[4], além de poder infligir dano físico ou psicológico[5]. Nesse sentido, juridicamente, existe um debate em curso, especialmente nos países da América Latina, sobre a questão de se os dados neurais realmente constituem uma entidade inovadora que merece proteção sob estruturas distintas de direitos humanos.

Embora interpretações e aplicações adaptativas de direitos e leis já existentes possam ser cruciais, a paisagem em constante evolução exige a consideração de novos neurodireitos como direitos humanos, seja em favor da ampliação do atual quadro de direitos humanos para abranger direitos explicitamente adaptados ou mesmo totalmente novos que sejam aptos a proteger o domínio do cérebro e da mente de um indivíduo – os neurodireitos.

A questão de saber se os neurodireitos se qualificam como direitos humanos não é, contudo, isenta de críticas. Os direitos humanos são garantias legais essenciais, abstratas e universais. Esses direitos abordam aspectos vitais como vida, liberdade, igualdade e acesso a recursos básicos. Embora a lista tenha se expandido ao longo das últimas sete décadas, esse crescimento tem sido cauteloso devido a preocupações com a inflação e, consequentemente, a sua desvalorização. Isso porque são instrumentos poderosos que podem remodelar cenários legais e impactar inúmeras vidas e a economia, de modo que expandir o leque de direitos reconhecidos poderia levar à diluição de sua importância e eficácia. O temor é que, ao transformar cada interesse significativo ou preocupação válida em uma questão de direitos humanos, a natureza excepcional, o caráter exigível e a prioridade categórica dos direitos humanos possam ser comprometidos[6].

Dada a urgência da temática, porém, parece-nos que considerar neurodireitos como um novo desdobramento de direitos humanos é a abordagem mais adequada, haja vista que os direitos humanos desempenham um papel central na formatação de mandatos legislativos, diretrizes éticas e convenções sociais predominantes em escala global. Consequentemente, eles fornecem uma estrutura normativa de cunho também internacional e abrangente na qual a proteção de dados neuronais deve encontrar seu espaço, informando práticas de coleta e tratamento, bem como de governança para o ciclo de vida de tais dados. Portanto, adotar um approach baseado em direitos humanos pode servir como um guia orientador para aprimorar a compreensão, informar políticas públicas, nortear as atividades privadas e moldar regulamentações nesse domínio[7].

Como a sociedade lidará com a perspectiva de interfaces cérebro-computador capazes de decifrar pensamentos e transferir informações diretamente para sistemas de IA ainda é um capítulo a ser escrito. Na seara internacional, a discussão continua em aberto no que diz respeito à proteção de dados neuronais e o bem-estar mental[8].

De todo modo, o objetivo é proteger os indivíduos contra possíveis invasões no que toca à privacidade, a autonomia e a integridade mental, do mesmo modo que a liberdade cognitiva, a identidade pessoal, o livre arbítrio, a igualdade de acessos a melhoramentos cognitivos e a proteção contra discriminações (Iberdrola, s.d). Através do reconhecimento deliberado dos neurodireitos, pretende-se garantir que tanto os dados cerebrais das pessoas quanto o processamento desses dados sejam regidos por considerações éticas e de direitos humanos[9].

À medida que a “telepatia tecnológica” se torna uma possibilidade cada vez mais palpável, a proteção dos neurodireitos torna-se uma prioridade crucial. Garantir que os avanços tecnológicos sejam aplicados com responsabilidade e respeito pelos valores éticos e legais é essencial para moldar um futuro em que a mente humana volte a ser preservada como um santuário intocável. A urgência desse assunto fica evidente devido ao surgimento de técnicas inovadoras de mineração de dados, tecnologias amplamente difundidas e ao avanço da IA generativa, todos os quais instigam uma reflexão profunda sobre a necessidade de atualizações legais para proteger o valor informativo da “mente digital”[10], preocupação esta também em nível internacional (como a OCDE).

Dessa maneira, a proteção dos neurodireitos não é apenas um desafio jurídico relevante a todos, mas uma questão fundamental para a preservação da dignidade e liberdade individual no século XXI. Assim como o Chile e o México, o Brasil está se movendo em direção à fundamentalidade dos neurodireitos. A Proposta de Emenda à Constituição n. 29 de 2023 pretende alterar a Constituição Federal Brasileira para incluir, no rol dos direitos fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica, incluindo no art. 5º o inciso LXXX: “o desenvolvimento científico e tecnológico assegurará a integridade mental e a transparência algorítmica, nos termos da lei”.

Para resolver essas questões complexas, os legisladores e juristas precisam se adaptar às mudanças tecnológicas rápidas e, ao mesmo tempo, garantir que os direitos humanos fundamentais sejam protegidos em uma visão transdisciplinar do problema envolvendo também eticistas, neurocientistas e desenvolvedores de inovações tecnológicas. Ainda, também será necessária a cooperação internacional entre blocos e países para o estabelecimento de um framework jurídico e de governança de dados neuronais, dada ainda a natureza transnacional das atividades das grandes plataformas e gatekeepers. Isso requererá a definição de padrões éticos e legais que abordem os desafios específicos trazidos pela interseção entre a IA e a mente humana, tendo a regulamentação cuidadosa como essencial para garantir que as novidades tecnológicas sejam usadas em benefício da sociedade e das pessoas… e não em seu detrimento.


[1] Ienca, M., et al. (2022). Towards a Governance Framework for Brain Data. Neuroethics, 15(20), 14 p.

[2] Susser, D., & Cabrera, L. Y. (2023). Brain Data in Context: Are New Rights the Way to Mental and Brain Privacy? AJOB Neuroscience, 1-12.

[3] Paz, A. W. (2022). Is Your Neural Data Part of Your Mind? Exploring the Conceptual Basis of Mental Privacy. Minds and Machines, 32, 395-415.

[4] Pintarelli, C. (2022). A proteção jurídica da mente. Revista de Direito da Saúde Comparado, 1(1), 104-119.

[5] Ienca, M., & Andorno, R. (2017). Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology. Life Sciences, Society and Policy, 13, 5. 1-27.

[6] Bublitz, J. C. (2022). Novel Neurorights: From Nonsense to Substance. Neuroethics, 15(1), 7.

[7] Kellmeyer, P. (2022). ‘Neurorights’: A Human Rights–Based Approach for Governing Neurotechnologies. In S. Voeneky, P. Kellmeyer, O. Mueller, & W. Burgard (Eds.), The Cambridge Handbook of Responsible Artificial Intelligence: Interdisciplinary Perspectives. pp. 412-426. Cambridge: Cambridge University Press.

[8] Ligthart, S. et al. (2023). Minding Rights: Mapping Ethical and Legal Foundations of ‘Neurorights’. Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics, 1–21.

[9] Ienca, M., et al. (2022). Towards a Governance Framework for Brain Data. Neuroethics, 15(20), 14 p.

[10] Ienca, M., & Malgieri, G. (2023). Mental data protection and the GDPR. Journal of Law and the Biosciences, 1-19.