A essencialidade da “lei dos seis meses”

Doutrina

Todos os meses, a certeza de despesas associadas ao consumo de água, energia elétrica e gás natural acompanha a maioria das famílias portuguesas. Reconhecendo o interesse que informação relativa a estes consumos suscita nos seus telespectadores, a rubrica Contas-Poupança do Jornal da Noite (SIC) divulgou, no passado dia 2 de outubro, uma breve reportagem centrada na Lei n.º 23/96, de 26 de julho, apelidando-a de “lei dos seis meses”.

Esta é, em rigor, a Lei dos Serviços Públicos Essenciais. Não pode ignorar-se que o jornalismo procure simplificar linguagem a fim de mais facilmente divulgar informação e, assim, aumentar níveis de audiência. Contudo, ao fazê-lo é expectável que a mais irrelevante das imprecisões não escape ao atento seguidor do Direito do Consumo. É sob essa perspetiva que este texto é escrito.

Pensada com o objetivo de criar no ordenamento jurídico mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, a Lei dos Serviços Públicos Essenciais condensa, em 16 artigos, um regime relevante sobretudo para prestações de serviços continuados e duradouros, como acontece com os serviços de água, energia elétrica e gás natural, mas também com o serviço de comunicações eletrónicas, o serviço postal e o serviço de transporte de passageiros.

Ora, o conceito de utente a que este diploma recorre abrange qualquer pessoa a quem seja prestado um serviço público essencial, isto é, abrange pessoas singulares mas também pessoas coletivas públicas e privadas. Além disso, consideram-se serviços públicos essenciais todos os que, taxativamente, o n.º 2 do art. 1.º da referida Lei elenca. A este respeito, deve notar-se que esta lista tem sido alargada ao longo dos anos.

Regressando ao motivo pelo qual esta lei foi apelidada de “lei dos seis meses”, cumpre olhar para o n.º 1 do seu art. 10.º, de acordo com o qual o direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação. Quer isto dizer que, caso o prestador de serviços não inicie um processo judicial ou apresente um requerimento de injunção no que respeita a um consumo relativo a um período de faturação com mais de 6 meses de anterioridade, o consumidor pode invocar a prescrição para se opor ao pagamento desses mesmos serviços.

Aqui chegados, deve admitir-se a hipótese de litígio entre utente e prestador de serviços. De acordo com o art. 15.º deste diploma, o utente pode exercer o seu direito potestativo à arbitragem, o que não acontece com o prestador de serviços. Só o utente pode impor ao prestador de serviços a arbitragem – e não vice-versa. Esta possibilidade evidencia uma das mais célebres características do Direito do Consumo: a proteção do consumidor (ou utente) face a um profissional (ou prestador de serviços).

Pese embora a sua parca difusão, a verdade é que a Lei dos Serviços Públicos Essenciais concede a todos os utentes direitos bastante importantes, tornando-a verdadeiramente essencial no amplo leque de normas que integram o Direito do Consumo.

Energia elétrica, prescrição e acesso ao contador

Jurisprudência

Dedicamo-nos hoje à análise de uma interessante decisão do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa (CACCL), proferida no dia 22 de janeiro de 2020.

Estava em causa, no essencial, a eventual prescrição (ou caducidade) do direito do fornecedor de energia elétrica à diferença entre o valor estimado (e cobrado) e o valor real correspondente ao consumo efetivo entre 29/11/2013 e 9/10/2019.

Apesar de a empresa ter enviado cerca de 20 cartas à consumidora e estarem registadas 12 deslocações ao local, nunca foi facilitado o acesso ao contador, que se encontra dentro da residência. Por a situação ser imputável à consumidora, o tribunal arbitral considera que não se verifica a prescrição do direito da empresa, nos termos do art. 10.º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96).

O art. 10.º-2 estabelece que, “se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento”.

Não se prevê neste regime, pelo menos expressamente, a situação de a contagem do consumo real ser impedida pelo consumidor e a sua interação com o regime da prescrição.

O art. 67.º-5 do Decreto-Lei n.º 194/2009 contém uma regra especial aplicável ao contrato de prestação de serviços de fornecimento de água: “o prazo de caducidade das dívidas relativas aos consumos reais não começa a correr enquanto não puder ser realizada a leitura por parte da entidade gestora por motivos imputáveis ao utilizador” (itálico nosso). Esta regra deve ser estendida, por analogia, aos restantes serviços públicos essenciais, nomeadamente a eletricidade, que está em causa no processo em análise, que implicam leituras de contador para aferição dos consumos reais, podendo sempre recorrer-se, adicionalmente, à figura do abuso do direito, que pode limitar, estando verificados os pressupostos para a sua aplicação, o direito do utente a invocar a caducidade.

Concorda-se, portanto, com a solução dada na sentença, em especial tendo em conta que o comportamento da consumidora é particularmente censurável. É preciso não esquecer, contudo, que também cabe à empresa evitar que estas situações de incumprimento se prolonguem, não devendo arrastar o problema ao longo de tanto tempo, com vista à prevenção do endividamento excessivo dos consumidores.

Do ponto de vista processual, a decisão suscita algumas dúvidas.

Com efeito, o tribunal arbitral condena a consumidora ao pagamento do valor devido, apesar de não ser referida na sentença a dedução de qualquer pedido por parte da empresa. A ação é proposta pela consumidora, pelo que esta apenas deverá poder ser condenada se houver um pedido reconvencional.

Outra questão interessante consiste em parecer ter existido um acordo entre as partes, embora posterior ao momento em que a decisão é proferida. Pode ler-se que, “proferida a decisão e ouvida a consumidora quanto às forma do pagamento da quantia não prescrita e em dívida, esta, manifestou dificuldade em pagar o valor em dívida de uma só vez, tendo-se proposto e foi aceite pela requerida reclamada, que o pagamento seja efetuado em 15 prestações mensais e sucessivas”.

A existência de um acordo posterior à decisão, mediado pelo julgador e referido na sentença constitui um interessante exemplo da informalidade que marca a resolução alternativa de litígios de consumo, conseguindo obter-se uma solução mais adequada aos interesses das partes.

Na minha opinião, a decisão deveria, no entanto, pelo menos em parte, ser homologatória do acordo obtido (e não condenatória, como se deixou, aliás, já escrito).