Kits de reparação self-service: sustentabilidade e (des)proteção do consumidor

Doutrina

No último trimestre de 2021 foi publicado o Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, que veio transpor para a Ordem Jurídica Portuguesa a Diretiva (EU) 770/2021 e a Diretiva (UE) 2019/771 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativas a contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais e contratos de compra e venda de bens, respetivamente.

Além do seu propósito de modernizar a legislação de Direito do Consumo e fazer refletir a realidade digital que atualmente faz parte da nossa vida, estas novas normas procuram também promover a sustentabilidade, como aliás é percetível em prorrogativas como a do artigo 21.º do referido Decreto-Lei, que prevê o dever de o produtor disponibilizar peças sobresselentes durante um prazo de 10 anos após a colocação da última unidade do bem em mercado, procurando prolongar a vida dos bens e evitando a sua substituição desnecessária.

É inegável que todo o processo de industrialização, assim como a adoção das novas tecnologias de produção em massa, tem impulsionado o desenvolvimento económico e sido absolutamente fundamentais para a melhoria da qualidade de vida de todos os que temos a sorte de poder aproveitar os resultados desta produção de bens.

Não obstante, é inevitável reconhecer que esses avanços têm tido um impacto significativo no meio ambiente, em particular para a nossa análise, nos resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos. O Parlamento Europeu divulgou que se reciclam menos de 40% dos resíduos deste tipo de equipamentos, evidenciando um atraso notório na reciclagem em relação à produção.

Nesse sentido, tornou-se essencial implementar medidas que prevejam e promovam a sustentabilidade em todos os setores da economia, incluindo no setor dos equipamentos elétricos e eletrónicos. Este processo implica não só a busca por processos de produção mais eficientes e ecologicamente responsáveis, como também a redução do desperdício através da adoção de práticas que visem a reparação de bens de forma a conservá-los durante mais tempo, evitar a sua substituição desnecessária e, consequentemente, conservar o nosso planeta para as futuras gerações.

A interseção entre a industrialização e a sustentabilidade é fundamental para garantir um equilíbrio entre o progresso económico e a preservação ambiental.

Neste contexto, as empresas começam a pôr em prática a venda de kits de reparação em self-service, que consistem na venda ou aluguer de ferramentas e de peças específicas para que os consumidores possam, com a ajuda das instruções, também disponibilizadas, reparar os seus equipamentos eletrónicos em casa.

A Apple e a Samsung já disponibilizam estes kits de reparação em vários países da Europa, incluindo Espanha, pelo que se pode esperar que possa ser uma realidade em breve no nosso país.

Em primeiro lugar, importa distinguir esta realidade quando aplicada durante o período de responsabilidade do profissional (anteriormente conhecido como “garantia”) – três anos – ou num período posterior. Isto ocorre porque, do ponto de vista do comportamento do consumidor, a sua disponibilidade para aderir a este processo de reparação self-service pode variar consoante se encontre dentro ou fora do período de responsabilidade do profissional, no limite, mostrando mais ou menos resistência a estas novas soluções.

Durante os primeiros três anos, os consumidores podem sempre solicitar ao profissional a reparação dos seus equipamentos eletrónicos, pelo que não deverão tender a optar por adquirir, durante esse período, um kit de reparação self-service e correr o risco de abrir o equipamento e não conseguir reparar ou cometer algum erro e danificar ainda mais o seu equipamento eletrónico.

Esse risco existe porque, embora a garantia associada aos kit de reparação self-service seja sempre adicional em relação à garantia legal originária durante o período de responsabilidade do profissional, as empresas que venderam os bens podem não querer assumir a responsabilidade por erros que os consumidores possam cometer durante a reparação self-service, se não estiverem diretamente relacionadas com aspetos sob o controlo desses profissionais, por exemplo, defeitos nas ferramentas ou instruções deficientes ou insuficientes. Note-se que embora os kits de reparação self-service possuam uma garantia própria, esta deverá apenas incluir a sua conformidade e não o ato ou as consequências da reparação em si.

Os kits de reparação self-service serão, assim, uma solução mais atrativa para a fase da vida dos equipamentos eletrónicos após o término do período de responsabilidade do profissional. Isto ocorre porque, a partir desse momento, as reparações dos equipamentos já correm por conta dos consumidores e são frequentemente dispendiosas, levando muitas vezes os consumidores a pensar em “comprar um novo” em vez de reparar.

Agora, caso os kits de reparação self-service sejam vendidos por valores razoáveis, podem representar uma excelente alternativa, tanto para os consumidores, como para as empresas que valorizam a manutenção de clientela e os valores de sustentabilidade.

Em suma, tudo evidencia que Portugal pode em breve estar no radar destas empresas multinacionais de tecnologia e é positivo considerar estas opções de reparação para não só otimizar a vida nos nossos equipamentos eletrónicos, como também fomentar a consciencialização ecológica e sustentável que deve pautar os nossos comportamentos enquanto consumidores atentos e cautelosos.

Lei n.º 28/2023 – Mais uma peça no combate à obsolescência programada

Legislação

No passado dia 4 de julho, foi publicada no Diário da República a Lei n.º 28/2023, que procedeu à nona e mais recente alteração da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor),

Esta lei veda a renovação forçada de serviços ou equipamentos cuja vida útil não tenha expirado.

Com efeito, o artigo 9.º, que tem como epígrafe “Direito à proteção dos interesses económicos”, tem agora no seu n.º 7 a seguinte redação: “É vedada ao fornecedor de bens ou ao prestador de serviços a adoção de quaisquer técnicas que visem reduzir deliberadamente a duração de vida útil de um bem de consumo a fim de estimular ou aumentar a substituição de bens ou a renovação da prestação de serviços que inclua um bem de consumo”.

Alterou-se a redação de 2021, resultante do DL n.º 109-G/2021, de 10 de Dezembro. A norma era semelhante e tinha como fim não se estimular ou aumentar a substituição de bens. Agora a prestação de serviços é expressamente contemplada, ficando o consumidor ainda mais protegido contra as práticas de obsolescência programada. Note-se que as expressões fornecedor e prestador de serviços eram já utilizadas no n.º 6 do mesmo artigo[1].

Como já referido neste Blog, o Novo Plano de Ação para a Economia Circular, a propósito do Pacto Ecológico Europeu[2] que visa transformar a UE numa economia com impacto neutro no clima, prevê o combate à obsolescência precoce como estratégia da UE no domínio da transição ecológica, domínio considerado prioritário na Nova Agenda do Consumidor[3]. O Pacto Ecológico Europeu pretende que a Europa seja o primeiro continente neutro do ponto de vista carbónico em 2050, o que passa por tecnologias mais ecológicas, que evitam compras recorrentes e desnecessárias.

Também a obsolescência programada é acutelada pelo Direito, designadamente pelo indicado DL de 2021 que transpôs parcialmente a Diretiva (UE) 2019/2161. Também a Diretiva (UE) 2019/770,  no artigo 8.º-1-b), relativo aos requisitos objetivos de conformidade, se refere a “funcionalidade, compatibilidade, acessibilidade, continuidade e segurança, que são habituais em conteúdos ou serviços digitais do mesmo tipo e que o consumidor possa razoavelmente esperar”, ainda que seja uma abordagem muito tímida[4] ao tema da obsolescência programada. Veja-se igualmente o considerando 32 da Diretiva (UE) 2019/771, onde se refere que “assegurar uma maior durabilidade dos bens é importante para se alcançarem padrões de consumo mais sustentáveis e uma economia circular”, devendo ser assegurada uma “durabilidade que é normal para bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar dada a natureza dos bens, incluindo a eventual necessidade de manutenção razoável dos bens”. A durabilidade é avaliada para efeitos de conformidade. Dado que vivemos numa sociedade altamente consumista, a UE reconhece que a transformação ecológica é indissociável da transformação digital[5], apostando assim no combate à obsolescência, quer precoce, quer programada.


[1] “É vedado ao fornecedor ou prestador de serviços fazer depender o fornecimento de um bem ou a prestação de um serviço da aquisição ou da prestação de um outro ou outros”.

[2] Pacto Ecológico Europeu [COM(2019) 640 final de 11 de dezembro de 2019].

[3] A Agenda abrange cinco domínios prioritários: (1) Transição ecológica; (2) Transformação digital; (3) Reparação e aplicação dos direitos dos consumidores; (4) Necessidades específicas de determinados grupos de consumidores; e (5) Cooperação internacional.

[4] Jorge Morais Carvalho, “Venda de Bens de Consumo e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – As Diretivas 2019/771 e 2019/770 e o seu Impacto no Direito Português”, in Revista Electrónica de Direito, n.º 3, 2019, p. 76.

[5] Construir o futuro digital da Europa [COM(2020) 67 final de 19 de fevereiro de 2020].

“A-Palavra-Que-Não-Pode-Ser-Pronunciada” – Pagar com dados pessoais em Portugal e em Espanha

Doutrina

Por muito desconfortável que possa parecer, pagar com os seus próprios dados pessoais através do consentimento para o tratamento de dados no contexto da contratação digital é uma realidade. O Supervisor Europeu Da Proteção De Dados (EDPS) no Parecer 4/2017 sobre a Proposta 634/2015 relativa aos contratos de fornecimento de conteúdos digitais e o Gabinete Europeu De Proteção De Dados (EDPB) nas Orientações 5/2020 sobre o consentimento para o tratamento de dados têm sido defensores deste desconforto. No entanto, a realidade do pagamento com dados tem continuado a desenvolver-se, o que torna necessário estabelecer regras mínimas em relação ao pagamento com dados.

Em primeiro lugar, um contrato em que os dados são a contraprestação é um contrato tão oneroso como qualquer outro contrato em que a contraprestação é monetária; por conseguinte, o consumidor também deve beneficiar de proteção. É o que se verifica, por exemplo, no Decreto-Lei 84/2021, que transpõe a Diretiva 2019/770, que estabelece que, quando o consumidor fornece dados pessoais para usufruir de conteúdos ou serviços digitais, deve ser protegido por um conjunto de direitos, nomeadamente em caso de incumprimento ou desconformidade.

A noção de onerosidade encontra-se na catalogação das causas do contrato no art. 1274.º do CC espanhol. Não existe equivalente no CC português, mas existe uma distinção entre onerosidade e gratuitidade em vários contratos em especial. Essencialmente, um contrato é oneroso quando é fonte recíproca de atribuições patrimoniais; e é gratuito quando, em vez dessa reciprocidade, apenas uma das partes se enriquece à custa da outra, sem dar qualquer contrapartida. Para classificar um contrato como oneroso, não importa se a contrapartida é monetária ou de qualquer outro tipo, desde que tenha utilidade económica em sentido lato. E os dados têm utilidade económica.

Estamos perante um pagamento com dados pessoais quando três circunstâncias estão presentes em simultâneo: (1) o tratamento dos dados baseia-se no consentimento da pessoa em causa; (2) o fornecedor do serviço ou do conteúdo digital associa a execução ao consentimento do consumidor; (3) se o consumidor retirar o consentimento ao tratamento dos dados, tem de enfrentar as consequências contratuais relacionadas com a restituição recíproca da execução, mas não sofre qualquer dano adicional.

O último requisito é mais uma consequência: se os dados constituem um pagamento que torna o contrato oneroso, a sua retirada deve ter consequências contratuais. Caso contrário, em vez de liberdade de consentimento, estaríamos perante uma irresponsabilidade de consentimento, o que geraria um desequilíbrio contratual inaceitável. No entanto, nenhum dano suplementar seria causado, uma vez que o RGPD o proíbe (art. 7.º, n.º 3, e cons. 42 in fine).

Apesar da realidade generalizada do pagamento com dados, existem dificuldades regulamentares associadas a uma certa interpretação do RGPD e à transposição e aplicação nacional do RGPD por alguns Estados-Membros. A Diretiva 2019/770, nos seus considerandos 39 e 40, deixa aos Estados-Membros a responsabilidade de regular as consequências contratuais da concessão e retirada do consentimento para o tratamento de dados pessoais, reconhecendo simultaneamente a natureza imperativa do RGPD neste ponto. O que nem o RGPD nem a Diretiva 2019/770 fazem é fornecer uma interpretação concreta da responsabilidade do consumidor em relação à utilização do seu consentimento para o tratamento de dados como pagamento. O artigo 7-4 do RGPD estabelece que, ao avaliar se o consentimento foi dado livremente, deve ser tido em conta se a prestação de um serviço está condicionada ao consentimento para o tratamento de dados pessoais que não são necessários para a execução desse contrato; mas não diz em que sentido é que isso deve ser tido em conta. Proponho, portanto, uma interpretação que permita a coexistência da proteção de dados pessoais e da economia de dados.

Em Espanha, o art. 6.3 da LO 1/2018 estabelece que “A execução do contrato não pode ser condicionada ao consentimento do titular dos dados para o tratamento de dados pessoais para fins não relacionados com a manutenção, o desenvolvimento ou o controlo da relação contratual”. Esta afirmação resume a posição do EDPB e da EDPS nos documentos acima referidos e implicaria uma proibição de pagamento com dados ou, no mínimo, uma antinomia com artigos como o 119.º do TRLDCU, que fala explicitamente de “dados como contraprestação”.

A situação em Portugal é menos problemática. Tanto na perspetiva da Lei 58/2019 (sobre proteção de dados) como na perspetiva do Decreto-Lei 84/2021 (que transpõe a Diretiva 2019/770).

Na perspetiva do direito do consumo, o Decreto-Lei 84/2021 refere que o consumidor fornece dados pessoais para usufruir de conteúdos e serviços digitais, mas não se refere “A-Palavra-Que-Não-Pode-Ser-Pronunciada” (“contraprestação”), seguindo, neste aspeto, o Parecer 4/2017 do EDPS em relação à então Proposta de Diretiva 634/2015. Neste sentido de prudência, o art. 3-3-b) do Decreto-Lei 84/2021 copia o art. 3-1-2 da Diretiva. Quanto à Lei 58/2019, não desenvolve o RGPD em matéria de consentimento e, portanto, não opta por nenhuma interpretação específica. Esta falta de desenvolvimento é uma vantagem, pois nem a Lei 58/2019 nem o Decreto-Lei 84/2021 impedem a interpretação do RGPD num sentido favorável ao pagamento com dados, ainda que não o designemos por esse nome

Green Claims Directive Proposal: hello from the other side

Doutrina, Legislação

No passado dia 22 de março, foi divulgada a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à fundamentação e comunicação de alegações ambientais explícitas (Green Claims Directive). Esta Proposta surge no seguimento da Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera as Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/UE no que diz respeito à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e de melhor informação, visando adensar o regime legal e complementar as propostas de alteração à Diretiva relativa às práticas comerciais desleais. Além da Green Claims Directive, também no passado dia 22 de março foi divulgada a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho sobre as regras comuns para a promoção da reparação de bens e que propõe alterar o Regulamento n.º 2017/2394 e as Diretivas 2019/771 e 2020/1828.

 O mote da sustentabilidade no consumo já tinha sido dado em 2019, um ano mais longínquo do que há 4 anos atrás, com o Pacto Ecológico Europeu. A perspetiva de que o consumidor é também ele uma parte ativa na causa ambiental conheceu oficialmente a luz do dia há já quase meia década. Muitos anos depois, no final de 2020, com a Nova Agenda do Consumidor, a intenção de combate ao greenwashing ficou mais clara, sobretudo após ser detetada a proliferação do fenómeno. Greenwashing, para todos os efeitos, será a prática que consiste em maquilhar uma empresa ou um bem, apresentando-a/o como benigna/o ambientalmente (sustentável, portanto), sendo que essas características não têm correspondência de facto, visando atrair mais consumidores, sobretudo os interessados nessas características. Este é sem dúvida o momento para a discussão destas matérias, com uma União Europeia cada vez mais comprometida com o direito do consumo e suas ligações extraprivatísticas, mais uma vez se verificando o empenho da UE em regular para o seu tempo e no sentido das causas dos europeus.

A Proposta que esta semana veio a público representa uma tentativa de legislar o fenómeno do greenwashing, que já vem sendo bem conhecido como prática habitual junto dos consumidores. O setor empresarial foi expedito no ajustamento às intenções de consumo mais sustentável por parte dos consumidores nos últimos anos, prezando por alegações ambientais ou de sustentabilidade social mesmo quando (i) tais referências eram esvaziadas de conteúdo; (ii) tais referências eram absolutamente falsas; (iii) tais referências, sendo verdadeiras, dissimulavam práticas não sustentáveis.

Um estudo da Comissão que analisou 150 alegações ambientais, em vários produtos, verificou que 53,3% dessas alegações eram vagas, enganosas ou infundadas, 40% não tinham qualquer fundamento factual e 50% da rotulagem verde não era objeto de verificação (ou, sendo, era fraca). Os próprios consumidores apresentam desconfiança em relação a estas alegações ambientais, em geral. Se, por um lado, esse ceticismo é demonstrativo da maior atenção dos consumidores em relação à atuação do profissional, por outro prejudica claramente a sua disponibilidade de escuta de alegações fidedignas, fazendo com que o consumidor, muitas vezes, ao duvidar da alegação, fique paradoxalmente desinformado.

Neste sentido, a Proposta de Diretiva relativa à capacitação dos consumidores para a transição ecológica já apresentara, em 2022, algumas medidas legislativas tendentes à superação do greenwashing. Especificamente no que ao diploma das práticas comerciais desleais diz respeito, são de destacar as seguintes propostas de alteração:

(i) Alargamento da lista das ações consideradas enganosas, estabelecidas no artigo 6.º, n.º 1 da Diretiva 2005/29/CE, visando incluir os conceitos de “impacto ambiental ou social”, “durabilidade” e “reparabilidade”;

(ii) Alteração do artigo 6.º, n.º 2 da mesma Diretiva, no sentido de se poder considerar enganosa, no seu contexto factual, a apresentação de uma alegação ambiental que não assente em compromissos e metas claras, objetivas e verificáveis, nem um sistema de controlo independente;

(iii) Aditamento de novas práticas comerciais que devem ser consideradas desleais em qualquer circunstância (artigo 5.º, n.º 5 da Diretiva e Anexo I), nomeadamente:

– Exibição de um rótulo de sustentabilidade que não se baseia num sistema de certificação ou que se baseia num sistema de certificação que não foi criado por autoridades públicas;

– Fazer uma alegação ambiental genérica para a qual o profissional não consegue demonstrar um desempenho ambiental reconhecido e relevante para a alegação;

– Fazer uma alegação ambiental sobre o bem na sua totalidade quando se refere apenas a uma determinada parte desse bem;

– Apresentar como característica distintiva do bem requisitos impostos por lei a todos os bens no mercado da União.

Na mais recente Proposta (Green Claims Directive), é reforçada a intenção de prevenção de manobras de greenwashing, regulando a forma como as empresas fundamentam e comunicam as suas alegações sustentáveis. No artigo 3.º, é proposto o estabelecimento de requisitos específicos quanto aos contornos de fundamentação das alegações ambientais que o profissional faça. Com particular interesse para o consumidor, no artigo 5.º são propostos os moldes de comunicação das alegações ambientais, nomeadamente, entre muitos outros, a inclusão da informação acerca de como o consumidor deve utilizar o bem de forma a obter o desempenho ambiental esperado e alegado (n.º 3). Estes moldes de comunicação são bastante alargados, provavelmente demasiado. Por outro lado, a Proposta vem também procurar regular as alegações ambientais comparativas, estabelecendo igualmente a forma como estas devem ser comunicadas ao consumidor. Além disso, como não poderia deixar de ser, a Proposta vem apresentar os requisitos que devem ser respeitados para que o profissional possa utilizar um determinado sistema de certificação ambiental. Muito interessante notar que um desses requisitos se prende com a existência de um sistema de reclamações e de resolução de litígios para questões relacionadas com a rotulagem/certificação. Não é menos interessante que a Proposta pareça sugerir que se encete o caminho para a diminuição da proliferação de sistemas de certificação, o que se compreende, considerando os já 230 rótulos disponíveis na UE.

Todas estas propostas são passíveis de contribuir para a promoção de consumidores mais informados e para o desincentivo à implementação de práticas de greenwashing pelo setor empresarial, como é evidente. No entanto, não é tão claro que o resultado da implementação de todas estas propostas venha a refletir-se em consumidores melhor informados, sobretudo se atentarmos na imensa quantidade de informação que deve ser comunicada ao consumidor (também) neste potencial diploma legislativo. Além disso, importa precisar que o caminho atual não se basta com uma estratégia de regulação a estrear do fenómeno. Na verdade, agora, importa justamente também implementar estratégias que devolvam a confiança e a certeza aos consumidores.

“Clean beauty”, talvez não tão clean

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Faz cerca de três anos desde que foram detetados os primeiros casos de Covid-19 em Portugal. Volvidos estes anos, é interessante pensar no impacto da pandemia no consumo e no consumidor.

Com alguma facilidade encontramos online vários estudos estatísticos que nos dão conta de um aumento do e-commerce, o que se compreende. Fruto dos períodos de confinamento e do encerramento temporário forçado das lojas físicas, muitos de nós passámos a fazer compras online, hábito que mantivemos mesmo após a reabertura das mesmas.

Segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) e Eurostat, em 2022, 43% dos indivíduos fizeram compras através da Internet, valor que tem aumentado, em especial, nos anos 2020 e 2021, conforme o relatório “O comércio eletrónico em Portugal e na União Europeia em 2022 – segmento residencial e empresarial” realizado pela ANACOM.
Dentro dos produtos físicos mais comprados pela Internet, a par de peças de vestuário/calçado e de refeições entregues ao domicílio, os produtos de cosmética, beleza e bem-estar assumem um papel de destaque (28%).

Com o uso de plataformas de reunião online, como o zoom, etc., somos confrontados com a nossa aparência em ângulos que podem não ser os que mais favorecem, o que, aliado a uma cultura de bem-estar e estilo de vida saudável, leva um crescimento do mercado da cosmética e da beleza.

De modo a cativar (ainda) mais clientes, as empresas apostam em aspetos que o consumidor valoriza e que podem ser diferenciadores dos demais concorrentes. Veja-se por exemplo a sustentabilidade na cosmética. Desde embalagens recicláveis, formas de produção mais sustentáveis e amigas do ambiente, mecanismos de recarga, ao consumo crescente de produtos sem plástico (champôs sólidos, cremes em barra e bombas de banho) temos testemunhado um grande investimento por parte de várias multinacionais.

A par desta aposta na sustentabilidade, assistimos ao fenómeno da “clean beauty” ou “beleza limpa”. Importa esclarecer do que se trata.

Procuramos uma definição legal, mas não existe, nem a nível nacional nem a nível internacional. Foram consultados vários sites de empresas de produtos de beleza na busca de algum consenso na definição, e concluímos que a “clean beauty” trata um conjunto de produtos que alegadamente não têm produtos “tóxicos”, e cujos ingredientes são naturais.

Além do problema de saber o que é a “clean beauty”, deparamo-nos com outro dilema: o que são produtos tóxicos. Se por um lado, não nos parece que alguém queira produtos tóxicos na sua pele/organismo, por outro questionamo-nos se os produtos que não tenham a etiqueta “clean beauty” são de algum modo prejudiciais.

Há de fato produtos e ingredientes potencialmente perigosos, havendo até restrições a nível europeu quanto ao seu uso.  A este propósito vejam-se os vários pareceres do  Comité Científico de Segurança do Consumidor da Comissão Europeia. Se a avaliação da segurança dos ingredientes cosméticos é feita ao abrigo do Regulamento (CE) n.º 1223/2009[1], qual é o propósito da “clean beauty”?

Será apenas uma estratégia de marketing, que abre caminho para um meio de conseguir cobrar mais por um produto? Um consumidor não informado do “vazio” do termo, não é influenciado por esta alegação?  Enquadrar-se-á numa prática comercial desleal, nos termos do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, ou é antes uma prática conforme à diligência profissional?

Poderemos considerar publicidade enganosa de acordo com o Decreto-Lei n.º 330/90, de 23 de outubro? Mas são falsas alegações? E na verdade, o que é alegado?

A informação é tutelada nos vários diplomas de direito do consumo, desde logo na Lei n.º 24/96, de 31 de julho, nos artigos 7.º e 8.º. Todavia, parece nos que a situação da “clean beauty” é até prévia, deste logo seria informar do quê?

O próprio termo clean assumiu-se como uma tendência nas mais diversas áreas, por exemplo no mundo da moda, com termos de “clean look” ou “clean girl”, muito devido às redes sociais, em especial ao TikTok. Tornou-se uma expressão popular, que impulsiona ainda mais a “clean beauty” por associação de termos.

Parece-nos imperativo uma definição legal da “clean beuty” para que o consumidor esteja devidamente informado. Para já, fica a reflexão (diga-se inquietação).


[1] Regulamento (CE) n.º 1223/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de novembro de 2009, relativo aos produtos cosméticos. As alterações sucessivas aos seus anexos encontram elencadas no site da Infarmed.

Lei n.º 10/2023 completa a transposição da Diretiva (UE) 2019/2161

Doutrina

Em dezembro de 2021, o Decreto-Lei n.º 109-G/2021, de 10 de dezembro, transpôs para a ordem jurídica portuguesa uma parte significativa da Diretiva (UE) 2019/2161, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019, também conhecida por “Diretiva Omnibus”, por alterar uma série de diplomas europeus em matéria de Direito do Consumo. Em texto anterior, Sofia Assunção Soares comentou aqui no blog as alterações feitas em matéria de práticas comerciais desleais.

Como se pode ler no preâmbulo do referido decreto-lei, excluiu-se então “a matéria sancionatória que se insere na reserva legislativa de competências da Assembleia da República”. Com a dissolução da Assembleia da República em dezembro de 2021, foi necessário aguardar pela nova legislatura e por um novo processo legislativo para termos a transposição completa do diploma europeu.

Este processo ficou concluído agora, com a publicação da Lei n.º 10/2023, de 3 de março, que, como indica o seu art. 1.º-a), “completa a transposição da Diretiva (UE) 2019/2161”. Além das alterações no domínio das sanções contraordenacionais, aproveitou-se para corrigir alguns problemas do anterior diploma de transposição.

São alterados cinco diplomas legais, relativos às cláusulas contratuais gerais, à indicação de preços, às práticas com redução de preços, às práticas comerciais desleais e aos contratos celebrados à distância. Com exceção deste último, nos restantes as alterações circunscrevem-se à matéria sancionatória.

Não abordo neste texto em pormenor as alterações em matéria sancionatória, mas não quero deixar de fazer duas notas sobre o assunto.

Em primeiro lugar, deve destacar-se que as sanções contraordenacionais no caso de infrações com impacto em pelo menos três Estados-Membros da União Europeia passam a ter um limite máximo das coimas correspondente a 4% do volume de negócios anual do infrator nos Estados-Membros em causa ou, se não houver essa informação, a dois milhões de euros. Sobre esta possibilidade, falámos neste texto de fevereiro de 2021. A perspetiva adotada acabou por ser minimalista, não se aproveitando a transposição da Diretiva para aumentar o valor das coimas no que respeita às restantes infrações.

Em segundo lugar, lamento que não se tenha aproveitado a oportunidade para incluir um regime sancionatório na Lei de Defesa do Consumidor. Tal regime sancionatório é imposto pelo direito europeu. Ao transpor parte das normas da Diretiva 2011/83/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, na Lei de Defesa do Consumidor (v. arts. 8.º e 9.º-A), impunha-se prever consequências em caso de incumprimento das normas. As sanções contraordenacionais são uma parte muito relevantes dessas consequências. Acresce que as regras relativas ao limite máximo das coimas também têm de ser aplicadas em caso de infrações aos arts. 8.º e 9.º-A da Lei de Defesa do Consumidor (v. art. 24.º da Diretiva 2011/83/UE, na redação dada pela Diretiva 2019/2161) e não existe, de momento, base legal para a sua aplicação. Também o Decreto-Lei n.º 59/2021, de 14 de julho, que estabelece o regime aplicável à disponibilização e divulgação de linhas telefónicas para contacto do consumidor, deveria ter sido alterado, uma vez que transpõe o art. 21.º da Diretiva 2011/83/UE, alterada pela Diretiva 2019/2161. A matéria sancionatória deve, portanto, ser igualmente adaptada às alterações introduzidas por este último diploma.

Além das alterações em matéria sancionatória, a Lei n.º 10/2013 introduziu algumas modificações noutros domínios no Decreto-Lei n.º 24/2014, que regula os contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento.

As alterações visam corrigir imperfeições na transposição, na sequência do DL 109-G/2021.

Numa técnica duvidosa do ponto de vista legístico, corrige-se o português de algumas normas. Por exemplo, o art. 4.º-B-1-b) do DL 24/2014 passa a prever que o prestador do mercado em linha tem de “identificar, de forma clara e inequívoca, as avaliações feitas em troca de algum benefício, quando disso tenha ou deva ter conhecimento”. Na versão anterior, determinava-se que tinha o dever de “identificar de forma clara e inequívoca a avaliação cujos autores tenham recebido algum benefício em troca da sua avaliação, quando disso tenha, ou deva ter, conhecimento”. Com o mesmo objetivo, v. a nova redação do art. 4.º-B-3. É pena que, por exemplo, na nova redação do art. 17.º-1-l), o português tenha sido, por sua vez, um pouco maltratado (“fornecimento, que não em suporte material, de conteúdos digitais, se a execução do contrato tiver tido início e do mesmo resultar para o consumidor a obrigação de pagar, quando (…)”).

São ainda corrigidas algumas remissões para outros artigos do mesmo diploma, as quais tinham ficado erradas na sequência do DL 109-G/2021 – v. arts. 4.º-3 e 10.º-2 e 3 do DL 24/2014. Outras correções ficaram por fazer. Por exemplo, é necessário corrigir, no art. 5.º, a remissão para o artigo anterior. O artigo anterior é o art. 4.º-B e não o art. 4.º, para o qual se pretende remeter nesse preceito.

São, no entanto, feitas duas alterações de substância ao regime, impostas pelo direito europeu.

No art. 12.º, são introduzidas normas sobre o destino dos dados que não sejam dados pessoais do consumidor em caso de este exercer o direito de arrependimento. Estas normas constavam da Diretiva 2019/2161 (alteração ao art. 13.º da Diretiva 2011/83/UE) e não tinham sido transpostas anteriormente para a ordem jurídica portuguesa. Estas normas têm paralelo no art. 36.º do DL 84/2021, a propósito da resolução do contrato de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais em caso de desconformidade com o contrato.

No art. 4.º-1-a) do DL 24/2014, são eliminadas duas palavras (“caso existam”), mas a alteração é bastante significativa. Até agora, num contrato celebrado à distância, o profissional apenas tinha o dever de indicar o seu número de telefone e o seu endereço de correio eletrónico, caso existissem. Com a eliminação daquelas duas palavras, o profissional passa a ter de disponibilizar quer o número de telefone quer o endereço de correio eletrónico. Isto significa que deixa de ser possível ter uma atividade profissional de contratação à distância sem criar um sistema de contacto pelos consumidores por estas duas vias.

Como escrevi em texto publicado com A.R. Lodder, a solução anterior “permitiria a um empresário individual que não gostava de atender chamadas telefónicas de consumidores que encomendam online dizer que não tinha um número de telefone disponível para o seu negócio”[1]. Dá-se agora preferência à possibilidade de o consumidor tratar das questões relativas aos contratos à distância por via telefónica. Em suma, todos os profissionais que contratem à distância passam a ter de disponibilizar um número de telefone e um endereço de correio eletrónico.


[1] A.R. Lodder & Jorge Morais Carvalho, “Online Platforms: Towards an Information Tsunami with New Requirements on Moderation, Ranking, and Traceability”, in European Business Law Review, Vol. 33, n.º 4, 2022, pp. 537-556, p. 542.

Netflix – A mudança da política de partilha de passwords e o Direito do Consumo

Doutrina

Em 2017, a Netflix publicou um tweet em que se podia ler: “Amor é partilhar uma password”. A empresa não só estava ciente do fenómeno de partilha de contas entre familiares e amigos, como parece que até a incentivou (em Portugal temos também inúmeros exemplos). A estrutura do modelo de subscrições com vários ecrãs e os perfis de utilizadores permitem esta prática. É possível afirmar que a partilha de contas permitiu a muita gente ter acesso ao serviço, dado que a divisão do custo da mensalidade entre várias pessoas permite a cada uma delas pagar um valor inferior do que se tiver uma conta individual, beneficiando a Netflix com a captação destes consumidores.

Considerando as comunicações passadas da Netflix, é necessário analisar se existem problemas nesta nova política de partilha de passwords face ao Direito do Consumo.

Depois de já ter sido testada no Peru, no Chile e na Costa Rica, os utilizadores em Portugal, Espanha, Nova Zelândia e Canadá foram surpreendidos no início de fevereiro com uma notificação no login da conta e com um email explicando o funcionamento da nova política.

Em resumo:

  • O titular de conta deverá definir uma “localização principal”, a rede de WI-FI de uma morada física em que todos os restantes “membros” da conta residam. Utilizadores extra que estejam noutras moradas não podem aceder à conta, exceto se for comprado um “membro extra” (sendo que o plano de subscrição base não tem esta opção, o plano padrão pode comprar um novo membro e o premium pode obter dois).
  • Embora a Netflix não tenha sido totalmente transparente sobre o método utilizado para a verificação da residência conjunta, diversos leaks parecem apontar para um sistema que utiliza o endereço de IP dos vários dispositivos (televisões inteligentes, telemóveis, tablets e computadores) ligados à rede WI-FI definida como localização principal com alguma periodicidade. Quando foi testado na Costa Rica, os dispositivos deveriam ligar-se pelo menos uma vez por mês (31 dias) à rede WI-FI principal para poderem continuar a ser utilizados.
  • Existe a possibilidade de, excecionalmente, conseguir utilizar dispositivos que não cumpram o critério anterior, recorrendo ao pedido e envio para o email associado de códigos de verificação com duração limitada (para permitir viagens e deslocações).
  • Além disto, a Netflix acrescentou novas funcionalidades para a gestão e controlo da conta pelos utilizadores, assim como a portabilidade de perfis (com os seus históricos de visualização) para novas contas.

Se analisarmos esta mudança de política, a primeira questão levantada é se corresponde a uma alteração do contrato. A resposta é negativa. Se verificarmos a atual versão do contrato de licença de utilização da Netflix, de 5 de janeiro de 2023, na secção 4 (“Serviço Netflix”), no parágrafo 2, é indicado que “o serviço Netflix e quaisquer conteúdos acedidos através do serviço destinam-se apenas a uso pessoal e não comercial e não podem ser partilhados com pessoas fora da sua residência, salvo se tal for permitido pelo seu plano de subscrição”. A secção 5 (“Palavras-passe e Acesso à Conta”) não acrescenta quaisquer informações sobre a questão da residência. Os planos de subscrição não continham informações sobre o mesmo.

Se consultarmos versões anteriores do contrato, nomeadamente a versão de 2 de novembro de 2021, a versão de 31 de dezembro de 2019 ou a versão de 11 de maio de 2018, verificamos que não houve alterações do enunciado, com exceção do acrescento do trecho “salvo se tal for permitido pelo seu plano de subscrição” em janeiro de 2023, que permite a compra dos “membros extra”.

Segundo este enunciado, a “mudança de política” em fevereiro, com as novas funcionalidades, corresponde à implementação de medidas que visam garantir o cumprimento do contrato pelo consumidor. No entanto, as declarações públicas da Netflix, como os famosos tweets já referidos, podem indicar que este seja um caso de falta de conformidade objetiva à luz do artigo 29.º, n.º 1 alínea b) e n.º 6 e 7 do Decreto-lei n.º 84/2021, de 18 de outubro.

Embora seja possível fazer um exercício de interpretação criativa que possa atribuir um maior peso ao argumento de que a Netflix nunca quis permitir ou incentivar a partilha de contas e passwords, é particularmente óbvio que, pelo menos até ao final de 2022, esta não era a conclusão que deveria ser acolhida à luz do critério de interpretação das declarações contratuais (artigo 236.º Código Civil). Ainda assim, as novas declarações da Netflix no final de 2022 e a alteração do contrato no início de janeiro de 2023 permitem afastar a falta de conformidade com o contrato.

As novas funcionalidades introduzidas devem ser classificadas como uma alteração ao serviço digital, à luz do artigo 39.º do Decreto-lei n.º 84/2021, de 18 de outubro (correspondendo ao regime das modificações do serviço digital do artigo 19.º da Diretiva (UE) 2019/770), dado que estamos perante um contrato oneroso de fornecimento contínuo de serviço e conteúdos digitais.

Estas normas permitem ao profissional alterar características dos serviços e conteúdos digitais que estejam a ser fornecidos, sem ser necessária uma alteração do contrato, desde que o contrato as preveja adequadamente e estas sejam devidamente comunicadas ao consumidor.

As alterações aos serviços e conteúdos digitais podem ser implementadas por diversas razões. Podem ser implementadas para garantir a conformidade com o contrato, como é o caso das atualizações de segurança e a inclusão de novas funcionalidades e conteúdos previstos na publicidade e no contrato; para cumprir obrigações legais, como é o caso do respeito pelos direitos de terceiros; ou discricionariamente, desde que as razões sejam consideradas válidas, como alterações à interface, à marca do profissional, e melhorias de performance do serviço. Caso as alterações realizadas impliquem custos adicionais para os consumidores e ou tenham um impacto negativo (que não seja mínimo) no acesso e utilização destes, as obrigações de informação são agravadas, podendo haver direito à resolução do contrato.

Desta forma, a mudança de política de partilha de passwords implementada em fevereiro não é uma alteração ao contrato, mas uma alteração ao serviço, permitida pelo contrato. Apenas quando os consumidores comprarem os “novos membros” para as suas contas é que estarão a alterar o contrato.

À luz do regime do artigo 39.º-1, devemos considerar que a implementação destas medidas pela Netflix cumpre dois dos requisitos, mas não cumpre os outros dois. Assim, (1) é permitida pelo contrato com uma razão válida e (2) os consumidores foram informados antecipadamente de forma clara e compreensível das características da alteração e da data de implementação num suporte duradouro (por notificação no serviço e por e-mail). Porém, (3) esta alteração pode implicar custo adicionais para o consumidor e (4) tem um impacto negativo no acesso e utilização dos serviços.

Dado que a Netflix não permite a manutenção do serviço sem as alterações (art. 39.º-6), devemos analisar a extensão do impacto negativo para perceber se o exercício do direito de resolução não é desproporcionado (artigo 39.º-2 e 4).

Segundo os critérios indicados no artigo 39.º-4 (“a natureza, a finalidade e demais características habituais nos conteúdos ou serviços digitais do mesmo tipo”), é possível concluir pela admissibilidade do exercício do direito de resolução do contrato, nos termos dos artigos 36.º a 38.º. É necessário destacar que a Netflix parece não concordar com este raciocínio, pois omitiu as informações relativas ao direito de resolução no e-mail e na notificação remetidos aos utilizadores. A sua inclusão é obrigatória segundo o artigo 39.º-1-d-ii e 3.

Assim, os consumidores podem resolver o contrato com a Netflix, devendo ser ressarcidos dos montantes referentes a meses futuros que tenham sido pagos antecipadamente (artigo 36.º-1). Caso as medidas comecem a produzir efeitos no decurso de um mês já pago (o que dependerá do plano de pagamentos de cada conta), pode haver lugar à devolução do montante proporcional relativo ao período após a implementação das medidas (artigo 36.º-2).

Dado que a Netflix tipicamente não oferece planos que não sejam mensais (embora já esteja a planear testar subscrições anuais em alguns mercados, similares aos seus concorrentes), a utilidade prática do exercício do direito de resolução dos arts. 36.º e 39.º-2 será bastante limitada para a generalidade dos utilizadores.

Face a tudo isto, somos forçados a concluir que a Netflix considera que os ganhos com a implementação destas medidas ultrapassam o risco de perda de utilizadores. Os restantes serviços concorrentes estarão a observar a situação, de forma a perceber a viabilidade de copiar as medidas. Embora a concorrência feroz nos primeiros anos das “streaming wars” tenha trazido alguns benefícios aos consumidores (como mais produção de conteúdos), pode aparentemente também trazer também desvantagens no longo prazo. No futuro, é possível especular que a “balcanização” deste mercado pode levar à recriação dos antigos pacotes de canais na televisão, mas com serviços de streaming, forçando os consumidores ao pagamento de conteúdos que não lhes interessam em contratos com cláusulas de fidelização.

Finalmente, se, em tempos, a conveniência do serviço da Netflix foi um fator substancial no combate à pirataria, o grande fracionamento do mercado e a subida do valor das mensalidades dos vários serviços levanta a possibilidade de que estes ganhos sejam revertidos.

A mudança de planos da Netflix – Como se chegou até aqui?

Doutrina

Depois de vários meses de antecipação, milhares de utilizadores da Netflix foram confrontados no início de fevereiro com uma notificação com informações que causaram muito desagrado. No essencial, deixou de ser possível a partilha de contas entre pessoas que não residem na mesma morada sem o pagamento de um valor adicional. Esta mudança de política provocou muito ruído mediático, desde a revolta de quem anunciava que iria cancelar, mudar de serviço ou “regressar” à pirataria, passando de acusações de ilegalidade e até de violação da privacidade.

Como se chegou até aqui?

Em 2011, Gabe Newell, fundador e CEO da Valve, numa conferência em Seattle, resumiu de forma muito simples aquela que seria a tendência dos mercados de distribuição de serviços e conteúdos digitais no resto da década. A propósito do sucesso explosivo da plataforma de distribuição de videojogos Steam, Newel referiu que “a pirataria é um problema de serviço”.

Esta declaração e o crescimento da Steam (especialmente em mercados notórios pela pirataria endémica como a Rússia) não convenceram logo os seus principais concorrentes, que continuaram a insistir em tecnologias de DRM (digital rights management). Porém, noutros mercados, algumas empresas estavam também a experimentar modelos de distribuição similares, revolucionando as respetivas indústrias. Destacamos a Spotify, a Amazon e, claro, a Netflix.

Se recuarmos um “pouco” no tempo, até 2007(!), a Netflix limitava-se a concorrer com a Blockbuster, oferecendo um serviço de subscrição mensal de aluguer de DVDs, através do seu website. Foi por essa altura que, nos Estados Unidos da América, começou a oferecer aos seus subscritores, de forma ainda limitada, o serviço de streaming de filmes, experimentando também algoritmos de recomendação de conteúdos. Daí para a frente, a Netflix parecia imparável. Em 2010, passou a fornecer um pacote só com o serviço de streaming. Nesse mesmo ano, começou a operar no Canadá; em 2011, na América do Sul e nas Caraíbas; no Reino Unido, na Irlanda e nos países escandinavos em 2012; em 2015, entrou em Portugal e, em 2016, já se encontrava disponível o serviço em mais de 190 países. A Blockbuster, amarrada ao peso das suas lojas físicas, não conseguiu acompanhar a inovação e entrou em insolvência.

O sucesso meteórico do serviço de streaming da Netflix foi possível graças à sua aposta inicial neste mercado, subvalorizado no final dos anos 2000s e início dos anos 2010s. A Netflix conseguiu assegurar um vasto catálogo de conteúdos, incluindo filmes e séries de televisão de grandes estúdios e distribuidoras. Até então não passava de uma empresa que enviava DVDs pelo correio, enquanto a crise financeira de 2008 e a crise da “dot-com bubble” de 2001 minavam a confiança dos investidores no mercado, em especial no que dizia respeito às empresas ligadas à Internet.

No entanto, a Netflix rapidamente se apercebeu da fragilidade da sua situação e da alta dependência nos seus (possíveis futuros) concorrentes para a manutenção do catálogo e decidiu tomar medidas. Desta forma, começou em 2013 a adquirir os direitos e a produzir séries originais (Orange is the New Black e House of Cards).

Descrever esta aposta da Netflix na criação dos seus próprios estúdios de produção e na compra (e não mero licenciamento) de direitos de distribuição dava para um texto inteiro dedicado ao tema. Resumindo, a Netflix tornou-se uma plataforma mainstream, cujas séries e filmes originais são fenómenos virais, com várias nomeações e vitórias em cerimónias de prémios reputados, desde Cannes até aos Óscares. O fenómeno de binging (ver múltiplos episódios de seguida) de séries acabadas de estrear entrou para o léxico popular, assim como expressões como “Netflix and Chill”. E, claro, a partilha de passwords.

Nesta conjuntura, a valorização da Netflix dispara na bolsa, de $131 em janeiro de 2017 para $345 a janeiro de 2020. A Netflix é considerada uma empresa de tecnologia, valorizada, como parte das Big Tech, pelo seu potencial de crescimento futuro. Embora nos meses seguintes, com o pandemia da Covid-19 e as quarentenas, a valorização da Netflix ainda tenha subido mais, atingindo picos de $630 (as pessoas estão presas em casa, vão querer entretenimento), os problemas já se encontravam à mostra.

Em primeiro lugar, começaram as “streaming wars”, com a entrada no mercado de vários serviços, sendo os mais prominentes a Amazon Prime (da Amazon, inicialmente lançada em 2011), a Disney+ (Disney, 2019), a AppleTV+ (Apple, 2019), HBOMax (da Warner Bros, 2020), Paramount+ (Paramount, 2021). Ainda antes do lançamento destas plataformas, a Netflix já tinha começado a “sangrar” conteúdos, à medida que as licenças de distribuição exclusiva celebradas no início dos anos 2010s expiravam. Os seus futuros concorrentes recusam a celebração de novos contratos, enquanto estúdios de terceiros exigem valores muito superiores para a renovação das suas licenças.

Em segundo lugar, uma série de operações de concentração veio a distorcer o mercado contra a Netflix. A Disney adquiriu os estúdios da 20th Century Fox, enquanto a Warner Bros. foi comprada pela Discovery (agora Warner Bros. Discovery).

A própria gestão do catálogo da Netflix e o seu método de lançamento também tem sido problemática. O financiamento de um grande número de projetos, numa estratégia de “casting a wide net”, tem resultado em diversos franchises com alcance global, mas também enterrou a empresa em inúmeros projetos falhados de qualidade muito inconsistente. A combinação de demasiadas opções de escolha, o lançamento de temporadas inteiras na mesma data e a insegurança em investir tempo numa série que pode ser cancelada a qualquer momento, ficando assim incompleta, podem estar a provocar um fenómeno de fadiga em muitos consumidores.

A concorrer com os serviços de streaming pela atenção dos consumidores, surgem ainda, por um lado, o Youtube, o Tiktok e as restantes redes sociais, com catálogos quase infinitos de conteúdos gerados pelos utilizadores e algoritmos de recomendação avançados, e, por outro lado, videojogos como Fortnite, Minecraft e Roblox, como admitiram o CEO da Netflix, Reed Hastings, e o CEO da Spotify, Daniel Ek.

Finalmente, a nível macroeconómico, depois de um crescimento bastante acelerado durante os “anos da covid”, as empresas tecnológicas viram as suas valorizações caírem a pique durante uma crise inflacionista, com a subida das taxas juros pelos principais bancos centrais (e em especial a Reserva Federal). Com a saída do mercado do mercado russo e uma aparente estagnação no crescimento do número de subscritores, a Netflix caiu a pique, perdendo aproximadamente 50% do seu valor em 2022, e a especulação acerca do seu valor futuro foi reavaliada: a Netflix não faz parte das Big Tech, sendo antes uma empresa de entretenimento.

Face a este enquadramento, a pressão do mercado e dos acionistas sobre a gestão da Netflix é óbvia. Nestes momentos, a cultura corporate feroz exige grandes gestos e ações que resolvam rapidamente os problemas das organizações. Neste sentido, embora dificilmente consigam recuperar a quota de mercado no curto prazo, é possível tentarem cortar custos e aumentar receitas. Traduzindo: cancelar produções consideradas não rentáveis e aumentar o valor das mensalidades.

Porém, esta estratégia não foi suficiente. Assim surgem as ideias de fornecer uma subscrição mais barata com anúncios (captando novos subscritores) e o crackdown da partilha de passwords.

Este texto procurou assim contextualizar a conjuntura que levou à implementação destas medidas, de forma a compreender o comportamento dos vários agentes económicos. O próximo texto será a continuação deste, focando-se na análise da nova política de partilha de passwords, na aplicabilidade do Direito do Consumo e num balanço final do que os consumidores podem esperar destes serviços no futuro.

É possível comprar e-books?

Doutrina

Imagine que você foi a uma livraria comprar um livro, volta para casa e o põe na estante. Certo dia, um amigo o vê e pede o título emprestado. Contudo, ao tentar atravessar a porta, o livro fica para trás. Talvez não seja um amigo, mas seu orientando que, ao ler apenas um capítulo, mudaria toda sua tese. O livro ainda assim não irá sair da sua residência. Talvez um dia você o queira dar de presente ao seu neto para que ele possa ler a história que marcou a sua infância. Não importa. Qualquer parte do livro só pode ser lida dentro da sua biblioteca. Seria absurdo, se não fosse o que ocorre, por regra, ao “comprar” um e-book.

Ao realizar a compra de um objeto, o consumidor tem a expectativa de poder revender, emprestar ou até mesmo doar este item. A ideia de compra atrela-se consequentemente à propriedade plena do bem, ainda que o objeto expresse a propriedade intelectual de outrem. Nesses casos, em traços gerais, a doutrina da exaustão assegura que os direitos do autor irão se exaurir após a primeira venda do objeto no mercado.

Entretanto, ao ver um e-book em sites como Kobo.com ou Amazon.es e clicar em “Comprar agora com 1-Clique”, somente com este clique é realizado o débito do valor e disponibilizado o e-book para download. Com isso, o consumidor poderá ler o e-book nos dispositivos associados à sua conta para sempre, o que difere de um sistema de subscrição, por exemplo. Porém, não é possível emprestá-lo, doá-lo ou revendê-lo; sequer capítulos deste.

É bem verdade que, apesar de ser anunciado como tal, a “compra” do e-book é, de facto, uma mera “licença de uso”, como resta claro nos termos e condições de uso da loja Kindle, por exemplo. Isso significa que não há propriedade sobre o bem, o que justifica as supracitadas limitações. Contudo, não justifica que esta ação seja anunciada enquanto uma “compra”. Sequer justifica que o contrato que explica os reais termos da contratação, em nenhum dos casos, seja claro ou possua tradução para o português (como o resto do site), tampouco que o contrato não seja expressamente aceite pelo consumidor antes da “compra”, já que esta ocorre num único clique.

Ao realizar uma pesquisa sobre o tema, Aaron Perzanowski e Chris Jay Hoofnagle  constataram que 83% dos consumidores acreditavam que, após clicar em “comprar agora”, possuíam o bem digital em questão. Noutro giro, os consumidores conseguiriam entender se tratar de um contrato de licença caso a opção fosse “licencie agora”, com uma breve descrição do que esta ação difere de uma compra comum. Resta claro, portanto, um desequilíbrio entre a oferta realizada e aceita pelo consumidor ao “comprar” o bem digital (e as implicações desta compra) e o real contrato de licença firmado entre as partes.

 Analisando o Direito do Consumo Europeu, a Diretiva (UE) 2019/770, que trata dos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais, afirma, em seu artigo 5º, que o profissional cumpre sua obrigação quando são disponibilizados os conteúdos ou quaisquer meios adequados para aceder ou descarregar estes. Nesse quesito, não haveria uma violação legal na forma em que o bem digital é fornecido.

Contudo, é possível que se configure uma prática comercial desleal, como definido na Diretiva 2005/29/CE. Em seu artigo 6º, este diploma enquadra enquanto enganosas as práticas comerciais que contenham informações inverídicas ou que, ainda que contendo informações factualmente corretas, sejam suceptíveis de induzir em erro ou conduzir o consumidor médio a tomar uma decisão de transacção que este não teria tomado de outro modo. Ressalta-se que se considera consumidor médio aquele normalmente informado e razoavelmente atento e avisado.

No caso em apreço, o botão que informa a “compra” do e-book pode se enquadrar enquanto prática comercial enganosa, tendo em vista que não é preformado um contrato de compra e venda, mas sim de licença do conteúdo. Consequentemente, para impulsionar a realização do contrato, o consumidor médio será induzido em erro. Afinal, como demonstrou a supracitada pesquisa, paga-se o valor acreditando ser pela propriedade do bem, incluindo-se aí o poder de realizar as ações como seu empréstimo, revenda ou doação, e recebe-se um bem que não pode deixar a biblioteca dos dispositivos do consumidor.

Portanto, respondendo à pergunta do título, é possível licenciar um e-book, mas não o comprar. Desse modo, parece-nos desleal realizar uma oferta de venda enquanto, na realidade, se performa um contrato de licença de uso, no qual o e-book, diferentemente do livro físico, não poderá sair da biblioteca do consumidor, não importa o que aconteça.

Acórdão C-395/21 – O Direito do Consumo aplica-se à relação advogado-cliente

Jurisprudência

No passado dia 12 de janeiro, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferiu o Acórdão D.V. contra M.A. (C-395/21) relativo a cláusulas contratuais abusivas e à Diretiva 93/13/CEE. Neste caso, trata-se de um serviço diferente: serviços jurídicos fornecidos por um advogado.

  1. Factos

Na base do litígio esteve a celebração de contratos de prestação de serviços jurídicos, nos quais vinham estipulados honorários de 100 euros por hora de serviço. Após a prestação dos mesmos, a advogada em causa intentou uma ação judicial no sentido de obter a condenação do consumidor ao pagamento de 9.900 euros a título de prestações jurídicas realizadas, e de um montante de 194,30 euros a título de despesas incorridas no âmbito da execução dos contratos, acrescidos de juros anuais que ascendiam a 5% das somas devidas.

Tendo chegado ao Supremo Tribunal da Lituânia, este questionou-se sobre o caráter abusivo da cláusula relativa aos honorários. A este respeito, esse órgão jurisdicional considerou que, embora a cláusula estivesse formulada claramente do ponto de vista gramatical, seria possível duvidar que fosse compreensível, uma vez que o consumidor médio não estaria em condições de compreender as suas consequências económicas.

Por um lado, a invalidação da cláusula relativa ao preço deve acarretar a nulidade dos contratos de prestação de serviços jurídicos e o restabelecimento da situação em que o consumidor se encontraria se essas cláusulas nunca tivessem existido. Ora, no caso em apreço, isso conduziria a um enriquecimento injustificado do consumidor e a uma situação injusta em relação ao profissional que forneceu integralmente esses serviços. Por outro, o tribunal interrogou-se sobre a questão de saber se uma eventual redução do custo das referidas prestações não prejudicaria o efeito dissuasor prosseguido pelo artigo 7.°, n.° 1, da Diretiva 93/13.

Neste seguimento, o Supremo Tribunal da Lituânia coloca as seguintes questões ao TJUE:

– Deve o art. 4.º(2) da Diretiva 93/13 ser interpretado no sentido de que a expressão “objeto principal do contrato” abrange uma cláusula como a do presente caso, relativa ao custo e à forma como este é calculado?
– Deve a referência no art. 4.º(2) da Diretiva 93/13 ao caráter claro e compreensível de uma cláusula contratual ser interpretada no sentido de que basta especificar na cláusula do contrato relativa ao custo o montante dos honorários por hora devidos ao advogado?
– Em caso de resposta negativa à segunda questão: deve a exigência de transparência ser interpretada no sentido de que abrange a obrigação de o advogado indicar o custo dos serviços cujos valores exatos podem ser claramente definidos e especificados antecipadamente, ou deve também ser especificado o custo indicativo dos serviços, caso seja impossível prever as ações específicas e os respetivos honorários, no momento da celebração do contrato, e indicar os riscos que podem conduzir a um aumento ou a uma diminuição do custo?
– Se a cláusula não estiver redigida de maneira clara e compreensível, deve apreciar-se se esta cláusula é abusiva na aceção do art. 3.º(1) ou, tendo em conta que essa cláusula abrange informação essencial do contrato, o simples facto de a cláusula relativa ao custo não ser transparente é suficiente para que seja considerada abusiva?
– O facto de, quando a cláusula tiver sido considerada abusiva, o contrato de prestação de serviços jurídicos não ser vinculativo, em conformidade com o 6.º(1) da Diretiva 93/13, significa que é necessário restabelecer a situação em que o consumidor se encontraria se a cláusula que foi considerada abusiva não existisse? O restabelecimento de tal situação significa que o consumidor não tem a obrigação de pagar pelos serviços já prestados?
– Caso a natureza de um contrato de prestação de serviços a título oneroso torne impossível o restabelecimento da situação em que o consumidor se encontraria se a cláusula que foi considerada abusiva não existisse (os serviços já foram prestados), a fixação da remuneração pelos serviços prestados pelo advogado é contrária ao objetivo do art. 7.º(1) da Diretiva 93/13?

  1. Primeira questão

Relativamente à primeira questão, o TJUE declarou que o art. 4.°(2) abrange uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor, independentemente de ter sido objeto de negociação individual ou não.

O TJUE baseia esta conclusão no facto da cláusula relativa ao preço ter por objeto a remuneração dos serviços jurídicos, estabelecida segundo um valor por hora. Tal cláusula, que determina a obrigação do mandante ao pagamento de honorários, faz parte das cláusulas que definem a própria essência da relação contratual, sendo esta relação precisamente caracterizada pela prestação remunerada de serviços jurídicos.

  1. Segunda e terceira questões

Relativamente às duas questões seguintes, o TJUE avaliou se uma cláusula como a do presente caso cumpre a exigência de redação clara e compreensível da Diretiva 93/13. O Tribunal concluiu que não, caso não tenham sido fornecidas ao consumidor informações que, antes da celebração do contrato, lhe permitissem tomar uma decisão prudente e com total conhecimento das consequências económicas do vínculo a assumir.

Com base numa interpretação ampla do conceito de transparência, de modo a garantir uma maior proteção ao consumidor, o Tribunal concluiu que é indispensável que as cláusulas do contrato sejam claras e compreensíveis, para que o consumidor possa estar consciente de todos os detalhes envolvidos e, dessa forma, possa tomar uma decisão informada e bem fundamentada sobre a contratação dos serviços.

Para o garantir, o profissional está incumbindo de três deveres. Em primeiro lugar, deve fornecer ao consumidor todas as informações relevantes antes da celebração do contrato. Além disso, o Tribunal recomendou que o profissional preste ao consumidor uma orientação adequada sobre os direitos e deveres de ambas as partes, para que este possa compreender totalmente o contrato. Por fim, o Tribunal concluiu que o profissional deve informar o consumidor sobre todos os custos adicionais que possam surgir ao longo do contrato.

Aplicando este raciocínio ao caso concreto, o TJUE concluiu que a fixação do preço do serviço jurídico por hora não permite ao consumidor médio, na falta de qualquer outra informação fornecida pelo profissional, saber o montante total a pagar pelos serviços. Muito embora a natureza dos serviços jurídicos não permita facilmente determinar o número de horas necessárias à sua conclusão, o TJUE afirmou que o profissional, no momento da celebração do contrato, tem de prestar as informações de que dispõe ao consumidor.

Nesse sentido, deve fornecer-lhe as informações necessárias para que possa tomar uma decisão informada, nomeadamente no que respeita à duração (e custo) aproximado da prestação de serviços jurídicos em causa, tendo em consideração as regras profissionais e deontológicas aplicáveis. O TJUE dá como exemplos uma estimativa do número previsível ou mínimo de horas necessárias para prestar o serviço ou o compromisso de envio regular de faturas ou relatórios que indiquem o número de horas de trabalho prestadas.

  1. Quarta questão

Passando à quarta questão, o TJUE afirmou que o art. 3.º(1) deve ser interpretado no sentido de que uma cláusula como a do presente caso não deve ser considerada abusiva pelo simples facto de não respeitar o critério da transparência do art. 3.º(2), exceto se a legislação nacional impuser que essa qualificação derive unicamente desse facto.

A Diretiva 93/13 estabelece que a falta de transparência de uma cláusula deve ser considerada como um dos principais critérios na avaliação do caráter abusivo de uma cláusula, pelo que a decisão sobre o caráter abusivo deve ser feita tendo em conta outros elementos. Não obstante, os Estados-Membros têm a possibilidade de optar por um nível de proteção mais exigente, nomeadamente – como no caso Lituano – considerando cláusulas contrárias à exigência de transparência como abusivas per se.

  1. Quinta e sexta questões

Aqui, o Tribunal decidiu que a Diretiva não se opõe a que, derivado da aplicação de Direito interno e caso o contrato não possa subsistir devido ao caráter abusivo da cláusula do preço, o profissional não receba nenhuma remuneração pelos serviços prestados. Da mesma forma, a Diretiva não se opõe a que haja a substituição da cláusula por uma disposição de direito nacional de caráter supletivo, em situações nas quais o consumidor seria colocado numa situação prejudicial caso se desse a invalidação total do contrato.

Não obstante, esta possibilidade só poderá ser aplicada em circunstâncias limitadas. Só no caso de a invalidade da cláusula implicar a invalidação total do contrato e esse facto expuser o consumidor a consequências prejudiciais é que o órgão jurisdicional nacional dispõe da possibilidade excecional de substituir uma cláusula abusiva anulada por uma disposição nacional de caráter supletivo, ou aplicável por acordo das partes. De igual forma, a disposição em causa tem de ser destinada a uma aplicação a contratos celebrados entre um profissional e um consumidor, portanto sem um alcance de tal modo geral, que a sua aplicação equivalha a permitir ao juiz nacional fixar com base na sua própria estimativa a remuneração devida pelos serviços prestados.

  1. Comentário

Dos tópicos levantados, o que cabe destacar como particularmente interessante é a possibilidade de um advogado ver o seu serviço não compensado face ao caráter abusivo das cláusulas que insere nos seus contratos. Aqui, o TJUE concluiu com relativa facilidade que essa possibilidade existe, prevendo outras hipóteses apenas se a invalidação total do contrato implicar um agravamento da situação do consumidor, verificando-se assim uma total preponderância da proteção do consumidor face ao profissional.

Isto é reforçado pela opinião do AG, ao afirmar que a Diretiva 93/13 não exige um “resgate” do profissional face à resolução do contrato. Afirma igualmente que as consequências que o direito interno prevê para a nulidade do contrato não podem ser tais que prejudiquem o efeito útil da Diretiva 93/13, ou seja, a proteção dos consumidores. De igual forma, a Diretiva não prevê a necessidade de se conceder aos profissionais proteção face à eventual nulidade de contratos nos quais inseriram cláusulas abusivas, mesmo que os serviços já estejam prestados e não seja possível haver uma “devolução” dos mesmos. Por isto, a possibilidade de “remendar” contratos com cláusulas abusivas é limitada, já que, caso contrário, a hipótese de haver essa substituição pelos tribunais colocaria em causa o efeito dissuasor prosseguido pela Diretiva. Só em casos em que a nulidade total do contrato traria ao consumidor consequências particularmente prejudiciais é que se poderia proceder a essa substituição.

Por isso, vemos que uma das profissões encarregues de aplicar a lei está igualmente sujeita a uma correta aplicação das normas de proteção dos consumidores, que, caso não sejam respeitadas, podem levar a fortes riscos que juristas, advogados e outros profissionais do Direito deveriam estar aptos a evitar. Assim sendo, os advogados, tal como outros profissionais análogos, devem respeitar os deveres de transparência, informando devidamente os consumidores sobre os custos que os seus serviços acarretam.