Netflix – A mudança da política de partilha de passwords e o Direito do Consumo

Doutrina

Em 2017, a Netflix publicou um tweet em que se podia ler: “Amor é partilhar uma password”. A empresa não só estava ciente do fenómeno de partilha de contas entre familiares e amigos, como parece que até a incentivou (em Portugal temos também inúmeros exemplos). A estrutura do modelo de subscrições com vários ecrãs e os perfis de utilizadores permitem esta prática. É possível afirmar que a partilha de contas permitiu a muita gente ter acesso ao serviço, dado que a divisão do custo da mensalidade entre várias pessoas permite a cada uma delas pagar um valor inferior do que se tiver uma conta individual, beneficiando a Netflix com a captação destes consumidores.

Considerando as comunicações passadas da Netflix, é necessário analisar se existem problemas nesta nova política de partilha de passwords face ao Direito do Consumo.

Depois de já ter sido testada no Peru, no Chile e na Costa Rica, os utilizadores em Portugal, Espanha, Nova Zelândia e Canadá foram surpreendidos no início de fevereiro com uma notificação no login da conta e com um email explicando o funcionamento da nova política.

Em resumo:

  • O titular de conta deverá definir uma “localização principal”, a rede de WI-FI de uma morada física em que todos os restantes “membros” da conta residam. Utilizadores extra que estejam noutras moradas não podem aceder à conta, exceto se for comprado um “membro extra” (sendo que o plano de subscrição base não tem esta opção, o plano padrão pode comprar um novo membro e o premium pode obter dois).
  • Embora a Netflix não tenha sido totalmente transparente sobre o método utilizado para a verificação da residência conjunta, diversos leaks parecem apontar para um sistema que utiliza o endereço de IP dos vários dispositivos (televisões inteligentes, telemóveis, tablets e computadores) ligados à rede WI-FI definida como localização principal com alguma periodicidade. Quando foi testado na Costa Rica, os dispositivos deveriam ligar-se pelo menos uma vez por mês (31 dias) à rede WI-FI principal para poderem continuar a ser utilizados.
  • Existe a possibilidade de, excecionalmente, conseguir utilizar dispositivos que não cumpram o critério anterior, recorrendo ao pedido e envio para o email associado de códigos de verificação com duração limitada (para permitir viagens e deslocações).
  • Além disto, a Netflix acrescentou novas funcionalidades para a gestão e controlo da conta pelos utilizadores, assim como a portabilidade de perfis (com os seus históricos de visualização) para novas contas.

Se analisarmos esta mudança de política, a primeira questão levantada é se corresponde a uma alteração do contrato. A resposta é negativa. Se verificarmos a atual versão do contrato de licença de utilização da Netflix, de 5 de janeiro de 2023, na secção 4 (“Serviço Netflix”), no parágrafo 2, é indicado que “o serviço Netflix e quaisquer conteúdos acedidos através do serviço destinam-se apenas a uso pessoal e não comercial e não podem ser partilhados com pessoas fora da sua residência, salvo se tal for permitido pelo seu plano de subscrição”. A secção 5 (“Palavras-passe e Acesso à Conta”) não acrescenta quaisquer informações sobre a questão da residência. Os planos de subscrição não continham informações sobre o mesmo.

Se consultarmos versões anteriores do contrato, nomeadamente a versão de 2 de novembro de 2021, a versão de 31 de dezembro de 2019 ou a versão de 11 de maio de 2018, verificamos que não houve alterações do enunciado, com exceção do acrescento do trecho “salvo se tal for permitido pelo seu plano de subscrição” em janeiro de 2023, que permite a compra dos “membros extra”.

Segundo este enunciado, a “mudança de política” em fevereiro, com as novas funcionalidades, corresponde à implementação de medidas que visam garantir o cumprimento do contrato pelo consumidor. No entanto, as declarações públicas da Netflix, como os famosos tweets já referidos, podem indicar que este seja um caso de falta de conformidade objetiva à luz do artigo 29.º, n.º 1 alínea b) e n.º 6 e 7 do Decreto-lei n.º 84/2021, de 18 de outubro.

Embora seja possível fazer um exercício de interpretação criativa que possa atribuir um maior peso ao argumento de que a Netflix nunca quis permitir ou incentivar a partilha de contas e passwords, é particularmente óbvio que, pelo menos até ao final de 2022, esta não era a conclusão que deveria ser acolhida à luz do critério de interpretação das declarações contratuais (artigo 236.º Código Civil). Ainda assim, as novas declarações da Netflix no final de 2022 e a alteração do contrato no início de janeiro de 2023 permitem afastar a falta de conformidade com o contrato.

As novas funcionalidades introduzidas devem ser classificadas como uma alteração ao serviço digital, à luz do artigo 39.º do Decreto-lei n.º 84/2021, de 18 de outubro (correspondendo ao regime das modificações do serviço digital do artigo 19.º da Diretiva (UE) 2019/770), dado que estamos perante um contrato oneroso de fornecimento contínuo de serviço e conteúdos digitais.

Estas normas permitem ao profissional alterar características dos serviços e conteúdos digitais que estejam a ser fornecidos, sem ser necessária uma alteração do contrato, desde que o contrato as preveja adequadamente e estas sejam devidamente comunicadas ao consumidor.

As alterações aos serviços e conteúdos digitais podem ser implementadas por diversas razões. Podem ser implementadas para garantir a conformidade com o contrato, como é o caso das atualizações de segurança e a inclusão de novas funcionalidades e conteúdos previstos na publicidade e no contrato; para cumprir obrigações legais, como é o caso do respeito pelos direitos de terceiros; ou discricionariamente, desde que as razões sejam consideradas válidas, como alterações à interface, à marca do profissional, e melhorias de performance do serviço. Caso as alterações realizadas impliquem custos adicionais para os consumidores e ou tenham um impacto negativo (que não seja mínimo) no acesso e utilização destes, as obrigações de informação são agravadas, podendo haver direito à resolução do contrato.

Desta forma, a mudança de política de partilha de passwords implementada em fevereiro não é uma alteração ao contrato, mas uma alteração ao serviço, permitida pelo contrato. Apenas quando os consumidores comprarem os “novos membros” para as suas contas é que estarão a alterar o contrato.

À luz do regime do artigo 39.º-1, devemos considerar que a implementação destas medidas pela Netflix cumpre dois dos requisitos, mas não cumpre os outros dois. Assim, (1) é permitida pelo contrato com uma razão válida e (2) os consumidores foram informados antecipadamente de forma clara e compreensível das características da alteração e da data de implementação num suporte duradouro (por notificação no serviço e por e-mail). Porém, (3) esta alteração pode implicar custo adicionais para o consumidor e (4) tem um impacto negativo no acesso e utilização dos serviços.

Dado que a Netflix não permite a manutenção do serviço sem as alterações (art. 39.º-6), devemos analisar a extensão do impacto negativo para perceber se o exercício do direito de resolução não é desproporcionado (artigo 39.º-2 e 4).

Segundo os critérios indicados no artigo 39.º-4 (“a natureza, a finalidade e demais características habituais nos conteúdos ou serviços digitais do mesmo tipo”), é possível concluir pela admissibilidade do exercício do direito de resolução do contrato, nos termos dos artigos 36.º a 38.º. É necessário destacar que a Netflix parece não concordar com este raciocínio, pois omitiu as informações relativas ao direito de resolução no e-mail e na notificação remetidos aos utilizadores. A sua inclusão é obrigatória segundo o artigo 39.º-1-d-ii e 3.

Assim, os consumidores podem resolver o contrato com a Netflix, devendo ser ressarcidos dos montantes referentes a meses futuros que tenham sido pagos antecipadamente (artigo 36.º-1). Caso as medidas comecem a produzir efeitos no decurso de um mês já pago (o que dependerá do plano de pagamentos de cada conta), pode haver lugar à devolução do montante proporcional relativo ao período após a implementação das medidas (artigo 36.º-2).

Dado que a Netflix tipicamente não oferece planos que não sejam mensais (embora já esteja a planear testar subscrições anuais em alguns mercados, similares aos seus concorrentes), a utilidade prática do exercício do direito de resolução dos arts. 36.º e 39.º-2 será bastante limitada para a generalidade dos utilizadores.

Face a tudo isto, somos forçados a concluir que a Netflix considera que os ganhos com a implementação destas medidas ultrapassam o risco de perda de utilizadores. Os restantes serviços concorrentes estarão a observar a situação, de forma a perceber a viabilidade de copiar as medidas. Embora a concorrência feroz nos primeiros anos das “streaming wars” tenha trazido alguns benefícios aos consumidores (como mais produção de conteúdos), pode aparentemente também trazer também desvantagens no longo prazo. No futuro, é possível especular que a “balcanização” deste mercado pode levar à recriação dos antigos pacotes de canais na televisão, mas com serviços de streaming, forçando os consumidores ao pagamento de conteúdos que não lhes interessam em contratos com cláusulas de fidelização.

Finalmente, se, em tempos, a conveniência do serviço da Netflix foi um fator substancial no combate à pirataria, o grande fracionamento do mercado e a subida do valor das mensalidades dos vários serviços levanta a possibilidade de que estes ganhos sejam revertidos.

A mudança de planos da Netflix – Como se chegou até aqui?

Doutrina

Depois de vários meses de antecipação, milhares de utilizadores da Netflix foram confrontados no início de fevereiro com uma notificação com informações que causaram muito desagrado. No essencial, deixou de ser possível a partilha de contas entre pessoas que não residem na mesma morada sem o pagamento de um valor adicional. Esta mudança de política provocou muito ruído mediático, desde a revolta de quem anunciava que iria cancelar, mudar de serviço ou “regressar” à pirataria, passando de acusações de ilegalidade e até de violação da privacidade.

Como se chegou até aqui?

Em 2011, Gabe Newell, fundador e CEO da Valve, numa conferência em Seattle, resumiu de forma muito simples aquela que seria a tendência dos mercados de distribuição de serviços e conteúdos digitais no resto da década. A propósito do sucesso explosivo da plataforma de distribuição de videojogos Steam, Newel referiu que “a pirataria é um problema de serviço”.

Esta declaração e o crescimento da Steam (especialmente em mercados notórios pela pirataria endémica como a Rússia) não convenceram logo os seus principais concorrentes, que continuaram a insistir em tecnologias de DRM (digital rights management). Porém, noutros mercados, algumas empresas estavam também a experimentar modelos de distribuição similares, revolucionando as respetivas indústrias. Destacamos a Spotify, a Amazon e, claro, a Netflix.

Se recuarmos um “pouco” no tempo, até 2007(!), a Netflix limitava-se a concorrer com a Blockbuster, oferecendo um serviço de subscrição mensal de aluguer de DVDs, através do seu website. Foi por essa altura que, nos Estados Unidos da América, começou a oferecer aos seus subscritores, de forma ainda limitada, o serviço de streaming de filmes, experimentando também algoritmos de recomendação de conteúdos. Daí para a frente, a Netflix parecia imparável. Em 2010, passou a fornecer um pacote só com o serviço de streaming. Nesse mesmo ano, começou a operar no Canadá; em 2011, na América do Sul e nas Caraíbas; no Reino Unido, na Irlanda e nos países escandinavos em 2012; em 2015, entrou em Portugal e, em 2016, já se encontrava disponível o serviço em mais de 190 países. A Blockbuster, amarrada ao peso das suas lojas físicas, não conseguiu acompanhar a inovação e entrou em insolvência.

O sucesso meteórico do serviço de streaming da Netflix foi possível graças à sua aposta inicial neste mercado, subvalorizado no final dos anos 2000s e início dos anos 2010s. A Netflix conseguiu assegurar um vasto catálogo de conteúdos, incluindo filmes e séries de televisão de grandes estúdios e distribuidoras. Até então não passava de uma empresa que enviava DVDs pelo correio, enquanto a crise financeira de 2008 e a crise da “dot-com bubble” de 2001 minavam a confiança dos investidores no mercado, em especial no que dizia respeito às empresas ligadas à Internet.

No entanto, a Netflix rapidamente se apercebeu da fragilidade da sua situação e da alta dependência nos seus (possíveis futuros) concorrentes para a manutenção do catálogo e decidiu tomar medidas. Desta forma, começou em 2013 a adquirir os direitos e a produzir séries originais (Orange is the New Black e House of Cards).

Descrever esta aposta da Netflix na criação dos seus próprios estúdios de produção e na compra (e não mero licenciamento) de direitos de distribuição dava para um texto inteiro dedicado ao tema. Resumindo, a Netflix tornou-se uma plataforma mainstream, cujas séries e filmes originais são fenómenos virais, com várias nomeações e vitórias em cerimónias de prémios reputados, desde Cannes até aos Óscares. O fenómeno de binging (ver múltiplos episódios de seguida) de séries acabadas de estrear entrou para o léxico popular, assim como expressões como “Netflix and Chill”. E, claro, a partilha de passwords.

Nesta conjuntura, a valorização da Netflix dispara na bolsa, de $131 em janeiro de 2017 para $345 a janeiro de 2020. A Netflix é considerada uma empresa de tecnologia, valorizada, como parte das Big Tech, pelo seu potencial de crescimento futuro. Embora nos meses seguintes, com o pandemia da Covid-19 e as quarentenas, a valorização da Netflix ainda tenha subido mais, atingindo picos de $630 (as pessoas estão presas em casa, vão querer entretenimento), os problemas já se encontravam à mostra.

Em primeiro lugar, começaram as “streaming wars”, com a entrada no mercado de vários serviços, sendo os mais prominentes a Amazon Prime (da Amazon, inicialmente lançada em 2011), a Disney+ (Disney, 2019), a AppleTV+ (Apple, 2019), HBOMax (da Warner Bros, 2020), Paramount+ (Paramount, 2021). Ainda antes do lançamento destas plataformas, a Netflix já tinha começado a “sangrar” conteúdos, à medida que as licenças de distribuição exclusiva celebradas no início dos anos 2010s expiravam. Os seus futuros concorrentes recusam a celebração de novos contratos, enquanto estúdios de terceiros exigem valores muito superiores para a renovação das suas licenças.

Em segundo lugar, uma série de operações de concentração veio a distorcer o mercado contra a Netflix. A Disney adquiriu os estúdios da 20th Century Fox, enquanto a Warner Bros. foi comprada pela Discovery (agora Warner Bros. Discovery).

A própria gestão do catálogo da Netflix e o seu método de lançamento também tem sido problemática. O financiamento de um grande número de projetos, numa estratégia de “casting a wide net”, tem resultado em diversos franchises com alcance global, mas também enterrou a empresa em inúmeros projetos falhados de qualidade muito inconsistente. A combinação de demasiadas opções de escolha, o lançamento de temporadas inteiras na mesma data e a insegurança em investir tempo numa série que pode ser cancelada a qualquer momento, ficando assim incompleta, podem estar a provocar um fenómeno de fadiga em muitos consumidores.

A concorrer com os serviços de streaming pela atenção dos consumidores, surgem ainda, por um lado, o Youtube, o Tiktok e as restantes redes sociais, com catálogos quase infinitos de conteúdos gerados pelos utilizadores e algoritmos de recomendação avançados, e, por outro lado, videojogos como Fortnite, Minecraft e Roblox, como admitiram o CEO da Netflix, Reed Hastings, e o CEO da Spotify, Daniel Ek.

Finalmente, a nível macroeconómico, depois de um crescimento bastante acelerado durante os “anos da covid”, as empresas tecnológicas viram as suas valorizações caírem a pique durante uma crise inflacionista, com a subida das taxas juros pelos principais bancos centrais (e em especial a Reserva Federal). Com a saída do mercado do mercado russo e uma aparente estagnação no crescimento do número de subscritores, a Netflix caiu a pique, perdendo aproximadamente 50% do seu valor em 2022, e a especulação acerca do seu valor futuro foi reavaliada: a Netflix não faz parte das Big Tech, sendo antes uma empresa de entretenimento.

Face a este enquadramento, a pressão do mercado e dos acionistas sobre a gestão da Netflix é óbvia. Nestes momentos, a cultura corporate feroz exige grandes gestos e ações que resolvam rapidamente os problemas das organizações. Neste sentido, embora dificilmente consigam recuperar a quota de mercado no curto prazo, é possível tentarem cortar custos e aumentar receitas. Traduzindo: cancelar produções consideradas não rentáveis e aumentar o valor das mensalidades.

Porém, esta estratégia não foi suficiente. Assim surgem as ideias de fornecer uma subscrição mais barata com anúncios (captando novos subscritores) e o crackdown da partilha de passwords.

Este texto procurou assim contextualizar a conjuntura que levou à implementação destas medidas, de forma a compreender o comportamento dos vários agentes económicos. O próximo texto será a continuação deste, focando-se na análise da nova política de partilha de passwords, na aplicabilidade do Direito do Consumo e num balanço final do que os consumidores podem esperar destes serviços no futuro.

É possível comprar e-books?

Doutrina

Imagine que você foi a uma livraria comprar um livro, volta para casa e o põe na estante. Certo dia, um amigo o vê e pede o título emprestado. Contudo, ao tentar atravessar a porta, o livro fica para trás. Talvez não seja um amigo, mas seu orientando que, ao ler apenas um capítulo, mudaria toda sua tese. O livro ainda assim não irá sair da sua residência. Talvez um dia você o queira dar de presente ao seu neto para que ele possa ler a história que marcou a sua infância. Não importa. Qualquer parte do livro só pode ser lida dentro da sua biblioteca. Seria absurdo, se não fosse o que ocorre, por regra, ao “comprar” um e-book.

Ao realizar a compra de um objeto, o consumidor tem a expectativa de poder revender, emprestar ou até mesmo doar este item. A ideia de compra atrela-se consequentemente à propriedade plena do bem, ainda que o objeto expresse a propriedade intelectual de outrem. Nesses casos, em traços gerais, a doutrina da exaustão assegura que os direitos do autor irão se exaurir após a primeira venda do objeto no mercado.

Entretanto, ao ver um e-book em sites como Kobo.com ou Amazon.es e clicar em “Comprar agora com 1-Clique”, somente com este clique é realizado o débito do valor e disponibilizado o e-book para download. Com isso, o consumidor poderá ler o e-book nos dispositivos associados à sua conta para sempre, o que difere de um sistema de subscrição, por exemplo. Porém, não é possível emprestá-lo, doá-lo ou revendê-lo; sequer capítulos deste.

É bem verdade que, apesar de ser anunciado como tal, a “compra” do e-book é, de facto, uma mera “licença de uso”, como resta claro nos termos e condições de uso da loja Kindle, por exemplo. Isso significa que não há propriedade sobre o bem, o que justifica as supracitadas limitações. Contudo, não justifica que esta ação seja anunciada enquanto uma “compra”. Sequer justifica que o contrato que explica os reais termos da contratação, em nenhum dos casos, seja claro ou possua tradução para o português (como o resto do site), tampouco que o contrato não seja expressamente aceite pelo consumidor antes da “compra”, já que esta ocorre num único clique.

Ao realizar uma pesquisa sobre o tema, Aaron Perzanowski e Chris Jay Hoofnagle  constataram que 83% dos consumidores acreditavam que, após clicar em “comprar agora”, possuíam o bem digital em questão. Noutro giro, os consumidores conseguiriam entender se tratar de um contrato de licença caso a opção fosse “licencie agora”, com uma breve descrição do que esta ação difere de uma compra comum. Resta claro, portanto, um desequilíbrio entre a oferta realizada e aceita pelo consumidor ao “comprar” o bem digital (e as implicações desta compra) e o real contrato de licença firmado entre as partes.

 Analisando o Direito do Consumo Europeu, a Diretiva (UE) 2019/770, que trata dos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais, afirma, em seu artigo 5º, que o profissional cumpre sua obrigação quando são disponibilizados os conteúdos ou quaisquer meios adequados para aceder ou descarregar estes. Nesse quesito, não haveria uma violação legal na forma em que o bem digital é fornecido.

Contudo, é possível que se configure uma prática comercial desleal, como definido na Diretiva 2005/29/CE. Em seu artigo 6º, este diploma enquadra enquanto enganosas as práticas comerciais que contenham informações inverídicas ou que, ainda que contendo informações factualmente corretas, sejam suceptíveis de induzir em erro ou conduzir o consumidor médio a tomar uma decisão de transacção que este não teria tomado de outro modo. Ressalta-se que se considera consumidor médio aquele normalmente informado e razoavelmente atento e avisado.

No caso em apreço, o botão que informa a “compra” do e-book pode se enquadrar enquanto prática comercial enganosa, tendo em vista que não é preformado um contrato de compra e venda, mas sim de licença do conteúdo. Consequentemente, para impulsionar a realização do contrato, o consumidor médio será induzido em erro. Afinal, como demonstrou a supracitada pesquisa, paga-se o valor acreditando ser pela propriedade do bem, incluindo-se aí o poder de realizar as ações como seu empréstimo, revenda ou doação, e recebe-se um bem que não pode deixar a biblioteca dos dispositivos do consumidor.

Portanto, respondendo à pergunta do título, é possível licenciar um e-book, mas não o comprar. Desse modo, parece-nos desleal realizar uma oferta de venda enquanto, na realidade, se performa um contrato de licença de uso, no qual o e-book, diferentemente do livro físico, não poderá sair da biblioteca do consumidor, não importa o que aconteça.

Acórdão C-395/21 – O Direito do Consumo aplica-se à relação advogado-cliente

Jurisprudência

No passado dia 12 de janeiro, o Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) proferiu o Acórdão D.V. contra M.A. (C-395/21) relativo a cláusulas contratuais abusivas e à Diretiva 93/13/CEE. Neste caso, trata-se de um serviço diferente: serviços jurídicos fornecidos por um advogado.

  1. Factos

Na base do litígio esteve a celebração de contratos de prestação de serviços jurídicos, nos quais vinham estipulados honorários de 100 euros por hora de serviço. Após a prestação dos mesmos, a advogada em causa intentou uma ação judicial no sentido de obter a condenação do consumidor ao pagamento de 9.900 euros a título de prestações jurídicas realizadas, e de um montante de 194,30 euros a título de despesas incorridas no âmbito da execução dos contratos, acrescidos de juros anuais que ascendiam a 5% das somas devidas.

Tendo chegado ao Supremo Tribunal da Lituânia, este questionou-se sobre o caráter abusivo da cláusula relativa aos honorários. A este respeito, esse órgão jurisdicional considerou que, embora a cláusula estivesse formulada claramente do ponto de vista gramatical, seria possível duvidar que fosse compreensível, uma vez que o consumidor médio não estaria em condições de compreender as suas consequências económicas.

Por um lado, a invalidação da cláusula relativa ao preço deve acarretar a nulidade dos contratos de prestação de serviços jurídicos e o restabelecimento da situação em que o consumidor se encontraria se essas cláusulas nunca tivessem existido. Ora, no caso em apreço, isso conduziria a um enriquecimento injustificado do consumidor e a uma situação injusta em relação ao profissional que forneceu integralmente esses serviços. Por outro, o tribunal interrogou-se sobre a questão de saber se uma eventual redução do custo das referidas prestações não prejudicaria o efeito dissuasor prosseguido pelo artigo 7.°, n.° 1, da Diretiva 93/13.

Neste seguimento, o Supremo Tribunal da Lituânia coloca as seguintes questões ao TJUE:

– Deve o art. 4.º(2) da Diretiva 93/13 ser interpretado no sentido de que a expressão “objeto principal do contrato” abrange uma cláusula como a do presente caso, relativa ao custo e à forma como este é calculado?
– Deve a referência no art. 4.º(2) da Diretiva 93/13 ao caráter claro e compreensível de uma cláusula contratual ser interpretada no sentido de que basta especificar na cláusula do contrato relativa ao custo o montante dos honorários por hora devidos ao advogado?
– Em caso de resposta negativa à segunda questão: deve a exigência de transparência ser interpretada no sentido de que abrange a obrigação de o advogado indicar o custo dos serviços cujos valores exatos podem ser claramente definidos e especificados antecipadamente, ou deve também ser especificado o custo indicativo dos serviços, caso seja impossível prever as ações específicas e os respetivos honorários, no momento da celebração do contrato, e indicar os riscos que podem conduzir a um aumento ou a uma diminuição do custo?
– Se a cláusula não estiver redigida de maneira clara e compreensível, deve apreciar-se se esta cláusula é abusiva na aceção do art. 3.º(1) ou, tendo em conta que essa cláusula abrange informação essencial do contrato, o simples facto de a cláusula relativa ao custo não ser transparente é suficiente para que seja considerada abusiva?
– O facto de, quando a cláusula tiver sido considerada abusiva, o contrato de prestação de serviços jurídicos não ser vinculativo, em conformidade com o 6.º(1) da Diretiva 93/13, significa que é necessário restabelecer a situação em que o consumidor se encontraria se a cláusula que foi considerada abusiva não existisse? O restabelecimento de tal situação significa que o consumidor não tem a obrigação de pagar pelos serviços já prestados?
– Caso a natureza de um contrato de prestação de serviços a título oneroso torne impossível o restabelecimento da situação em que o consumidor se encontraria se a cláusula que foi considerada abusiva não existisse (os serviços já foram prestados), a fixação da remuneração pelos serviços prestados pelo advogado é contrária ao objetivo do art. 7.º(1) da Diretiva 93/13?

  1. Primeira questão

Relativamente à primeira questão, o TJUE declarou que o art. 4.°(2) abrange uma cláusula de um contrato de prestação de serviços jurídicos celebrado entre um advogado e um consumidor, independentemente de ter sido objeto de negociação individual ou não.

O TJUE baseia esta conclusão no facto da cláusula relativa ao preço ter por objeto a remuneração dos serviços jurídicos, estabelecida segundo um valor por hora. Tal cláusula, que determina a obrigação do mandante ao pagamento de honorários, faz parte das cláusulas que definem a própria essência da relação contratual, sendo esta relação precisamente caracterizada pela prestação remunerada de serviços jurídicos.

  1. Segunda e terceira questões

Relativamente às duas questões seguintes, o TJUE avaliou se uma cláusula como a do presente caso cumpre a exigência de redação clara e compreensível da Diretiva 93/13. O Tribunal concluiu que não, caso não tenham sido fornecidas ao consumidor informações que, antes da celebração do contrato, lhe permitissem tomar uma decisão prudente e com total conhecimento das consequências económicas do vínculo a assumir.

Com base numa interpretação ampla do conceito de transparência, de modo a garantir uma maior proteção ao consumidor, o Tribunal concluiu que é indispensável que as cláusulas do contrato sejam claras e compreensíveis, para que o consumidor possa estar consciente de todos os detalhes envolvidos e, dessa forma, possa tomar uma decisão informada e bem fundamentada sobre a contratação dos serviços.

Para o garantir, o profissional está incumbindo de três deveres. Em primeiro lugar, deve fornecer ao consumidor todas as informações relevantes antes da celebração do contrato. Além disso, o Tribunal recomendou que o profissional preste ao consumidor uma orientação adequada sobre os direitos e deveres de ambas as partes, para que este possa compreender totalmente o contrato. Por fim, o Tribunal concluiu que o profissional deve informar o consumidor sobre todos os custos adicionais que possam surgir ao longo do contrato.

Aplicando este raciocínio ao caso concreto, o TJUE concluiu que a fixação do preço do serviço jurídico por hora não permite ao consumidor médio, na falta de qualquer outra informação fornecida pelo profissional, saber o montante total a pagar pelos serviços. Muito embora a natureza dos serviços jurídicos não permita facilmente determinar o número de horas necessárias à sua conclusão, o TJUE afirmou que o profissional, no momento da celebração do contrato, tem de prestar as informações de que dispõe ao consumidor.

Nesse sentido, deve fornecer-lhe as informações necessárias para que possa tomar uma decisão informada, nomeadamente no que respeita à duração (e custo) aproximado da prestação de serviços jurídicos em causa, tendo em consideração as regras profissionais e deontológicas aplicáveis. O TJUE dá como exemplos uma estimativa do número previsível ou mínimo de horas necessárias para prestar o serviço ou o compromisso de envio regular de faturas ou relatórios que indiquem o número de horas de trabalho prestadas.

  1. Quarta questão

Passando à quarta questão, o TJUE afirmou que o art. 3.º(1) deve ser interpretado no sentido de que uma cláusula como a do presente caso não deve ser considerada abusiva pelo simples facto de não respeitar o critério da transparência do art. 3.º(2), exceto se a legislação nacional impuser que essa qualificação derive unicamente desse facto.

A Diretiva 93/13 estabelece que a falta de transparência de uma cláusula deve ser considerada como um dos principais critérios na avaliação do caráter abusivo de uma cláusula, pelo que a decisão sobre o caráter abusivo deve ser feita tendo em conta outros elementos. Não obstante, os Estados-Membros têm a possibilidade de optar por um nível de proteção mais exigente, nomeadamente – como no caso Lituano – considerando cláusulas contrárias à exigência de transparência como abusivas per se.

  1. Quinta e sexta questões

Aqui, o Tribunal decidiu que a Diretiva não se opõe a que, derivado da aplicação de Direito interno e caso o contrato não possa subsistir devido ao caráter abusivo da cláusula do preço, o profissional não receba nenhuma remuneração pelos serviços prestados. Da mesma forma, a Diretiva não se opõe a que haja a substituição da cláusula por uma disposição de direito nacional de caráter supletivo, em situações nas quais o consumidor seria colocado numa situação prejudicial caso se desse a invalidação total do contrato.

Não obstante, esta possibilidade só poderá ser aplicada em circunstâncias limitadas. Só no caso de a invalidade da cláusula implicar a invalidação total do contrato e esse facto expuser o consumidor a consequências prejudiciais é que o órgão jurisdicional nacional dispõe da possibilidade excecional de substituir uma cláusula abusiva anulada por uma disposição nacional de caráter supletivo, ou aplicável por acordo das partes. De igual forma, a disposição em causa tem de ser destinada a uma aplicação a contratos celebrados entre um profissional e um consumidor, portanto sem um alcance de tal modo geral, que a sua aplicação equivalha a permitir ao juiz nacional fixar com base na sua própria estimativa a remuneração devida pelos serviços prestados.

  1. Comentário

Dos tópicos levantados, o que cabe destacar como particularmente interessante é a possibilidade de um advogado ver o seu serviço não compensado face ao caráter abusivo das cláusulas que insere nos seus contratos. Aqui, o TJUE concluiu com relativa facilidade que essa possibilidade existe, prevendo outras hipóteses apenas se a invalidação total do contrato implicar um agravamento da situação do consumidor, verificando-se assim uma total preponderância da proteção do consumidor face ao profissional.

Isto é reforçado pela opinião do AG, ao afirmar que a Diretiva 93/13 não exige um “resgate” do profissional face à resolução do contrato. Afirma igualmente que as consequências que o direito interno prevê para a nulidade do contrato não podem ser tais que prejudiquem o efeito útil da Diretiva 93/13, ou seja, a proteção dos consumidores. De igual forma, a Diretiva não prevê a necessidade de se conceder aos profissionais proteção face à eventual nulidade de contratos nos quais inseriram cláusulas abusivas, mesmo que os serviços já estejam prestados e não seja possível haver uma “devolução” dos mesmos. Por isto, a possibilidade de “remendar” contratos com cláusulas abusivas é limitada, já que, caso contrário, a hipótese de haver essa substituição pelos tribunais colocaria em causa o efeito dissuasor prosseguido pela Diretiva. Só em casos em que a nulidade total do contrato traria ao consumidor consequências particularmente prejudiciais é que se poderia proceder a essa substituição.

Por isso, vemos que uma das profissões encarregues de aplicar a lei está igualmente sujeita a uma correta aplicação das normas de proteção dos consumidores, que, caso não sejam respeitadas, podem levar a fortes riscos que juristas, advogados e outros profissionais do Direito deveriam estar aptos a evitar. Assim sendo, os advogados, tal como outros profissionais análogos, devem respeitar os deveres de transparência, informando devidamente os consumidores sobre os custos que os seus serviços acarretam.

O que têm em comum Jane Birkin e Satoshi Nakamoto?

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Fundada em 1837, a marca Hermès remete-nos de imediato para um mundo de luxo e exclusividade. Grace Kelly, atriz e princesa do Mónaco, usava amiúde o sac à dépêches da marca francesa, o que levou a que mais tarde o modelo fosse rebatizado com o nome de “Kelly”[1].  Na década de 80, um encontro fortuito no aeroporto entre Jane Birkin e Jean-Louis Dumas, à data chefe executivo da Hermès, fez nascer o icónico modelo de carteiras “Birkin”, que foi recentemente considerado, por um estudo da empresa Baghunter[2], um investimento com maior retorno do que o investimento em ouro. De acordo com as conclusões apresentadas, o valor do retorno anual de uma Birkin é de 14,2%, em muito superior ao do ouro. Estudos à parte, a verdade é que não se conhece, sequer, o preço exato de uma Birkin. O modelo é tão exclusivo que é a própria marca que decide quem vai comprar, i.e., não basta querer e ter disponibilidade financeira para adquirir – uma curiosa relação de consumo cuja análise remeteremos para outras núpcias.

Façamos agora um fast forward para 31 de outubro 2008, data em que Satoshi Nakamoto, cuja existência ainda está por provar, publicou um white paper no qual propôs um novo sistema de troca de “dinheiro” eletrónico peer-to-peer[3] baseado em tecnologia blockchain, de registo distribuído, cujas primeiras fundações académicas haviam sido lançadas por David Chaum, em Berkeley[4], na década de 80 do séc. XX – a mesma década de criação do modelo Birkin.

De tema central de conversa de um nicho muito específico de interessados, com a rápida e vertiginosa valorização desta tecnologia, depressa termos como criptoativos, bitcoin, blockchain, distributed ledger technology, token, hash ou proof-of-work tornaram-se mundialmente populares e objeto de inúmeras análises e discussões que atravessam os mais diversos campos do conhecimento. Outro termo inevitável, NFT, surgiu, do ponto de vista substancial, em 2014, durante um evento de arte em Nova Iorque, no qual o casal Jennifer e Kevin McCoy apresentaram a sua obra em vídeo Quantum. NFT significa non-fungible token, ou seja, uma representação digital de um ativo real, sob a forma de um símbolo único e insubstituível[5]. Esta representação digital é criada na blockchain e pretende funcionar como um registo digital de autoria e propriedade. De que ativos reais falamos aqui? Praticamente qualquer realidade, embora a maior parte esteja relacionada com direitos de propriedade intelectual no sentido jurídico tradicional: uma obra de arte, um texto (v.g. primeiro Twitter publicado), música, jogos, fotografias, etc. NFT passou também a ser sinónimo de uma cultura de exclusividade artística e de um negócio que movimenta avultadas somas não só de criptomoedas, mas também de moeda com curso legal.

Em dezembro de 2021 o artista de NFT Mason Rothschild publicou uma coleção de 100 carteiras digitais (não no sentido de wallets, mas de representação digital de carteiras de senhora) à qual deu o título de “MetaBirkins”. Esta coleção surgiu no seguimento de um inusitado projeto anterior do mesmo autor, intitulado “Baby Birkin”, que foi vendido em Ether, criptomoeda da blockchain Ethereum, pelo equivalente a alguns milhares de euros.

Em janeiro de 2022 a Hermès intentou ação internacional contra Mason Rotschild, por uso indevido de marca registada, e utilizou como argumentos, entre outros[6]:

i) o facto de o artista prosseguir uma atividade especulativa e lucrativa através da criação, publicidade e venda de NFT com apropriação indevida da marca Hermès, tendo tornado público que pretendia enriquecer através da usurpação da marca; 

ii) a semelhança óbvia entre o design das carteiras “MetaBirkins” e do modelo Birkin original;

iii) ter sido criada uma confusão para o consumidor, uma vez que a Hermès não tem qualquer ligação ao artista e, por esse motivo, o prestígio de ter uma Birkin original não poderia ser aproveitado para o negócio de NFT em causa – os consumidores poderiam ser enganados e levados a crer que se tratava da mesma marca, com o mesmo peso socioeconómico;

iv) o registo de NFT “MetaBirkins” enquanto marca original constituir uma violação dos direitos de propriedade intelectual da marca Hermès;

v) o facto de terem sido criados estes NFT sem qualquer ligação à marca original poder enfraquecer a credibilidade e posicionamento da Hermès no mercado de luxo.

Mason Rotschild defendeu-se invocando o entendimento expresso no caso Rogers vs. Grimaldi (1988)[7], relativamente à ponderação expressão artística/direitos de propriedade intelectual argumentando que a liberdade criativa e artística se encontra protegida pela Primeira Emenda da Constituição americana e que o seu trabalho era puramente artístico e uma forma de crítica ao uso de peles de animais nas Birkin originais (as “MetaBirkins” foram desenhadas de modo que se parecessem com carteiras de pele falsa), em nada ferindo a marca ou aproveitando-se da mesma. Inclusivamente, nas redes sociais, Rotschild relembrou a forma positiva como a marca Campbell acolheu as famosas latas de sopa de Andy Warhol[8].

Contudo, o júri não concordou com o artista de NFT e considerou que os NFT desta natureza não se encontram abrangidos pela proteção à liberdade de expressão concedida pela Primeira Emenda, uma vez que não são considerados arte. O júri condenou Mason Rotschild ao pagamento de uma indemnização por danos à Hermès, no valor de cerca de 133 mil dólares[9] [10], dando razão à marca e a todos os que diziam que, caso não tivesse utilizado o nome Birkin, o artista nunca teria tido o sucesso que teve.

Atrevo-me a dizer que nem Jane Birkin, quando deixou cair os seus pertences no chão do aeroporto, à frente de Dumas, nem Satoshi Nakamoto, quando publicou o seu white paper, poderiam antecipar que os frutos dos seus trabalhos se cruzariam um dia mais tarde numa ação judicial com grande projeção, que opôs partes que procuram, ainda que de modo diverso, a exclusividade e a autenticidade, e na qual se convocaram o direito à liberdade de expressão, o direito do consumo e direito de propriedade intelectual. Mas esta decisão judicial, por ser a primeira que se debruça sobre NFT e a necessidade de oferecer clareza aos consumidores no que diz respeito ao uso de propriedade intelectual no âmbito específico de uma rede blockchain, é importante e abre caminho para uma discussão necessária. Resta saber se abrirá também um precedente.



Qualquer opinião expressa neste artigo é da exclusiva responsabilidade do autor, não representando a opinião do Banco de Portugal.


[1] https://saclab.com/fr/story-of-the-hermes-kelly/

[2] https://baghunter.com/pages/hermes-birkin-values-research-study

[3] Bitcoin: a peer-to peer electronic cash system, https://bitcoin.org/bitcoin.pdf

[4] Computer Systems Established, Maintained and Trusted by Mutually Suspicious Groups, 1982 https://evervault.com/papers/chaum

[5] Já se abordou anteriormente aqui no blog o conceito de NFT.

[6] https://fingfx.thomsonreuters.com/gfx/legaldocs/zjvqkmgnxvx/IP%20HERMES%20TRADEMARKS%20complaint.pdf

[7] https://law.justia.com/cases/federal/district-courts/FSupp/695/112/2345732/

[8] https://news.bloomberglaw.com/ip-law/hermes-gets-win-over-metabirkins-in-first-nft-trademark-trial

[9] https://www.nytimes.com/2023/02/08/arts/hermes-metabirkins-lawsuit-verdict.html

[10] https://www.bloomberglaw.com/public/desktop/document/HermesInternationaletalvRothschildDocketNo122cv00384SDNYJan142022?doc_id=X1Q6ODL37A82

Tsunami informativo, falta de leitura pelo consumidor e encargo pesado para as empresas

Doutrina

Em 2022, publiquei com A.R. Lodder, Professor da Vrije Universiteit Amsterdam (Países Baixos), o texto Online Platforms: Towards an Information Tsunami with New Requirements on Moderation, Ranking, and Traceability. Este artigo foi escrito no âmbito das atividades do Jean Monnet Centre of Excellence ‘Consumers and SMEs in the Digital Single Market (Digi-ConSME)’, dirigido pelo Professor Federico Ferretti, da Unidade de Bolonha.

Nos dias 2 a 4 de fevereiro de 2023, realizou-se o evento de encerramento do projeto, no qual participaram, além dos investigadores que contribuíram para as atividades do Centro, representantes das instituições europeias e de associações de consumidores e de pequenas e médias empresas.

O Professor Hans-Wolfgang Micklitz fez uma intervenção inicial desafiante, na qual identificou a crescente fragmentação do Direito do Consumo, por via de uma distinção cada vez maior entre consumidores, nomeadamente por meio da identificação de diferentes vulnerabilidades. Colocou, nomeadamente, a questão de saber se o conceito de pessoa jurídica, inexistente no Direito da União Europeia, está a ser preenchido por esta via.

No evento final, A.R. Lodder e eu apresentámos algumas conclusões do nosso trabalho.

Partimos de três pressupostos de base:

  1. Ninguém[1] lê os chamados “terms and conditions”, ou seja, a lista de cláusulas contratuais gerais constante de todos os sites e plataformas;
  2. O número de elementos de informações que deve ser incluído no processo de contratação pelo profissional e pela plataforma é cada vez mais abundante;
  3. É difícil para o profissional e para plataforma cumprir os deveres de informação, pois é difícil que, com tantos elementos de informação para transmitir, a informação possa ser clara e compreensível, como a lei exige.

A conclusão é a de que o sistema vigente não é bom nem para os consumidores, que não têm acesso efetivo à informação, nem para as empresas, que têm um encargo pesado e, na prática, impossível de cumprir, pois (quase) nenhum consumidor que use de comum diligência, adaptando a expressão constante do regime português das cláusulas contratuais gerais, toma conhecimento da informação em causa.

Coloca-se então a questão de saber se se pretende que a informação seja realmente dirigida ao consumidor concreto que está diante do profissional ou da plataforma, com vista a dela tomar conhecimento efetivo.

Temos de concluir que não, tendo em conta os três pressupostos enunciados. Os interesses dos consumidores podem ser indiretamente protegidos se considerarmos que em muitos casos o objetivo é, por um lado, obrigar o profissional a pensar sobre os assuntos em causa e ter de assumir por escrito a perspetiva adotada e, por outro lado, permitir o controlo por parte das entidades fiscalizadoras e reguladoras e o private enforcement, através de ações coletivas.

Torna-se então necessário distinguir entre elementos de informação que

  • têm de ser apresentados ao consumidor em destaque e no momento específico em que a questão se coloca; e
  • outros que podem sê-lo apenas nos chamados “terms and conditions”.

Garante-se, relativamente a estes últimos, (i) que a empresa tem uma política sobre o tema em causa, (ii) que ficam disponíveis para qualquer consumidor interessado, sendo que a maioria dos consumidores não está interessada, e (iii) que podem ser fiscalizados pelas entidades de supervisão e por associações de consumidores.

Por exemplo, no Digital Services Act (Regulamento dos Serviços Digitais), os novos elementos de informação relacionados com moderação de conteúdos (art. 14.º) e rastreabilidade dos profissionais (art. 30.º) estão no segundo grupo, enquanto parte dos relativos a publicidade (art. 26.º) e sistemas de recomendação (art. 27.º) estão no primeiro. Ficam aqui algumas ideias para reflexão e discussão. Embora o tema esteja longe de ser novo, parece não haver, em especial da parte das instituições europeias, vontade de fazer as mudanças necessárias para ajustar o direito à realidade.


[1] Digamos “quase ninguém”, por precaução (científica). Desde logo, leem os juristas que elaboram as cláusulas e os que pretendem, em caso de litígio, colocá-las em causa.

A inovadora “Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor” desenvolvida no Brasil por Marcos Dessaune

Doutrina

Por Marcos Dessaune, advogado e autor da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor

A partir de 2009, com o estabelecimento de metas de produtividade para o Poder Judiciário brasileiro, os tribunais pátrios desenvolveram uma jurisprudência defensiva para evitar a multiplicação de processos[1]. Erigida sobre o argumento do “mero aborrecimento”, tal jurisprudência sustenta que só configura dano moral a dor, o sofrimento, o vexame ou a humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, afetando o seu bem-estar. Mero aborrecimento, dissabor, irritação ou sensibilidade exacerbada não caracterizam dano moral, visto que tais situações não são intensas e duradouras a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo[2].

Esse entendimento reverbera um conceito de dano moral que, embora já esteja superado pela doutrina mais recente, continuou a ser reproduzido indiscriminadamente no Direito brasileiro, a ponto de se falar numa “tradicional confusão” entre danos extrapatrimoniais e morais presente em praticamente todos os autores justamente reputados como clássicos na matéria[3].

Diante dessa compreensão doutrinário-jurisprudencial tradicional e da necessidade de se conferir efetividade ao princípio da reparação integral, tornou-se necessário ampliar o conceito de dano moral no Brasil, para que fosse possível reconhecer novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa e, ao mesmo tempo, para que se permitisse a reparação autônoma de mais de uma espécie deles oriunda do mesmo evento danoso.

Assim sendo, os danos extrapatrimoniais, por serem tradicionalmente chamados no Brasil de “danos morais”, podem ser identificados e classificados com base no bem jurídico lesado. O dano moral lato sensu (ou em sentido amplo), enquanto gênero que corresponde ao dano extrapatrimonial, pode ser atualmente conceituado como o prejuízo não econômico que decorre da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, abrangendo os bens objeto dos direitos da personalidade. O dano moral stricto sensu (ou em sentido estrito), enquanto espécie de dano extrapatrimonial (ou moral lato sensu), pode ser definido como o prejuízo não econômico que decorre da lesão à integridade psicofísica da pessoa.

Além da ampliação do conceito de dano moral, tornou-se necessário superar o argumento do “mero aborrecimento” na jurisprudência brasileira, o que vem sendo realizado no país pela inovadora Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, que identificou e valorizou o tempo do consumidor como um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado e, depois da sua publicação, ensejou o gradual desenvolvimento de uma nova jurisprudência nacional.

Confrontado com a jurisprudência erigida sobre o argumento do “mero aborrecimento”, debrucei-me sobre o seguinte problema: na atual sociedade de consumo brasileira, o consumidor tem sido corriqueiramente levado a despender o seu tempo e a se desviar das suas atividades cotidianas para enfrentar problemas de consumo criados pelos fornecedores. Indaga-se então: essas situações configuram algum dano extrapatrimonial reparável ou, diversamente, representam meros dissabores ou aborrecimentos normais na vida do consumidor?

Ao publicar o primeiro estudo sobre a problemática em 2011, na obra intitulada Desvio Produtivo do Consumidor[4], e avançando em 2017 na Teoria aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor[5], obras que pioneiramente identificaram e valorizaram o tempo do consumidor como um bem jurídico, percebi que não se sustentava a compreensão jurisprudencial brasileira de que a via crucis enfrentada pelo consumidor, diante de um problema de consumo criado e imposto pelo próprio fornecedor, representaria “mero dissabor ou aborrecimento” normal na vida do vulnerável, e não um dano extrapatrimonial ressarcível.

Os substantivos “dissabor” e “aborrecimento” traduzem um sentimento negativo qualificado pelo adjetivo “mero”, que significa simples, comum, trivial. Em outras palavras, a jurisprudência baseada no argumento do “mero aborrecimento” está implicitamente afirmando que, em determinada situação, houve lesão à integridade psicofísica de alguém apta a gerar um sentimento negativo (“dissabor” ou “aborrecimento”). Porém, segundo se infere dessa mesma jurisprudência, tal sentimento é pequeno, trivial ou sem importância (“mero”), portanto incapaz de romper o equilíbrio psicológico da pessoa e, consequentemente, de configurar o dano moral compensável.

Com efeito, essa jurisprudência tradicional revela um raciocínio erigido sobre bases equivocadas que, naturalmente, conduzem a essa conclusão errônea. O primeiro equívoco é que o conceito de dano moral enfatizaria as consequências emocionais da lesão, enquanto ele já evoluiu para centrar-se no bem jurídico atingido; ou seja, o objeto do dano moral era essencialmente a dor, o sofrimento, o abalo psíquico, e se tornou a lesão a um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, abrangendo os bens objeto dos direitos da personalidade. O segundo equívoco é que, nos eventos de desvio produtivo, o principal bem jurídico atingido seria a integridade psicofísica da pessoa consumidora, enquanto, na realidade, são a sua liberdade, o seu tempo vital e as atividades existenciais que cada pessoa escolhe nele realizar, como trabalho, estudo, descanso, lazer, convívio social e familiar, etc.. O terceiro equívoco é que esse tempo existencial não seria juridicamente tutelado, enquanto, na verdade, ele se encontra protegido tanto no rol aberto dos direitos da personalidade quanto no âmbito do direito fundamental à vida. Por conseguinte, o lógico seria concluir que os eventos de desvio produtivo do consumidor acarretam, no mínimo, dano moral lato sensu reparável.

Ocorre que o tempo é o suporte implícito da vida, que dura certo tempo e nele se desenvolve, e a vida, enquanto direito fundamental, constitui-se das próprias atividades existenciais que cada um escolhe nela realizar. Logo, um evento de desvio produtivo traz como resultado um dano que, mais do que moral, é existencial, pela alteração prejudicial do cotidiano e/ou do projeto de vida do consumidor.

Logo, concluí que o fornecedor, ao criar um problema de consumo no mercado e se eximir da sua responsabilidade de saná-lo voluntária, tempestiva e efetivamente, leva o consumidor em estado de carência[6] e situação de vulnerabilidade a desperdiçar o seu tempo vital e a se desviar das suas atividades existenciais para enfrentar o problema que lhe foi imposto. Consequentemente, o consumidor sofre um dano extrapatrimonial de natureza existencial, cujo prejuízo é presumido e deve ser reparado pelo fornecedor que o causou. Denominei esse evento danoso “desvio produtivo do consumidor”, ao tempo que percebi que ele não se amolda à jurisprudência tradicional, segundo a qual ele representaria “mero dissabor ou aborrecimento”, normal na vida do consumidor.

Em resumo, o conceito de dano moral ampliou-se no Brasil nos últimos anos, partindo da noção de dor e sofrimento anímico para alcançar, atualmente, o prejuízo não econômico decorrente da lesão a um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, compreendendo os bens objeto dos direitos da personalidade, como o tempo da pessoa humana. Essa ampliação conceitual vem permitindo o reconhecimento de novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa, como o dano estético, o dano temporal, o dano existencial, etc., bem como a reparação autônoma de mais de uma espécie deles originária do mesmo evento danoso.

A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor promoveu a ressignificação e a valorização do tempo do consumidor, elevando-o à categoria de um bem jurídico, o que vem possibilitando a superação da jurisprudência brasileira baseada no argumento do “mero aborrecimento”, que fora construída sobre bases equivocadas, contribuiu para a ampliação do conceito de dano moral, apontando esse tempo como um bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, e ensejou o gradual desenvolvimento de uma nova jurisprudência nacional, a do desvio produtivo do consumidor.

De acordo com a última pesquisa quantitativa de jurisprudência que realizei, no dia 15-12-2022, a expressão exata e inequívoca “desvio produtivo” já havia sido citada em 45.144 acórdãos de todos os tribunais estaduais, distrital e regionais federais do País, além do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em 2022, publiquei a 3.ª edição da Teoria do Desvio Produtivo ampliada para o Direito Administrativo e o Direito do Trabalho[7], obra que pode ser conhecida em www.marcosdessaune.com.br.


[1] BARRETO, Miguel. A indústria do mero aborrecimento. 2. ed. Juiz de Fora: Editar, 2016. passim.

[2] STJ, REsp 844736/DF, j. 27-10-2009, rel. p/ acórdão Min. conv. Honildo Amaral de Mello Castro.

[3] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 591.

[4] DESSAUNE, Marcos. Desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado. 1. ed. São Paulo: RT, 2011.

[5] DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. 2. ed. rev. e ampl. Vitória: Edição Especial do Autor, 2017.

[6] Estado de carência corresponde ao estado de desconforto ou de tensão gerado pela ativação de certa carência (necessidade, desejo ou expectativa), estado esse que impulsiona a pessoa a obter certo objeto ou a alcançar determinada meta e, geralmente, não permite demora.

[7] DESSAUNE, Marcos. Teoria ampliada do desvio produtivo do consumidor, do cidadão-usuário e do empregado. 3. ed. rev., modif. e ampl. Vitória: Edição Especial do Autor, 2022.

Prazo para a reparação ou substituição ao abrigo da garantia legal

Doutrina

Sobre este tema, veja, com mais aprofundamento, a obra do autor do texto “Compra e Venda e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – Anotação ao Decreto-Lei Nº 84/2021, de 18 de Outubro”, disponível aqui.

Em caso de uma falta de conformidade do bem com o contrato que se manifeste dentro do período de responsabilidade do profissional, o consumidor tem direito à reposição da conformidade, através de reparação ou de substituição (art. 15.º-1 do DL 84/2021).

Segundo o art. 18.º-1-a), a reparação ou a substituição deve ser efetuada a título gratuito, ou seja, nos termos do art. 2.º-a), “livre dos custos necessários incorridos para repor os bens em conformidade, nomeadamente o custo de porte postal, transporte, mão-de-obra ou materiais”. A lista não é exaustiva, pelo que outras despesas relativas à reposição da conformidade do bem, como custos com peritagens ou avaliações, devem considerar-se incluídas. Portanto, o consumidor não tem de pagar qualquer valor pela reparação, incluindo os custos do transporte do bem para o vendedor.

Nos termos do art. 18.º-2-b), a reparação ou a substituição deve ser efetuada num prazo razoável, ou seja, o “mais curto prazo necessário para a sua conclusão” (considerando 55 da Diretiva 2019/771).

Nesse mesmo considerando, pode ler-se que “os Estados-Membros deverão poder interpretar o conceito de prazo razoável para a conclusão da reparação ou da substituição, prevendo prazos fixos que podem ser geralmente considerados razoáveis para a reparação ou substituição, em especial no que respeita a categorias específicas de produtos”.

Utilizando esta possibilidade, prevê-se no art. 18.º-3 que “o prazo para a reparação ou substituição não deve exceder os 30 dias, salvo nas situações em que a natureza e complexidade dos bens, a gravidade da falta de conformidade e o esforço necessário para a conclusão da reparação ou substituição justifiquem um prazo superior”.

Esta norma é particularmente infeliz. Sob a aparência de melhorar a posição do consumidor, por se prever um prazo fixo, vem, na verdade, apresentar-se esse prazo como mínimo, permitindo a sua extensão nas situações aí indicadas. Na verdade, pouco se acrescenta em relação à cláusula geral do prazo razoável, que perde efeito. Temos dúvidas, até, que, na Diretiva, se esteja a pensar em prever simultaneamente a cláusula do prazo razoável e a previsão de um prazo fixo.

Os profissionais que não pretendam cumprir o prazo de 30 dias irão sempre invocar uma das exceções constantes do preceito, o que irá também aumentar consideravelmente a litigiosidade.

É, no entanto, necessário ter em conta um requisito adicional relativo à reposição da conformidade que pode limitar os efeitos negativos para o consumidor de uma reparação ou de uma substituição mais prolongada no tempo.

Assim, a reparação ou a substituição deve ser efetuada também, como prevê o art. 18.º-2-c), “sem grave inconveniente para o consumidor, tendo em conta a natureza dos bens e a finalidade a que o consumidor os destina”.

A concretização do conceito indeterminado de “grave inconveniente” deve ter em conta o caso concreto, relevando, nomeadamente, circunstâncias relativas à relação entre o consumidor e o bem.

A reposição da conformidade terá de ser feita em menos de 30 dias se o consumidor tiver um grave inconveniente com a reparação ou a substituição nesse prazo. É o que sucederá na generalidade dos casos.

Causa grave inconveniente ao consumidor não ter telemóvel durante 30 dias? À partida, se não tiver outro, a resposta será positiva. Isto significa que a reposição da conformidade em 30 dias não cumpre os requisitos previstos na lei. Na verdade, ficar sem telemóvel por mais de um ou dois dias já causará grave inconveniente a um consumidor normal. Isto significa que, em regra, um ou dois dias é o prazo máximo para a reparação ou a substituição do telemóvel sem ser causado um grave inconveniente ao consumidor. Estas observações valem para a generalidade dos bens, relembrando-se que a análise deve ser feita em concreto.

O profissional poderá utilizar, ainda assim, o tempo razoável para as operações de reparação ou de substituição, mas tem de fazer alguma coisa para que o consumidor não tenha um grave inconveniente. A solução mais adequada, nestes casos, passa pela disponibilização de um bem de substituição que satisfaça as necessidades do consumidor enquanto o bem reparado ou o novo bem não é entregue.

A ausência de reposição da conformidade a título gratuito, num prazo razoável (em princípio, 30 dias) e sem grave inconveniente para o consumidor, além de constituir ilícito contraordenacional, nos termos do art. 48.º-1-d), permite ao consumidor exercer de imediato o direito à redução do preço ou de resolução do contrato, como prevê o art. 15.º-4-a)-ii). Refira-se ainda que, segundo o art. 16.º, “nos casos em que a falta de conformidade se manifeste no prazo de 30 dias após a entrega do bem, o consumidor pode solicitar a imediata substituição do bem”. Neste caso, a substituição deve ser imediata, não se permitindo sequer ao profissional avaliar previamente a existência de falta de conformidade. Essa avaliação terá de ser feita apenas posteriormente.

O Ronaldo, o Messi, o Louis e a Annie – futebol, xadrez, arte ou publicidade

Doutrina

A 20 de novembro de 2022, teve início oficial um dos eventos mais importantes do planeta, denominado “Campeonato Mundial de Futebol FIFA de 2022”. Este Mundial, a que de tão conhecido e relevante basta chamar assim, tem vindo a ser alvo de polémicas de várias espécies, quase todas más. As suspeitas de corrupção e os atentados aos direitos humanos são as que mais se destacam.

No entanto, para além disso e da competição propriamente dita, surgem também outras coisas extraordinárias e no dia da inauguração acontece uma muito interessante. Fala-se muito de xadrez e contempla-se arte. Ou publicidade. Arte publicitária, que evidencia como são ténues as fronteiras em muitos campos. Sob um fundo absolutamente clássico, com uma perfeita quase ausência de cor, estão um baú sobre o qual assenta uma mala de mão, com padrão de quadrículas castanhas, nas quais estão dispostas peças de xadrez. Sentados, dois homens, um de cada lado, pousam na mala uma mão e, na outra mão, a cabeça, numa atitude absolutamente compenetrada e absorvida. Parece que abraçam suavemente o tabuleiro improvisado. Tudo é equilibrado, harmonioso. A luz, a sombra, a cor, as posições, as peças caídas e as peças em jogo, tudo concorre para a incrível obra de arte fotográfica de Annie Leibovitz, extraordinária artista que, entre muitos outros, fotografou a rainha Isabel II. Os homens são Lionel Messi e Cristiano Ronaldo, as malas são Louis Vuitton, marca criada em 1854, a jogada de xadrez é do terceiro jogo entre Magnus Carlsen e Hikaru Nakamura, no torneio da Noruega de 2017, que terminou num empate.

No Twitter, recentemente adquirido por Elon Musk, que rapidamente se pôs a despedir muitas pessoas, a marca de luxo publica que “Victory is a state of mind”, relembra que tem acompanhado os mais importantes eventos desportivos e explica que a fotografia celebra os dois mais talentosos jogadores de futebol da atualidade. Tudo verdade. Ganhar é um estado de espírito que, aliado a muito suor e trabalho pode levar à vitória, a Louis Vuitton é tão antiga e emblemática que acompanhou muitos desportistas e outros viajantes ilustres e ricos nas suas deslocações. A primeira classe do Titanic, por exemplo, estava carregada de bagagem assim acomodada. É usualmente aceite que Messi e Ronaldo são os melhores jogadores de futebol do mundo. Além de que Annie Leibovitz conseguiu mais uma assinalável proeza fotográfica. Nada foi deixado ao acaso, o mais ínfimo detalhe daquele improviso foi meticulosamente planeado. Até o xadrez. Podiam ter colocado aleatoriamente umas peças que ficassem bem em cima das quadriculas do padrão, para as quais jogadores de futebol estariam, em pose, a olhar, mas não. Deram-se ao trabalho de escolher um lance duma partida entre os melhores jogadores de xadrez do mundo e, ainda mais precisamente, uma que acaba num empate. Este detalhe, também ele, além da subtileza, evidencia um enorme respeito, tanto para com os jogadores de xadrez, como para com os jogadores de futebol retratados.

A publicação, a foto, a situação tornou-se viral nas redes sociais e, no Mundial de futebol, o xadrez ganhou lugar através de algo que  tudo indica ser uma excelente campanha publicitária.

Daqui dois pontos principais há a assinalar. O primeiro, é o fascínio que o xadrez ainda origina nas pessoas e, também, a capacidade que tem de fazer vender. Relembre-se como o mundo, em plena guerra fria, esteve suspenso de alguns jogos e desatou a comprar tabuleiros e peças e a jogar. Por exemplo, o filme “O Prodígio” mostra-o no Campeonato Mundial de Xadrez de 1972, em que o americano Bobby Fisher venceu o soviético Boris Spassky. Em final de 2020, a série “The Queen’s Gambit”, inflamou as audiências e fez disparar o consumo em várias áreas, naquilo que se poderá denominar “efeito Netflix”. Relembre-se, também, como foi impressionante quando o Deep Blue, uma máquina, venceu em 1997 Garry Kasparov, o campeão de xadrez da época. O xadrez tem associada a ideia de inteligência, de ponderação, de visão, de segurança, de precisão e muitas outras que o tornam adequado a simbolizar a superioridade humana, a qualidade individual de uma pessoa, a representar a ideal qualidade de um povo, de um país, da humanidade.

O segundo ponto a assinalar é a natureza esquiva e fluida da publicidade. Num duplo sentido. Por um lado, a sua clássica proximidade à arte. As sopas Campbell de Andy Warhol, não deixaram de ser sopas quando o artista resolveu fazer delas uma obra de arte, curiosamente, com a inicial oposição dos detentores da marca. A fotografia de Annie Leibovitz não deixa de ser uma manifestação artística por fazer publicidade.

No entanto, urge questionar, publicidade a quê? Sem dúvida, à marca das malas. Temos, no entanto, de admitir que cada um dos jogadores retratados são também publicitados. Embora já de si, pareçam possuir o toque de Midas, transformando em ouro tudo em que tocam, qualquer deles tem associado um fortíssimo merchandising e o reforço da divulgação da sua imagem vai certamente refletir-se em aumento de vendas. Ganham os próprios, ganham as empresas que produzem e vendem bens e serviços com o seu selo, ganham os clubes, os países e, certamente, muito mais gente que não nos ocorre. O próprio Mundial, certamente também ganha, sendo ainda mais divulgado. O Twitter e as redes sociais em que foto e publicação circulam, certamente ganham em visitas, que terão originado mais receitas em publicidade e outras. Este é o outro lado, do segundo ponto a assinalar. A publicidade tornou-se difusa, esquiva, fluída, indireta, de fronteiras muito pouco claras. A publicidade tradicional, ainda predominante na primeira década deste século, não só está a cair em desuso, como é acompanhada por novas formas que seriam muito difíceis de prever há algum tempo e que apresentam contornos pouco nítidos, que tornam difícil a sua qualificação e enquadramento jurídico. Salienta-se, pela relevância e amplitude que pode alcançar a “publicidade” nas redes sociais, quer através de algo que se torna viral, trazendo de repente para a ribalta marcas de bens ou serviços, quer através do trabalho dos influencers, mais sistemático, que vão apresentando, ou usando, ou comentando coisas, sítios que, por isso, vendem mais. Com o advento dos chatbots e o desenvolvimento do processamento de linguagem natural, também a publicidade pode passar a ser personalizada, sendo apresentada a cada pessoa que conversa com a máquina os produtos que procura, ou os que mais lhe podem interessar. Se juntarmos a realidade virtual, aumentada e mista, que temos vindo a abordar em posts recentes, acabamos por poder estar a ser avassalados, permanentemente, por comunicação que promove, com vista à sua comercialização, quaisquer bens ou serviços. Transformamo-nos em destinatários permanentes de publicidade, mais ou menos do mesmo modo como nos tornamos produtores e consumidores de dados pelo simples facto de existirmos e, principalmente, de usarmos um smartphone.

O Ronaldo, o Messi, o Louis e a Annie, fazem desporto, indústria, arte, história, promovem o futebol, o xadrez, as viagens, a moda, a fotografia, fazem publicidade, originam o aumento de vendas de coisas várias, geram tráfego nas redes sociais e na internet, alimentam a big data e a inteligência artificial, forçam os cânones do Direito, de todos os Direitos. Integram uma realidade cuja complexidade se adensa progressivamente, tornando difícil a sua análise e compreensão.

Vale-nos o Mundial que, nos relvados atafulhados de publicidade, nos vai manter fixos no jogo, algo à escala humana.

Finalmente, o novo Regulamento dos Serviços Digitais (Digital Services Act DSA)!

Legislação

A 27 de outubro de 2022, foi publicado no Jornal Oficial da União Europeia o muito aguardado Regulamento (UE) 2022/2065 dos Serviços Digitais (mais conhecido pelo nome inglês Digital Services Act DSA), aprovado a 19 de outubro no Conselho.

Apresentado há quase dois anos pela Comissão no Pacote dos Serviços Digitais (que inclui também o agora aprovado Regulamento (UE) 2022/1925 dos Mercados Digitais – Digital Markets Act DMA), o Regulamento dos Serviços Digitais atravessou um procedimento legislativo muito ativo: os 106 considerandos e 74 artigos da proposta inicial foram bastante trabalhados pelo Parlamento Europeu e o Conselho, resultando num total final de 156 considerandos e 93 artigos.

O Regulamento dos Serviços Digitais surge principalmente com o objetivo de atualizar o regime aplicável à responsabilidade dos prestadores de serviços digitais, anteriormente inserido nos artigos 12.º a 15.º da Diretiva do Comércio Eletrónico (2000/31/CE), agora revogados. Este regime de responsabilidade dos serviços intermediários pelo transporte e armazenamento de conteúdos ilegais, com quase 20 anos, carecia de atualização normativa, devido a todas as controvérsias relacionadas com a proliferação de conteúdos ilegais (violações de direitos de autor, promoção de terrorismo, pornografia infantil, entre outras) e tentativas de os moderar (erros dos algoritmos de sinalização e bloqueio, falsos positivos e negativos) que resultam por sua vez em restrições de direitos fundamentais de acesso à informação e liberdade de expressão, os chamados efeitos de silenciamento (“chilling effects”), que se tornaram evidentes com a omnipresença e dependência da sociedade atual nestes serviços.

O Regulamento acaba por não reinventar os principais princípios que regem a responsabilidade e o papel dos intermediários e a questão da moderação de conteúdos, focando-se antes na codificação e aprofundamento normativo de práticas que já constavam de intervenções junto dos principais stakeholders, sejam instrumentos de soft-law e self-regulation, nomeadamente a “Recomendação sobre medidas destinadas a combater eficazmente os conteúdos ilegais em linha”.

Assim, o Regulamento não altera substancialmente o regime de “safe harbour”, de isenção de responsabilidade dos prestadores de serviços de simples transporte e armazenagem temporária (“catching”) (arts. 4.º e 5.º), sendo que os serviços de alojamento virtual (novo termo para armazenagem em servidor “hosting”), recebe apenas algumas alterações cirúrgicas (em direito do consumo, abordada mais adiante). O princípio da proibição de obrigações gerais de vigilância mantém-se, sendo que é acrescentada a cláusula do “bom samaritano” (art. 7.º), que já existia no Content Decency Act CDA (a legislação americana de 1996 equivalente à antiga diretiva). Este permite aos prestadores de serviços manter a imunidade quando conduzem investigações próprias, voluntariamente e de boa-fé, destinadas a detetar, identificar e suprimir ou bloquear o acesso a conteúdos ilegais.

O papel das autoridades administrativas e judiciais é reforçado, com normas para a emissão de ordens de bloqueio e remoção de conteúdos. A figura dos sinalizadores de confiança (“trusted flaggers”) é também codificada (art. 22.º).

O Regulamento dos Serviços Digitais impõe severas medidas de controlo e auditoria de todos estes mecanismos, procurando reajustar o equilíbrio na relação entre utilizadores, plataformas e partes terceiras. Os direitos fundamentais de acesso à informação e liberdade de expressão estão refletidos nas diversas disposições do diploma.

Relação com o Direito do Consumo

O Regulamento dos Serviços Digitais não é um diploma de direito do consumo no sentido clássico do conceito. Na proposta original, a proteção de consumidores não surgia sequer indicada nos considerandos como um dos objetivos centrais do diploma, em especial a proteção económica, embora este pretendesse complementar a atuação das diretivas, com um foco nos direitos fundamentais. Este aspeto mudou com as recomendações e mudanças propostas pelo Parlamento Europeu, que referiu a necessidade de o diploma abordar as práticas desleais dos mercados em linha, assim como a articulação com normas de segurança de produtos e responsabilidade de plataforma.

Trata-se de um instrumento de regulação horizontal, que afeta uma série de áreas diferentes, incluindo os direitos de propriedade intelectual, os dados pessoais e a proteção dos consumidores. O regulamento não obsta à aplicação do acquis do direito do consumo europeu, como expressamente se indica no art. 1.º-4-f) e no considerando 10.

A definição de conteúdos ilegais, pertinente para as questões de moderação de conteúdos, inclui os conteúdos digitais que, independentemente da sua forma, violem ou estejam relacionados com violações de direito do consumo.

Os consumidores, enquanto utilizadores destes serviços, veem os seus direitos fundamentais de acesso à informação e à liberdade de expressão reforçados com mecanismos de reddress, para a contestação e recurso das decisões das plataformas na moderação de conteúdos, incluindo instrumentos de resolução de litígio.

O art. 6.º-3 inclui uma exceção expressa da exclusão de responsabilidade extremamente relevante para a proteção de consumidores: sempre que plataformas, que permitam a celebração de contratos à distância entre consumidores e comerciantes, apresentem o elemento específico de informação ou permitam, de qualquer outra forma, que a transação específica em causa induza um consumidor médio a acreditar que a informação, o produto ou o serviço objeto da transação é fornecido pela própria plataforma em linha ou por um destinatário do serviço que atue sob a sua autoridade ou controlo”. Os conceitos desta norma são desenvolvidos nos considerandos 23 e 24:

  • O considerando 23 salienta que este elemento da atuação sob autoridade ou controlo do prestador de um serviço de alojamento virtual, se verifica nos casos em que o fornecedor da plataforma em linha pode determinar o preço dos bens e serviços que são oferecidos pelos comerciantes nestes contratos à distância.
  • O considerando 24, por sua vez, aborda a questão das informações que induzam o consumidor médio a acreditar que os bens ou serviços objeto do contrato são fornecidos pela própria plataforma em linha ou por um comerciante que atue sob a sua autoridade ou controlo. O Regulamento indica como possíveis exemplos os casos em que a plataforma em linha não apresenta claramente a identidade do comerciante, se recusa a divulgar a identidade ou os dados de contacto do comerciante até após a celebração do contrato entre este e o consumidor ou comercializa o produto ou serviço em seu próprio nome, em vez de utilizar o nome do comerciante que irá fornecer esse produto ou serviço.

Será necessário, com base em todas as circunstâncias pertinentes e de forma objetiva, determinar se a apresentação é passível de induzir um consumidor médio a acreditar que a informação em causa foi prestada pela própria plataforma em linha ou por comerciantes que atuem sob a sua autoridade ou controlo. Consideramos que a utilização do conceito de consumidor médio nestes considerandos é infeliz, dado os problemas que este conceito tem levando na aplicabilidade da Diretiva 2005/29/CE, que regula as práticas comerciais desleais.

Os prestadores de serviços de intermediação em linha estão também proibidos de utilizar “dark patterns”, isto é, práticas que afetem e distorção os comportamentos dos consumidores, afetando a sua capacidade de realizar decisões autónomas, informadas e livres, graças a funcionalidades, nudges, à estrutura, design da plataforma e interface, com recurso ao tratamento de dados pessoais, considerando 67 e artigo 25.º. Estas práticas têm sido muito debatidas quanto à aplicabilidade da Diretiva 2005/29/CE das práticas comerciais desleais.

Neste sentido, o regulamento impõe ainda obrigações de transparência sobre os anúncios que são apresentados aos utilizadores, assim como os sistemas de recomendação, que apresentam sugestões ou rankings aos utilizadores, com base em decisões algorítmicas arts. 26.º e 27.º. As plataformas em linha devem informar adequadamente os consumidores sobre estas funcionalidades, os principais parâmetros e critérios utilizados, deixando que estes possam customizar, modificar estes sistemas, de acordo com preferências pessoais, 27.º-3.

De forma a assegurar a efetividade do direito do consumo europeu, os prestadores de mercados e plataformas em linha que permitam a celebração de contratos à distância a consumidores, são sujeitos a novas obrigações de due diligence, devendo aplicar os seus melhores esforços na recolha de todas as informações pré-contratuais e dados necessários, como os relacionados com a identidade dos profissionais, de forma a permitir a sua rastreabilidade art. 30.º, no âmbito das diretivas de consumo, nomeadamente a Diretiva 2011/83/EU, considerando 74.

O Regulamento inclui ainda uma série de medidas de forma a reforçar a atuação e cooperação entre entidades reguladoras independentes dos Estados-Membros (de forma a prevenir o fenómeno de bottleneck, causado pelo mecanismo one stop shop das ações por violação do RGPD[1]), assim como normas relacionadas com auditorias e supervisão das plataformas.


[1] Neste fenómeno, as Big Tech colocaram a suas sedes na Irlanda e no Luxemburgo, não só por questões de competitividade fiscal, mas também uma espécie de forum shopping regulatório, não no sentido das normas serem menos exigentes, mas devido à falta da sua efetividade, devido às entidades reguladores destes Estados não terem recursos para todas as queixas colocadas.