A Web Summit no presente do futuro do consumo

Doutrina

Estamos no day after da Web Summit que, como a maioria das pessoas em Portugal sabe, aconteceu em Lisboa, de terça a sexta. Neste fim de semana, na próxima semana e, se tudo correr bem, nos próximos meses, os contactos entre quem se encontrou por ali vão dar frutos contribuindo, entre outras coisas, para alterar as relações entre profissionais e consumidores, o modo como se consome e para trazer novos desafios ao Direito que tem de conseguir enquadrar e dar solução aos desenvolvimentos que os mercados vão impondo.

A Web Summit, já em pré-registo para 2023, fechou a 4 de novembro, com o Presidente da nossa República a cumprimentar Paddy Cosgrave, o CEO da organização, com um carinho que lhe pode ter deslocado um ombro e a anunciar-lhe que a feira vai ficar em Portugal até 2028, como está combinado, mas também depois, como espera que se irá combinar, com a promessa de aumento de construção do espaço, feita pelo mayor anterior, agora Ministro das Finanças, a dever ser cumprida pelo mayor atual, de nome Moedas, sob a atenta vigilância do PR, que do palco o avisou. Paddy, a tentar recuperar o equilíbrio do aperto de mão de entrada, do rombo que a pandemia fez nas suas finanças e do facto de ter de encaixar o evento numa área que afinal ainda não cresceu, não disse que sim, nem que não.

Para quem por lá andou é muito evidente que o espaço se torna exíguo para este retorno pleno ao presencial. Estiveram mais de 70.000 participantes de cerca de 160 países e o maior número de sempre de startups e investidores. Incluindo o Altice Arena, quatro pavilhões de consideráveis dimensões a que foi possível acrescentar um quinto improvisado, uns food trucks e mais umas barracas e estruturas amovíveis, ou não fosse uma feira, ainda assim a simples circulação é difícil, implicando uma permanente gincana, no perpetuo movimento que é necessário entre a visita às empresas, às mais de dez salas e palcos de Conferências e de apresentações que estiveram sempre a abarrotar e as reuniões entre os participantes. Ser o ponto de encontro é o mantra da Web Summit: “Where the tech world meets”.

A efervescência impera e, saudavelmente, são mais as perguntas que as respostas. Impera, também, a investigação. Toda a gente está a fazer investigação. Ligada a Universidades, a empresas, a ambas, a consórcios, a grupos de várias naturezas, investigar, desenvolver, experimentar, falhar, voltar a tentar é o dia a dia de quase todos. Qual vai ser o resultado é o que menos importa, porque é pelo caminho que vai acontecendo o que é relevante. Vive-se um ambiente de dúvida, mas metódica e criadora.

Se há uma certeza, é a de que é tudo muito rápido, sempre mais rápido, por várias razões. A principal, provavelmente, é o facto de que a par do desenvolvimento autónomo de tecnologias diferenciadas, se vai dando a interligação entre elas, o que provoca saltos, muitas vezes inesperados e intensos. É o que está a acontecer, por exemplo, com o denominado metaverso. A big data e a inteligência artificial aliadas à realidade virtual e aumentada, que foi caminhando para a denominada realidade mista, estão a levar a indústria e o comércio a novos modelos de negócio, alterando-se a relação entre profissionais e consumidores e a maneira como estes atuam no(s) mercado(s). Este assunto foi já abordado neste blog, a propósito dos smartglasses. A conjugação daquelas tecnologias, com as potencialidades da blockchain, o aumento da capacidade de computação e a imaginação, estão na base do enorme desenvolvimento daquilo a que se vem apresentando como o metaverso. Do que vimos, os mundos “alternativos”, virtuais, mistos, em que a realidade física se mistura com a realidade virtual, têm tudo para se tornarem incontornáveis. Saíram, definitivamente, do campo restrito dos jogos, para entrarem no do trabalho, da produção, da venda de bens e produtos, físicos e virtuais.

Naomi Gleit, responsável de produto da Meta (que veio a incluir o Facebook, o Instagram, o Whatsapp e mais uma série de outras empresas e/ou marcas), será provavelmente uma das pessoas mais habilitadas a explicar e no palco principal da Web Summit, fê-lo da melhor forma possível: com toda a simplicidade. Disse que o metaverso é o futuro da internet, que vamos experienciar a três dimensões. É isto. O metaverso é, pois, a internet a três dimensões. A gestora afirmou ainda, entre várias outras coisas muito interessantes, que “A Meta não vai ser dona do metaverso”, como nenhuma empresa é dona da internet e que o metaverso vai acontecer, com ou sem a Meta. Vão existir vários players no mercado a fornecer as plataformas e os serviços para que todos possam vir a usar.  

O tema das realidades virtual e aumentada, na internet, não é nada novo. Por certo que muitos se lembram do Second Life que, lançado em 2003, já tinha avatares e permitia uma vida paralela num mundo virtual. E, desde há vários anos que jogadores passam grande parte do seu tempo dentro de mundos virtuais em jogos crescentemente complexos e com ambientes próximos da “realidade real”. Também a experiência de óculos como os da Google, do Facebook ou outros é relativamente comum. Já para não falar do fenómeno incrível que dominou o verão de 2016 quando o mundo se lançou numa insana caça aos Pokemons, descarregando a aplicação para smartphone do jogo que ganhou 25 milhões de utilizadores no mês de lançamento. Nas suas casas e nas ruas, parques, campos e cidades pelo mundo fora, as pessoas corriam, de telefone em punho, em direção de desenhos animados virtuais, que através do telemóvel apareciam no mundo físico. Depois passou. No entanto, de um modo bastante corrente, estas tecnologias foram ficando, tornando-se quase banais. Muitos de nós usam, sem grandes reflexões prévias, aplicações de telemóvel para experimentar, online, roupa, ou como é que um móvel ficaria na sua sala, ou algo de semelhante. Isto é, seja em jogos, seja comercialmente, estas tecnologias vão estando incluídas no cardápio do cidadão comum que as usa porque é divertido e prático, sem pensar muito, nem antes, nem depois

O tema ainda será relativamente de nicho, mas do que foi possível observar, dir-se-ia que vai haver uma explosão de metaverso, muito rapidamente. Se vai ser um hype, ou se virá para ficar e dominar, é o que se verá. Por vezes há temas em grande ascensão que, de repente, estagnam. Foi o que aconteceu, por exemplo, com os veículos autónomos e com os robots “humanoides”, quem sabe se por evidenciarem demasiado a possibilidade de a humanidade ser ultrapassada por máquinas.

A humanidade não gosta de pensar nessas coisas e, talvez por isso e por não ser o melhor para o negócio, terá havido várias pressões para que fosse desconvidado o linguista, cientista cognitivo e filósofo Noam Chomsky que, juntamente com Gary Markus, da Universidade de Nova York foram “Desmascarar a grande mentira da Inteligência Artificial” (Debunking the great AI lie), no último painel da Web Summit, numa Altice Arena a rebentar pelas costuras. O foco foi nas habilidades do GPT-3 e de outros sistemas semelhantes de processamento de linguagem natural (NLP) que, laboriosamente, colocam palavras a seguir a palavras, naturalmente não percebendo patavina do que fazem, pelo menos do ponto de vista do que é a construção e a compreensão humana da linguagem. Quando uma pessoa diz ou escreve “Este quadro de Picasso é bonito” estará a equacionar o conceito de beleza, objetivo e subjetivo, a comparar a obra com outras que conheça do autor, com a de outros autores, com a realidade que representa e a pensar em mais uma infinidade de coisas que contribuem para o juízo que profere. Quando o GPT-3 diz ou escreve a mesma frase, está a contabilizar as vezes que foi dita e escrita a propósito do quadro em causa e a calcular, com base na quantidade descomunal de informação a que acede e que consegue processar, qual a melhor sucessão de palavras que pode apresentar no contexto em que é solicitado. O que pode dar sarilho.

São, pois, de grande pertinência as advertências em relação à Inteligência Artificial, principalmente quando foram feitas atempadamente, há décadas.

Com a convergência de tecnologias, o aumento da informação, da capacidade de computação e das habilidades da inteligência artificial, a caminho do metaverso, riscos e benefícios sobem de escala.

A proteção dos consumidores, vamos ver como se fará, mas poder-se-á admitir como provável a existência de novos elencos de informação, que o avatar do consumidor, como o próprio, aceitará. 

Era uma vez a Shein na Web Summit

Doutrina

No segundo dia da Web Summit 2022, em Lisboa, Donald Tang, vice-presidente executivo da chinesa Shein, subiu ao palco. Muito disse sobre o modelo de negócio, as revoluções na indústria da moda e a devoção ao consumidor. Sobre violação de direitos humanos nas cadeias de abastecimento, exploração laboral, contrafação e outros que tais, nem uma palavra. Mas, também, sem moderador, quem é que ia lembrar-se realmente de perguntar?

Tang soube onde colocar a tónica. Entre “a escolha de colocar o cliente no centro é a nossa estrela do Norte” e “estamos sempre a ouvir o consumidor”, foi possível perceber que a Shein aposta na produção de até 200 unidades de cada peça, apenas avançando para maiores volumes se a intenção de compra for clara – isto é, se se notar uma tendência de consumo[1].

Ao nível da sustentabilidade a ideia não parece mal pensada: menos produção, menos recursos, menos desperdício em vão. Um desaproveitamento de “apenas 2%”, nas palavras do americano. Há aplausos que precisam de ser dados. O problema começa quando Tang afirma, quase orgulhoso, que entre o design do bem e a respetiva confeção passam no máximo 14 dias, podendo até passar menos[2]. Uma coisa é certa – a Shein ouve mesmo o consumidor. Pudesse o trabalhador ter a mesma sorte.

Obrigatoriedade de produção de 500 peças por dia por funcionário, 2 a 4 cêntimos de pagamento por unidade, 12 a 18 horas de trabalho diário, 1 dia de descanso por mês é quanto vale, no fim de contas, uma empresa avaliada em biliões de dólares[3].

Depois de tantas benesses, Tang afirmou ainda que a gigante se prepara para integrar o mercado em segunda mão, acompanhando as mais recentes tendências de consumo circular. Um intencional “queremos revolucionar a moda tradicional através da tecnologia, tornando-a acessível e inclusiva” conquistou, certamente, a assistência. Mas só quando Tang deixou cair um ponderado “se querem tornar o mundo mais sustentável, venham trabalhar connosco” é que a plateia de ativistas se revoltou. Ou talvez não, que não estava lá nenhum.

Para todos os que assistiam, Donald Tang esclareceu, de uma vez por todas, que o nome da marca não se pronuncia “Shine”, antes “She-in”. Em qualquer dos casos, ficou mais do que evidente que She is definitely In trouble.


[1] Observador, “Vice-presidente da Shein («diz-se She In»): ‘Se querem tornar o mundo mais sustentável, venham trabalhar connosco’”, 2.11.2022, disponível em https://observador.pt/2022/11/02/vice-presidente-da-shein-diz-se-she-in-se-querem-tornar-o-mundo-mais-sustentavel-venham-trabalhar-connosco/. Renascença, “Empresa chinesa de ‘fast fashion’ lança plataforma para venda em segunda mão”, 2.11.2022, disponível em https://rr.sapo.pt/noticia/economia/2022/11/02/empresa-chinesa-de-fast-fashion-lanca-plataforma-para-venda-em-segunda-mao/306291/.

[2] Jornal de Negócios, “Shein demora 10 a 14 dias entre design e fabrico de cada peça”, 2.11.2022, disponível em https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/web-summit/detalhe/e-o-primeiro-dia-oficial-da-web-summit-no-palco-principal-fala-se-da-alexa-da-amazon.

[3] David Hachfeld e Timo Kollbrunner, “Toiling Away for Shein Looking Behind the Shiny Façade of the Chinese «Ultra-Fast Fashion» Giant”, 11.2021, disponível em https://stories.publiceye.ch/en/shein/. Channel 4, Untold: Inside the Shein Machine (documentário), 17.10.2022. Madeline A. James, “Child Labor in Your Closet: Efficacy of Disclosure Legislation and a New Way Forward to Fight Child Labor in Fast Fashion Supply Chains”, in The Journal of Gender, Race & Justice, vol. 25, n.º 1, 2022, disponível em https://jgrj.law.uiowa.edu/online-edition/volume-25-issue/child-labor-in-your-closet-efficacy-of-disclosure-legislation-and-a-new-way-forward-to-fight-child-labor-in-fast-fashion-supply-chains/.

O consumidor como produtor de informação

Doutrina

A proteção do consumidor nasce da constatação de que na sociedade de consumo em massa o cliente individualmente considerado se encontra numa posição de fragilidade em relação ao produtor e ao vendedor. Estes, além de provavelmente mais ricos e poderosos, estariam na posse de informação fundamental para que o comprador tivesse a oportunidade de formar adequadamente a sua vontade de adquirir certos bens ou serviços. Estará aqui a principal justificação para muito da legislação de defesa do consumidor assentar uma parte relevante do seu regime de proteção, na obrigação de ser transmitida informação ao tal ser estereotipado: o consumidor.

Há muito que se encontra cientificamente demonstrado que grande parte das decisões humanas não são ponderadas. Não se trata de falta de informação, trata-se do modo como o cérebro humano usualmente funciona. A economia comportamental, que combina a vertente económica com as ciências cognitivas, estudou detalhadamente o fenómeno.  Por todos, podemos ler “Pensar, depressa e devagar”, de Daniel Kahneman que questionou o modelo racional de tomada de decisões e de formulação de juízos. Licenciado em matemática e psicologia pela Universidade de Telaviv, posteriormente doutorado em psicologia pela Universidade de Berkeley, ganhou em 2002 o (mal) denominado Prémio Nobel da Economia “Por integrar aspetos da pesquisa psicológica sobre o comportamento económico do homem em situações de incerteza e a tomada de decisões nessas circunstâncias”.

Este livro, acessível a leigos, é mais que suficiente para se ficar sem grandes dúvidas sobre o processo mental usualmente subjacente à quantidade descomunal de decisões que o ser humano tem de estar sempre a tomar. A decisão rápida, digamos que instintiva, instantânea, impensada, inconsciente, é a regra e não a exceção.

Mesmo que não existissem estudos a evidenciar esta realidade, uma simples observação atenta dum consumidor médio por um jurista médio, há muito que permite concluir que dar-lhe informação pode ser infinitamente pouco se, efetivamente, se pretende protegê-lo. Bastaria, até, que cada um de nós observasse a sua própria atitude face ao modo como emite os “Aceito” todos os dias, para suspeitar da pouca eficácia da informação acessível.

Paradoxalmente, o aumento da quantidade de informação, quanto mais não seja por manifesta falta de tempo, parece contribuir mais para a desresponsabilização de quem a entrega do que para a formação da vontade de quem a recebe. O Manifesto contra a subversão do contrato, de Margarida Lima Rego, apresenta com veemência esta realidade, em contexto financeiro e meio digital. O assunto foi também abordado neste blog por Jorge Morais Carvalho, a propósito da adesão a contratos celebrados com recurso a cláusulas contratuais gerais. No limite, sabendo-se que os clausulados não são, nem podem razoavelmente ser, lidos por pessoas diligentes, a incerteza associada ao seu efetivo conteúdo é grande.

Embora as evidências científicas e de senso comum mostrem à saciedade, e também à sociedade, que esta coagida dádiva, menos em linha com a convicção, que em automática inserção de novos formulários aptos a serem em bloco e acriticamente “aceites”, não funciona, o “legislador” insiste em fazer assim, principalmente por não saber fazer doutra maneira. No limite, não prescindindo da soterração e saturação do consumidor e da desresponsabilização do produtor/prestador de serviços que, através da entrega de informação sobre os defeitos e insuficiências do que vende, pode responder menos pela falta de qualidades, diversa legislação distingue o mais importante do menos, estabelece hierarquias, impõe formulários de informação uniforme, sinalética visual mais ou menos colorida, tudo com vista a proporcionar a esse idílico ser racional, o consumidor, os instrumentos intelectuais de que necessita para fazer, contra toda a probabilidade e informação científica, uma escolha ponderada, tanto na necessidade como na qualidade, pensando se realmente precisa do que vai adquirir e comparando caraterísticas, preços, condições dos contratos, garantias, tudo, tudo, de vários produtos ou serviços semelhantes, para escolher mesmo bem. Exercício, atualmente, repetido muitas vezes ao longo do dia, intercalado por tomadas de conhecimento e aceitação de políticas de privacidade, mais especificamente “cookies”, e de proteção de dados, os mais recentes fornecedores de listas de declarações paralelas, mas integrantes da relação comercial.

O “direito à informação” é, assim, um dos grandes pilares da defesa do consumidor e, no essencial, usa-se quando meios realmente eficazes não estão disponíveis para o proteger.

Até há relativamente pouco tempo, ao falar-se de informação e de consumidor, o verbo mais usado era o “dar”. O profissional obrigado a dar e o consumidor obrigado a receber, sob pena de poder vir a ser considerado desleixado, pouco diligente, abaixo de “médio”, o que lhe retiraria alguma proteção.

Há, no entanto, que assinalar que os tempos mudaram e atualmente o consumidor, além de recetor, passou a produtor intensivo de informação. Tanto online, como no mundo físico, embora em ambiente digital a recolha, registo e tratamento de dados assuma maiores proporções.

As pessoas, pelo simples facto de se movimentarem em sociedades industrializadas e conectadas, usando sistematicamente dispositivos digitais, principalmente o telemóvel, criam informação, sobre si próprias e sobre o mundo, que é usada pelas empresas e pelo Estado.

Essa informação tem valor e vem suscitando já vasta discussão sobre se deverá ou não ser paga, bem como sobre a ideia de gratuitidade de produtos ou serviços que acabam por ter como “contrapartida”, dados sobre quem os adquire. Martim Farinha analisou o conceito de pagamento neste blog, no contexto da Diretiva das Praticas Comerciais Desleais.

Parece, pois, que no que diz respeito à informação, o consumidor tem o direito e o dever de a receber, ainda que daí não resulte benefício efetivo para nenhuma das partes. Uma espécie de óleo de fígado de bacalhau que tem de ser dado por uns e engolido por outros, perpetuando-se a tradição. É o consumidor como recetor de informação.

O consumidor como produtor de informação é algo novo, diferente, desafiante. Apetece perguntar várias coisas a esse respeito. Neste contexto, pergunta-se simplesmente: será que o consumidor ao receber pela informação que produz, em dinheiro ou géneros (produtos e/ou serviços), se torna “profissional”?

A produção de informação é uma atividade, de algum modo, comercial a que o consumidor moderno se vai dedicando bastante.

A garrafa de vinho mais cara do que o jantar

Consumo em Ação

Por Leandro Pinto, Matilde Pinho e Rita Saramago

Hipótese: No dia 15 de junho, Joaquim telefonou para o restaurante Belos Cozinhados e reservou uma mesa para nove pessoas para as 21h. Joaquim combinou a ementa com  o empregado do restaurante. Com o grupo totalmente instalado e com os pratos já servidos, o empregado veio perguntar o que pretendiam beber. Joaquim pediu vinho e água para todos. Uns minutos depois, o empregado apareceu com uma garrafa de vinho na mão, que apresentou como sugestão do restaurante. Joaquim aceitou sem colocar qualquer questão sobre o preço, tendo sido pedida uma segunda garrafa de vinho a meio da refeição. Terminada a refeição, Joaquim pediu a conta e, quando esta chegou, ficou surpreendido com o valor apresentado (€ 1 500), dos quais € 1 300 diziam respeito às duas garrafas de vinho, referidas na conta como sendo “Barca Velha” (um conhecido vinho, bastante caro). Joaquim tem de pagar?

Resolução: No caso em análise, o processo negocial pode ser objeto de duas leituras diferentes. A primeira é considerar-se que foi celebrado apenas um contrato atípico que junta elementos de vários tipos. Neste caso, teríamos dois elementos principais – empreitada (no que à confeção do jantar diz respeito) e prestação de serviços (serviço do restaurante) – e dois elementos secundários – compra e venda (relativamente ao vinho e à água) e aluguer (talheres, cadeiras, mesas do restaurante). Diferentemente, pode autonomizar-se o contrato de compra e venda das garrafas de vinho, o que nos parece ser a solução mais correta para o tratamento do caso.

Quanto ao jantar, o contrato celebrou-se por telefone. Joaquim tem a obrigação de pagar o preço e o restaurante deve confecionar e servir o jantar.

No que respeita ao vinho, temos um contrato de compra e venda. Cabe analisar se o ato de apresentar a garrafa ao cliente consubstancia uma proposta contratual e se foi, de facto, celebrado um contrato. É inequívoco que o comportamento do empregado se apresenta como uma proposta contratual e que Joaquim, ao aceitar que este servisse o vinho, a aceitou. A questão incide no preço, que não é comunicado no momento da aceitação, o que nos levará posteriormente a discutir a validade do contrato, por violação do direito à informação do consumidor, plasmado no art. 8.º-1-c) da Lei de Defesa do Consumidor.

Antes de passarmos à questão da validade do contrato, importa percebermos qual seria a determinação mais correta do valor do vinho. Por força do Decreto-Lei n.º 138/90 de 26 de abril, é obrigatória a indicação dos preços dos bens e serviços colocados à disposição do consumidor no mercado, o que à partida pressupõe que o restaurante tinha afixada a tabela de preços praticados no estabelecimento comercial e, como é sabido por regras de experiência comum, teria também um menu à disposição dos seus clientes. Podemos, assim, concluir que o preço do vinho estava determinado, mas que não foi comunicado ao consumidor no momento de apresentação da proposta. Houve uma omissão por parte do empregado.

Terá havido uma prática comercial desleal e, consequentemente, o consumidor pode resolver o contrato? Se assim for, não tem de pagar qualquer valor pelas garrafas? Ou, pelo contrário, o empregado (e representante do restaurante) foi diligente e era o consumidor quem tinha o dever de solicitar o menu, verificando o preço do vinho?

Para determinar se existiu uma prática comercial desleal, recorremos ao Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março. Este regime pode ser analisado numa estrutura de pirâmide, em três níveis de análise diferentes: listagem normativa (arts. 8.º e 12.º), que indica práticas enganosas e agressivas em qualquer circunstância; práticas comerciais desleais em especial [art. 6.º-b) e c)]; cláusula geral (arts. 4.º e 5.º).

A prática em apreço não se enquadra nas listas dos arts. 8.º e 12.º, pelo que cabe averiguar se estamos perante uma prática comercial desleal em especial. Ao abrigo dos arts. 9.º-1-a) e 10.º-c), aplicáveis por remissão do art. 6.º-b), é discutível se a omissão do preço se traduz numa omissão de informação com requisitos substanciais para a decisão negocial. Atendendo às circunstâncias do caso concreto, nomeadamente o preço exorbitante do vinho, consideramos que sim, pois trata-se de uma informação de relevo, que interferiria, com elevada probabilidade, na decisão negocial do consumidor. Deste modo, esta informação deveria ter sido transmitida pelo profissional, através do seu representante (empregado), e não foi, impossibilitando Joaquim de tomar uma decisão negocial esclarecida.

Embora Joaquim não tenha especificado as bebidas no ato da reserva, tendo em conta o contexto e o preço médio da refeição, entendemos que foi tacitamente acordado um limite para o custo do vinho. O entendimento esperado de um cliente colocado na posição de Joaquim seria o de que o vinho não custaria mais de € 30, o preço médio de uma garrafa de vinho num restaurante.

Por este motivo, consideramos que se verificou uma prática comercial desleal especial por omissão.

Se dúvidas ainda existissem, chegaríamos à mesma conclusão através do nível seguinte de análise, a cláusula geral, plasmada no art. 5.º-1. Esta cláusula inclui quatro requisitos cumulativos[1]: (i) relação jurídica de consumo; (ii) existência de uma  prática comercial; (iii) contrariedade à diligência profissional; (iv) suscetibilidade da distorção do comportamento económico do consumidor.

Tendo já sido feita a verificação relativa aos pontos (i) e (ii), passamos a dedicar a nossa atenção aos pontos (iii) e (iv).

Tendo em conta o preço avultado do vinho comparado com o preço da refeição, seria expectável que o profissional, ao sugeri-lo, informasse o cliente, evitando que este fosse surpreendido em momento posterior. O comportamento não foi honesto, contrariando a diligência profissional que incumbe ao profissional.

A falta de honestidade teve como efeito o cliente ter um comportamento diferente daquele que teria caso tivesse todas as informações. Atendendo ao preço avultado do vinho, é (quase) certo que Joaquim adotaria um comportamento diferente se tivesse sido informado, não aceitando a proposta.

Paralelamente, a determinação do valor do vinho não resultou de um acordo entre as partes, tendo sido definido um valor de forma unilateral por parte do restaurante (em respeito pelas regras de fixação de preços que não cabe aqui aprofundar), valor este que não foi comunicado a Joaquim.

Violado o direito à informação do consumidor, Joaquim teria o direito de resolução do contrato, por força do art. 8.º-4 da Lei de Defesa do Consumidor. Tal implicaria que o consumidor tivesse de devolver o bem ao vendedor e este deixaria de poder exigir a obrigação de pagamento do preço. Neste caso, é evidente que esta não é uma solução adequada, uma vez que o vinho é um bem consumível e que, neste caso, já foi consumido durante a refeição, ficando Joaquim impossibilitado de devolver o conteúdo da garrafa.

Tratando-se de uma prática comercial desleal, aplica-se o art. 14.º-1 do Decreto-Lei n.º 57/2008 e o consumidor pode exigir a redução adequada do preço do bem, solução adequada neste caso. Em vez de serem cobrados € 1300 euros pelas duas garrafas, seria fixado um preço mais reduzido por cada garrafa, de acordo com o preço de mercado de um vinho, normalmente recomendado num restaurante como o Belos Cozinhados e expectável pelo consumidor médio colocado naquela posição.

Respondendo à questão colocada, Joaquim tem de pagar, mas não o valor exigido pelo restaurante. O valor deverá ser reduzido, equivalendo ao valor de mercado de duas garrafas de um vinho médio, normalmente recomendado em restaurantes como o Belos Cozinhados, cujo preço seja expectável para o consumidor médio colocado na posição do Joaquim.


[1] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, p. 142.

Pink tax: consumidoras podem pagar mais por bens e serviços?

Doutrina

Pink tax é a denominação dada ao aumento no preço de produtos e serviços destinados ao público feminino. Como apontam pesquisas, este fenômeno ocorre em diversos locais do mundo desde a década de 1990.Um exemplo é, num mesmo estabelecimento, a cobrança de valores maiores para cortes de cabelo femininos, sem levar em consideração o real tempo ou complexidade do trabalho. Outra situação é a venda de lâminas de barbear ou brinquedos infantis mais caros apenas por possuírem a cor rosa. Assim, questiona-se: há legitimidade para a cobrança de valores maiores com base apenas no gênero do/a consumidor/a?

Em pesquisa realizada nos anos 2000, constatou-se que, no Reino Unido, um corte de cabelo para mulheres em cabelereiros unissex custava em média 43% a mais do que para um homem. Noutro giro, estudos realizados nos Estados Unidos observaram que, na Califórnia, em 1994, as mulheres gastavam anualmente cerca de US$1.351,00 a mais que os homens para utilizar os mesmos serviços, desde a lavagem de uma blusa de algodão até à compra de carros usados. Já em Nova Iorque, em 2015, havia um sobrepreço de 7% em produtos semelhantes que fossem destinados às mulheres. Indícios análogos puderam ser coletados no Canadá, em 2016, com um aumento de 43% na versão feminina dos mesmos produtos de higiene pessoal. Esse fenômeno também foi constatado no Brasil, com uma elevação de 12,2% nos preços de similares produtos com enfoque no público feminino.

Em que pese não terem sido encontrados estudos que comprovassem a existência desta diferenciação geral em países da União Europeia, existem campanhas para evidenciar e combater a pink tax, como a “#axthepinktax” endossada pelo European wax center, em que consumidoras enviam fotos de artigos que possuem preço mais elevado na versão feminina.Tais diferenças de preços, se analisadas em singular, podem levar a uma falsa impressão de leviandade da questão. Contudo, em conjunto, há um substancial aumento no custo de vida da mulher, principalmente quando considerado juntamente ao gender pay gap, já que, segundo pesquisas realizadas pela ONU Mulheres em 2020, estas ainda recebem, em média, apenas 84% do salário médio masculino.

Ressalta-se que há uma liberdade regulatória do próprio mercado para estabelecer o preço dos seus produtos ou serviços, ainda que sejam valores distintos pelo mesmo bem. Este fenômeno ocorre comumente com os preços dinâmicos praticados no setor da aviação, de acordo com o momento em que se compra um voo, ou até mesmo quando há descontos para bilhetes adquiridos por estudantes e/ou idosos. Nesta última situação, a diferenciação de preços consubstancia uma discriminação positiva, ao buscar amparar e promover maior igualdade material a grupos que são, em regra, economicamente mais  frágeis.

No que tange à pink tax, apesar da denominação de “taxa”, para efeitos jurídicos, esta não pode ser considerada um tributo, principalmente por não ser determinada ou revertida para qualquer ente estatal. Entretanto, é possível visualizar tal diferenciação de preços como uma discriminação negativa face às mulheres, ao acentuar a desigualdade de gênero. Logo, a pink tax extrapola a liberdade do mercado e se torna uma cobrança efetivamente violadora da ética, como concluiu a doutrinadora Alara Efsun Yazicioglu em seu livro Pink tax and the law: discriminating against women consumers. Por isso, já existem legislações específicas contra a pink tax, como o “Gender tax repeal act of California” de 1995, e o “New York City Pink Tax Ban” de 2020.

Na União Europeia, a Directiva 2004/113/CE proíbe a discriminação de preços de serviços de acordo com o gênero do consumidor e determina que  deve ser garantido o acesso a processos judiciais e/ou administrativos para que haja reparação dos danos causados. Inclusive, este diploma foi utilizado pelo acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia no Processo C-236/09 (Test-Achats), para instituir a obrigatoriedade de prêmios e prestações unissex nos regimes de seguro privados. Contudo, o relatório sobre a aplicação desta Directiva afirma que um dos desafios registados é a falta de conhecimento em geral da população, o que resulta num menor número de queixas.

Portanto, em que pese ser uma prática disseminada, a imposição de valores distintos para bens e serviços com base no gênero do consumidor tende a acentuar a desigualdade entre os sexos. Assim, como inclusive ressaltou a Comissão Europeia, em resposta a questionamento acerca da pink tax, a discriminação direta ou indireta de gênero para o acesso a bens e serviços é efetivamente proibida pelo ordenamento europeu, de tal forma que não é possível a cobrança de preços diferenciados com base apenas no sexo do/a consumidor/a.

Tribunal de Justiça volta à definição de circunstâncias extraordinárias no Regulamento n.º 261/2004

Jurisprudência

Ao longo dos últimos anos, um dos temas que tem chegado ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ) tem sido o conceito de “circunstâncias extraordinárias” contido no art. 5.º-3 do Regulamento (CE) n.° 261/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos: “A transportadora aérea operadora não é obrigada a pagar uma indemnização […] se puder provar que o cancelamento se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias que não poderiam ter sido evitadas mesmo que tivessem sido tomadas todas as medidas razoáveis”.

No passado mês de julho,  foi julgado mais um destes casos (Acórdão KU e o. contra SATA International, de 7 de julho de 2022, Processo C-308/21), no qual o TJ considerou que quando o aeroporto de origem dos voos ou da aeronave em causa é responsável pela gestão do sistema de abastecimento de combustível das aeronaves, uma falha generalizada do abastecimento de combustível é suscetível de ser considerada uma dessas circunstâncias (para. 28).

No caso em apreço, três demandantes tiveram atrasos superiores a três horas nas chegadas aos seus destinos. Os atrasos ficaram a dever-se à falta de abastecimento de combustível da aeronave, provocada por uma falha no sistema de abastecimento do aeroporto (paras. 6 a 9). Neste contexto, os três lesados apresentaram pedidos de indemnização pelo atraso provocado à companhia aérea responsável (para. 11). A companhia recusou-se a atribuir essa indemnização, já que os atrasos não lhe seriam imputáveis, por decorrerem de uma falha imprevista e inesperada do sistema de abastecimento de combustível do aeroporto (para. 11).

Tendo o caso chegado aos tribunais judiciais portugueses, o órgão jurisdicional em causa submeteu a seguinte questão prejudicial ao TJ:

“O atraso superior a três horas ou o cancelamento de voos causados por uma falha de abastecimento de combustível no aeroporto de origem, sendo a gestão do sistema de combustível da responsabilidade deste aeroporto, constitui uma “circunstância extraordinária”, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 5.°, n.° 3 do [Regulamento n.° 261/2004]?” (Para. 14)

O TJ pronunciou-se sobre esta questão, afirmando que tais factos são suscetíveis de ser considerados como circunstâncias extraordinárias. E fê-lo utilizando o teste que tem vindo a utilizar de forma constante na sua jurisprudência.

Em primeiro lugar, relembrou que o conceito de circunstâncias extraordinárias designa acontecimentos que, cumulativamente, (i) não são inerentes ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa e (ii) escapam ao controlo efetivo desta (para. 20).

Focando-se no primeiro teste, o Tribunal afirmou que o abastecimento de combustível  se enquadra, em regra, no exercício normal da atividade da transportadora, já que é matéria essencial ao funcionamento da aeronave (para. 22). Não obstante, aqui prestou atenção à causa da falta de abastecimento. No seu entender, este facto resultante de uma falha do sistema de abastecimento no aeroporto deve ser distinguido de um problema técnico de abastecimento circunscrito a uma só aeronave (para. 23). Nesse sentido, enquanto a segunda situação estará ligada à atividade normal da aeronave – falhando, portanto, o primeiro teste – a primeira já não  estará, podendo a análise avançar para o segundo teste.

Relativamente a este, o Tribunal relembra a distinção entre acontecimentos de origem interna e  de origem externa à transportadora aérea, afirmando que estão abrangidos no conceito de circunstância extraordinárias os eventos que a transportadora não controla, por serem de origem natural ou provocados por terceiros (para. 25). Assim, na medida em que o sistema de abastecimento de um aeroporto é gerido por este ou por um terceiro, a falha generalizada de abastecimento deve ser considerada como um acontecimento externo à transportadora e que, consequentemente, escapa ao seu controlo efetivo (para. 26).

Passando estes dois testes, o Tribunal conclui, portanto, que estamos perante uma circunstância extraordinária que isenta a companhia da obrigação de indemnizar.

Circunstâncias extraordinárias na jurisprudência do TJ

O preenchimento do conceito de circunstâncias extraordinárias não é um tema novo, pelo que vários têm sido os órgãos jurisdicionais nacionais a interrogar o TJ sobre este tópico, cujas respostas nem sempre têm sido fáceis de conciliar. Na verdade, tem-se visto ao longo dos anos uma evolução deste conceito que porventura agora reveste uma forma diferente daquela que era anteriormente considerada.

De facto, embora em situações claramente extraordinárias o TJ as tenha visto como tal – por exemplo, eventos naturais que afetam a circulação aérea[1] – será de destacar as situações nas quais a jurisprudência do TJ tem sido menos clara: atrasos causados por danos ou problemas técnicos nas aeronaves.

Importante neste contexto será o Despacho Siewert[2], no qual existiu um dano fora causado à asa da aeronave em causa, devido ao embate de uma escada móvel de embarque (para. 9). Aqui, o Tribunal limitou-se a constatar que as transportadoras aéreas se veem regularmente confrontadas com a utilização destas escadas, pelo que o seu choque com o avião deverá ser considerado como um acontecimento inerente ao exercício normal da sua atividade (para. 19). Reforça ainda o argumento levantado, afirmando que “nada indica que o dano do avião que devia efetuar o voo em questão  tenha sido causado por um ato exterior aos serviços normais de um aeroporto, como um ato de sabotagem ou de terrorismo” (para. 19).

Contudo, no Despacho Orbest[3], o Tribunal parece ter adotado uma visão diferente, face a factos idênticos. Na verdade, a única diferença de relevo face ao caso anterior será o atraso causado se ter devido ao embate de um veículo de catering contra uma das rodas da aeronave (para. 7). Aqui, o TJ afirma que “quando uma falha técnica de uma aeronave estacionada no aeroporto tem origem exclusiva no embate contra um objeto estranho, essa falha não pode ser considerada intrinsecamente ligada ao sistema de funcionamento do aparelho. Por conseguinte, a falha em causa não pode ser considerada inerente, pela sua natureza ou origem, ao exercício normal da atividade da transportadora aérea em causa” (para. 21). Reforça, dizendo que “o embate entre a aeronave em causa no processo principal e o veículo de catering pertencente a um terceiro foi causado pela deslocação deste último veículo. Por conseguinte, a falha técnica dessa aeronave foi causada por um ato de um terceiro que interfere na atividade aérea ou aeroportuária e que, portanto, escapa ao controlo efetivo da transportadora aérea em causa” (para. 25).

Como conciliar estes dois casos? A direção foi apontada pelo próprio TJ, no caso Germanwings[4], Acórdão no qual o Tribunal considerou como extraordinária a circunstância de se ter descoberto um parafuso no pneu do avião, aquando da preparação para um voo (para. 9). Aqui, o Tribunal distinguiu os objetos que são necessariamente utilizados no contexto do transporte aéreo – como escadas móveis – dos demais (para. 30). Chamou à atenção também para o facto que objetos como escadas móveis são utilizados normalmente com a colaboração da tripulação da aeronave, pelo que não serão estranhos ao seu funcionamento[5].

Parece assim que, para ser considerado extraordinário, o evento na origem do atraso deverá ser “estranho” e “terceiro” ao normal funcionamento da aeronave. A contrario, não será tido como extraordinário o atraso causado pelo funcionamento (anormal) de um objeto necessário à atividade da aeronave. Ademais, se a tripulação da aeronave cooperar na utilização desse objeto – ainda que de forma não preponderante – então não estaremos, em princípio, perante uma circunstância extraordinária.

Nesse sentido, a definição do conceito de “estranho” ao normal funcionamento da aeronave parece também refletir-se na forma como o TJ enquadra os serviços aeroportuários nesta atividade. De facto, uma leitura do Despacho Siewert, Orbest e do Acórdão Germanwings, parece subentender que  os serviços aeroportuários prestados às companhias aéreas não relevam para a caracterização de terceiro[6].

Como enquadrar, então o Acórdão KU e o. contra SATA International? Uma aplicação da jurisprudência Germanwings diz-nos que o abastecimento de gasolina, sendo essencial ao funcionamento da aeronave, enquadrando-se nos serviços normais de um aeroporto, não pode ser visto como uma circunstância extraordinária. Contudo o TJ decidiu de forma oposta, evoluindo o teste já consolidado na sua jurisprudência no sentido não só de atentar à causa da falha técnica[7], mas também de incluir os serviços aeroportuários no conceito de terceiro, algo que não parece ter sido a sua intenção em casos anteriores.

Assim, vemos aqui uma possível zona cinzenta relativa ao papel tomado pelo aeroporto, deixando pouco clara a linha que separa as atividades dos serviços aeroportuários que são inerentes ao funcionamento dos aviões daqueles que não são.

Nestes termos, o conceito de circunstância extraordinária constante do art. 5.º-3 do Regulamento (CE) n.° 261/2004 não está livre de questões interpretativas que, com o avançar da jurisprudência do TJ, se vão tornando mais complexas e minuciosas.


[1] Acórdão Denise McDonagh contra Ryanair Ltd, de 31 de janeiro de 2013,Processo C-12/11, para 34, relativo a uma erupção vulcânica.

[2] Despacho Siewert, de 14 de novembro de 2014, Processo C-394/14.

[3] Despacho Orbest, de 30 de março de 2022, Processo C-659/21.

[4] Acórdão Germanwings, de 4 de abril de 2019, Processo C-501/17.

[5] A confirmar este raciocínio e a dar particular importância a este elemento de cooperação por parte da tripulação, vide Despacho Airhelp, de 14 de janeiro de 2021, Processo C-264/20, paras. 23 e 24

[6] Basta comparar o parágrafo 25 do Despacho Orbest, ao afirmar que a falha da aeronave foi causada pelo ato de um terceiro – o veículo de catering –  com o Despacho Siewert, que já usa como argumento a inexistência de danos causados por atos exteriores aos serviços normais de um aeroporto.

[7] Vejamos que o TJ não se bastou com a conclusão de que estaremos perante uma falha técnica – falta de abastecimento – mas fundamentou-se na falha do sistema de abastecimento do aeroporto.

Revolução no Alojamento Local? Comentário ao AUJ n.º 4/2022

Jurisprudência

Há cerca de um mês, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferiu um Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ n.º 4/2022), esclarecendo que no regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fração se destina a habitação (cfr. art. 1418.º-2-a) do Código Civil, doravante CC), deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitido o exercício da atividade de alojamento local (AL), regulada pelo Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto[1].

Vejamos o caso.

Num prédio urbano constituído em propriedade horizontal, uma das frações autónomas destinadas à habitação passou a servir de alojamento temporário a turistas, mediante renumeração. O proprietário da fração publicitou na Internet (no site www.airbnb.com) e disponibilizou a fração, mobiliada e equipada, para serviços de alojamento, por período inferior a 30 dias, prestando ainda serviços remunerados de limpeza.

Com a rotatividade dos utentes, o ruído aumentou, tal como a insegurança e a sujidade e desgaste das partes comuns, etc., em prejuízo dos demais condóminos, que vêem o imóvel desvalorizado.

Os proprietários de uma outra fração intentaram uma ação em tribunal com vista ao encerramento da atividade de alojamento temporário, tendo o réu alegado que destinar a habitação a AL não descaracteriza a finalidade de habitação que consta do título constitutivo.

O caso chegou ao STJ, tendo confirmado o acórdão da Relação que deu razão aos autores, condenando o réu a cessar a utilização da fração para alojamento temporário, e reintegrá-la no seu destino específico de habitação. Decidiu-se que “a atividade de alojamento local não integra o conceito de habitação como fim dado às fracções autónomas no título constitutivo da propriedade horizontal” e que o “o conceito de habitação, como destino da fração autónoma, mostra-se qualitativamente distinto do conceito de utilização da mesma para AL”.

Por sua vez, os réus vieram interpor recurso para uniformização de jurisprudência, referindo-se ao acórdão do STJ de 28-03-2017, disponível aqui, onde se entendeu que, “na cedência onerosa da fração a turistas, a fração autónoma destina-se à respetiva habitação e não a atividade comercial”.

Há, assim, contradição direta quanto à questão de a fração autónoma destinada à habitação poder (acórdão fundamento) ou não (acórdão recorrido) ser utilizada para AL, isto é, se viola o fim da habitação.

O art. 1422.º-2-c) do CC impede que os condóminos dêem à fração um uso diverso do fim a que é destinada, tendo cada condómino o direito de se opor a que qualquer fração seja utilizada para um fim diverso do consagrado no registo.

Com efeito, o título constitutivo pode conter algumas proibições, tal como o regulamento do condomínio. Mesmo depois da constituição da propriedade horizontal, a assembleia de condomínios pode deliberar sobre a proibição de certos atos ou atividades (alínea d) primeira parte), desde que compatível com o fim do prédio ou das suas fracções, sob pena de nulidade (art. 1418.º-3).

Importa também ter presente a publicidade resultante das regras do registo predial, dada a obrigatoriedade do registo do título constitutivo donde consta o fim das fracções autónomas (cfr. arts. 2.º-1-b) e v) e 95.º-1-r) e z) do Código de Registo Predial). Note-se que este registo não se confunde com a indicação (genérica) de destino e uso aquando dos projetos de construção.

Face ao boom dos alojamentos locais, sentido aliás um pouco por toda a Europa, o nosso ordenamento jurídico introduziu um regime jurídico do AL, pelo Decreto-Lei n.º 39/2008, de 07-03, mais tarde autonomizado do regime de empreendimentos turísticos, com o Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29-08. Com a alteração operada pela Lei n.º 62/2018, de 22-08, passou a ser possível  à assembleia de condomínios, por deliberação, opor-se ao exercício da atividade de AL em frações autónomas, com fundamento na prática reiterada, e comprovada, de atos que perturbem a normal utilização do prédio[2]. Previu-se ainda a possibilidade de cancelamento do registo por órgão municipal competente se comprovada perturbação do descanso dos restantes condóminos (art. 9.º).

O STJ, no acórdão recorrido, esclareceu que habitação como destino da fração autónoma é qualitativamente distinto da utilização da mesma para AL, pois este caracteriza-se por uma rotatividade e utilizadores diversos em oposição à tendencial estabilidade do gozo de uma fração habitacional. Conclui que o destino “habitação” mencionado no título constitutivo da propriedade e no respetivo registo predial se refere a habitação como centro de vida doméstica.

Contrapõe-se a argumentação do acórdão fundamento.

Reconhece-se que o AL é compatível com o destino genérico “habitação”, sendo que os usuários do AL fazem do espaço um uso habitacional. O STJ considerou que o AL constitui arrendamento para habitação, respeitando a finalidade de habitação do título constitutivo. Não viola, por conseguinte, os arts. 1418.º e 1422.º-2-c) do CC.

O acórdão que aqui analisamos segue a posição do acórdão recorrido, clarificando:

– O AL não é um simples habitar da fração, equivalente à habitação que dele fazem os usuários não abrangidos pelo AL, não se confundido com arrendamentos sazonais de curta duração em áreas de veraneio ou “alojamento” de estudantes. Mais, para efeitos tributários, o AL não é tratado como habitação.

– É vedado aos condóminos o uso para fim diverso do que a fração é destinada nos termos do art. 1422.º-2-c) do CC.

– O sentido normal do destino “habitação” é o de “servir de fogos ou de residência para pessoas e agregados familiares, proporcionando-lhes o sossego, a tranquilidade, a segurança e o conforto requeridos por qualquer economia doméstica, num envolvente espaço comum instrumental desse tipo de convivência colectiva”.

Efetivamente, é diferente ter vizinhos “tradicionais” do que ser vizinhos de AL dado o caráter temporário da estadia. Confirmando a posição do acórdão recorrido, uniformizou-se jurisprudência no sentido que o destino “habitação” no título constitutivo não permite a realização de AL.


[1] Alterado pelo Decreto-Lei n.º 62/2015, de 23-04, pela Lei n.º 62/2018, de 22-08, pela Lei n.º 71/2018, de 31-12, e pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29-01

[2] O art. 4.º-4, exige autorização do condomínio para instalação de AL na modalidade hostel, quando esta venha a coexistir com fim “habitação”.

A Camisola que estava na caixa “Tudo a € 10” por engano

Consumo em Ação

Por Leandro Pinto, Matilde Pinho e Rita Saramago

Hipótese: Xénia, consumidora, entrou numa conhecida loja de roupa e retirou uma camisola de uma caixa que continha a indicação “Tudo a € 10”. Quando chegou à caixa percebeu que a camisola estava naquela caixa por engano, custando € 23, tal como indicado na etiqueta. Xénia ficou sem saber o que fazer. O que lhe diria?

Resolução: No caso em apreço, parece existir uma proposta contratual por parte da loja[1]. A declaração é completa, já que revela o conteúdo mínimo do contrato a celebrar. É também precisa, uma vez que não deixa dúvidas acerca dos elementos do contrato a celebrar. Ademais, é evidente a intenção inequívoca de contratar, pelo que o requisito da firmeza também se verifica, bem como o da adequação formal, dado que a celebração deste contrato não se encontra sujeita a forma especial (art. 219.º do Código Civil).

Cumpridos todos os requisitos, basta a proposta ser aceite para o contrato ser celebrado, sendo o ato de aceitação de Xénia levar a camisola até à caixa[2]. No momento da aceitação, Xénia concorda com todos os aspetos contratualmente relevantes da proposta e, consequentemente, é celebrado o contrato.

Xénia só se apercebe do preço real da camisola quando chega à caixa, isto é, quando já aceitou a proposta. Ora, um declaratário normal assumiria que o preço que lhe é indicado na caixa é, efetivamente, o preço do bem, nos termos do art. 236.º do Código Civil. Assim, neste contexto, podemos considerar que existiam, em rigor, duas propostas: uma com um preço de € 10 e outra com um preço de € 23.

O consumidor pode concluir o negócio aceitando a proposta com o preço mais baixo.

Esta resposta pressupõe um determinado enquadramento: a camisola deve encontrar-se dobrada juntamente com outras as camisolas. Por hipótese, se a camisola se encontrasse desarrumada numa caixa cheia de cintos com a mesma legenda (“Tudo a € 10”), poderíamos concluir que um declaratário normal poderia deduzir que a legenda não se aplicaria à camisola e, por isso, não seria esse o preço aplicável. De facto, era expectável de um consumidor diligente que o entendesse e que não tentasse tirar proveito da situação.

Semelhante seria o caso em que Xénia via a etiqueta na qual estava indicado o preço de € 23 e, mesmo assim, levava a camisola até à caixa com a intenção de comprá-la pelo preço indicado na caixa. É incontestável que esta atitude não espelha a diligência esperada de um consumidor.

Hipótese diferente seria o caso em que Xénia se dirigia à caixa e, quando o artigo passa no scanner, aparece no ecrã a indicação de € 5. Consideramos este momento posterior à celebração do contrato. A proposta tinha um preço (€ 10) e a aceitação não pode alterar a proposta. Deste modo, se a proposta já foi aceite, Xénia estaria a incumprir a obrigação, ainda que não de forma culposa, se pagasse apenas os € 5. O preço a pagar deve ser aquele que foi acordado, isto é, o preço pelo qual o consumidor aceitou a proposta contratual emitida pelo profissional.


[1] Sobre os requisitos da proposta, cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, pp. 79 a 81.

[2] Sobre os estabelecimentos que funcionam em autosserviço, cfr. Carlos Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Vol. II, Almedina, 1992, p. 818; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, Vol. II, Coimbra Editora, 1999, p. 458.

Competências financeiras dos adultos – soluções para consolidação da literacia financeira no quadro europeu

Doutrina

A 11 de janeiro de 2022 foi lançado o quadro de capacidade financeira para adultos na UE, projeto conjunto da UE e OCDE. O projeto visa promover uma compreensão partilhada das competências financeiras que os adultos devem ter para tomar decisões sólidas em assuntos de finanças pessoais. Foi concebido para incentivar e apoiar a implementação de políticas públicas, programas de alfabetização financeira e materiais educativos a serem desenvolvidos pelos Estados-Membros, instituições educativas, indústria e indivíduos.

Este projeto surgiu na sequência dos resultados obtidos através da avaliação da viabilidade do desenvolvimento de um quadro de competências financeiras da UE, estando inserido no Plano de Ação da União dos Mercados de Capitais para 2020, no qual a Comissão Europeia se comprometeu a aumentar a confiança nos mercados de capitais através da melhoria da literacia financeira. Além disso, no início deste ano tiveram início os trabalhos para composição de um quadro conjunto direcionado aos mais jovens. Ambos os projetos têm origem nos quadros de competências nucleares da OCDE/INFE em matéria de literacia financeira (podem ser consultados aqui e aqui, respetivamente).

Note-se que a grande inovação destes projetos está na atualização do enquadramento anterior, através da inserção de competências digitais, competências referentes à sustentabilidade e competências relevantes para a resiliência financeira.

Para que possamos compreender o alcance deste quadro, temos de esclarecer alguns aspetos importantes sobre o documento disponibilizado pela Comissão Europeia. Ora, o foco deste enquadramento é a literacia financeira, sendo esta a combinação de consciência financeira, conhecimentos, competências e comportamentos necessários para tomar decisões financeiras sólidas e assim alcançar o bem-estar financeiro individual.

O quadro divide as competências em quatro áreas: 1) dinheiro e transações; 2) planeamento e gestão financeira; 3) riscos e recompensa; 4) panorama financeiro. Dentro de cada uma destas competências são avaliadas três dimensões. A primeira refere-se ao conhecimento/compreensão, e através desta verifica-se se determinado sujeito revela discernimento em relação a um certo tópico. A segunda permite avaliar as aptidões e comportamentos do sujeito. A terceira permite avaliar as motivações, confiança e atitudes do sujeito, através das quais se capta a tomada de decisão interna que influencia o comportamento financeiro. Esta disposição admitirá a divisão das competências financeiras por níveis, à semelhança do que acontece com as competências linguísticas, que na União Europeia vão do nível A1 ao nível C2.

Atualmente, o documento encontra-se disponível para adoção voluntária por autoridades públicas, órgãos privados e pela sociedade civil, dentro da União Europeia, com vista ao desenvolvimento de políticas e instrumentos educativos. Pode dizer-se que será um alicerce fundamental para todas as entidades que pretendam colaborar para a construção de um background sólido da literacia financeira entre jovens e adultos (através da implementação de projetos para a educação financeira nas escolas, universidades, locais de trabalho, campanhas de sensibilização, entre outras).

Indubitavelmente esta iniciativa é de grande relevo para reforçar a proteção dos consumidores, que ao estarem mais informados e conscientes dos instrumentos financeiros, risco associado, custos e práticas fraudulentas, elevarão as suas competências financeiras e, por conseguinte, tomarão decisões que permitirão alcançar o bem-estar financeiro.

Como já foi abordado no nosso blog, há muitos problemas que resultam da iliteracia financeira, e um deles é a vulnerabilidade dos consumidores. A verdade é que a Europa apresenta um resultado bastante deficitário no que diz respeito ao nível de literacia financeira, existindo uma grande disparidade entre os diferentes estados-membros. Portugal é um dos países onde a iliteracia financeira é mais elevada.

Os desenvolvimentos tecnológicos verificados nos últimos anos aliados à pandemia trouxeram uma redução da intermediação e aconselhamento financeiro por parte de instituições fidedignas, o que colocou os consumidores numa posição de maior fragilidade. Como consequência, surgiram muitas práticas desleais – em alguns casos mesmo criminosas – como a comercialização de cursos, dicas sobre investimento com promessa de enriquecimento rápido, criptoativos sem qualquer valor ou que nem sequer existem, ou investimentos em instrumentos de elevado risco que poderiam comportar consequências desastrosas para as finanças pessoais do consumidor.

Ora, através deste enquadramento europeu das competências financeiras dos adultos será possível alertar e educar de uma forma mais eficaz com vista a evitar estas situações, garantindo a proteção dos consumidores mais vulneráveis a estas práticas. É necessária a colaboração dos estados-membros para que se verifique o seu sucesso, pois a adoção deste quadro é facultativa.

Contudo, apesar da importância de uma abordagem mais coordenada entre decisores políticos da UE e nacionais em relação a questões financeiras, não nos podemos esquecer que a educação financeira e a literacia financeira não devem substituir um elevado nível de proteção do consumidor, através de instrumentos que permitam fiscalizar e erradicar práticas e esquemas fraudulentos com impacto negativo nas finanças pessoais dos consumidores.

Reabrir a controvérsia das loot boxes nos videojogos

Doutrina

No passado dia 31 de maio, a Forbrukerrådet (Conselho de Consumidores Norueguês)[1] publicou o relatório “INSERT COIN: How the gaming industry exploits consumers using loot boxes”, de 59 páginas, detalhando a prática comercial das Loot boxes em videojogos, os diversos problemas que estas levantam, em termos de proteção dos consumidores, a legislação aplicável e a necessidade de mais (e melhor) regulação. Em coordenação com a publicação deste relatório, 20 associações de proteção dos consumidores de 18 estados europeus juntaram-se em apelos às autoridades para implementar reformas na legislação e na fiscalização destas práticas. Portugal foi um deles, tendo-se a DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor juntado a este consórcio.

As loot boxes são uma prática comercial utilizada em diversos videojogos, desde os gratuitos (free-to-play) aos pagos, que consiste, tipicamente, em cobrar aos utilizadores um valor (em moeda corrente ou em moedas virtuais), para desbloquearem “caixas” ou “carteirinhas” virtuais, de forma a obterem um prémio aleatório, que consiste numa recompensa (em conteúdo digital) do videojogo em questão. Os prémios aleatórios destas caixas podem variar muito, desde conteúdos para a simples personalização das personagens (as chamadas skins), apenas com valor cosmético e sem impacto na jogabilidade, até a personagens, equipamentos, figuras ou outros itens que concedem vantagens substanciais a quem as adquire. Estes itens virtuais podem, também, frequentemente ser transacionados, doados, trocados e vendidos entre os utilizadores, o que permite o surgimento (lícito ou ilícito) de mercados secundários, verdadeiras economias paralelas que incentivam a procura pelas loot boxes.

Estima-se que a venda de loot boxes em 2020 tenha resultado em receitas mundiais de 15 mil milhões de dólares para a indústria dos videojogos, com destaque para videojogos como o FIFA21, da EA, e o Fortnite, da Epic Games.

Controvérsias com loot boxes já não são uma novidade em 2022. É necessário destacar que, entre 2017 e 2018, depois de uma série de polémicas com o lançamento dos videojogos Star Wars Battlefront II e FIFA18, comparando a funcionalidade a casinos online predatórios para jovens, as Comissões de Jogos de Fortuna e Azar dos Países Baixos (Netherlands Gaming Authority) e da Bélgica (Belgium Gaming Commission) lançaram investigações a estas práticas para compreender se estas violavam as leis de jogo online nestes Estados, o que se veio a verificar. A generalidade das empresas passou a bloquear estas funcionalidades nestes Estados, mantendo-se a prática nos restantes. Aproveita-se as diferenças entre a definição legal de gambling nos vários ordenamentos jurídicos.

Este novo relatório e a ação concertada das associações de defesa dos consumidores visam reabrir esta temática, num ângulo pouco explorado até agora: o do Direito do Consumo. Desta forma, o relatório dá destaque:

  1. ao carácter agressivo da publicidade, pop-ups e notificações constantes dentro e fora dos jogos;
  2. à exploração de vulnerabilidades dos utilizadores com recurso a técnicas de design enganador e dissimulado – deceptive design, manipulative design e dark patterns;
  3. a critérios enganadores de transparência sobre as probabilidades de os utilizadores vencerem prémios;
  4. à utilização de algoritmos opacos que modificam e dissimulam resultados e probabilidades;
  5. à utilização de moedas virtuais (in-game currencies) próprias de cada jogo e plataforma para mascarar o custo real monetário da compra das loot boxes;
  6. às técnicas de design dos jogos destinadas a incentivar os jogadores a adquirirem loot boxes, com recurso a estímulos e castigos;
  7. ao verdadeiro custo real de modelos de negócio free-to-play ou freemium, que na verdade são bastante caros para os utilizadores;
  8. ao risco de perda dos conteúdos digitais a qualquer momento, fruto de cláusulas contratuais inseridas nos End-User License Agreements (EULA);
  9. à venda de loot boxes especialmente direcionada a menores.

O relatório utiliza dois case studies (FIFA22 e Raid: Shadow Legends) para exemplificar as principais práticas da indústria, passando de seguida para um curto enquadramento jurídico, incluindo a legislação aplicável aos contratos de jogo de fortuna e azar na modalidade de jogo online e o Direito do Consumo Europeu (e dos Estados Unidos da América).

No Direito do Consumo Europeu, a Forbrukerrådet focou a sua análise quanto à aplicabilidade, em primeiro lugar, da Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (Diretiva 93/13/CEE[JCO31] , transposta no DL n.º 446/85, de 25 de outubro) em especial às cláusulas que conferem unilateralmente um vasto leque de poderes aos prestadores de serviços para modificar funcionalidades dos conteúdos ligados às loot boxes, o funcionamento das mesmas e a possibilidade de apagarem os bens virtuais das contas dos utilizadores sem justificação e sem direito a reembolso.

Defende-se ainda a aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (Diretiva 2005/29/CE, transposta pelo DL n.º 57/2008, de 26 de março) quanto ao carácter enganador e agressivo comum a vários sistemas de loot boxes (artigos 8.º e 9.º), desde o timing das ofertas comerciais durante o jogo, a pressão colocada sobre os utilizadores, a opacidade da informação sobre os prémios, e o facto de frequentemente serem direcionadas a consumidores vulneráveis, nomeadamente as crianças e jovens.

Considera-se também aplicável a Diretiva dos Direitos dos Consumidores (Diretiva 2011/83/UE, transposta pelo DL n.º 24/2014, de 14 de fevereiro) quanto ao incumprimento dos requisitos de informações contratuais, nomeadamente certas informações como a probabilidade real dos prémios[2] das loot boxes essenciais para a decisão dos consumidores de comprarem ou não (artigo 6.º-1). A Comissão Europeia referiu este ponto nas suas Guidelines do final de 2021 para a interpretação e aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (Comunicação C/2021/9320), no artigo 7.º-4, afirmando que na venda de loot boxes devem ser cumpridos os deveres de informação de ambas as diretivas, quanto ao preço e as principais características (como as probabilidades).

A proposta de Regulamento para a Inteligência Artificial também foi abordada, mas apenas de passagem, quanto à opacidade e impacto negativo nos utilizadores dos algoritmos utilizados em videojogos.

De notar que o relatório não refere a Diretiva dos conteúdos e serviços digitais, quanto às normas relativas às modificações dos conteúdos digitais pelo profissional e o exercício dos direitos dos consumidores (como os efeitos da resolução do contrato).

Atendendo que a Comissão Europeia começou em março deste ano um “Fitness Check[JCO32] ” às três diretivas indicadas no relatório, com vista à preparação de propostas de revisão das mesmas até 2024, este relatório pretende reabrir a discussão sobre as loot boxes e promover alterações legislativas que tenham em conta os principais problemas regulatórios desta prática comercial.

Assim, o relatório termina com uma série de recomendações para a regulação das loot boxes:

  1. Proibição de práticas enganosas e dissimuladas pelas empresas de videojogos;
  2. Os preços nas lojas in-game devem estar indicados em moeda corrente (pelo menos com igual destaque em comparação com o preço em moedas virtuais);
  3. Videojogos direcionados a menores não devem ter loot boxes, nem funcionalidades “pay-to-win”, em que, sendo o jogo grátis, haja a possibilidade de serem conferidas vantagens substanciais ao utilizador pelo pagamento de quantias monetárias;
  4. Mais transparência no funcionamento dos algoritmos, devendo o consumidor ser expressamente informado quando for sujeito a decisões automatizadas que possam afetar o seu comportamento;
  5. Reforçar a atuação e cooperação das autoridades administrativas e entidades reguladoras no setor dos videojogos, para garantir a cumprimento da lei pelos profissionais e a proteção adequada dos consumidores;
  6. E finalmente, caso estes “remédios” não surtam o efeito de mitigar os problemas causados pela utilização desta prática comercial, esta deverá ser proibida.

Tal como em muitos outros ordenamentos jurídicos, em Portugal, a indústria dos videojogos e a suas práticas têm passado muito despercebidas[3] ao enforcement do Direito de Consumo. Esperemos que a participação da DECO neste consórcio e a cobertura mediática deste assunto possam resultar em ações concretas, especialmente se atendermos ao facto que o Decreto-Lei n.º 119-G/2021, de 10 de dezembro, apenas transpôs parcialmente a Diretiva 2019/2161 (Diretiva Omnibus), existindo assim uma janela de oportunidade para inserir reformas nos diplomas nacionais, acompanhando a transposição das medidas em falta.


[1] Organização de defesa dos direitos dos consumidores noruegueses, sob a alçada da Autoridade do Consumidor Norueguês, autoridade administrativa semelhante a uma entidade reguladora independente em Portugal.

[2] A Autoridade da Concorrência Italiana (AGCM), com competência para o enforcement da Diretiva da Práticas Comerciais Desleais, conseguiu impor este requisito de transparência às empresas de videojogos em Itália.

[3] Em 2018, Teresa Monteiro, vice-presidente do Turismo Portugal, assinou uma declaração conjunta de reguladores sobre loot boxes em videojogos. Também em 2018, o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos participou num encontro de reguladores em Birmingham sobre o mesmo tema. Além destas notícias, não se conhecem mais ações dos reguladores portugueses.