Lei n.º 28/2023 – Mais uma peça no combate à obsolescência programada

Legislação

No passado dia 4 de julho, foi publicada no Diário da República a Lei n.º 28/2023, que procedeu à nona e mais recente alteração da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor),

Esta lei veda a renovação forçada de serviços ou equipamentos cuja vida útil não tenha expirado.

Com efeito, o artigo 9.º, que tem como epígrafe “Direito à proteção dos interesses económicos”, tem agora no seu n.º 7 a seguinte redação: “É vedada ao fornecedor de bens ou ao prestador de serviços a adoção de quaisquer técnicas que visem reduzir deliberadamente a duração de vida útil de um bem de consumo a fim de estimular ou aumentar a substituição de bens ou a renovação da prestação de serviços que inclua um bem de consumo”.

Alterou-se a redação de 2021, resultante do DL n.º 109-G/2021, de 10 de Dezembro. A norma era semelhante e tinha como fim não se estimular ou aumentar a substituição de bens. Agora a prestação de serviços é expressamente contemplada, ficando o consumidor ainda mais protegido contra as práticas de obsolescência programada. Note-se que as expressões fornecedor e prestador de serviços eram já utilizadas no n.º 6 do mesmo artigo[1].

Como já referido neste Blog, o Novo Plano de Ação para a Economia Circular, a propósito do Pacto Ecológico Europeu[2] que visa transformar a UE numa economia com impacto neutro no clima, prevê o combate à obsolescência precoce como estratégia da UE no domínio da transição ecológica, domínio considerado prioritário na Nova Agenda do Consumidor[3]. O Pacto Ecológico Europeu pretende que a Europa seja o primeiro continente neutro do ponto de vista carbónico em 2050, o que passa por tecnologias mais ecológicas, que evitam compras recorrentes e desnecessárias.

Também a obsolescência programada é acutelada pelo Direito, designadamente pelo indicado DL de 2021 que transpôs parcialmente a Diretiva (UE) 2019/2161. Também a Diretiva (UE) 2019/770,  no artigo 8.º-1-b), relativo aos requisitos objetivos de conformidade, se refere a “funcionalidade, compatibilidade, acessibilidade, continuidade e segurança, que são habituais em conteúdos ou serviços digitais do mesmo tipo e que o consumidor possa razoavelmente esperar”, ainda que seja uma abordagem muito tímida[4] ao tema da obsolescência programada. Veja-se igualmente o considerando 32 da Diretiva (UE) 2019/771, onde se refere que “assegurar uma maior durabilidade dos bens é importante para se alcançarem padrões de consumo mais sustentáveis e uma economia circular”, devendo ser assegurada uma “durabilidade que é normal para bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar dada a natureza dos bens, incluindo a eventual necessidade de manutenção razoável dos bens”. A durabilidade é avaliada para efeitos de conformidade. Dado que vivemos numa sociedade altamente consumista, a UE reconhece que a transformação ecológica é indissociável da transformação digital[5], apostando assim no combate à obsolescência, quer precoce, quer programada.


[1] “É vedado ao fornecedor ou prestador de serviços fazer depender o fornecimento de um bem ou a prestação de um serviço da aquisição ou da prestação de um outro ou outros”.

[2] Pacto Ecológico Europeu [COM(2019) 640 final de 11 de dezembro de 2019].

[3] A Agenda abrange cinco domínios prioritários: (1) Transição ecológica; (2) Transformação digital; (3) Reparação e aplicação dos direitos dos consumidores; (4) Necessidades específicas de determinados grupos de consumidores; e (5) Cooperação internacional.

[4] Jorge Morais Carvalho, “Venda de Bens de Consumo e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – As Diretivas 2019/771 e 2019/770 e o seu Impacto no Direito Português”, in Revista Electrónica de Direito, n.º 3, 2019, p. 76.

[5] Construir o futuro digital da Europa [COM(2020) 67 final de 19 de fevereiro de 2020].

Nova Agenda do Consumidor, obsolescência precoce e obsolescência programada

Doutrina

Como prometido em post anterior, abordo hoje as questões da obsolescência precoce e da obsolescência programada dos equipamentos eletrónicos.

Para quem não esteja familiarizado com o conceito, a obsolescência consiste na “desclassificação tecnológica do material industrial, motivada pela aparição de um material mais moderno” (1). Sendo o resultado natural (e até desejado) do desenvolvimento tecnológico e digital, esta torna-se um problema quando se manifesta de forma precoce, ou pior, quando é programada.

Em ambos os casos, a desatualização dos equipamentos eletrónicos ocorre num momento temporal anterior ao expectável face à normal vida útil desse tipo de equipamentos. A diferença entre elas reside na intencionalidade de tal fenómeno, uma vez que a obsolescência programada é, como o nome indica, determinada pelos próprios produtores dos equipamentos, como forma de promover a aquisição pelos consumidores dos novos produtos por aqueles lançados no mercado.

Os impactos da obsolescência precoce e da obsolescência programada manifestam-se em vários planos, destacando-se o ambiental e o contratual, interessando-nos sobretudo as relações de consumo.

Por um lado, este fenómeno tipicamente capitalista tem repercussões ambientais muito significativas, na medida em que promove uma produção exagerada de equipamentos eletrónicos, tornando descartáveis equipamentos perfeitamente funcionais. A constante substituição de equipamentos pelo modelo mais recente produz uma enorme quantidade de resíduos desnecessários, e bem sabemos que a redução de produção de resíduos é o primeiro e mais importante passo para uma economia sustentável.

Daqui que o combate à obsolescência precoce integre a estratégia da UE no domínio da transição ecológica, como mencionado na Nova Agenda do Consumidor da UE, no Novo Plano de Ação para a Economia Circular  e na Estratégia digital «Construir o futuro digital da Europa».

Por outro lado, a obsolescência (especialmente a programada) dos equipamentos tem consequências ao nível contratual. Convém aqui precisar que a obsolescência programada engloba também as práticas comerciais caracterizadas por tornar um equipamento eletrónico menos eficaz e funcional. A título de exemplo, tal ocorre quando as atualizações de software tornam um “smartphone” mais lento.

A Diretiva (UE) 2019/771, relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens (inserir link), procurou começar a responder a esta problemática. Assim, a durabilidade dos bens adquiridos por consumidores, definida enquanto “capacidade de os bens manterem as suas funções e desempenho previstos através da utilização normal” (2), passou a integrar expressamente os parâmetros de conformidade dos bens. Assim, a conformidade de um bem de consumo passa também pela correspondência entre o nível de durabilidade dos bens do mesmo tipo do bem objeto do contrato e com que o consumidor possa razoavelmente contar (3).

Deste modo, o vendedor profissional está obrigado a “fornecer atualizações, incluindo atualizações de segurança a fim de garantir que os bens com elementos digitais continuam a estar em conformidade.”

Tornando-se um equipamento eletrónico obsoleto de forma precoce, dúvidas não haverá de que o consumidor terá direito à reposição da sua conformidade, nomeadamente através da reparação. No caso do exemplo acima, o consumidor poderia exigir a realização de uma atualização de software que assegurasse o correto funcionamento do smartphone.

A título de curiosidade, dá-se nota que na Nova Agenda do Consumidor a Comissão Europeia se refere já a uma revisão da Diretiva (UE) 2019/771, que ainda nem sequer foi transposta em nenhum Estado-Membro, referindo-se-lhe como uma “oportunidade para analisar o que mais pode ser feito para promover a reparação e incentivar produtos circulares e mais sustentáveis”.

 

Notas

(1) “obsolescência”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/obsolesc%C3%AAncia [consultado em 20-11-2020].

(2) Art. 2.º/13

(3) Art. 7.º/1, al. b) e Considerando 32.