Renúncia à garantia legal

Jurisprudência

No passado dia 5 de novembro, foi proferido no Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) o acórdão relativo ao Processo n.º 325/17.6T8AMD.L1-2, com um tribunal composto pelos juízes desembargadores Jorge Leal (relator), Nelson Borges Carneiro e Pedro Martins. O caso é particularmente interessante e a fundamentação clara e acertada, tendo o tribunal revogado a decisão da primeira instância, substituindo-a por uma de condenação do profissional.

Em traços gerais, o autor é um consumidor que adquiriu um motociclo à ré por € 8000, tendo este avariado menos de dois meses depois da data da celebração do contrato.

Ainda antes de avançarmos na análise dos restantes factos do caso, discute-se no processo se o autor poderia ser qualificado como consumidor, em especial no que respeita à questão de saber se foi a ré (sociedade comercial) a vender o carro ou se esta era apenas um intermediário numa relação entre particulares [1]. O tribunal conclui que a ré é a vendedora. A este propósito, importa referir que parece ter sido seguida, de forma acertada, a regra estabelecida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no Caso Wathelet: “o conceito de vendedor (…) deve ser interpretado no sentido de que abrange também um profissional que atua como intermediário por conta de um particular e que não informou devidamente o consumidor comprador do facto de que o proprietário do bem vendido é um particular, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar tendo em conta todas as circunstâncias do caso concreto”. Ou seja, se alguém se apresenta como vendedor, responde como vendedor. Quanto ao elemento teleológico do conceito de consumidor, tendo-se dado como provado que “o autor fazia uso do motociclo, essencialmente, em deslocações de lazer”, o uso é considerado não profissional.

Verificando-se uma desconformidade no motociclo e tendo o consumidor procedido à sua denúncia tempestiva, defende o tribunal que o consumidor tem o direito à reparação, correspondente ao seu pedido. O problema surge na medida em que o consumidor assinou um documento aquando da celebração do contrato, com o título “Termo de responsabilidade e renúncia de garantia”, que menciona a renúncia a “qualquer tipo de garantia e nas condições em que se encontra, por mim já verificadas (prescindindo assim do direito à Lei nº 67 de 8 de abril de 2003)”.

É pena que não conste da decisão do TRL a fundamentação utilizada pelo tribunal de primeira instância para decidir no sentido da improcedência dos pedidos, tendo em conta que o afastamento da aplicação desta cláusula de renúncia me parece evidente.

O TRL centra-se precisamente na análise da questão da validade da cláusula de renúncia à garantia. Seguimos integralmente o excelente raciocínio desenvolvido a este propósito pelo tribunal.

O art. 10.º do Decreto-Lei n.º 67/2003 estabelece que “é nulo o acordo ou cláusula contratual pelo qual antes da denúncia da falta de conformidade ao vendedor se excluam ou limitem os direitos do consumidor previstos no presente diploma”, como a que está subjacente ao caso em análise, remetendo, no entanto, para o art. 16.º da Lei de Defesa do Consumidor. É particularmente interessante o n.º 2, que estabelece que a nulidade “apenas pode ser invocada pelo consumidor ou seus representantes”.

Será que o objetivo desta norma consiste em limitar o poder de atuação do tribunal, conhecendo da nulidade em causa num caso em que esta não seja expressamente invocada pelo consumidor, mas em que este pretenda desvincular-se do conteúdo ilícito? A resposta deve ser negativa. O objetivo consiste em proteger adicionalmente o consumidor e não em desprotegê-lo face à posição do profissional [2].

O tribunal resolve a questão de forma acertada: “nesta ação o A. negou, pois, tacitamente, a validade da cláusula de renúncia (art.º 217.º n.º 1 do CC). Essa manifestação de vontade deve ser considerada pelo tribunal, pois consubstancia o levantamento do único obstáculo que a lei prevê ao conhecimento, pelo tribunal, da aludida nulidade: a vontade do consumidor”.

Nota-se ainda que uma interpretação da qual resultasse a aplicação da cláusula de renúncia, contra o interesse declarado do consumidor, além de contrariar frontalmente a teleologia do regime, seria contrária ao direito europeu, uma vez que a Diretiva 1999/44/CE estabelece claramente que essa cláusula não vincula o consumidor (art. 7.º-1).

O tribunal também se pronuncia nesta decisão sobre a questão da indemnização relativa ao dano da privação do uso do veículo. Trata-se de um tema muito interessante, mas cuja análise deixarei, eventualmente, para um texto posterior.

Este acórdão deveria passar a ser utilizado (e analisado) em qualquer curso de Direito do Consumo. Levanta questões muito interessantes e diversificadas, com uma argumentação sólida e atualizada por parte do tribunal.

 

[1] Refira-se que o consumidor tinha mesmo assinado uma declaração «intitulada “Declaração e termo de responsabilidade”, datada de 30 de setembro de 2016, da qual resulta que adquiriu a viatura particularmente sem garantia e no estado em que se encontrava, responsabilizando-se pelo que pudesse suceder com a moto, “durante o tempo em que circular em nome de Tiago (…)”».

[2] Sobre esta questão, de forma mais aprofundada, v. Jorge Morais Carvalho, Os Limites à Liberdade Contratual, Almedina, 2017, p. 198.

Citação na arbitragem (de consumo)

Jurisprudência

O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) proferiu no passado dia 27 de outubro uma decisão muito interessante no que respeita à citação no processo arbitral.

No essencial, está em causa uma ação de anulação de uma sentença do Centro de Arbitragem do Setor Automóvel (CASA), proposta pela empresa, com o fundamento de não ter sido citada de forma adequada ao exercício do seu direito de defesa.

Com efeito, a empresa foi citada por mensagem de correio eletrónico simples, conforme está previsto no Regulamento do CASA (art. 56.º, n.ºs 5 e 6), entidade à qual a empresa tinha previamente aderido plenamente, vinculando-se, portanto, a nesse sede resolver os litígios emergentes dos contratos a celebrar com os seus clientes.

É importante notar que a empresa não teve qualquer intervenção no processo arbitral. Se tivesse participado, o problema não se colocaria, uma vez que se teria de considerar sanado qualquer vício relativo à chamada da parte ao processo.

O TRL decide anular a decisão, com o fundamento de que “viola o princípio constitucional da proibição de indefesa, consagrado no art. 20.º da Constituição, a citação que não ofereça as garantias mínimas de segurança e fiabilidade e/ou que torne impossível ou excessivamente difícil a ilisão da presunção de recebimento da citação. É o caso de uma citação feita por correio eletrónico simples provido de assinatura eletrónica simples, no âmbito de processo do CC, dirigida a uma sociedade comercial que vende veículos automóveis”.

Com todo o respeito, em especial tendo em conta a fundamentação aprofundada, e reconhecendo que se trata de uma questão complexa, não acompanho a decisão do tribunal.

Assim, os poderes do tribunal arbitral tinham neste caso como fonte uma convenção de arbitragem, formada na sequência de adesão plena da empresa e posterior aceitação por parte do consumidor [1]. Através da adesão plena, a empresa compromete-se a resolver os litígios de consumo posteriores através de arbitragem, se o consumidor iniciar o processo no CASA. Ao comprometer-se neste sentido, a empresa aceita a jurisdição do CASA e o seu Regulamento. Ora, o Regulamento prevê a citação, entre outras possibilidades, por meio de uma mensagem de correio eletrónico e a empresa, no documento de adesão plena, forneceu um endereço de correio eletrónico. Assim, não acompanho a afirmação constante do acórdão de que “não está demonstrada a existência de acordo entre as partes para a definição de endereço eletrónico para comunicações entre si”. Note-se que esta afirmação parece decisiva para a decisão do tribunal. Se considerasse que existia esse acordo, então parece que a citação poderia ser por via de mensagem de correio eletrónico.

Acresce que o e-mail é um meio perfeitamente apto, rápido e eficaz, de tornar conhecidos factos, com vantagens claras em relação a outros meios, como a carta, que demora mais tempo a ser entregue. Num processo que se pretende informal e célere, é essencial que, no respeito dos princípios fundamentais do processo civil, se utilizem os meios mais eficazes para a obtenção em tempo de uma decisão justa. Reconhece-se que a prova do envio de um e-mail é mais complexa, nomeadamente se for através de correio eletrónico simples. Aliás, o TRL parece admitir que a citação possa ser feita por correio eletrónico, se lhe for aposta assinatura eletrónica qualificada. Nota-se, contudo, que a assinatura eletrónica qualificada nada garante em relação ao destinatário do e-mail, pelo que não parece resolver o problema.

Em suma, havendo acordo, ainda que tácito, quanto ao meio de citação, a citação por mensagem de correio eletrónico, em conformidade com esse acordo, deve considerar-se que respeita os princípios fundamentais do processo civil.

A minha conclusão seria diferente se, da não intervenção da parte regularmente citada no processo, resultasse algum efeito cominatório. Ora, nos termos do art. 35.º da Lei da Arbitragem Voluntária, a não-contestação não pode ser considerada, “em si mesma, como uma aceitação das alegações do demandante”. Assim se justifica que, no caso em análise, o tribunal arbitral tenha julgado a ação apenas parcialmente procedente.

Três notas finais.

Em primeiro lugar, consideramos que o centro de arbitragem poderia, neste caso, ter tentado contactar a empresa por outras vias, nomeadamente pelo telefone. O telefone é um meio muito eficaz de contacto, que permite falar diretamente com a pessoa em causa e perceber se recebeu ou não a comunicação. Tem o mesmo problema do correio eletrónico no que respeita à prova, mas parece-me mais importante para o exercício efetivo do direito de defesa o conhecimento real do processo do que a tentativa de encontrar formas de o ficcionar. A ausência destes contactos adicionais não gera, contudo, na minha opinião, a invalidade da decisão.

Em segundo lugar, se estivesse em causa uma situação de arbitragem necessária (v. art. 14.º da Lei de Defesa do Consumidor), o raciocínio teria de ser diferente. Ainda assim, parece-me que a citação poderia ser feita por correio eletrónico, mas sempre acompanhada de outros meios auxiliares, como o telefone, tentando garantir a participação efetiva da parte no processo. No caso de não obter resposta por nenhuma outra via, parece-me que terá de ser enviada uma carta registada para a sede da empresa, sendo suficiente, neste caso, para se considerar citada, a prova da recusa da receção da carta. A citação edital, figura criticável, por ser meramente ficcional e não garantir minimamente o conhecimento real da existência do processo, não tem nem deve ter lugar no processo arbitral (tal como não deveria ter lugar no processo judicial).

Em terceiro lugar, extravasando o tema deste texto, é interessante notar como os objetivos da arbitragem de consumo são desvirtuados no momento em que a questão passa para os tribunais judiciais. Como consequência natural da anulação da sentença arbitral, o TRL determina que as custas devem ser suportadas pelo requerido, ou seja, pelo consumidor. Assim, o consumidor optou por um meio de resolução alternativa de litígios de consumo, o qual deve ser gratuito ou, no máximo, estar sujeito ao pagamento de uma taxa de valor reduzido (v. art. 10.º, n.º 3, da Lei n.º 144/2015). Em outubro de 2020, mais de dois anos e meio depois de ter iniciado a ação no centro de arbitragem, o processo volta ao início e o consumidor já incorreu em despesas certamente superiores à taxa de valor reduzido para que remete a lei (a qual, realce-se, se impõe por força da Diretiva 2013/11/UE).

 

[1] Sobre a natureza jurídica da adesão plena e a qualificação da situação em causa como convenção de arbitragem, v. Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 177 e segs..

Energia elétrica, prescrição e acesso ao contador

Jurisprudência

Dedicamo-nos hoje à análise de uma interessante decisão do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa (CACCL), proferida no dia 22 de janeiro de 2020.

Estava em causa, no essencial, a eventual prescrição (ou caducidade) do direito do fornecedor de energia elétrica à diferença entre o valor estimado (e cobrado) e o valor real correspondente ao consumo efetivo entre 29/11/2013 e 9/10/2019.

Apesar de a empresa ter enviado cerca de 20 cartas à consumidora e estarem registadas 12 deslocações ao local, nunca foi facilitado o acesso ao contador, que se encontra dentro da residência. Por a situação ser imputável à consumidora, o tribunal arbitral considera que não se verifica a prescrição do direito da empresa, nos termos do art. 10.º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96).

O art. 10.º-2 estabelece que, “se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento”.

Não se prevê neste regime, pelo menos expressamente, a situação de a contagem do consumo real ser impedida pelo consumidor e a sua interação com o regime da prescrição.

O art. 67.º-5 do Decreto-Lei n.º 194/2009 contém uma regra especial aplicável ao contrato de prestação de serviços de fornecimento de água: “o prazo de caducidade das dívidas relativas aos consumos reais não começa a correr enquanto não puder ser realizada a leitura por parte da entidade gestora por motivos imputáveis ao utilizador” (itálico nosso). Esta regra deve ser estendida, por analogia, aos restantes serviços públicos essenciais, nomeadamente a eletricidade, que está em causa no processo em análise, que implicam leituras de contador para aferição dos consumos reais, podendo sempre recorrer-se, adicionalmente, à figura do abuso do direito, que pode limitar, estando verificados os pressupostos para a sua aplicação, o direito do utente a invocar a caducidade.

Concorda-se, portanto, com a solução dada na sentença, em especial tendo em conta que o comportamento da consumidora é particularmente censurável. É preciso não esquecer, contudo, que também cabe à empresa evitar que estas situações de incumprimento se prolonguem, não devendo arrastar o problema ao longo de tanto tempo, com vista à prevenção do endividamento excessivo dos consumidores.

Do ponto de vista processual, a decisão suscita algumas dúvidas.

Com efeito, o tribunal arbitral condena a consumidora ao pagamento do valor devido, apesar de não ser referida na sentença a dedução de qualquer pedido por parte da empresa. A ação é proposta pela consumidora, pelo que esta apenas deverá poder ser condenada se houver um pedido reconvencional.

Outra questão interessante consiste em parecer ter existido um acordo entre as partes, embora posterior ao momento em que a decisão é proferida. Pode ler-se que, “proferida a decisão e ouvida a consumidora quanto às forma do pagamento da quantia não prescrita e em dívida, esta, manifestou dificuldade em pagar o valor em dívida de uma só vez, tendo-se proposto e foi aceite pela requerida reclamada, que o pagamento seja efetuado em 15 prestações mensais e sucessivas”.

A existência de um acordo posterior à decisão, mediado pelo julgador e referido na sentença constitui um interessante exemplo da informalidade que marca a resolução alternativa de litígios de consumo, conseguindo obter-se uma solução mais adequada aos interesses das partes.

Na minha opinião, a decisão deveria, no entanto, pelo menos em parte, ser homologatória do acordo obtido (e não condenatória, como se deixou, aliás, já escrito).

Estado de emergência e destino dos contratos celebrados

Legislação

A evolução da pandemia Covid-19 levou o Presidente da República a declarar novamente o estado de emergência (v. Decreto do Presidente da República n.º 51-U/2020, de 6 de novembro). A figura está pensada precisamente para situações de calamidade pública como a que estamos atualmente a viver, tendo-se entendido ser necessário, neste momento, tomar medidas adicionais com vista à contenção da pandemia.

Ontem, o Governo veio regulamentar a aplicação do estado de emergência (Decreto n.º 8/2020, de 8 de novembro).

Entre outras medidas, proíbe-se a circulação na via pública, nos dias úteis, das 23h às 5h, e aos fins de semana das 13h às 5h. O regime prevê várias exceções, entre as quais destacamos as “deslocações a mercearias e supermercados e outros estabelecimentos de venda de produtos alimentares e de higiene, para pessoas e animais”, podendo nestes estabelecimentos ser “adquiridos outros produtos que aí se encontrem disponíveis”. Os estabelecimentos que comercializam produtos alimentares e de higiene (mercearias, supermercados, pastelarias, restaurantes) podem, portanto, atender clientes, mas apenas para take away.

Não se prevê o encerramento dos restantes estabelecimentos, mas será esta a decorrência normal do facto de não poderem receber clientes, por estes se encontrarem abrangidos por uma proibição de circulação.

A questão que nos propomos tratar aqui consiste em saber qual o destino dos contratos de consumo celebrados em contrariedade a este regime. Por exemplo, um contrato celebrado no sábado da parte da tarde numa loja de roupa; ou o contrato celebrado com um restaurante para jantar no local no sábado à noite.

Em ambos os casos, o cliente desrespeitou a proibição de circulação na via pública. O regime prevê algumas consequências, nomeadamente o dever de respeitar as ordens emitidas pelas forças e serviços de segurança, tendo-se considerado, neste caso, não prever sanções contraordenacionais específicas para o incumprimento da proibição referida.

Nada se refere quanto ao destino dos contratos celebrados.

Tratando-se esta proibição de um elemento externo ao negócio propriamente dito (a proibição de circulação), aplica-se o art. 294.º do Código Civil, que estabelece que “os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de caráter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei” [1].

Estando em causa um aspeto exterior ao âmago do negócio jurídico, deve concluir-se que não tem com este uma relação tão próxima que seja suscetível de o ferir mortalmente. Defendo mesmo que se pode arriscar numa leitura invertida do preceito. Assim, os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo têm a consequência expressa ou tacitamente prevista no diploma legal, só sendo nulos no caso de esta não apresentar outra solução.

Ora, como já se referiu, o Decreto n.º 8/2020, de 8 de novembro, apresenta “outra solução”, tendo-se considerado suficiente prever, neste caso, um dever de respeitar as ordens emitidas pelas forças e serviços de segurança. Não se justifica, portanto, que os contratos celebrados em contrariedade a este regime sejam considerados nulos. Estamos perante contratos válidos, que produzem os seus efeitos normais, isto sem prejuízo de às partes poderem ser aplicadas as consequências previstas no regime.

[1] Sobre o art. 294.º do Código Civil, v. o meu livro Os Limites à Liberdade Contratual, Almedina, 2016, pp. 141 e seguintes.

Contratos celebrados à distância relativos a serviços financeiros

Jurisprudência

Continuamos hoje a análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no primeiro semestre de 2020, dedicando-nos ao tema dos contratos celebrados à distância relativos a serviços financeiros.

O direito europeu regula de forma separada os contratos celebrados à distância em geral (Diretiva 2011/83/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores) e os contratos celebrados à distância relativos a serviços financeiros (Diretiva 2002/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de setembro de 2002, relativa à comercialização à distância de serviços financeiros prestados a consumidores).

aqui analisamos em agosto três decisões do TJUE que incidem sobre o primeiro diploma (a que se soma uma quarta, já do segundo semestre, analisada no início deste mês), tendo então ficado prometido que faríamos uma análise separada dos contratos relativos a serviços financeiros.

É essa a promessa que agora cumprimos.

No Processo Sparkasse Südholstein, C‑639/18 (acórdão de 18 de junho de 2020), estava em causa a questão de saber se a Diretiva 2002/65/CE se aplica a um contrato através do qual as partes alteram um contrato de crédito anteriormente celebrado “quando essa modificação diz respeito unicamente à taxa de juro estipulada (acordo complementar relativo à taxa de juro), sem prorrogar a duração do empréstimo nem alterar o seu montante”.

A resposta dada pelo tribunal é negativa.

Segundo o tribunal (considerando 30), “decorre tanto de uma interpretação literal como sistemática do artigo 2.°, alínea a), da Diretiva 2002/65 que se deve considerar como «contrato relativo a serviços financeiros» o contrato que prevê a prestação desses serviços. Ora, este requisito não está preenchido no caso de, como no processo principal, o acordo complementar em causa apenas ter por objeto a adaptação da taxa de juro devida em contrapartida de um serviço já acordado”. Acrescenta-se ainda como argumento neste sentido, nos considerandos 32 e 33, a finalidade da Diretiva (“assegurar um elevado nível de proteção dos consumidores para garantir um reforço da sua confiança na venda à distância e garantir a livre circulação dos serviços financeiros”), considerando-se que “tal objetivo não exige necessariamente que, nos casos em que, em conformidade com uma cláusula inicial de um contrato de empréstimo, um acordo complementar ao mesmo fixe uma nova taxa de juro, esse acordo complementar deva ser qualificado como novo contrato relativo a serviços financeiros”.

Os contratos que alterem contratos abrangidos pela Diretiva apenas no que respeita à taxa de juro não são, portanto, abrangidos pelo diploma.

O Processo Leonhard, C‑301/18 (acórdão de 4 de junho de 2020), incide sobre o tema do direito de arrependimento, em especial sobre os efeitos do exercício do direito por parte do consumidor.

O art. 7.º-4 da Diretiva 2002/65/CE estabelece que “o prestador fica obrigado a restituir ao consumidor, o mais rapidamente possível, e o mais tardar no prazo de 30 dias de calendário, quaisquer quantias dele recebidas nos termos do contrato à distância, com exceção do montante […] [relativo ao serviço financeiro efetivamente prestado]”.

O tribunal alemão de reenvio veio perguntar ao TJUE se o preceito transcrito pode ser interpretado no sentido de que o consumidor tem o direito de obter, além do reembolso do capital e dos juros pagos em execução desse contrato, uma indemnização pela utilização desse capital e desses juros por parte do profissional, como parece estar previsto no BGB (Código Civil alemão).

Tratando-se de uma diretiva de harmonização máxima, os Estados-Membros não podem prever outras regras que não as consagradas no diploma, ainda que estas possam ser mais favoráveis ao consumidor. Não estando previsto na Diretiva um direito do consumidor a indemnização, o TJUE responde à questão colocada pelo tribunal nacional em sentido negativo.

O direito nacional não pode, assim, conceder ao consumidor uma indemnização pela utilização pelo profissional das quantias recebidas do consumidor.

Site de encontros e direito de arrependimento

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu na semana passada uma decisão muito interessante em matéria de direito de arrependimento, no âmbito do Processo C-641/19 (caso PE Digital).

A PE Digital gere um site de encontros na Alemanha, propondo aos seus utilizadores dois tipos de adesão: (i) gratuita, com possibilidades de contacto limitadas; (ii) premium, mediante pagamento, por 6, 12 ou 24 meses, com garantia de contacto. O serviço premium inclui um teste de personalidade de cerca de 30 minutos, relativo às características, hábitos e interesses relevantes em matéria de encontro, o qual é enviado ao cliente sob a forma de um «relatório pericial de personalidade» de 50 páginas.

No dia 4 de novembro de 2018, o consumidor celebrou um contrato de adesão premium com a empresa, pelo período de 12 meses, por um valor de € 523,95 (valor superior ao dobro do valor cobrado a outros clientes pelo mesmo serviço no mesmo ano).

O consumidor foi informado da existência do direito de arrependimento e declarou pretender que o serviço começasse a ser prestado antes do termo do prazo para arrependimento.

No dia 8 de novembro de 2018, o consumidor exerceu o direito de arrenpendimento, tendo a empresa exigido então o pagamento de € 392,96. Não se conformando com a situação, o consumidor recorreu a tribunal, pedindo a devolução de todos os valores pagos.

O tribunal alemão decidiu então colocar algumas questões ao TJUE, respondidas no acórdão em análise.

O art. 14.º-3 da Directiva 2011/83/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, regula os efeitos do exercício do direito de arrependimento nos casos em que, num contrato de prestação de serviços, o consumidor deu o seu consentimento quanto ao início da prestação do serviço antes do termo do prazo para arrependimento, como foi o caso na situação em causa neste processo. Assim, o consumidor tem de pagar “ao profissional um montante proporcional ao que foi fornecido até ao momento em que o consumidor comunicou ao profissional o exercício do direito de [arrependimento], em relação ao conjunto das prestações previstas no contrato. O montante proporcional a pagar pelo consumidor ao profissional é calculado com base no preço total acordado no contrato. Se o preço total for excessivo, o montante proporcional é calculado com base no valor de mercado do que foi fornecido”.

A questão que o tribunal de reenvio coloca consiste em saber se “há que ter em conta o preço acordado nesse contrato para o conjunto das prestações nele previstas e calcular o montante devido pro rata temporis, ou se é necessário ter em conta o facto de uma das prestações objeto do contrato [no caso, o teste de personalidade] ter sido fornecida ao consumidor na íntegra antes de este ter exercido o seu direito” (considerando 26).

O TJUE responde à questão de forma bastante clara, considerando que “o montante proporcional a pagar pelo consumidor (…) deve ser calculado, em princípio, tendo em conta todas as prestações que são objeto do contrato, a saber, a prestação principal e as prestações acessórias necessárias para assegurar essa prestação principal” (considerando 28), só assim não sendo “no caso de o contrato prever expressamente que uma ou várias das prestações são fornecidas integralmente desde o início da execução do contrato, de maneira distinta, a um preço que deve ser pago separadamente” (considerando 29).

O TJUE reforça a importância do pagamento separado do preço no considerando 31, ao referir que “o contrato em causa não previa um preço separado para qualquer prestação que pudesse ser considerada como separável da prestação principal prevista nesse contrato”.

Este raciocínio parece-me ser integralmente aplicável à situação comum em contratos de prestação de serviços de comunicações eletrónicas em que as empresas tentam cobrar um valor relativo à instalação quando o consumidor exerce o direito de arrependimento. Não sendo este valor pago separadamente, não releva autonomamente para a definição do montante proporcional a pagar pelo consumidor.

Quanto à questão de saber os critérios para avaliar se o preço total acordado é excessivo, o TJUE considera que “todas as circunstâncias relativas ao valor de mercado do serviço prestado são relevantes (…), nomeadamente a comparação tanto com o preço cobrado pelo profissional em causa a outros consumidores nas mesmas condições como com o preço de um serviço equivalente prestado por outros profissionais”.

Por fim, o TJUE é chamado a pronunciar-se sobre se o relatório de personalidade incluído no contrato em causa no processo pode ser qualificado como um conteúdo digital, caso em que poderia estar excluído o direito de arrependimento, nos termos do art. 16.º-m) da Diretiva. O tribunal conclui de forma breve que não. Julgo que, mesmo que se tratasse de um conteúdo digital, não se deveria aplicar a exceção, uma vez que se trata apenas de um elemento acessório do contrato, claramente consumido, no que respeita ao regime aplicável, pelo serviço prestado pela empresa.

Como é possível verificar, a decisão do TJUE é favorável ao consumidor em todos os pontos.

Star Taxi App e o conceito de serviço da sociedade da informação

Jurisprudência

Dedicamo-nos hoje a uma breve análise das conclusões do advogado-geral, M. Szpunar, no Processo C-62/2019 (Star Taxi App), mais um caso pendente no Tribunal de Justiça da União Europeia em torno da questão de saber se a atividade das plataformas digitais de intermediação deve ser qualificada como consubstanciando serviços da sociedade da informação, em especial para perceber se pode ser exigida uma autorização para o exercício dessa atividade.

Neste processo, está em causa uma aplicação para smartphones (Star Taxi App), que coloca em contacto utilizadores de serviços de táxi e taxistas. Depois de efetuada a pesquisa pelo cliente, a aplicação gera uma lista de taxistas, cabendo a escolha ao cliente. O preço é pago no final da viagem diretamente ao motorista. A empresa que gere a plataforma celebra um contrato com cada taxista, nos termos do qual este se obriga a pagar mensalmente o preço e aquela se obriga a disponibilizar uma aplicação e a fornecer um smartphone no qual a aplicação é instalada. Não é feito qualquer controlo da qualidade dos veículos ou dos taxistas pela plataforma, que se limita a garantir a inclusão apenas de taxistas autorizados e habilitados com uma licença para prestar o serviço de táxi.

O litígio surge no momento em que a Star Taxi App é sancionada por não ter solicitado uma autorização, prevista na legislação romena, para a atividade de “expedição de táxis” (“atividade conexa ao transporte por táxi, que consiste em receber por telefone ou por outros meios os pedidos dos clientes e em transmiti‑los ao motorista de táxi através de um emissor‑recetor de rádio”). A empresa discordou da aplicação da sanção e recorreu a tribunal, tendo este decidido submeter várias questões ao TJUE.

Pergunta o tribunal romeno, no essencial, se a regulamentação nacional em causa no processo é compatível com o direito europeu, especificando, entre outras, a questão de saber se a atividade exercida pela empresa deve ser considerada um serviço da sociedade de informação.

Sem surpresa, o advogado-geral aplica o teste utilizado nos casos Uber Spain, Uber France e Airbnb Ireland, concluindo que se trata de um serviço da sociedade da informação. Por um lado, verificam-se os pressupostos necessários para o preenchimento do conceito. Por outro lado, a atividade em causa não consubstancia um serviço global cujo elemento principal é um serviço com outra qualificação jurídica. Considera o advogado-geral que, ao contrário da Uber e tal como a Airbnb, não só a plataforma não cria um mercado novo, como também não exerce uma influência decisiva sobre os taxistas. Como ficou visível na decisão do TJUE sobre a Airbnb, dificilmente alguma plataforma digital de intermediação, além da Uber no serviço UberPop, não será qualificada, com o teste atualmente aplicável, como prestadora de serviços da sociedade da informação.

As conclusões do advogado-geral neste processo são particularmente interessantes pelo raciocínio subsequente.

Uma diferença muito significativa entre o caso Star Taxi App e o caso Airbnb Ireland resulta do facto de a empresa titular da Star Taxi App se encontrar estabelecida na Roménia, país no qual pretende exercer a sua atividade e ocorre o litígio, enquanto a que gere a Airbnb se encontra estabelecida na Irlanda, resultando o litígio do exercício da atividade noutro Estado-Membro, no caso em França.

Qualificada a atividade em ambos os casos como consubstanciando um serviço da sociedade da informação, aplica-se a Diretiva 2000/31/CE (comércio eletrónico). Enquanto no caso da Airbnb se aplica o art. 3.º da Diretiva, não podendo um Estado-Membro restringir a livre circulação dos serviços prestados por pessoa estabelecida noutro Estado-Membro, se estiverem cumpridas as disposições nacionais aplicáveis nesse outro Estado-Membro, no caso da Star Taxi App aplica-se o art. 4.º, que consagra o princípio de não autorização prévia, o qual não afeta, no entanto, “os regimes de autorização que não visem especial e exclusivamente os serviços da sociedade da informação”. Segundo o advogado-geral, este preceito visa “evitar uma desigualdade de tratamento entre os serviços da sociedade da informação e os serviços semelhantes que não são abrangidos por este conceito” (consid. 68). O advogado-geral conclui no caso Star Taxi App que a norma romena é aceitável, “desde que seja constatada a equivalência económica dos serviços regulamentados por estas disposições” (consid. 77).

A aplicação de normas diversas do regime, com efeito radicalmente oposto, em casos semelhantes do ponto de vista da desigualdade de tratamento entre os serviços da sociedade da informação e os serviços equivalentes que não sejam serviços da sociedade da informação, por a empresa estar ou não estabelecida noutro Estado-Membro, gera por sua vez uma situação de desigualdade que deveria ser evitada.

Considerando o advogado-geral que não é aplicável o art. 4.º da Diretiva 2000/31/CE à regulamentação romena em causa no processo, procede de seguida à análise da compatibilidade do regime de autorização nela previsto com a Diretiva 2006/123/CE (serviços), que será aplicável por não existir, no caso, um conflito entre as duas diretivas. O advogado-geral defende que cabe ao tribunal romeno avaliar o cumprimento das condições previstas nos arts. 9.º e 10.º da Diretiva 2006/123/CE, afirmando, no entanto, que a sujeição da emissão da autorização “a exigências tecnologicamente inadaptadas ao serviço pretendido pelo requerente” (nomeadamente “dispor de um emissor‑recetor de rádio, uma frequência de rádio segura, pessoal com um certificado de operador de radiotelefonia e uma licença de utilização das frequências rádio”, exigência aparentemente prevista na legislação romena) violará os critérios enunciados no art. 10.º. Com efeito, esses requisitos, se forem aplicáveis no âmbito de um serviço de intermediação através de uma aplicação para smartphones, não são aceitáveis, por dificultarem de forma inadmissível o acesso ao mercado em causa.

Se a decisão do TJUE seguir as conclusões do advogado-geral, veremos em que medida poderão ser atenuados no futuro os efeitos (perigosos) da decisão do caso Airbnb Ireland no que respeita à desigualdade de tratamento entre intermediários que operam através de plataformas digitais e intermediários que operam por outras vias.

Airbnb sofre um revés no TJUE

Jurisprudência

Depois de, no final do ano passado, ter visto o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferir uma decisão muito favorável, que proibia, no essencial, a sujeição do exercício da sua atividade à obtenção de uma licença, a Airbnb recebeu uma má notícia do mesmo TJUE no passado dia 22 de setembro.

Falamos da sentença proferida nos Processos apensos C-724/18 e C-727/18 (casos Cali Apartments/HX). A Cali Apartments e a HX são proprietárias de estúdios situados em Paris, nos quais é exercida a atividade de prestação de serviços de alojamento local (ou, com mais precisão, atividade equivalente em França). Estes casos distinguem-se do caso Airbnb Ireland, na medida em que neste último estava em causa a atividade da plataforma e os primeiros incidem sobre a atividade de alojamento local propriamente dita.

Resumidamente, o TJUE foi chamado por um tribunal francês a pronunciar-se sobre a questão de saber se várias normas do direito francês que limitam a atividade de prestação de serviços de alojamento local (impondo em alguns municípios uma autorização prévia para “a alteração da finalidade de utilização dos imóveis destinados a habitação”) são compatíveis com o direito europeu, nomeadamente face aos princípios da liberdade de estabelecimento dos prestadores de serviços e a livre circulação dos serviços, previstos na Diretiva 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006 , relativa aos serviços no mercado interno.

O TJUE começa por concluir que a Diretiva 2006/123/CE é aplicável à prestação de serviços de alojamento local. Isto apesar de qualificar a atividade como “de locação de um bem imóvel” (v. considerando 34).

Depois de concluir que as regras impostas pelo direito francês consubstanciam um regime de autorização, o TJUE procede à análise das condições que têm de se verificar para que um Estado-Membro possa estabelecer um regime de autorização e dos critérios que devem ser seguidos na decisão de concessão da autorização (v. arts. 9.º e 10.º da Diretiva 2006/123/CE).

O problema é resumido de forma relativamente clara no considerando 54. Será admissível “uma regulamentação de um Estado‑Membro que, por motivos que visam garantir uma oferta suficiente de alojamentos destinados à locação de longa duração a preços acessíveis, sujeita certas atividades de locação, mediante remuneração, de imóveis mobilados destinados a habitação a uma clientela de passagem que aí não fixa domicílio, efetuadas de forma reiterada e por períodos de curta duração, a um regime de autorização prévia aplicável em certos municípios cujas autoridades locais determinam, no quadro fixado por essa regulamentação, as condições de concessão das autorizações prévias previstas por este regime, acompanhando‑as, se necessário, de uma obrigação de compensação sob a forma de uma conversão acessória e concomitante em habitação de imóveis que tenham outra utilização”?

O TJUE conclui que a regulamentação em causa “é justificada por uma razão imperiosa de interesse geral atinente à luta contra a escassez de habitações destinadas à locação, sendo proporcionada ao objetivo prosseguido, uma vez que o mesmo não pode ser alcançado por uma medida menos restritiva, designadamente porque uma fiscalização a posteriori seria demasiado tardia para obter uma real eficácia”. Defende igualmente o tribunal que, à partida, os critérios definidos para a concessão da autorização são conformes à diretiva, por serem suficientemente claros e permitirem uma decisão não-arbitrária por parte da administração.

É interessante referir o considerando 92 da decisão, no qual o tribunal utiliza como argumento a alternativa que o proprietário tem de arrendar o imóvel: “há que salientar que a obrigação de compensação que a autoridade local em causa optou por impor não priva, em geral, o proprietário de um bem destinado a locação de retirar frutos do mesmo, uma vez que o referido proprietário dispõe, em princípio, da faculdade de locar o bem, não como imóvel mobilado destinado a uma clientela de passagem, mas enquanto imóvel destinado a uma clientela que aí fixa a sua residência, atividade que certamente é menos rentável, mas à qual essa obrigação não se aplica”.

Em suma, o TJUE vem reconhecer que a luta contra a escassez de habitações destinadas ao arrendamento de longa duração constitui uma razão imperiosa de interesse geral que pode justificar uma limitação ao exercício da atividade de alojamento local.

Apesar de não ser parte nesta ação, o efeito da decisão tem um impacto significativo para a Airbnb e outras plataformas de intermediação no setor do alojamento local, na medida em que o TJUE vem legitimar muitas normas, aprovadas um pouco por toda a Europa nos últimos anos, que visam limitar o alojamento local em cidades com maior pressão turística.

RALC na jurisprudência do TJUE no primeiro semestre de 2020

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu duas decisões ao longo do primeiro semestre de 2020 relacionadas com a resolução alternativa de litígios (RAL) de consumo.

Começamos pelo Processo C‑380/19 (acórdão de 25 de junho de 2020).

O art. 13.º da Diretiva 2013/11/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, prevê dois deveres de informação que o profissional deve cumprir, um na fase pré-contratual (n.os 1 e 2) e o outro no momento em que ocorre o litígio (n.º 3).

Neste processo, está em causa o dever pré-contratual de informação. Assim, os profissionais devem informar “os consumidores acerca da entidade ou entidades de RAL de que dependem”. Essa informação deve ser prestada “de forma clara, compreensível e facilmente acessível no sítio web dos comerciantes, caso exista, e, se for caso disso, nos termos e nas condições gerais aplicáveis aos contratos de venda ou de serviços entre o comerciante e o consumidor”.

Descrevendo brevemente os factos relevantes, temos neste caso um profissional (cooperativa de crédito) que disponibiliza um site através do qual não é possível celebrar contratos. Esse profissional está vinculado a uma entidade de resolução alternativa de litígios de consumo e disponibiliza no site um documento com os “termos e condições”, que não contém essa informação.

Segundo o tribunal, o art. 13.º-2 da Diretiva “não limita a obrigação de informação nela prevista aos casos em que o comerciante celebra com os consumidores contratos por intermédio do seu sítio web”.

Acaba por concluir-se, assim, que as normas em causa devem ser interpretadas no sentido de que um profissional “que disponibiliza no seu sítio web os termos e condições gerais dos contratos de venda ou de serviços, mas que não celebra contratos com os consumidores por intermédio desse sítio, está obrigado a incluir nesses termos e condições gerais as informações relativas à entidade ou às entidades de resolução alternativa de litígios de que esse comerciante depende, quando este último se comprometa, ou seja obrigado, a recorrer a esta ou estas entidades para resolver os litígios com os consumidores. A este respeito, não é suficiente que o referido comerciante apresente essas informações noutros documentos acessíveis no referido sítio, ou noutros separadores desse sítio, ou preste ao consumidor as referidas informações, aquando da celebração do contrato sujeito aos referidos termos e condições gerais, através de um documento distinto destes últimos”.

O Processo C‑578/18 (acórdão de 23 de janeiro de 2020) aborda uma questão diversa: a interpretação do artigo 37.º da Diretiva 2009/72/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece regras comuns para o mercado interno da eletricidade, que trata as “obrigações e competências das entidades reguladoras”.

Neste caso, um cliente doméstico de eletricidade contactou a entidade reguladora finlandesa solicitando que esta verificasse o modo de faturação praticado pela empresa. A entidade reguladora considerou o procedimento legal. O cliente recorreu, então, para um tribunal administrativo, pedindo que lhe fosse reconhecido o estatuto de parte no processo e a anulação das decisões, pedidos que foram considerados procedentes. A entidade reguladora recorreu da decisão para o Supremo Tribunal Administrativo, invocando não poder ser atribuído ao cliente o estatuto de parte, com a consequência de não ter legitimidade para recorrer. O tribunal decidiu então suspender a instância e submeter várias questões ao TJUE.

O TJUE conclui que não se impõe aos Estados‑Membros “que atribuam à entidade reguladora a competência para resolver os litígios entre os clientes domésticos e os operadores de rede” nem que “concedam ao cliente doméstico que apresentou uma queixa à entidade reguladora contra um operador de rede a qualidade de «parte» (…) e o direito de interpor recurso da decisão tomada por essa autoridade na sequência dessa queixa”.

É interessante notar que o tribunal considera que “os Estados‑Membros podem atribuir a competência relativa à resolução extrajudicial de litígios entre os clientes domésticos e as empresas de eletricidade a uma autoridade distinta da entidade reguladora” (considerando 39), podendo “igualmente conferir essa competência à entidade reguladora” (considerando 40). Ora, no caso concreto, “o órgão nacional competente para tratar de uma queixa de um consumidor contra uma empresa de eletricidade é o kuluttajariitalautakunta (Comissão de Litígios de Consumo, Finlândia), perante o qual o queixoso tem o estatuto de parte” (considerando 41). Já a entidade reguladora trata de “pedidos de inquérito que lhe são dirigidos e que o estatuto do autor do pedido de inquérito não é o de parte, mas de informador, o que permite à entidade reguladora cumprir a sua obrigação de monitorização” (considerando 42).

Este caso é bastante revelador da distinção entre o procedimento administrativo, que visa a aplicação de sanções a profissionais infratores, e o procedimento de resolução alternativa de litígios, que visa regular a relação entre o cliente e o profissional.

Avaliação da solvabilidade do consumidor

Jurisprudência

Conforme prometido, regressamos hoje ao crédito ao consumo, com uma breve análise da decisão proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no Processo C‑679/18 (acórdão de 5 de março de 2020), que trata do dever de avaliação da solvabilidade do consumidor por parte do credor.

O tribunal é chamado a pronunciar-se, no essencial, sobre a questão de saber se podem ser estabelecidos limites no que respeita à invocação pelo consumidor do incumprimento do dever em causa e se o tribunal deve poder conhecer oficiosamente desse incumprimento.

Do ponto de vista do direito português, talvez o aspeto mais interessante consista em saber se a previsão apenas de uma sanção contraordenacional é suficiente para cumprir as obrigações resultantes do direito europeu. Lá chegaremos.

As normas relevantes para o caso são os arts. 8.º e 23.º da Diretiva 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2008, relativa a contratos de crédito aos consumidores. O art. 8.º-1 prevê que “os Estados-Membros devem assegurar que, antes da celebração do contrato de crédito, o mutuante avalie a solvabilidade do consumidor com base em informações suficientes, se for caso disso obtidas do consumidor e, se necessário, com base na consulta da base de dados relevante. Os Estados-Membros cuja legislação exija que os mutuantes avaliem a solvabilidade dos consumidores com base numa consulta da base de dados relevante podem reter esta disposição”. Segundo o art. 23.º, “os Estados-Membros devem determinar o regime das sanções aplicáveis à violação das disposições nacionais aprovadas em aplicação da presente diretiva e tomar todas as medidas necessárias para assegurar a aplicação das referidas disposições. As sanções assim previstas devem ser efetivas, proporcionadas e dissuasivas.

Segundo o TJUE, estas disposições “devem ser interpretados no sentido de que impõem que um órgão jurisdicional nacional examine oficiosamente a existência de uma violação da obrigação pré‑contratual do mutuante de avaliar a solvabilidade do consumidor”, extraindo “as consequências que decorrem, no direito nacional, de uma violação dessa obrigação”.

Conclui ainda o tribunal que o direito europeu se opõe “a um regime nacional nos termos do qual a violação, pelo mutuante, da sua obrigação pré‑contratual de avaliar a solvabilidade do consumidor só é punida com a nulidade do contrato de crédito, acompanhada da obrigação de esse consumidor reembolsar ao mutuante o montante principal, num prazo adequado à sua capacidade financeira, na condição de o referido consumidor suscitar essa nulidade, e isso num prazo de prescrição de três anos”.

No que respeita à sanção propriamente dita (“nulidade do contrato de crédito, acompanhada da obrigação de esse consumidor reembolsar ao mutuante o montante principal, num prazo adequado à sua capacidade financeira”), o TJUE parece considerar que ela é adequada e dissuasiva (considerando 30).

O problema identificado pelo tribunal está na exigência de que o consumidor suscite a nulidade. Como já vimos, esta deve ser de conhecimento oficioso. E não deve estar sujeita a um prazo fixo de arguição de três anos.

Uma questão muito interessante, do ponto de vista do direito português, é a relação desta sanção civil com a sanção administrativa, também prevista no direito checo. Como sabemos, no direito português apenas se estabelece uma sanção contraordenacional para o incumprimento do dever de avaliar a solvabilidade do consumidor (arts. 10.º e 30.º-1 da Lei n.º 133/2009, na redação vigente), não estando prevista qualquer sanção civil.

No considerando 37, depois de concluir que a sanção (civil) não é efetiva, defende o tribunal que “esta conclusão não pode ser posta em causa pelo argumento invocado pelo Governo checo, nas suas observações escritas, segundo o qual as disposições nacionais em matéria de supervisão prudencial das instituições de crédito também preveem uma sanção administrativa sob a forma de uma coima até 20 milhões de CZK (cerca de 783 000 euros), em caso de concessão de um crédito em violação da obrigação de avaliar a solvabilidade do consumidor”. No início do considerando 38 realça-se, ainda, a circunstância de a sanção nunca ter sido aplicada na República Checa.

Da segunda parte do considerando 38 resulta de forma bastante clara que a sanção contraordenacional poderá não ser suficiente, à luz do direito europeu. Vejamos: “essas sanções não são, por si sós, suscetíveis de assegurar de modo suficientemente eficaz a proteção dos consumidores contra os riscos de sobreendividamento e de insolvência, pretendida pela Diretiva 2008/48, na medida em que não se repercutem na situação de um consumidor com quem tenha sido celebrado um contrato de crédito em violação do artigo 8.º desta Diretiva”.

Impõe-se, portanto, a previsão de uma sanção civil, a qual não se encontra consagrada no direito português.