Os consumidores na Constituição: de 1989 em diante

Doutrina

aqui se escreveu recentemente sobre o papel dos consumidores e da sua proteção na versão originária da Constituição de 1976 e na primeira revisão constitucional. Hoje concluímos esta análise histórica, descrevendo brevemente a evolução posterior, resultante das revisões constitucionais subsequentes.

A Lei Constitucional n.º 1/89, que aprovou a segunda revisão da Constituição, completou o caminho que havia sido iniciado pela revisão anterior rumo à atribuição de direitos aos consumidores.

O art. 32.º desta Lei Constitucional aditou o art. 60.º, com a epígrafe “Direitos dos consumidores”, que correspondia aproximadamente ao anterior artigo 110.º, com a diferença do aditamento do “direito à qualidade dos bens e serviços consumidos”. A principal novidade consistia na localização privilegiada deste art. 60.º, na parte da Constituição da República Portuguesa dedicada aos direitos fundamentais, embora no título relativo aos direitos económicos, sociais e culturais. Pode, assim, dizer-se que, com a revisão de 1989, se deu a fundamentalização dos direitos dos consumidores.

Com relevância significativa para os consumidores, foi ainda aditado à Constituição um novo art. 102.º, que definiu os objetivos da política comercial, incluindo especificamente entre esses objetivos “a proteção dos consumidores” (alínea e)).

Esta revisão constitucional também alterou os arts. 35.º (que aborda a problemática da utilização da informática), 52.º (com a alteração da epígrafe para “Direito de petição e direito de ação popular”) e 81.º-e) (eliminando a expressão “através de nacionalizações ou outras formas”), renumerou o art. 84.º, que passou a art. 86.º, e eliminou os arts. 109.º e 110.º.

Quanto ao art. 52.º, a epígrafe foi alterada nas duas primeiras revisões constitucionais: na versão originária, era “Direito de petição e ação popular”; depois da primeira revisão, passou a “Direito de petição e de ação popular”; e, na sequência da segunda revisão, ficou “Direito de petição e direito de ação popular”, epígrafe que ainda se mantém. Note-se que se trata de uma valorização progressiva da ação popular. Na versão originária, não tinha, face à epígrafe, o caráter de direito, na versão da primeira revisão, passou a ter o caráter de direito, mas abrangido na categoria mais ampla do direito de petição e de ação popular (parece tratar-se de um direito apenas), enquanto, na segunda revisão, manteve-se como direito, mas já autonomizado do direito de petição. A norma atribui, assim, dois direitos: um direito de petição e um direito de ação popular. Esta conclusão já teria de resultar de uma interpretação adequada da versão originária, pelo que nos parece que se trata apenas de uma curiosidade linguística.

A terceira revisão constitucional, que procurou adaptar a Constituição da República Portuguesa à União Europeia, não produziu alterações diretas ao nível da posição dos consumidores.

A Lei Constitucional n.º 1/97 (quarta revisão constitucional), pelo contrário, procedeu a alterações pontuais mas relevantes no que respeita à temática em análise. A exceção é o artigo 35.º da Constituição, que sofreu uma profunda remodelação, certamente originada pela massificação da utilização da informática e a consequente multiplicação de situações de tratamento de dados dos cidadãos.

Além desta alteração, deve destacar-se a inclusão expressa dos direitos dos consumidores entre os bens jurídicos que podem ser objeto de uma ação popular em caso de infração – art. 52.º-3-a). Embora no texto anterior já se pudesse concluir que os direitos dos consumidores estavam abrangidos pelo espírito da norma, especialmente dado o caráter exemplificativo da lista de bens enunciada, a sua inserção na letra do preceito retirou qualquer dúvida que se pudesse colocar.

O n.º 3 do artigo 60.º também foi alterado, tendo sido acrescentada aquela que ainda hoje constitui a parte final do preceito: “sendo-lhes [às associações de consumidores e às cooperativas de consumo] reconhecida legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos”.

Igualmente relevante, embora simbolicamente, foi a alteração da redação da alínea j), que passou a constituir a alínea h) e a estabelecer como incumbência prioritária do Estado, já não a proteção do consumidor, mas a garantia da defesa dos interesses e dos direitos dos consumidores. Assim, o Estado passa a estar diretamente vinculado à defesa dos direitos dos consumidores.

Refira-se ainda que os arts. 86.º e 102.º passaram, respetivamente, a 85.º (cooperativas) e 99.º (objetivos da política comercial). Das quinta, sexta e sétima revisões constitucionais, apenas a sexta, aprovada pela Lei Constitucional n.º 1/2004, atingiu as normas referidas neste post e no anterior sobre o tema, embora com pouca profundidade: acrescentou a orientação sexual ao elenco dos fatores de discriminação previstos no n.º 2 do art. 13.º, veio admitir a apresentação de petições também a órgãos das regiões autónomas (art. 52.º-1 e 2) e alterou a numeração do art. 81.º, passando as alíneas e) e h) a f) e i), respetivamente.

Reconhecimento facial a quanto obrigas

Legislação

O Despacho n.º 2705/2021, de 11 de março do Gabinete Nacional de Segurança (GNS) vem tratar da “Identificação de pessoas físicas através de procedimentos de identificação à distância com recurso a sistemas biométricos automáticos de reconhecimento facial.”, assunto que é apresentado no “Sumário:”, sem bold, em tamanho de letra pequeno e com ponto final e, imediatamente a seguir, como título, em letra de tamanho grande, a bold e sem ponto final, o que, além de aparentar gaguez, indica que é coisa para continuar com algum desenvolvimento.

O que vem a seguir não desilude. Inicia com os enquadramentos, obrigatórios para evitar que o incauto cidadão seja levado a crer que se Despacha sem os devidos fundamentos programáticos, legais e, também, de Regulamento comunitário. Nestes termos se expõem: “O Programa do XXII Governo Constitucional identifica como um dos desafios estratégicos a promoção de incentivos da sociedade digital, da criatividade e da inovação, privilegiando a simplificação administrativa, o reforço e a melhoria dos serviços prestados digitalmente pelo Estado, o seu acesso e usabilidade, a par da desmaterialização de mais procedimentos administrativos.” e “O Regulamento (UE) N.º 910/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de julho de 2014, relativo à identificação eletrónica e aos serviços de confiança para as transações eletrónicas no mercado interno, veio considerar que: Criar confiança no ambiente em linha é fundamental para o desenvolvimento económico e social.”. É, ainda, indicado que a execução na ordem jurídica interna foi assegurada pelo Decreto–Lei n.º 12/2021, de 9 de fevereiro.

É, pois, por isso que o GNS, designado pelo acima referido Regulamento, vem “definir requisitos e instruções, relativamente à possibilidade dos prestadores qualificados de serviços de confiança adotarem formas de identificação não presencial, com garantias equivalentes, em termos de confiança, à da presença física”, possibilitando a “identificação por sistemas biométricos automáticos de reconhecimento facial”.

Os requisitos são apertados. A pessoa que está, em tempo real, a efetuar o pedido de reconhecimento tem de começar por mostrar que é titular do documento de identificação após o que, com consistência suficiente para convencer os sistemas de deteção, precisa de mostrar que está viva. Será ainda necessária demonstração de que “o documento de identificação apresentado é autêntico” e aí vai ser determinante conseguir convencer o sistema “de inteligência artificial e de deep learning”, que já se sabe é o mais difícil de iludir e que(m) decide.

Como usual, e já praticamente imprescindível em qualquer diploma que estabeleça normas, são apresentadas definições, neste caso no n.º 1 do Anexo A.

Destacam-se, porque merecem, as seguintes:

– “Sujeito biométrico. É uma pessoa que se submete a um processo de captura biométrica.”

– “Impostor biométrico. É um sujeito biométrico subversivo, que desenvolve ataques biométricos.”.

– “Prova de vida. Representa o estado de “estar vivo”, em tempo real. É evidenciado por características anatómicas, reações involuntárias e voluntárias, funções fisiológicas ou comportamentos.”.

É, ainda, definido “Deep learning (como) um ramo da inteligência artificial (AI), assente em sistemas/redes com capacidade de aprender com os dados, identificar padrões e tomar decisões com o mínimo de intervenção humana.”. Realce-se a ideia de “tomar decisões”, sem ser muito empatada pelo humano.

No n.º 4 do mesmo anexo vem o “Modelo funcional”, informando o Despacho que: “Este capítulo apresenta, sob o ponto de vista funcional, o sistema biométrico automático de reconhecimento facial (sBIO), de modo a poder ser facilmente identificado o âmbito, os componentes e as diversas atividades desenvolvidas por cada um destes componentes/subsistemas.”. Neste ponto não pode deixar de ser sublinhada a expressão “facilmente”, tanto no contexto do próprio parágrafo introdutório em que se insere, como depois da leitura do tal modelo funcional, que se lhe segue.

O n.º 5 apresenta os requisitos gerais estabelecendo que “Para os efeitos previstos neste documento, considera-se que a entidade que se submete ao processo de identificação, é uma pessoa física e passa a ser designada de subscritor, a entidade que verifica a identidade do subscritor, é um prestador qualificado de serviços de confiança, designada de QTSP. Quando (no original “Quanto”) um subscritor, demonstra com sucesso, a existência, posse ou controlo de mais que um mecanismo de autenticação requeridos pelo QTSP para validar a sua identidade, passa a ser designado por titular.”

Acaba, por fim e para nosso alívio, com um Anexo B, relativo à “Certificação dos sistemas biométricos automáticos de reconhecimento facial”.

Assina o Diretor-Geral do GNS, aparecendo após o nome, “CALM”. Não é, como à primeira vista se poderia pensar, um incentivo final a que o sujeito biométrico subscritor que, vivo e de cartão na mão, se sujeita a um QTSP, mantenha a calma durante o processo.

Em face de tal regulamentação parece, pois, que o reconhecimento facial vai ser reconhecido pelo Estado, como modo de identificar cidadãos, cumpridores dos requisitos do Despacho.

Na rua, um jovem aproxima o seu smartphone do rosto para o desbloquear, enquanto o amigo usa a impressão digital para desbloquear o seu. Sendo necessário confirmar os ingredientes da pizza, o primeiro diz ao seu dispositivo móvel “liga ao Manuel” e o aparelho, reconhecendo a voz, faz a ligação. No take-away a que a pandemia obriga, o segundo paga com o cartão que obteve registando-se com um documento de identificação e reconhecimento facial. Pelo caminho testam o desbloqueamento do telemóvel com a íris, funcionalidade que ainda não tinham experimentado e que funciona muito bem, o que os diverte. Sentem-se bastante confiantes, provavelmente demais, no ambiente em linha onde usualmente habitam e onde, com o confinamento, têm quase toda a sua vida.

Não sabem que, desde sexta feira, passaram a ser um sujeito biométrico e que, daqui a algum tempo, aquele que o Estado demorar a implementar o Direito, do Regulamento comunitário ao Despacho, se quiserem um reconhecimento facial a valer, vão ter de apresentar cartão e, em tempo real, fazer prova de que estão vivos a um QTSP.

A iliteracia financeira enquanto vulnerabilidade dos consumidores

Doutrina

Nas últimas semanas, tem tido destaque o tema da iliteracia financeira explorada como oportunidade de negócio, em termos que podem não ser os mais favoráveis para o consumidor.

A prática de comercialização de cursos sobre a monetarização dos mercados financeiros, à semelhança da comercialização de dicas de investimento, com promessas de um enriquecimento rápido, tem-se vindo a verificar há já algum tempo, afetando em grande escala as camadas mais jovens.

No fundo, um dos elementos-chave destes modelos de negócio está nas fortes técnicas de persuasão empregues na divulgação de cursos ou mesmo dicas de investimento, que levam muitas vezes os jovens a acreditar que, ao pagarem o respetivo preço, terão uma espécie de acesso automático ao estilo de vida luxuoso, despreocupado e livre de responsabilidades que os influenciadores digitais responsáveis pela divulgação dos materiais ilustram nas suas redes.

Por um lado, quanto ao comportamento dos influenciadores digitais em geral, é certo que por vezes a publicidade desenvolvida através das redes sociais desrespeita em larga escala os princípios resultantes do Código da Publicidade.

Neste contexto, cabe relembrar que tais princípios serão de aplicar também no universo digital, devendo assim, a título de exemplo, toda a mensagem publicitária ser devidamente identificada enquanto tal, obrigação que decorre do princípio da identificabilidade.

Por outro lado, no âmbito das estratégias de divulgação utilizadas em sede das plataformas digitais frequentadas por utilizadores de todas as idades, importa mencionar o princípio da veracidade, conforme disposto no art. 10.º do Código da Publicidade, que impõe como regra que a publicidade respeite a verdade, não deformando os factos.

Por outro lado, a propósito da publicidade especificamente feita a cursos, dispõe ainda o Código da Publicidade, no seu art. 22.º, que a mensagem publicitária deve indicar a natureza dos cursos, bem como a expressão “sem reconhecimento oficial” sempre que este não tenha sido atribuído pelas entidades oficiais competentes.

Numa perspetiva de direito criminal, será pertinente referir os crimes de burla, burla qualificada e usura. Nesse sentido, cabe relembrar que, para que determinada conduta seja qualificável enquanto crime, é necessário que o agente cometa um facto típico, ilícito, culposo e punível.

De acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 663/98, de 25 de novembro de 1998, proferido no processo n.º 235/98, e relatado pelo Cons. Sousa e Brito, “a burla, a extorsão e a usura, caracterizam-se por o prejuízo ser causado pela própria vítima através da provocação ou exploração ilícitas pelo agente de um vício da vontade: o erro na burla, a coação na extorsão, a situação de necessidade na usura. (…) São necessárias circunstâncias adicionais que tornam socialmente tão grave a culpa do incumprimento que se torna necessária a intervenção do direito penal.”

Nomeadamente, no que ao crime de burla diz respeito (cf. art 217.º do Código Penal), trata-se de um crime semipúblico, pelo que o procedimento criminal depende de queixa. Ademais, em relação à conduta típica, são três os elementos a considerar: a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; que tal enriquecimento seja obtido por meio de erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados pelo agente; e que tais factos provocados pelo agente determinem outrem à prática de atos que lhe causem, a si ou a terceiro, um prejuízo patrimonial. No fundo, para que o tipo de crime se preencha, será necessário que haja um nexo de causalidade forte entre o prejuízo patrimonial do ofendido e o enriquecimento do agente.

Por outro lado, provando-se que o agente pratica o crime de burla como modo de vida (não tendo para tal que se dedicar de forma exclusiva à prática do ato em questão, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 16/06/2015 e relatado por Inácio Monteiro), ou mesmo que o agente, aquando da prática do ilícito, se aproveitou de situação de especial vulnerabilidade da vítima, nomeadamente em razão de idade, poderemos estar em face de um crime de burla qualificada, no âmbito do qual a moldura penal pode ir até aos oito anos. Neste caso, estamos perante um crime público, que como tal poderá ser investigado e submetido a julgamento pelo Ministério Público, mesmo sem ou contra a vontade do ofendido.

Ademais, cabe relembrar que o Código Penal prevê ainda o tipo de crime de usura, no seu art. 226.º, de acordo com o qual é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor, ou relação de dependência deste, prometa, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstancias do caso, manifestamente desproporcionada com a contraprestação. Neste caso, a intervenção do direito de ultima ratio deriva da necessidade de prevenção da exploração económica de um sujeito que se encontra numa situação de especial vulnerabilidade, sendo levado a acreditar pelo agente da prática do crime que será o negócio usurário que o levará a ultrapassar o seu estado de fragilidade.

Em suma, dúvidas não restam quanto ao facto de a iliteracia financeira ser uma questão bastante séria e capaz de influenciar em larga escala as decisões de contratar dos consumidores, especialmente nos casos em que estes não estão munidos de todas as informações necessárias para uma escolha informada.

Os consumidores na versão originária da Constituição de 1976 e a primeira revisão constitucional

Doutrina

A Constituição da República Portuguesa contém, na sua versão atual, sete referências a consumidores, uma no art. 52.º-3, quatro no art. 60.º, que tem exatamente por epígrafe “Direitos dos consumidores”, uma na alínea i) do art. 81.º e a última no art. 99.º-e). As referências a consumo são quatro, uma no já referido art. 60.º e as outras três no art. 104.º-4, que trata de impostos e, em especial, dos impostos sobre o consumo.

No entanto, deve assinalar-se que a problemática da proteção e dos direitos dos consumidores foi objeto de alterações muito significativas desde o texto originário que entrou em vigor no dia 25 de Abril de 1976. Impõe-se, assim, uma análise cuidada desta evolução.

No texto originário, apenas existia uma referência expressa a consumidor, na alínea m) do art. 81.º, a qual inseria a proteção do “consumidor, designadamente através do apoio à criação de cooperativas e de associações de consumidores”, entre as incumbências prioritárias do Estado. A proteção do consumidor surgia assim apenas como um dos aspetos que o Estado deveria ter preferencialmente em conta ao nível da organização económico-social do país, a par, por exemplo, do desenvolvimento das relações económicas com todos os povos ou da realização da reforma agrária. Outra incumbência prioritária do Estado, prevista na alínea g) do mesmo artigo, consistia em “eliminar e impedir a formação de monopólios privados, através de nacionalizações ou de outras formas, bem como reprimir os abusos do poder económico e todas as práticas lesivas do interesse geral”. Embora se trate de uma questão eminentemente de concorrência entre empresas, o interesse dos consumidores também está indiretamente presente no espírito desta disposição. Como se pode observar, a proteção dos consumidores não era diretamente assegurada pelo texto constitucional, muito menos se vislumbrando a existência de direitos especial ou exclusivamente afetos a estes.

Tal como a última norma referida, outros preceitos do diploma tratavam já de problemáticas que, indiretamente (ou não exclusivamente), tinham alguma relação com a proteção dos consumidores. Assim, pode assinalar-se a relevância de vários preceitos: o art. 13.º consagrava o princípio da igualdade e ainda hoje mantém, no essencial, o seu conteúdo; o art. 34.º-1 estabelecia, e ainda estabelece, que “o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”, norma a que se apela em matéria de publicidade; o art. 35.º regulava – e ainda regula, embora com alterações significativas – a utilização da informática, questão fulcral no que respeita à proteção de dados pessoais; o art. 46.º, regulando, em geral, a liberdade de associação, também se aplicava e ainda aplica às associações de consumidores; o art. 49.º tinha por epígrafe “Direito de petição e ação popular”, embora ainda não se fizesse referência direta aos direitos dos consumidores, como acontece hoje no art. 52.º; o art. 65.º incumbia e ainda incumbe o Estado de “estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar”; o art. 84.º estabelecia que “o Estado deve fomentar a criação e a atividade de cooperativas, designadamente de […] consumo”; o art. 109.º era bastante relevante no que concerne à proteção dos consumidores, uma vez que atribuía ao Estado um papel na formação e no controlo dos preços (n.º 1) e proibia a publicidade dolosa (n.º 2); por fim, o art. 110.º-2 incumbia o Estado de “disciplinar e vigiar a qualidade e os preços das mercadorias importadas e exportadas”.

Assim, pode concluir-se que o texto originário da nossa lei fundamental, embora não incluísse os consumidores entre os sujeitos merecedores de uma proteção especial efetiva como parte com menor poder negocial no mercado, tinha claras preocupações sociais, que se refletiram num documento com capacidade suficiente para que as necessidades que se vieram a sentir pudessem ser materializadas em legislação ordinária. Com efeito, a primeira lei de proteção dos consumidores (Lei n.º 29/81, de 22 de agosto) foi publicada ainda antes da primeira revisão constitucional.

A Lei Constitucional n.º 1/82 aprovou a primeira revisão da Constituição, tendo introduzido expressamente na lei fundamental alguns direitos dos consumidores. A proteção dos consumidores deixou de constituir um mero objetivo que deveria ser prosseguido pelo Estado na medida do possível entre outros aspetos da política económica, passando mesmo a estar previstos alguns direitos que teriam de ser assegurados pelo Estado independentemente da política económica seguida. A principal alteração pode ser encontrada no art. 90.º da Lei Constitucional n.º 1/82, que aditou um novo art. 110.º, estruturalmente próximo do atual art. 60.º. Deve notar-se, no entanto, que este preceito estava ainda inserido na parte da Constituição que se ocupava da organização económica e não na que regulava os direitos fundamentais.

Também a alínea m) do artigo 81.º, que passou a constituir a alínea j), sofreu uma alteração, simbolicamente relevante, referindo-se simplesmente à proteção do consumidor como incumbência prioritária do Estado. Retirou-se, assim, a expressão “designadamente através do apoio à criação de cooperativas e de associações de consumidores”, que parecia indiciar serem estas as principais preocupações que o Estado deveria ter nesta matéria.

Para além destes aspetos, claramente os mais relevantes, a revisão de 1982 procedeu à alteração dos arts. 35.º (que trata da utilização da informática), 49.º (que passou a art. 52.º e mudou de epígrafe para “Direito de petição e de ação popular”), 84.º e 109.º. No art. 84.º abandonou-se a referência expressa às cooperativas de consumo e o art. 109.º foi aprofundado, passando a estabelecer que “o Estado intervém na racionalização dos circuitos de distribuição e na formação e no controlo dos preços, a fim de combater atividades especulativas, evitar práticas comerciais restritivas e os seus reflexos sobre os preços, e adequar a evolução dos preços dos bens essenciais aos objetivos da política económica e social”. A alínea g) do art. 81.º não viu a sua redação ser alterada, mas passou a constituir a alínea e).

A Importância dos Deveres de Adequação na Atividade de Intermediação de Crédito

Legislação

A alínea c) do n.º 1 do art. 66.º do Decreto-Lei n.º 81-C/2017 estabelece que, “além da observância dos deveres de diligência, lealdade, discrição e respeito consciencioso pelos direitos e interesses dos consumidores, os mutuantes e os intermediários de crédito, quando prestem serviços de consultoria, devem, em especial: avaliar a adequação dos contratos de crédito considerados para efeitos da emissão de recomendações à situação pessoal e financeira, objetivos, necessidades e preferências do consumidor, tendo por base informação atualizada e tendo em conta pressupostos razoáveis sobre os riscos para a situação do consumidor ao longo da vigência do contrato proposto”.

Significa isto que os intermediários de crédito, aquando da prestação de serviços de consultoria, devem cumprir zelosamente o dever de adequação ([1]). O intermediário de crédito tem o dever de realizar um “teste de adequação” adaptado ao perfil do cliente. Para a realização deste teste, deve o intermediário de crédito solicitar ao cliente uma informação detalhada sobre os seus conhecimentos quanto ao crédito que quer contratar. O dever de adequação está ligado ao investimento de confiança que é feito pelo cliente na posição profissional do intermediário de crédito ou na relação contratual que entre ambos foi firmada. Este dever encontra-se bastante desenvolvido no regime da intermediação financeira ([2]).

À semelhança do que acontece no regime do Código dos Valores Mobiliários, o dever de adequação não pode ser concretizado sem antes ser cumprido, por parte do intermediário de crédito, o dever de recolha da informação que respeita ao cliente. Esta recolha de informação poderá ser realizada através de questionários dirigidos aos clientes, de forma a obter uma informação tendo em conta os conhecimentos e experiências destes. Esta informação tem de ser, no mínimo, suficiente para avaliar se o cliente compreende os riscos envolvidos na operação de crédito.

O intermediário de crédito deve apurar detalhadamente a situação financeira do cliente, averiguando se o mesmo tem capacidade patrimonial e a liquidez suficiente para cumprir com o disposto no contrato. O intermediário de crédito deve assim obter todas as informações que ache necessárias para que possa compreender os factos essenciais relacionados com o cliente. Essa recolha de informação passa também pelos dados pessoais do cliente, nomeadamente, a sua idade, o seu estado civil, a sua situação familiar, bem como a situação laboral em que se encontra. Nestes termos, o dever de adequação encontra-se interligado com o dever de conhecimento do cliente (know your client).

Embora o grau de exigência e a extensão do dever de adequação sejam muito superiores no regime de intermediação financeira, do qual decorrem, em virtude dos riscos inerentes aos investimentos, o dever de adequação não deixa de ter de ser rigorosamente cumprido pelos profissionais que exercem as funções de intermediários de crédito.

A alínea p) do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 81-C/2017 dispõe que os serviços de consultoria consistem na “emissão de recomendações dirigidas especificamente a um consumidor sobre uma ou mais operações relativas a contratos de crédito, enquanto atividade separada da concessão de crédito e da atividade de intermediário de crédito”.

No caso de o intermediário de crédito não obter a informação necessária para a avaliação da adequação do serviço ou operação em causa ou se considerar que não é adequado, não pode realizar ou recomendar o referido serviço ou operação ao cliente. Se o fizer, poderá incorrer em responsabilidade civil.

Refira-se que uma das exigências para a concessão de autorização para o exercício da atividade de intermediação de crédito depende da subscrição de um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional. Este contrato de seguro deve, nos termos do n.º 2 do art. 15.º do Decreto-Lei n.º 81-C/2017, abranger os territórios em que se pretende exercer a atividade, cobrir as responsabilidades resultantes de negligência profissional e observar os montantes mínimos, por sinistro e por anuidade, estabelecidos pelo art. 29.º da Diretiva n.º 2014/17/UE.

Como podemos ver, o cumprimento dos deveres de adequação aquando do exercício da atividade de intermediação de crédito assume uma particular relevância.

([1]) Sobre o dever de adequação no regime da intermediação financeira vide André Alfar Rodrigues, Deveres e Responsabilidade dos Intermediários Financeiros, Almedina, 2020, p. 71 a 92.

([2]) O regime do dever de adequação encontra-se previsto nos artigos 314.º e 314.º-A do CVM e nos artigos 54.º e seguintes do Regulamento Delegado 2017/565. O dever de adequação encontra-se previsto no artigo 25.º da Diretiva 2014/65/UE (DMIF II), que, entretanto, foi transposta para o ordenamento jurídico português.

O Adpocalypse do YouTube e o Recurso ao Patreon como Prática Comercial Desleal

Doutrina

O YouTube é uma plataforma online que permite a publicação e a visualização de conteúdos digitais em formato de vídeo. A plataforma funciona como um intermediário entre o criador de conteúdos e o utilizador, possibilitando-lhe a subscrição gratuita de canais geridos pelos criadores de conteúdos.

Esta plataforma baseia a sua atividade comercial na apresentação de anúncios publicitários antes, durante e após a visualização de qualquer vídeo publicado no seu servidor. Como mecanismo de incentivo à criação de conteúdos, o YouTube instituiu um mecanismo de remuneração aos criadores de conteúdos digitais, baseado num algoritmo que gera um valor baseado no tráfego gerado por esse mesmo conteúdo, utilizando critérios como o número de visualizações, número de minutos visualizados por utilizador individual, número de subscrições do canal, origem geográfica das visualizações, número de cliques em anúncios publicitários, entre outros.

Este sistema de remuneração, associado à grande popularidade da plataforma, permitiu uma verdadeira profissionalização destes criadores de conteúdos digitais, na medida em que muitos obtêm a sua única ou principal fonte de receita através da remuneração auferida pelos seus canais, o que leva, inúmeras vezes, inclusive à constituição de pessoas coletivas e marcas registadas, empregando trabalhadores precisamente para o desenvolvimento destes conteúdos digitais com vista à obtenção de lucro.

Em 2017, no seguimento da publicação, por parte de alguns dos principais criadores, de vídeos cujo conteúdo foi designado controverso, muitos agentes publicitários boicotaram a plataforma, retirando milhões de euros destinados à publicação de anúncios publicitários, naquilo que ficou vulgarmente conhecido como o “Adpocalypse”.

Este fenómeno, com graves consequências nas receitas da plataforma, levou a uma alteração das políticas de remuneração aplicadas pelo YouTube aos criadores de conteúdos, incluindo a implementação de critérios de elegibilidade para a monetização dos conteúdos publicados, o que se traduziu numa total exclusão remuneratória dos canais que não sejam considerados “family-friendly” ou “ad-friendly”, com o objetivo de voltar a atrair os grandes agentes publicitários que cortaram relações comerciais com a plataforma.

Face à elevada ou total perda de rendimento, muitos destes criadores de conteúdos reagiram com a criação e venda de merchandising associado ao seu canal e ainda com o recurso a plataformas externas ao YouTube, como é exemplo o Patreon, que permite a assinatura de uma subscrição mensal paga com acesso exclusivo a ofertas e a conteúdos adicionais publicados por esses mesmos criadores de conteúdos.

Toda esta conjuntura originou a frequente inclusão de mensagens, seja de forma escrita ou no próprio conteúdo dos vídeos, que revelam que a continuidade e subsistência do canal no YouTube não é possível sem o apoio dos utilizadores, sendo depois sugerida ou mesmo expressamente solicitada a assinatura de uma subscrição paga através da plataforma Patreon e/ou a compra do merchandising associado à marca e canal do criador de conteúdos.

Em virtude do caráter profissional destes criadores e canais de YouTube, é necessário analisar o conteúdo destas comunicações comerciais incluídas nos vídeos sob o prisma do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março[1], que estabelece o regime aplicável às práticas comerciais desleais (RPCD) das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante ou após uma transação comercial relativa a um bem ou serviço, e cuja alínea g) do seu artigo 12.º determina ser considerada agressiva, em qualquer circunstância, a prática comercial em que se informe explicitamente o consumidor de que a sua recusa em comprar o bem ou contratar a prestação do serviço põe em perigo o emprego ou a subsistência do profissional.

Nestes termos, não sendo desleal a mera referência ou até mesmo o simples incentivo à subscrição do serviço pago na plataforma Patreon, o facto de ser expressamente comunicado aos utilizadores do YouTube que a continuidade e subsistência do canal dependem da subscrição paga na plataforma Patreon ou da compra de merchandising implica, não importa em que circunstâncias, que essa comunicação seja considerada desleal e, consequentemente, que os contratos celebrados nessa sequência sejam anuláveis a pedido do consumidor pelo prazo de um ano, nos termos do artigo 287.º do Código Civil, conforme dispõe o artigo 14.º do RPCD.

Importa ainda referir que, não obstante ser admissível a publicidade a esses produtos, atendendo que um número significativo de canais tem como público alvo utilizadores menores de idade, é também, de acordo com a alínea e) do artigo 12.º, considerada desleal em qualquer circunstância a prática comercial em que se exerça uma exortação direta às crianças no sentido de comprarem ou convencerem os pais ou outros adultos a comprar-lhes os bens ou serviços anunciados, aplicando-se igualmente a estes casos o regime da anulabilidade anteriormente exposto.

As plataformas YouTube e Patreon não poderão, em princípio, ser responsabilizadas, na medida em que o Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de janeiro[2], na redação vigente, estabelece no seu artigo 16.º, n.º 1, que o prestador intermediário do serviço de armazenagem em servidor[3] só é responsável pela informação que armazena se tiver conhecimento de atividade ou informação cuja ilicitude for manifesta e não retirar ou impossibilitar logo o acesso a essa informação. Acresce que estas obrigações surgem apenas quando a plataforma tem conhecimento da existência da ilicitude e, nos termos do artigo 12.º, estas plataformas não estão sujeitas a uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que transmitem ou armazenam ou de investigação de eventuais ilícitos praticados no seu âmbito, problemática que já foi discutida neste blog.

Deste modo, verificando-se que a atuação de ambas as plataformas no armazenamento e transmissão dos conteúdos reveste um caráter puramente técnico, automático e de natureza passiva, ou seja, que não assume qualquer interferência no conteúdo, modo de apresentação, disponibilidade e organização dos conteúdos publicados, apenas poderão ser responsabilizados os criadores de conteúdos.

Do ponto de vista contraordenacional, os criadores de conteúdos digitais ficam sujeitos à aplicação de coimas pela prática das referidas infrações que, à data, são puníveis no montante de 250€ a 3740,98€ se o infrator for pessoa singular, e de 3000€ a 44891,81€ se o infrator for pessoa coletiva.

Após a entrada em vigor do novo Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro[4], as mencionadas práticas comerciais desleais passam a constituir contraordenação económica grave nos termos do 88.º do DL, que procede à alteração do artigo 21.º do RPCD, puníveis com coima de 650€ a 1500€ se o infrator for pessoa singular e, se o infrator for pessoa coletiva, punível de acordo com os critérios gerais definidos pela alínea b) do artigo 18.º do RJCE, consoante se trate de micro, pequena, média ou grande empresa, cuja classificação é definida pelo artigo 19.º.

Ora, tendo em conta que a esmagadora maioria dos criadores de conteúdos do YouTube são pessoas singulares ou microempresas[5], sujeitos a coimas máximas de, respetivamente, 1500€ e 3000€, e que o lucro gerado por esses canais pode ascender a várias dezenas de milhares de euros ou, em não raros casos, às centenas de milhar ou mesmo aos milhões de euros por ano, facilmente concluímos que os montantes máximos previstos para estas infrações são manifestamente insuficientes para dissuadir a ocorrência destas práticas comerciais desleais, revelando-se, paradoxalmente, menos eficaz contra os canais que possuem maiores audiências e, consequentemente, um maior potencial para ferir e colocar em causa os interesses económicos e direitos do consumidor.

Deste modo, urge uma alteração aos montantes máximos das coimas previstas pelo RJCE, até porque, conforme já referido neste blog, estes limites não vão ao encontro do previsto na Diretiva (UE) 2019/2161, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019, que altera, entre outras, a Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais, nomeadamente, que “os Estados-Membros asseguram que [… as] sanções contemplam a possibilidade de aplicar coimas por meio de procedimentos administrativos ou de intentar uma ação judicial para a aplicação de coimas, ou ambas, sendo o montante máximo dessas coimas de, pelo menos, 4% do volume de negócios anual do profissional no(s) Estado(s)-Membro(s) em causa”[6].

 

[1] Alterado pelo Decreto-Lei n.º 205/2015, de 23 de setembro.

[2] Transpõe para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2000/31/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno.

[3] Definido pelo artigo 4.º, n.º 5, como os que prestam serviços técnicos para o acesso, disponibilização e utilização de informações ou serviços em linha independentes da geração da própria informação ou serviço.

[4] Nos termos do seu artigo 183.º, o regime entra em vigor 180 dias após a sua publicação.

[5] Nos termos do artigo 19.º, n.º 1, al. a) do RJCE, as pessoas coletivas são classificadas como microempresa quando empreguem menos de 10 trabalhadores.

[6] Sobre este tema, cf. Eduardo Freitas, “Os Sistemas de Avaliações Online: Proteção do Consumidor nos Mercados de Comércio Eletrónico, in Anuário do NOVA Consumer Lab, Ano 1 – 2019, pp. 187-190.

Proteção dos Consumidores e Intermediários de Crédito – Em especial, deveres de lealdade e de conhecimento do cliente

Legislação

A pandemia de COVID-19 trouxe consigo uma crise sem paralelo nas economias mundiais. Face ao sucedido, tem existido um aumento significativo de recurso ao crédito, sendo esta a única solução de muitas famílias para garantirem a sua subsistência e a dos seus negócios. A este propósito, fazemos aqui uma breve ponderação dos deveres dos intermediários de crédito face aos seus clientes.

O intermediário de crédito é um profissional dotado de conhecimentos aprofundados sobre contratos de crédito, pelo que se encontra numa posição de vantagem relativamente aos conhecimentos do consumidor que irá contrair o crédito. O consumidor carece, assim, de uma maior proteção jurídica. Os mecanismos de proteção dos consumidores promovem uma maior confiança nas instituições de crédito e, principalmente, em todo o sistema financeiro.

Em Portugal, o diploma que rege a atividade dos intermediários de crédito é o Decreto-Lei n.º 81-C/2017, de 7 de julho, que procedeu à transposição da Diretiva n.º 2014/17/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de fevereiro de 2014. No presente regime são fixadas as condições que as pessoas singulares e as pessoas coletivas devem reunir para exercer essa atividade. A lei aplica-se ao crédito ao consumo e ao crédito hipotecário.

Defendo que, à semelhança do Código dos Valores Mobiliários, o regime jurídico dos intermediários de crédito deveria elencar, de forma expressa, os deveres a que estes se encontram adstritos. Os intermediários têm diversos deveres perante os seus clientes. Neste texto, retrato em especial, dois desses deveres: o dever de lealdade e o dever de conhecimento do cliente.

Em primeiro lugar, o dever de lealdade é um dever que se consubstancia na imposição aos intermediários de uma atuação de forma honesta, equitativa e profissional, em função dos principais interesses do cliente. Ou seja, os intermediários de crédito não só têm o dever de orientar a sua conduta em função dos legítimos interesses dos seus clientes, como têm o dever de os informar e alertar para os riscos das suas escolhas.

Resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 81-C/2017, que a atividade dos intermediários de crédito é limitada à “apresentação ou proposta de contratos de crédito a consumidores, na assistência em matérias relacionadas com produtos de crédito ou na celebração de contratos de crédito em representação das instituições mutuantes”. A razão de ser desta limitação prende-se com a tentativa de evitar conflitos de interesses dos clientes e dos próprios intermediários de crédito. Esta proteção é uma concretização do dever de lealdade.

Outro dever que decorre das funções dos intermediários de crédito é o dever de conhecimento do cliente. Este dever tem semelhanças com o disposto no art. 304.º, n.º 3, do Código dos Valores Mobiliários, do qual decorre a exigência do cumprimento do princípio do conhecimento da situação financeira e experiência do cliente (know your customer). O intermediário de crédito tem o dever de recolher, de forma ativa, a informação necessária sobre o cliente de forma a conseguir apurar se o crédito é efetivamente adequado às pretensões deste. O objetivo primordial deste dever é o de favorecer decisões informadas no âmbito dos contratos de crédito.

Este dever não pode ser plenamente concretizado se não existir uma correta transmissão de informação por parte do intermediário de crédito ao cliente, pelo que existe um acrescido dever de prestação de informação. E, aqui, socorremo-nos de novo do critério adotado pelo art. 7.º do Código dos Valores Mobiliários, na medida em que a informação transmitida deve ser completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita. Recai sobre o intermediário de crédito o dever de explicitar os riscos associados à operação de crédito.

Desta forma, é possível verificar a importância que revestem os deveres a que os intermediários de crédito se encontram sujeitos. No entanto, critica-se a decisão do legislador em não incluir de forma expressa a consagração do dever de conhecimento do cliente no Decreto-Lei n.º 81-C/2017.

Contratos II, de Carlos Ferreira de Almeida, tem uma nova edição

Recensão

No início deste mês, o Professor Carlos Ferreira de Almeida deixou-nos e com a sua partida ficámos todos mais pobres, não só do ponto de vista do relacionamento pessoal, mas também como juristas, como cidadãos, como pessoas que estudamos a vida e a sociedade.

Poucos dias depois do seu falecimento, foi publicada pela Almedina a 5.ª edição da obra Contratos II, dedicada ao conteúdo do contrato, em geral, e aos contratos de troca, em particular. Esta edição foi finalizada muito recentemente, com prefácio datado de dezembro de 2020. Tem várias novidades muito relevantes, demonstrando como o Professor estava sempre atualizado, sendo inovador e desafiante nos seus escritos. Tal como, aliás, nas conversas que nunca deixava para depois.

Destaco aqui as novas páginas dedicadas à Convenção de Viena (matéria consideravelmente ampliada), às Diretivas 2019/770 (conteúdos e serviços digitais) e 2019/771 (venda de bens de consumo) e às cripto“moedas” (mantendo a grafia utilizada pelo Autor).

A Convenção de Viena de 1980 sobre contratos para a compra e venda internacional de mercadorias, a que Portugal recentemente aderiu, como aqui demos conta, constitui um instrumento legislativo com grande relevância, não apenas pela sua aplicação prática significativa, mas também por se tratar de uma fonte inspiradora de legislação a nível interno e internacional.

O Professor salienta (p. 133) que, “em 2020, Portugal aderiu (finalmente) à Convenção de Viena”, o que revela como esta adesão era desejada há muito, não só pelo Professor, mas por uma parte significativa da doutrina[1].

Em conferência sobre o tema, realizada em novembro na NOVA School of Law, que pode ser vista aqui e aqui, o Professor assinalava como, atualmente, a Convenção se encontrava já algo desatualizada em matéria de formação do contrato, entre outros aspetos não admitindo a proposta ao público e a relevância contratual da publicidade, mas ainda muito moderna no que respeita às regras relativas ao incumprimento, em especial com a adoção do conceito de conformidade.

Relativamente às Diretivas 2019/770 e 2019/771, as referências surgem ao longo da obra, o que revela que não se trata apenas de um acrescento pontual, demonstrando a ponderação relativa ao assunto.

O Professor salienta (p. 81) que “a diferença do campo de aplicação destas duas diretivas faz-se pela natureza do objeto e não pelo tipo contratual, pelo que a Diretiva 2019/770 é aplicável a contratos de compra e venda, de permuta, de empreitada, de prestação de serviço, de licença e de acesso a redes (…), desde que tenham como objeto conteúdos ou serviços digitais fornecidos a consumidores”.

Salienta ainda o Professor (p. 82) que as Diretivas “ampliaram o âmbito da conformidade para além da prestação do objeto principal, mencionando também a embalagem, os acessórios, as instruções de instalação e de funcionamento e as atualizações do produto, que tenham sido estipuladas ou que o consumidor possa razoavelmente esperar, e esclareceram que a conformidade inclui a compatibilidade e a interoperabilidade com o hardware ou o software normalmente usados por bens do mesmo tipo”.

A propósito dos contratos de troca sem preço (pp. 124 e segs.), o Professor assinala que estes reapareceram em operações sofisticadas, entre as quais a troca de conteúdos ou serviços digitais por dados pessoais.

Em sede de subtipos da compra e venda, salienta o Professor (p. 134) que “o contrato de compra e venda pode ter por efeito a transmissão da generalidade dos direitos, designadamente (…) direitos sobre conteúdos digitais, relativos, por exemplo, a um programa informático ou a outro software ou incorporados em suporte físico, desde que haja transmissão do direito para o adquirente, por direito ao uso exclusivo sem limite de tempo ou à entrega do suporte”.

Já em sede de contratos de troca para o uso de coisa incorpórea, é aberto um ponto relativo a “licença de bens informáticos”, salientando o Professor (pp. 222 e 223) que “os contratos que conferem o direito ao uso de programas de computador, de bases de dados e de outros conteúdos digitais protegidos por exclusividade formam assim mais uma modalidade de contratos de licença de coisa incorpórea”, aplicando-se a Diretiva 2019/770 se o licenciado for um consumidor.

Nos contratos de troca para acesso, há um ponto relativo a “acesso a redes”, podendo este (p. 230) “ser genérico ou referir-se especificamente a determinadas redes”, como “às chamadas redes sociais ou a determinadas plataformas digitais incluindo as que dão acesso a reuniões, presenciais ou não”.

Ainda no âmbito dos contratos de troca para acesso, temos os contratos de acesso a conteúdos. Segundo o Professor (p. 232), “se o objeto for um bem protegido pelo direito de autor ou por outros direitos subjetivos de exclusivo, estarão preenchidos os elementos caraterísticos de um contrato de licença, desde que o utilizador tenha o direito de fixação através de impressão ou de download (…). Se faltar esta faculdade compreendida no direito de autor, como sucede no streaming, ou se o objeto for um bem desprovido de proteção pelo direito de autor, as prestações, calculadas geralmente por unidade de tempo, terão como fonte contratos de acesso a conteúdos, celebrados entre o titular do sítio e cada um dos acedentes, que são portanto contratos diferentes dos eventuais contratos de acesso ao meio, celebrados com o gestor da rede (telefone, internet) onde os sítios estão instalados”.

Nestes últimos casos, aplica-se a Diretiva 2019/770 se o acedente puder ser qualificado como consumidor.

É interessante também referir que, segundo o Professor (p. 137), as expressões “fornecimento de bens” e “contratos de fornecimento” “são usadas na linguagem jurídica e na linguagem comum como designação genérica, quando se pretende evitar uma qualificação precisa ou referir um conjunto de contratos transmissivos de diferente natureza”. É precisamente o que sucede na Diretiva 2019/770, como aliás é salientado na obra.

Sobre criptomoedas (pp. 67 e 68), o Professor considera que não são dinheiro, alertando para um “limbo de a-legalidade”, que parece “fruto de excessiva neutralidade e tolerância”. Chama ainda a atenção para a circunstância de a sua criação e circulação ser “privada e descentralizada, com os inerentes riscos de volatilidade, iliquidez, especulação, fraude e disponibilidade para lavagem de dinheiro”.

Em comentário a um texto meu em que refiro que “as criptomoedas constituem um meio de pagamento, pelo que, se as partes estipularem nesse sentido, devem ser consideradas, para este efeito, como qualquer outra moeda, como contraprestação, qualificável como preço”[2], defende o Professor que, “não sendo dinheiro, o contrato lícito em que as cripto“moedas” sejam aceites em troca de outro objeto tem a natureza de permuta”.

Estas são apenas algumas das novidades que gostaríamos de destacar relativamente a esta nova edição, mas há muitas outras, como as alterações relativas ao estatuto dos animais, ao financiamento colaborativo e aos contratos de alienação de empresa e com juro negativo.

A obra Contratos, composta por seis volumes, entre os quais este Vol. II, é, na minha opinião, uma das melhores obras escritas em Portugal no domínio do Direito: completa, rigorosa, bem escrita, clara, atualizada, desafiante. Imperdível para estudantes e profissionais do Direito.

[1] V., por todos, Joana Farrajota, “Why hasn’t Portugal adopted the convention on contracts for the international sale of goods?”, in Themis – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, n.º 34, 2018, pp. 119-127.

[2]Desafios do Mercado Digital para o Direito do Consumo”, in Direito do Consumo 2015-2017, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 2018, pp. 109-123, p. 111.

O início do(s) Caso(s) TikTok? – Cláusulas Contratuais Gerais, Bens Virtuais e Copyright

Doutrina

A Organização Europeia do Consumidor BEUC apresentou uma queixa à Comissão Europeia e à rede de autoridades de defesa do consumidor contra o TikTok, na passada terça-feira, dia 16 de Fevereiro, por várias violações de Direito do Consumo, nomeadamente quanto a cláusulas contratuais abusivas e práticas comerciais desleais. Para além da BEUC, em mais 15 Estados[1], associações de defesa dos direitos dos consumidores também apresentaram queixas às autoridades e entidades reguladoras, de forma coordenada, contra o TikTok – e não, Portugal (ainda?) não se encontra nesta lista.

O TikTok, da chinesa ByteDance, começou em 2016 como uma app que procurava inovar no modelo do Vinee do Musical.ly e tornar-se numa rede social de partilha de vídeos curtos dos utilizadores, em diferentes temáticas e interesses, com enfâse na reprodução de músicas atuais e áudio de cenas de filmes e séries populares – adquirindo para este propósito licenças junto dos right holders. Com a aquisição do Musical.ly no final de 2017 e a fusão de ambas as apps em Agosto de 2018, o TikTok conseguiu sair da bolha do mercado chinês e penetrar no mercado americano (e, por conseguinte, mundial), convertendo-se rapidamente numa das mais populares plataformas em todo o mundo, entre as várias faixas etárias – com uma estimativa de mais de 1,1 mil milhões de utilizadores mensais.

Com a extraordinária popularidade, também vieram controvérsias – desde de a app ser banida na India; executive orders do ex-presidente dos Estados Unidos para bloquear a app devido a receios de espionagem e partilha de dados pessoais com o Governo Chinês, procurando assim forçar a sua venda a uma multinacional americana; ser forçada a bloquear todos os utilizadores italianos e realizar um controlo apertado da sua idade, para a sua readmissão (devido à morte de uma menor de 13 anos); e claro, alegações relativas a invasão de privacidade e tratamento ilícito dos dados dos utilizadores, incluindo a utilização de tecnologia de reconhecimento facial, por autoridades de proteção de dados europeias.

Estas novas queixas da BEUC e das associações de proteção de consumidores vêm abrir um novo capítulo, uma nova frente de combate aos abusos do TikTok (e outras multinacionais que utilizem as mesmas técnicas), centrando as queixas no Direito do Consumo, nomeadamente quanto a práticas comerciais desleais, cláusulas contratuais gerais abusivas e falta de transparência no tratamento de dados pessoais e publicidade.

As práticas sob escrutínio incluem:

  • Publicidade oculta e enganosa, seja colocada pelo TikTok, seja pela utilização de funcionalidades que permitem que marcas usem influencers para campanhas de marketing agressivas junto dos seus fãs – especialmente direcionada a crianças e outras pessoas vulneráveis;
  • Falta de transparência nas obrigações de informação aos titulares de dados pessoais, possível ausência de base de licitude do tratamento, reutilização de dados para finalidades incompatíveis, (…) diversas possíveis violações do Regulamento Geral de Proteção de Dados.

Em paralelo com a abertura deste tema, é de destacar também o recém publicado relatório do Parlamento Europeu sobre a necessidade de “atualizar” a Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (93/13/CEE), para os serviços digitais. Este relatório aborda, entre vários temas, as cláusulas predatórias sobre o copyright do user-generated content, como a referida acima do TikTok.

É possível que estas queixas das associações de defesa dos consumidores se convertam no futuro em processos judiciais, sejam movidos pelas entidades reguladores ou como ações coletivas de indeminização dos consumidores – e que, quem sabe, cheguem ao Tribunal de Justiça, de forma a conseguir uma atualização jurisprudencial, uniforme na União Europeia, da aplicabilidade das Diretivas sobre Cláusulas Contratuais Abusivas e Práticas Comerciais Desleais a este tipo de práticas e modelos de negócio.

 

[1] Os Estados em questão: Bélgica, Chipre, República Checa, Dinamarca, França, Alemanha, Grécia, Itália, Países Baixos, Noruega, Eslováquia, Eslovênia, Suécia, Espanha e Suíça.

[2] No contexto de redes socias, este modelo de negócio aparenta ser inspirado no sistema de awards do Reddit, em que os utilizadores premeiam as publicações que gostam mais, dando-lhes maior visibilidade e notoriedade a terceiros, pelo algoritmo.

Cláusulas contratuais gerais e conceito amplo de informação – A propósito do Ac. do TRL, de 28/1/2021

Jurisprudência

Nas relações de consumo, o consumidor encontra-se, na maioria das vezes, numa posição desfavorecida face ao profissional, já que não tem oportunidade para negociar os termos do contrato, limitando-se a aceitar ou recusar a proposta. Por exemplo, quando compramos algo numa loja de uma grande superfície, ou aceitamos o preço que aí está exposto, ou simplesmente não compramos esse artigo. O mesmo sucede nos contratos de seguro: ou aceitamos o formulário, concordando com as condições, ou não fechamos negócio.

E quantas vezes não observamos, neste contexto, as chamadas “letras pequeninas”, ou, nos anúncios publicitários, aquela voz que aparece, no final, à velocidade da luz? Ou seja, aquelas informações importantes que, como na maioria das vezes são desvantajosas e podem desvirtuar o negócio se o consumidor a elas prestar muita atenção, vêm dissimuladas algures no contrato, seja num tamanho de letra mais pequeno, seja em secções cujo nome aponta para a irrelevância.

Nos termos do artigo 1.º do DL 446/85 de 25 de outubro (vulgo, Lei das Cláusulas Contratuais Gerais e, doravante, “LCCG”)[1], às cláusulas elaboradas sem prévia negociação individual, que o preponente se limita a subscrever ou aceitar, chamamos cláusulas contratuais gerais e aplicamos as regras constantes desse diploma. Nomeadamente, e para evitar estas situações em que o o aderente se vincula a certas obrigações contratuais, sem delas ter pleno conhecimento, os artigos 5.º e 6.º da LCCG impõem deveres de informação e de comunicação ao contraente mais forte. Note-se que o diploma se aplica quer a relações de consumo, quer a relações entre profissionais.

Mas, em que se materializam estes deveres? Será que basta, literalmente, informar e comunicar as cláusulas à contraparte?

Ora, é precisamente sobre a concretização destes deveres de informação e de comunicação que se debruça o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28 de janeiro de 2021.

No caso em foco, foi movida uma ação declarativa por A (empresa de trabalho temporário), contra B (companhia de seguros), com o objetivo de ser declarada a inexistência do direito ao pagamento da cláusula de ajustamento do prémio, no âmbito de um contrato de seguro, com fundamento na violação dos deveres de informação e comunicação impostos pelos artigos 5.º e 6.º da LCCG.

Para o efeito, alegou a Autora que nunca tomou efetivo conhecimento da referida alteração contratual, que foi comunicada através de uma ata, sendo que a cláusula problemática constava de uma pequena rúbrica denominada “Outras Declarações”.

Já a Ré, defendeu-se invocando o facto de o representante legal da Autora ser empresário de profissão, motivo pelo qual estaria familiarizado com os termos utilizados e o tipo de contrato em causa. Logo, tendo sido a alteração comunicada atempadamente, por escrito, e em língua portuguesa, havia cumprido cabalmente com os seus deveres.

Em sede de primeira instância, o Tribunal julgou a ação improcedente, dando, assim, razão aos argumentos da Ré. Porém, inconformada, a Autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação, no essencial, com os mesmos argumentos.

O Tribunal da Relação começa por esclarecer, que, não tendo a Ré logrado provar que as referidas cláusulas haviam sido negociadas, se aplica o regime da LCCG, estando adstrita aos deveres de informação e comunicação aí contidos.

Mas, no cumprimento destes deveres, diz este Acórdão que “não importa atender ao nível subjetivo, a um estado psicológico das partes, mas a um parâmetro objetivo”. Desta forma, contrariamente ao alegado pela Ré, não é relevante qual a profissão do representante legal da Autora, nem se está, ou não, familiarizado com os termos técnicos.

Assim, enquanto barómetro na apreciação do cumprimento destes deveres deve ser utilizado um outro “standard valorativo”: o padrão de razoabilidade, tal como expresso no artigo 6.º-2 da LCCG. Este será tanto mais elevado quanto mais nocivos forem as consequências da disparidade de poder para as partes.

Aliás, o princípio da razoabilidade tem ganho força no plano do direito europeu, estando, de certo modo, a ocupar o lugar da tradicional boa-fé em muitas situações. Segundo este aresto, “a razoabilidade representaria critério de valoração dos comportamentos levados a cabo pelas partes a fim de individualizar certas responsabilidades e distinguir-se-ia da boa fé porquanto inidónea a fundar novas obrigações a cargo dos sujeitos da relação obrigacional”.

É então referido que, à luz do princípio da razoabilidade, e na esteira de Paulo Lôbo,a informação deve preencher três requisitos: (i) adequação – deve ser transmitida por meios eficientes e com conteúdo adequado; (ii) suficiência – a informação deve ser suficiente e completa; (iii) veracidade – a informação deve revelar as reais componentes das cláusulas.

Com especial relevância, é ainda assinalada a existência de um conceito amplo de informar, que engloba não só o dever de informação strictu sensu (mera comunicação à contraparte do essencial do negócio), mas também o dever de conselho (orientação das melhores condutas a adotar) e o dever de advertência.

Neste caso, o dever de informação strictu sensu estava, sem dúvida, cumprido – a alteração foi comunicada por escrito, e em língua portuguesa – e não parece haver dever de conselho. Porém, considera o Tribunal que não foi cumprido o dever de advertência que é imposto a cláusulas de especial importância, como é o caso do valor dos prémios de seguro anualmente arrecadado, especialmente quando é alterada uma relação contratual com mais de 10 anos de duração.

Isto posto, e tendo o Tribunal da Relação concluído pelo incumprimento do dever de informação (na aceção ampla do conceito de informar), aplica-se ao caso o artigo 8º da LCCG, que impõe, em consequência, que a cláusula se tenha por excluída do contrato.

Concluindo, e sintetizando, este Acórdão vem, a meu ver, realçar dois aspetos muito significativos: a importância das regras de proteção dos contraentes mais fracos no plano nacional e europeu[2], e a necessidade de adotar um conceito amplo no que toca ao dever de informar. De facto, não se pode aceitar que cumprir os requisitos formais, remetendo a informação sem mais, dissimulando informações relevantes pelos meios já referidos, corresponda ao cumprimento de um dever que foi equacionado, em primeira linha, para proteger o contraente que já se encontra numa posição mais fragilizada, sob pena de frustrar totalmente a ratio legis destas normas.

[1] Resultou da transposição da Diretiva nº 93/11/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993

[2] A nível europeu – o Draft Common Frame of Reference, esboço para um futuro Código Europeu dos Contratos, no artigo 9:402 do Livro II estabelece, precisamente, o dever de informação e comunicação; e a nível nacional, no caso concreto dos contratos de seguro, o artigo 22º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro constante no Decreto-Lei 72/08 de 16 de abril, impõe um especial dever de esclarecimento; e de forma mais geral, vide a Lei das Cláusulas Contratuais Gerais.