Revolução no Alojamento Local? Comentário ao AUJ n.º 4/2022

Jurisprudência

Há cerca de um mês, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) proferiu um Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ n.º 4/2022), esclarecendo que no regime da propriedade horizontal, a indicação no título constitutivo, de que certa fração se destina a habitação (cfr. art. 1418.º-2-a) do Código Civil, doravante CC), deve ser interpretada no sentido de nela não ser permitido o exercício da atividade de alojamento local (AL), regulada pelo Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto[1].

Vejamos o caso.

Num prédio urbano constituído em propriedade horizontal, uma das frações autónomas destinadas à habitação passou a servir de alojamento temporário a turistas, mediante renumeração. O proprietário da fração publicitou na Internet (no site www.airbnb.com) e disponibilizou a fração, mobiliada e equipada, para serviços de alojamento, por período inferior a 30 dias, prestando ainda serviços remunerados de limpeza.

Com a rotatividade dos utentes, o ruído aumentou, tal como a insegurança e a sujidade e desgaste das partes comuns, etc., em prejuízo dos demais condóminos, que vêem o imóvel desvalorizado.

Os proprietários de uma outra fração intentaram uma ação em tribunal com vista ao encerramento da atividade de alojamento temporário, tendo o réu alegado que destinar a habitação a AL não descaracteriza a finalidade de habitação que consta do título constitutivo.

O caso chegou ao STJ, tendo confirmado o acórdão da Relação que deu razão aos autores, condenando o réu a cessar a utilização da fração para alojamento temporário, e reintegrá-la no seu destino específico de habitação. Decidiu-se que “a atividade de alojamento local não integra o conceito de habitação como fim dado às fracções autónomas no título constitutivo da propriedade horizontal” e que o “o conceito de habitação, como destino da fração autónoma, mostra-se qualitativamente distinto do conceito de utilização da mesma para AL”.

Por sua vez, os réus vieram interpor recurso para uniformização de jurisprudência, referindo-se ao acórdão do STJ de 28-03-2017, disponível aqui, onde se entendeu que, “na cedência onerosa da fração a turistas, a fração autónoma destina-se à respetiva habitação e não a atividade comercial”.

Há, assim, contradição direta quanto à questão de a fração autónoma destinada à habitação poder (acórdão fundamento) ou não (acórdão recorrido) ser utilizada para AL, isto é, se viola o fim da habitação.

O art. 1422.º-2-c) do CC impede que os condóminos dêem à fração um uso diverso do fim a que é destinada, tendo cada condómino o direito de se opor a que qualquer fração seja utilizada para um fim diverso do consagrado no registo.

Com efeito, o título constitutivo pode conter algumas proibições, tal como o regulamento do condomínio. Mesmo depois da constituição da propriedade horizontal, a assembleia de condomínios pode deliberar sobre a proibição de certos atos ou atividades (alínea d) primeira parte), desde que compatível com o fim do prédio ou das suas fracções, sob pena de nulidade (art. 1418.º-3).

Importa também ter presente a publicidade resultante das regras do registo predial, dada a obrigatoriedade do registo do título constitutivo donde consta o fim das fracções autónomas (cfr. arts. 2.º-1-b) e v) e 95.º-1-r) e z) do Código de Registo Predial). Note-se que este registo não se confunde com a indicação (genérica) de destino e uso aquando dos projetos de construção.

Face ao boom dos alojamentos locais, sentido aliás um pouco por toda a Europa, o nosso ordenamento jurídico introduziu um regime jurídico do AL, pelo Decreto-Lei n.º 39/2008, de 07-03, mais tarde autonomizado do regime de empreendimentos turísticos, com o Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29-08. Com a alteração operada pela Lei n.º 62/2018, de 22-08, passou a ser possível  à assembleia de condomínios, por deliberação, opor-se ao exercício da atividade de AL em frações autónomas, com fundamento na prática reiterada, e comprovada, de atos que perturbem a normal utilização do prédio[2]. Previu-se ainda a possibilidade de cancelamento do registo por órgão municipal competente se comprovada perturbação do descanso dos restantes condóminos (art. 9.º).

O STJ, no acórdão recorrido, esclareceu que habitação como destino da fração autónoma é qualitativamente distinto da utilização da mesma para AL, pois este caracteriza-se por uma rotatividade e utilizadores diversos em oposição à tendencial estabilidade do gozo de uma fração habitacional. Conclui que o destino “habitação” mencionado no título constitutivo da propriedade e no respetivo registo predial se refere a habitação como centro de vida doméstica.

Contrapõe-se a argumentação do acórdão fundamento.

Reconhece-se que o AL é compatível com o destino genérico “habitação”, sendo que os usuários do AL fazem do espaço um uso habitacional. O STJ considerou que o AL constitui arrendamento para habitação, respeitando a finalidade de habitação do título constitutivo. Não viola, por conseguinte, os arts. 1418.º e 1422.º-2-c) do CC.

O acórdão que aqui analisamos segue a posição do acórdão recorrido, clarificando:

– O AL não é um simples habitar da fração, equivalente à habitação que dele fazem os usuários não abrangidos pelo AL, não se confundido com arrendamentos sazonais de curta duração em áreas de veraneio ou “alojamento” de estudantes. Mais, para efeitos tributários, o AL não é tratado como habitação.

– É vedado aos condóminos o uso para fim diverso do que a fração é destinada nos termos do art. 1422.º-2-c) do CC.

– O sentido normal do destino “habitação” é o de “servir de fogos ou de residência para pessoas e agregados familiares, proporcionando-lhes o sossego, a tranquilidade, a segurança e o conforto requeridos por qualquer economia doméstica, num envolvente espaço comum instrumental desse tipo de convivência colectiva”.

Efetivamente, é diferente ter vizinhos “tradicionais” do que ser vizinhos de AL dado o caráter temporário da estadia. Confirmando a posição do acórdão recorrido, uniformizou-se jurisprudência no sentido que o destino “habitação” no título constitutivo não permite a realização de AL.


[1] Alterado pelo Decreto-Lei n.º 62/2015, de 23-04, pela Lei n.º 62/2018, de 22-08, pela Lei n.º 71/2018, de 31-12, e pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29-01

[2] O art. 4.º-4, exige autorização do condomínio para instalação de AL na modalidade hostel, quando esta venha a coexistir com fim “habitação”.

A Camisola que estava na caixa “Tudo a € 10” por engano

Consumo em Ação

Por Leandro Pinto, Matilde Pinho e Rita Saramago

Hipótese: Xénia, consumidora, entrou numa conhecida loja de roupa e retirou uma camisola de uma caixa que continha a indicação “Tudo a € 10”. Quando chegou à caixa percebeu que a camisola estava naquela caixa por engano, custando € 23, tal como indicado na etiqueta. Xénia ficou sem saber o que fazer. O que lhe diria?

Resolução: No caso em apreço, parece existir uma proposta contratual por parte da loja[1]. A declaração é completa, já que revela o conteúdo mínimo do contrato a celebrar. É também precisa, uma vez que não deixa dúvidas acerca dos elementos do contrato a celebrar. Ademais, é evidente a intenção inequívoca de contratar, pelo que o requisito da firmeza também se verifica, bem como o da adequação formal, dado que a celebração deste contrato não se encontra sujeita a forma especial (art. 219.º do Código Civil).

Cumpridos todos os requisitos, basta a proposta ser aceite para o contrato ser celebrado, sendo o ato de aceitação de Xénia levar a camisola até à caixa[2]. No momento da aceitação, Xénia concorda com todos os aspetos contratualmente relevantes da proposta e, consequentemente, é celebrado o contrato.

Xénia só se apercebe do preço real da camisola quando chega à caixa, isto é, quando já aceitou a proposta. Ora, um declaratário normal assumiria que o preço que lhe é indicado na caixa é, efetivamente, o preço do bem, nos termos do art. 236.º do Código Civil. Assim, neste contexto, podemos considerar que existiam, em rigor, duas propostas: uma com um preço de € 10 e outra com um preço de € 23.

O consumidor pode concluir o negócio aceitando a proposta com o preço mais baixo.

Esta resposta pressupõe um determinado enquadramento: a camisola deve encontrar-se dobrada juntamente com outras as camisolas. Por hipótese, se a camisola se encontrasse desarrumada numa caixa cheia de cintos com a mesma legenda (“Tudo a € 10”), poderíamos concluir que um declaratário normal poderia deduzir que a legenda não se aplicaria à camisola e, por isso, não seria esse o preço aplicável. De facto, era expectável de um consumidor diligente que o entendesse e que não tentasse tirar proveito da situação.

Semelhante seria o caso em que Xénia via a etiqueta na qual estava indicado o preço de € 23 e, mesmo assim, levava a camisola até à caixa com a intenção de comprá-la pelo preço indicado na caixa. É incontestável que esta atitude não espelha a diligência esperada de um consumidor.

Hipótese diferente seria o caso em que Xénia se dirigia à caixa e, quando o artigo passa no scanner, aparece no ecrã a indicação de € 5. Consideramos este momento posterior à celebração do contrato. A proposta tinha um preço (€ 10) e a aceitação não pode alterar a proposta. Deste modo, se a proposta já foi aceite, Xénia estaria a incumprir a obrigação, ainda que não de forma culposa, se pagasse apenas os € 5. O preço a pagar deve ser aquele que foi acordado, isto é, o preço pelo qual o consumidor aceitou a proposta contratual emitida pelo profissional.


[1] Sobre os requisitos da proposta, cfr. Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, pp. 79 a 81.

[2] Sobre os estabelecimentos que funcionam em autosserviço, cfr. Carlos Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Vol. II, Almedina, 1992, p. 818; José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, Vol. II, Coimbra Editora, 1999, p. 458.

Competências financeiras dos adultos – soluções para consolidação da literacia financeira no quadro europeu

Doutrina

A 11 de janeiro de 2022 foi lançado o quadro de capacidade financeira para adultos na UE, projeto conjunto da UE e OCDE. O projeto visa promover uma compreensão partilhada das competências financeiras que os adultos devem ter para tomar decisões sólidas em assuntos de finanças pessoais. Foi concebido para incentivar e apoiar a implementação de políticas públicas, programas de alfabetização financeira e materiais educativos a serem desenvolvidos pelos Estados-Membros, instituições educativas, indústria e indivíduos.

Este projeto surgiu na sequência dos resultados obtidos através da avaliação da viabilidade do desenvolvimento de um quadro de competências financeiras da UE, estando inserido no Plano de Ação da União dos Mercados de Capitais para 2020, no qual a Comissão Europeia se comprometeu a aumentar a confiança nos mercados de capitais através da melhoria da literacia financeira. Além disso, no início deste ano tiveram início os trabalhos para composição de um quadro conjunto direcionado aos mais jovens. Ambos os projetos têm origem nos quadros de competências nucleares da OCDE/INFE em matéria de literacia financeira (podem ser consultados aqui e aqui, respetivamente).

Note-se que a grande inovação destes projetos está na atualização do enquadramento anterior, através da inserção de competências digitais, competências referentes à sustentabilidade e competências relevantes para a resiliência financeira.

Para que possamos compreender o alcance deste quadro, temos de esclarecer alguns aspetos importantes sobre o documento disponibilizado pela Comissão Europeia. Ora, o foco deste enquadramento é a literacia financeira, sendo esta a combinação de consciência financeira, conhecimentos, competências e comportamentos necessários para tomar decisões financeiras sólidas e assim alcançar o bem-estar financeiro individual.

O quadro divide as competências em quatro áreas: 1) dinheiro e transações; 2) planeamento e gestão financeira; 3) riscos e recompensa; 4) panorama financeiro. Dentro de cada uma destas competências são avaliadas três dimensões. A primeira refere-se ao conhecimento/compreensão, e através desta verifica-se se determinado sujeito revela discernimento em relação a um certo tópico. A segunda permite avaliar as aptidões e comportamentos do sujeito. A terceira permite avaliar as motivações, confiança e atitudes do sujeito, através das quais se capta a tomada de decisão interna que influencia o comportamento financeiro. Esta disposição admitirá a divisão das competências financeiras por níveis, à semelhança do que acontece com as competências linguísticas, que na União Europeia vão do nível A1 ao nível C2.

Atualmente, o documento encontra-se disponível para adoção voluntária por autoridades públicas, órgãos privados e pela sociedade civil, dentro da União Europeia, com vista ao desenvolvimento de políticas e instrumentos educativos. Pode dizer-se que será um alicerce fundamental para todas as entidades que pretendam colaborar para a construção de um background sólido da literacia financeira entre jovens e adultos (através da implementação de projetos para a educação financeira nas escolas, universidades, locais de trabalho, campanhas de sensibilização, entre outras).

Indubitavelmente esta iniciativa é de grande relevo para reforçar a proteção dos consumidores, que ao estarem mais informados e conscientes dos instrumentos financeiros, risco associado, custos e práticas fraudulentas, elevarão as suas competências financeiras e, por conseguinte, tomarão decisões que permitirão alcançar o bem-estar financeiro.

Como já foi abordado no nosso blog, há muitos problemas que resultam da iliteracia financeira, e um deles é a vulnerabilidade dos consumidores. A verdade é que a Europa apresenta um resultado bastante deficitário no que diz respeito ao nível de literacia financeira, existindo uma grande disparidade entre os diferentes estados-membros. Portugal é um dos países onde a iliteracia financeira é mais elevada.

Os desenvolvimentos tecnológicos verificados nos últimos anos aliados à pandemia trouxeram uma redução da intermediação e aconselhamento financeiro por parte de instituições fidedignas, o que colocou os consumidores numa posição de maior fragilidade. Como consequência, surgiram muitas práticas desleais – em alguns casos mesmo criminosas – como a comercialização de cursos, dicas sobre investimento com promessa de enriquecimento rápido, criptoativos sem qualquer valor ou que nem sequer existem, ou investimentos em instrumentos de elevado risco que poderiam comportar consequências desastrosas para as finanças pessoais do consumidor.

Ora, através deste enquadramento europeu das competências financeiras dos adultos será possível alertar e educar de uma forma mais eficaz com vista a evitar estas situações, garantindo a proteção dos consumidores mais vulneráveis a estas práticas. É necessária a colaboração dos estados-membros para que se verifique o seu sucesso, pois a adoção deste quadro é facultativa.

Contudo, apesar da importância de uma abordagem mais coordenada entre decisores políticos da UE e nacionais em relação a questões financeiras, não nos podemos esquecer que a educação financeira e a literacia financeira não devem substituir um elevado nível de proteção do consumidor, através de instrumentos que permitam fiscalizar e erradicar práticas e esquemas fraudulentos com impacto negativo nas finanças pessoais dos consumidores.

Reabrir a controvérsia das loot boxes nos videojogos

Doutrina

No passado dia 31 de maio, a Forbrukerrådet (Conselho de Consumidores Norueguês)[1] publicou o relatório “INSERT COIN: How the gaming industry exploits consumers using loot boxes”, de 59 páginas, detalhando a prática comercial das Loot boxes em videojogos, os diversos problemas que estas levantam, em termos de proteção dos consumidores, a legislação aplicável e a necessidade de mais (e melhor) regulação. Em coordenação com a publicação deste relatório, 20 associações de proteção dos consumidores de 18 estados europeus juntaram-se em apelos às autoridades para implementar reformas na legislação e na fiscalização destas práticas. Portugal foi um deles, tendo-se a DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor juntado a este consórcio.

As loot boxes são uma prática comercial utilizada em diversos videojogos, desde os gratuitos (free-to-play) aos pagos, que consiste, tipicamente, em cobrar aos utilizadores um valor (em moeda corrente ou em moedas virtuais), para desbloquearem “caixas” ou “carteirinhas” virtuais, de forma a obterem um prémio aleatório, que consiste numa recompensa (em conteúdo digital) do videojogo em questão. Os prémios aleatórios destas caixas podem variar muito, desde conteúdos para a simples personalização das personagens (as chamadas skins), apenas com valor cosmético e sem impacto na jogabilidade, até a personagens, equipamentos, figuras ou outros itens que concedem vantagens substanciais a quem as adquire. Estes itens virtuais podem, também, frequentemente ser transacionados, doados, trocados e vendidos entre os utilizadores, o que permite o surgimento (lícito ou ilícito) de mercados secundários, verdadeiras economias paralelas que incentivam a procura pelas loot boxes.

Estima-se que a venda de loot boxes em 2020 tenha resultado em receitas mundiais de 15 mil milhões de dólares para a indústria dos videojogos, com destaque para videojogos como o FIFA21, da EA, e o Fortnite, da Epic Games.

Controvérsias com loot boxes já não são uma novidade em 2022. É necessário destacar que, entre 2017 e 2018, depois de uma série de polémicas com o lançamento dos videojogos Star Wars Battlefront II e FIFA18, comparando a funcionalidade a casinos online predatórios para jovens, as Comissões de Jogos de Fortuna e Azar dos Países Baixos (Netherlands Gaming Authority) e da Bélgica (Belgium Gaming Commission) lançaram investigações a estas práticas para compreender se estas violavam as leis de jogo online nestes Estados, o que se veio a verificar. A generalidade das empresas passou a bloquear estas funcionalidades nestes Estados, mantendo-se a prática nos restantes. Aproveita-se as diferenças entre a definição legal de gambling nos vários ordenamentos jurídicos.

Este novo relatório e a ação concertada das associações de defesa dos consumidores visam reabrir esta temática, num ângulo pouco explorado até agora: o do Direito do Consumo. Desta forma, o relatório dá destaque:

  1. ao carácter agressivo da publicidade, pop-ups e notificações constantes dentro e fora dos jogos;
  2. à exploração de vulnerabilidades dos utilizadores com recurso a técnicas de design enganador e dissimulado – deceptive design, manipulative design e dark patterns;
  3. a critérios enganadores de transparência sobre as probabilidades de os utilizadores vencerem prémios;
  4. à utilização de algoritmos opacos que modificam e dissimulam resultados e probabilidades;
  5. à utilização de moedas virtuais (in-game currencies) próprias de cada jogo e plataforma para mascarar o custo real monetário da compra das loot boxes;
  6. às técnicas de design dos jogos destinadas a incentivar os jogadores a adquirirem loot boxes, com recurso a estímulos e castigos;
  7. ao verdadeiro custo real de modelos de negócio free-to-play ou freemium, que na verdade são bastante caros para os utilizadores;
  8. ao risco de perda dos conteúdos digitais a qualquer momento, fruto de cláusulas contratuais inseridas nos End-User License Agreements (EULA);
  9. à venda de loot boxes especialmente direcionada a menores.

O relatório utiliza dois case studies (FIFA22 e Raid: Shadow Legends) para exemplificar as principais práticas da indústria, passando de seguida para um curto enquadramento jurídico, incluindo a legislação aplicável aos contratos de jogo de fortuna e azar na modalidade de jogo online e o Direito do Consumo Europeu (e dos Estados Unidos da América).

No Direito do Consumo Europeu, a Forbrukerrådet focou a sua análise quanto à aplicabilidade, em primeiro lugar, da Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (Diretiva 93/13/CEE[JCO31] , transposta no DL n.º 446/85, de 25 de outubro) em especial às cláusulas que conferem unilateralmente um vasto leque de poderes aos prestadores de serviços para modificar funcionalidades dos conteúdos ligados às loot boxes, o funcionamento das mesmas e a possibilidade de apagarem os bens virtuais das contas dos utilizadores sem justificação e sem direito a reembolso.

Defende-se ainda a aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (Diretiva 2005/29/CE, transposta pelo DL n.º 57/2008, de 26 de março) quanto ao carácter enganador e agressivo comum a vários sistemas de loot boxes (artigos 8.º e 9.º), desde o timing das ofertas comerciais durante o jogo, a pressão colocada sobre os utilizadores, a opacidade da informação sobre os prémios, e o facto de frequentemente serem direcionadas a consumidores vulneráveis, nomeadamente as crianças e jovens.

Considera-se também aplicável a Diretiva dos Direitos dos Consumidores (Diretiva 2011/83/UE, transposta pelo DL n.º 24/2014, de 14 de fevereiro) quanto ao incumprimento dos requisitos de informações contratuais, nomeadamente certas informações como a probabilidade real dos prémios[2] das loot boxes essenciais para a decisão dos consumidores de comprarem ou não (artigo 6.º-1). A Comissão Europeia referiu este ponto nas suas Guidelines do final de 2021 para a interpretação e aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (Comunicação C/2021/9320), no artigo 7.º-4, afirmando que na venda de loot boxes devem ser cumpridos os deveres de informação de ambas as diretivas, quanto ao preço e as principais características (como as probabilidades).

A proposta de Regulamento para a Inteligência Artificial também foi abordada, mas apenas de passagem, quanto à opacidade e impacto negativo nos utilizadores dos algoritmos utilizados em videojogos.

De notar que o relatório não refere a Diretiva dos conteúdos e serviços digitais, quanto às normas relativas às modificações dos conteúdos digitais pelo profissional e o exercício dos direitos dos consumidores (como os efeitos da resolução do contrato).

Atendendo que a Comissão Europeia começou em março deste ano um “Fitness Check[JCO32] ” às três diretivas indicadas no relatório, com vista à preparação de propostas de revisão das mesmas até 2024, este relatório pretende reabrir a discussão sobre as loot boxes e promover alterações legislativas que tenham em conta os principais problemas regulatórios desta prática comercial.

Assim, o relatório termina com uma série de recomendações para a regulação das loot boxes:

  1. Proibição de práticas enganosas e dissimuladas pelas empresas de videojogos;
  2. Os preços nas lojas in-game devem estar indicados em moeda corrente (pelo menos com igual destaque em comparação com o preço em moedas virtuais);
  3. Videojogos direcionados a menores não devem ter loot boxes, nem funcionalidades “pay-to-win”, em que, sendo o jogo grátis, haja a possibilidade de serem conferidas vantagens substanciais ao utilizador pelo pagamento de quantias monetárias;
  4. Mais transparência no funcionamento dos algoritmos, devendo o consumidor ser expressamente informado quando for sujeito a decisões automatizadas que possam afetar o seu comportamento;
  5. Reforçar a atuação e cooperação das autoridades administrativas e entidades reguladoras no setor dos videojogos, para garantir a cumprimento da lei pelos profissionais e a proteção adequada dos consumidores;
  6. E finalmente, caso estes “remédios” não surtam o efeito de mitigar os problemas causados pela utilização desta prática comercial, esta deverá ser proibida.

Tal como em muitos outros ordenamentos jurídicos, em Portugal, a indústria dos videojogos e a suas práticas têm passado muito despercebidas[3] ao enforcement do Direito de Consumo. Esperemos que a participação da DECO neste consórcio e a cobertura mediática deste assunto possam resultar em ações concretas, especialmente se atendermos ao facto que o Decreto-Lei n.º 119-G/2021, de 10 de dezembro, apenas transpôs parcialmente a Diretiva 2019/2161 (Diretiva Omnibus), existindo assim uma janela de oportunidade para inserir reformas nos diplomas nacionais, acompanhando a transposição das medidas em falta.


[1] Organização de defesa dos direitos dos consumidores noruegueses, sob a alçada da Autoridade do Consumidor Norueguês, autoridade administrativa semelhante a uma entidade reguladora independente em Portugal.

[2] A Autoridade da Concorrência Italiana (AGCM), com competência para o enforcement da Diretiva da Práticas Comerciais Desleais, conseguiu impor este requisito de transparência às empresas de videojogos em Itália.

[3] Em 2018, Teresa Monteiro, vice-presidente do Turismo Portugal, assinou uma declaração conjunta de reguladores sobre loot boxes em videojogos. Também em 2018, o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos participou num encontro de reguladores em Birmingham sobre o mesmo tema. Além destas notícias, não se conhecem mais ações dos reguladores portugueses.


Caso Victorinox – Informação sobre garantia comercial do produtor nem sempre é obrigatória

Jurisprudência

No dia 5 de maio, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu a decisão no âmbito do caso Victorinox (C-179/21). A questão central discutida no acórdão consiste em saber se o vendedor está vinculado a informar sobre as cláusulas relativas à garantia comercial oferecida pelo produtor no caso de não ter referido (ou, numa segunda questão, não ter realçado) a existência dessa garantia na informação pré-contratual. Coloca-se ainda a questão de saber como se relacionam as normas que impõem deveres de informação sobre garantias comerciais na Diretiva 2011/83/UE (direitos dos consumidores) e na Diretiva 1999/44/CE (venda de bens de consumo).

Analisando brevemente os factos, a Aboluts vende, através do marketplace da Amazon, canivetes da Victorinox (produtor suíço). No site da Amazon, não é feita qualquer referência à garantia comercial oferecida pela Victorinox, mas existe uma ligação, designada “Manual de instruções”, no separador ”Outras informações técnicas”, que remete para um documento elaborado pelo produtor. Na segunda página desse documento há uma declaração relativa à «garantia Victorinox».

A the‑trading‑company propôs uma ação contra a Absoluts, seu concorrente, exigindo que esta passasse a incluir uma referência à extensão territorial da garantia comercial, por um lado, e aos direitos legais do consumidor e ao facto de a garantia do produtor não restringir esses direitos, por outro lado. O caso chegou, em segunda instância, ao Bundesgerichtshof, que submeteu ao TJUE as questões já sumariadas.

O art. 6.º-1-m) da Diretiva 2011/83/UE estabelece que, “antes de o consumidor ficar vinculado por um contrato à distância ou celebrado fora do estabelecimento comercial ou por uma proposta correspondente, o profissional faculta ao consumidor, de forma clara e compreensível, as seguintes informações: (…) Se aplicável, a existência e condições (…) de garantias comerciais”.

O TJUE considera que este preceito inclui a informação relativa quer às garantias comerciais oferecidas pelo próprio vendedor quer às garantias comerciais oferecidas pelo produtor. No entanto, o tribunal introduz alguns limites, tendo em conta “a ponderação de um elevado nível de defesa dos consumidores com a competitividade das empresas” (considerando 41). Com efeito, considera-se que “a obrigação incondicional de fornecer tais informações, em quaisquer circunstâncias, afigura‑se desproporcionada, em especial no contexto económico do funcionamento de determinadas empresas, nomeadamente as mais pequenas”, sendo que “essa obrigação incondicional forçaria os profissionais a efetuar um trabalho significativo de recolha e de atualização das informações relativas a tal garantia, apesar de estes não terem necessariamente uma relação contratual direta com os produtores e de a questão da garantia comercial dos produtores não estar abrangida, em princípio, pelo contrato que pretendem celebrar com o consumidor” (considerado 40). Logo, “o profissional apenas é obrigado a fornecer informações pré‑contratuais ao consumidor sobre a garantia comercial do produtor quando o interesse legítimo do consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, num elevado nível de defesa deve prevalecer sobre a sua decisão de se vincular contratualmente, ou não, a esse profissional” (considerando 41). O tribunal esclarece esta afirmação, indicando que “a obrigação do profissional de fornecer ao consumidor informações pré‑contratuais sobre a garantia comercial do produtor não resulta da simples existência dessa garantia, mas da presença de tal interesse legítimo” (considerando 42).

O consumidor tem interesse legítimo, segundo o tribunal, (apenas) “quando o profissional torna a garantia comercial proposta pelo produtor num elemento central ou decisivo da sua oferta” (considerando 44), quando “chama expressamente a atenção do consumidor para a existência de uma garantia comercial do produtor de maneira a utilizá‑la como argumento de venda ou argumento publicitário e, assim, melhorar a competitividade e a atratividade da sua oferta relativamente às ofertas dos seus concorrentes” (considerando 45).

No considerando 48, o tribunal inclui alguns critérios para avaliar se a garantia constitui um elemento central ou decisivo na proposta do vendedor:

  • Conteúdo e configuração geral da oferta relativamente ao bem em causa;
  • Importância, em termos de argumento de venda ou de argumento publicitário, da referência à garantia comercial do produtor;
  • Lugar ocupado por essa referência na oferta;
  • Risco de erro ou de confusão que a referência pode criar no espírito do consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e avisado em relação aos diferentes direitos à garantia que pode exercer ou à identidade real do garante;
  • Presença, ou não, na oferta, de explicações relativas às outras garantias associadas ao bem;
  • Qualquer outro elemento suscetível de estabelecer uma necessidade objetiva de proteção do consumidor.

No caso em análise, o tribunal aponta claramente no sentido de a garantia não ser um elemento central ou decisivo na proposta do vendedor (considerando 52).

A decisão parece-me totalmente correta. Num caso como este, não se justifica que o profissional tenha de realçar a existência da garantia comercial. Trata-se de um aspeto do negócio que é favorável ao consumidor, por se tratar de direitos que acrescem aos previstos na lei, pelo que a ausência de destaque não merece censura. Mesmo que a garantia comercial fosse proposta pelo vendedor, a omissão de um destaque, por si só, também não aparentaria ser censurável. A censura resultará, como refere o tribunal, de o consumidor ver traído um interesse legítimo.

Critico, no entanto, a utilização, também neste contexto, do conceito de consumidor médio. Tal como noutros domínios, a bitola do consumidor médio pode deixar desprotegidos muitos consumidores, precisamente aqueles que, em muitos casos, mais necessitam de proteção.

Chamo ainda a atenção para a circunstância de, apesar de a ação ter sido proposta contra a Absoluts, toda esta discussão também interessar à Amazon, enquanto intermediário. Com efeito, no acórdão proferido recentemente no caso Tiketa, aqui comentado, o TJUE conclui que o intermediário é considerado profissional para efeitos da Diretiva 2011/83/UE, respondendo, tal como o vendedor, pelo incumprimento dos deveres de informação pré-contratual.

Quanto à relação entre as normas que impõem deveres de informação sobre garantias comerciais na Diretiva 2011/83/UE e na Diretiva 1999/44/CE, o tribunal considera que prosseguem interesses distintos, pelo que não tem de se verificar uma coincidência total. O profissional não tem, portanto, de indicar na fase pré-contratual todo o conteúdo da garantia (considerando 58). Esta afirmação não estaria correta se estivesse em causa uma garantia com natureza contratual, pois, nesse caso, o conteúdo da garantia é conteúdo do contrato e tem de ser incluído na proposta contratual, sob pena de não vincular as partes.

Para saber que “condições” relativas à garantia comercial devem constar da informação pré-contratual, nos termos do art. 6.º-1-m) da Diretiva 2011/83/UE, o critério utilizado pelo tribunal é também o do interesse legítimo do consumidor a tomar uma decisão esclarecida, não sendo induzido em erro. As condições incluem “qualquer elemento de informação relativo às condições de aplicação e de execução da garantia comercial em causa”, o que abrange, não só “o local de reparação em caso de dano ou as eventuais restrições de garantia, mas igualmente (…) o nome e o endereço do garante”.

Em suma, o vendedor nem sempre tem o dever de incluir na informação pré-contratual referência à existência e às condições de garantia comercial oferecida pelo produtor. Apenas terá de o fazer se a garantia em causa for apresentada como uma parte relevante da proposta apresentada. Nesse caso, a referência às condições da garantia deve incluir tudo o que for necessário para que o consumidor possa tomar uma decisão esclarecida, não sendo induzido em erro.

NAVEGAR (ONLINE) É PRECISO, VIVER (OFFLINE) NÃO É PRECISO: o preenchimento dinâmico e descritivo do conteúdo da vulnerabilidade digital

Doutrina

A velocidade das transformações do mercado de consumo é, sem dúvidas, um dos maiores desafios do Direito do Consumidor. Especialmente pelos influxos da internet, desde a sua concepção até o descobrimento de seu potencial comercial, surgiram novas tecnologias, novos modelos de negócio, novos meios de oferta e de contratação, assim como novas práticas relativas à publicidade, à perfilização e à organização de estruturas sociais e econômicas que daí emergem, as quais passam a operar por uma lógica data-driven mercantilizada de rede em um espaço (não físico) de fluxos informacionais[1].

Neste espaço de fluxos informacionais, navegar é preciso: qualquer interação ou relação estabelecida na ambiência digital é controlada, armazenada e gerenciada com táticas e técnicas para tornar a navegação e os layouts, bem como os outputs, ajustáveis e programáveis conforme os interesses de quem emprega a tecnologia. Nesse sentido, atributos, características, ânimos, personalidades e demais subjetividades são utilizadas na base da probabilidade e da estatística como parâmetros objetivos na condução de negócios.

Essa nova realidade permite a identificação de novos e renovados fatores que determinam assimetrias nas relações entre consumidores e fornecedores, cujo efeito é a impotência daqueles na dimensão digital do mercado. Relaciona-se com a falta do poder de barganha, com desigualdades estruturais ou outras condições sociais ou econômicas que facilitam uma sujeição estrutural do consumidor diante dos fornecedores.

A isso é dado o nome de vulnerabilidade. É descrita por Marques e Miragem, de modo geral, como um estado da pessoa de inerente risco, um sinal de confrontação excessiva de interesses, uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, cujo efeito é o desequilíbrio de determinada relação ou interação e, consequentemente, o enfraquecimento do sujeito de direitos[2]. Se explorada, haverá o potencial de influenciar diretamente e negativamente a capacidade de o consumidor lidar satisfatoriamente com as práticas mercadológicas e com os contratos que estabelece, bem como de impactar a sua autonomia no que tange a tomar decisões de acordo com seus próprios interesses.

Conceituar a vulnerabilidade não é tarefa fácil, talvez nem mesmo seja necessária ou aconselhável. A dificuldade (e o perigo) em sua definição em matéria de consumo reside justamente na criatividade negocial e nas – sempre em evolução – necessidades do mercado, as quais são impostas contemporaneamente por intermédio das estruturas e das arquiteturas codificadas cada vez mais complexas, opacas e rapidamente modificáveis do ambiente online, bem como porque os consumidores se localizam em uma teia de relações e de instituições sociais diferentes, de modo que as vulnerabilidades também serão sentidas mais ou menos de modo particularizado – viver (offline) não é preciso –, o que contrasta como uma proposta de definição rígida ou mesmo atinente somente a determinados grupos de pessoas, como bem pontuou aqui no blog Sara Fernandes Garcia.

O caso brasileiro pode ser um bom exemplo para ilustrar essa questão. Lá, todos os consumidores pessoas naturais destinatárias finais fáticas e econômicas são vulneráveis por expressa determinação legal do Código de Defesa do Consumidor (art. 4º, I, CDC), cabendo ainda gradações ou sobreposições de camadas de vulnerabilidade em determinados casos, o que é conhecido como hipervulnerabilidade ou vulnerabilidade agravada. O CDC, sabiamente, não trouxe definições jurídicas acerca do conceito de vulnerabilidade, cabendo originalmente à doutrina e à jurisprudência a conformação do sentido e do alcance dinâmico do texto da lei, emprestando ao princípio certa plasticidade para a atualidade do diploma e para a tutela mais efetiva dos consumidores. 

Há, todavia, o Projeto de Lei (PL) n. 895/2021, em tramitação na Câmara dos Deputados, que se prestaria a estabelecer medidas de proteção do consumidor em situação de vulnerabilidade, pretendendo-se a alteração do CDC em diversos pontos.

O PL traria, desta maneira, uma definição: “entende-se por vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo a situação em que pessoas físicas, de forma individual ou coletiva, por suas características, necessidades ou circunstâncias pessoais, econômicas, educativas ou sociais, se encontrem, ainda que territorial, setorial ou temporalmente, em uma situação especial de subordinação, impotência ou desproteção que impeça o exercício de seus direitos como pessoas consumidoras em condições de igualdade”; na sequência, afirma que será prestada atenção especial a setores que “(…) contem com maior proporção de consumidores vulneráveis entre seus clientes ou usuários (…)” e que o direito básico à informação do consumidor (art. 6º, III, CDC), bem como no que concerne à oferta (art. 31, CDC), se dará “principalmente quando se tratar de consumidor vulnerável”. Há outras menções no PL de cunho (restritivo) semelhante.

Parafraseando Drummond de Andrade, “no meio do caminho tinha uma pedra”. E essa “pedra” nos excertos trazidos do texto proposto é justamente uma situação especial, maior proporção de consumidores vulneráveis e principalmente, que vai de encontro à principiologia do CDC ao cercar a vulnerabilidade a algumas hipóteses. A justificativa da proposta encontra respaldo na Nova Agenda do Consumidor da União Europeia que, segundo o PL, concebe “a vulnerabilidade como um conceito dinâmico, em que uma pessoa pode ser considerada vulnerável em determinado âmbito de consumo, mas não em outros, e em algum momento de sua vida, mas não em outros”.

A União Europeia tem, contemporaneamente, um quadro definido de consumidores que considera vulneráveis, como os doentes, idosos e crianças, e, nesse sentido, a Agenda se presta à expansão, não à contração (como seria se o PL fosse aprovado no Brasil). Ora, se todos os consumidores são vulneráveis, não há razão de elaborar uma proposta normativa no sentido de considerar apenas alguns em especial vulneráveis, contrariando todo um arcabouço técnico, dogmático e jurisprudencial. Paradoxalmente, o que pretende se efetivar, em verdade, está se limitando, embaraçando o movimento expansionista do reconhecimento de novos fatores que dão causa à vulnerabilidade, tema tão importante em tempos de transformação digital.

Isto não significa que o CDC ou quaisquer normas que se destinem à proteção dos consumidores não necessitem de atualização ou de revigoramento em atenção a determinadas temáticas e situações, como o mercado de consumo digital. Muito antes o contrário. A noção aberta da vulnerabilidade tem pelo menos dois propósitos fundamentais: um, de ordem conceitual (o quê), busca investigar os diversos fatores que levam à vulnerabilidade e; dois, de ordem prática[3] (para quê), busca identificar e criar instrumentais jurídicos e de políticas públicas para promover a resiliência dos sujeitos vulneráveis no mercado.

É claro, como operadores do Direito, lidamos com termos técnicos e precisos, mas também a interpretação aqui desempenha papel fundamental na concreção da vulnerabilidade porque ela é, de fato, dinâmica e polissêmica: devido às circunstâncias que se modificam rapidamente no mercado de consumo, quem hoje não é considerado vulnerável poderá amanhã o ser – o que está se tornando regra no mercado digital.

De acordo com uma equipa liderada por Micklitz[4], a noção de vulnerabilidade digital descreve o poder e a capacidade de atores comerciais de afetarem decisões, desejos, necessidades e comportamentos de uma maneira que o consumidor tende a não tolerar, mas também não está em posição de impedir. Serve, assim, para delinear um estado universal de indefesa e de suscetibilidade à exploração de desequilíbrios por parte do parceiro que em algum sentido é mais forte, o que é favorecido pela automação do mercado de consumo, pela sua arquitetura, pela utilização de dados pessoais e pela concentração das funções de gerenciamento e de condução da dimensão digital em plataformas[5].

Trata-se de uma vulnerabilidade facilmente percebida, passível de reconhecimento a partir de abordagens distintas[6]: a falta ou o excesso de informação; a falta de compreensão dos termos unilateralmente elaborados em termos e condições de uso e congêneres (se e quando lidos); a ausência ou insuficiência de mecanismos jurídicos aptos a tutelar o sujeito em meio digital; autoexecutabilidade de smartcontracts; a opacidade de sistemas, produtos e serviços inteligentes; a questão da privacidade; a falta de conhecimentos especializados nem só sobre o bem de consumo, mas sobre toda a jornada do consumidor; a prática de gamificação em plataformas para atrair a atenção e possibilitar condutas pré-programadas; a falta de familiaridade com aparatos digitais; iliteracia digital e analfabetismo funcional; dependência; a natureza cativa das relações com as plataformas, que possibilita o aperfeiçoamento de perfis dos consumidores e que poderão ser utilizados para a tomada de decisões automatizadas; discriminações por intermédio de Inteligência Artificial ou outras tecnologias, e influência injustificada nas decisões dos consumidores são alguns dos fatores que refletem o conteúdo a ser preenchido da vulnerabilidade digital. Daí que, possivelmente, a melhor abordagem para a vulnerabilidade não seja sua conceituação rígida. Mas, sim, sua descrição e o seu reconhecimento a partir do refinamento de fatores que dão causa a desequilíbrios e assimetrias nas relações entre fornecedores e consumidores, em geral, e no ambiente digital, em especial.


[1] CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 502.

[2] MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: RT, 2014. p. 52

[3] Assim, por exemplo, a atualização do CDC pela Lei do Superendividamento no Brasil: Art. 54-C. É vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não: (…) IV – assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio.

[4] MICKLITZ, Hans Wolfgang et al. Choice Architectures in the Digital Economy: Towards a New Understanding of Digital Vulnerability. Journal of Consumer Policy, 2021, 1-26.

[5] MARTINS, Guilherme; MUCELIN, Guilherme. Inteligência Artificial, perfis e controle de fluxos informacionais: a falta de participação dos titulares, a opacidade dos sistemas decisórios automatizados e o regime de responsabilização. In DE LUCCA, Newton et al. (orgs.). Direito e Internet: Internet das Coisas e Inteligência Artificial em Ambiente de Liberdade Econômica. 2022. No prelo.

[6] MIRAGEM, Bruno. Princípio da vulnerabilidade: perspectiva atual e funções no direito do consumidor contemporâneo. In: _____; MARQUES, Claudia; MAGALHÃES, Lúcia Ancona. Direito do Consumidor: 30 anos do CDC – da consolidação como direito fundamental aos atuais desafios da sociedade. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 249.

Alegações Ambientais e o Ecobranqueamento: a defesa dos direitos dos consumidores no âmbito da transição verde

Legislação

Existe atualmente um crescente impacto da comunicação comercial com recurso a alegações ambientais que visam influenciar as decisões de compra do consumidor. Tornou-se banal depararmo-nos com referências à sustentabilidade ou reciclabilidade de um produto. Proliferaram os selos, logos e certificações. A utilização de expressões como “Green” ou “Eco” foram banalizadas e alegações ambientais genéricas e vagas são muitas vezes uma prática no mercado.

A 30 de março de 2022 foi publicada pela Comissão Europeia, a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera as Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/UE, no que diz respeito à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e de melhor informação.

Na preparação da Proposta, foram consultados mais de 12.000 consumidores, empresas, autoridades nacionais dos Estados-Membros e especialistas na área do consumo e Direito do Consumo, tendo a mesma revelado que o receio do ecobranqueamento tem impedido os consumidores de participar mais ativamente na transição verde. A questão da fiabilidade da informação surgiu como a principal questão para o consumidor.

A viabilidade da reparação dos produtos foi identificada como passível de permitir aos consumidores uma escolha de produtos mais sustentáveis e, por sua vez, uma melhor informação sobre a durabilidade dos mesmos foi identificada como a melhor opção para capacitar os consumidores na transição ecológica, permitindo assim uma economia circular.

É de grande importância e de se sublinhar a crescente atenção dada pela Comissão Europeia à temática das alegações ambientais. A Proposta visa, entre outros objetivos, a proteção dos consumidores no âmbito de práticas comercias desleais que induzam o consumidor em erro quanto às suas escolhas de consumo sustentável, reforçando o princípio do direito à informação.

É uma das iniciativas previstas na Nova Agenda do Consumidor e no Plano de Ação para a Economia Circular e dá seguimento ao Pacto Ecológico Europeu, mais conhecido como o Green Deal.

Mais precisamente, a Proposta visa, entre outros, impedir as práticas de ecobranqueamento, de obsolescência precoce e de utilização de rótulos, selos e certificações não fiáveis.

São adicionadas dez práticas comerciais ao elenco constante no anexo I da Diretiva 2005/29/CE que devem ser consideradas desleais em quaisquer circunstâncias, sendo três delas sobre o tema das alegações ambientais.

O foco recai igualmente sobre as informações pré-contratuais, sendo alterada a Diretiva 2011/83/EU. A Proposta introduz os conceitos de durabilidade e reparabilidade dos produtos, temas relacionados com a obsolescência programada/precoce, sendo curiosamente introduzida uma pontuação de reparabilidade. O consumidor é assim capacitado para uma participação mais ativa na economia circular.

No que dirá respeito à durabilidade, passa a ser necessária a prestação de informação sobre a existência e a duração da garantia comercial de durabilidade dos produtos, sempre que o produtor disponibilize essa informação. Notamos que estas alterações são estendidas à celebração de contratos à distância e de contratos celebrados fora do estabelecimento comercial.

Trata-se portanto de uma Proposta com o objetivo claro de contribuição para o bem-estar dos consumidores europeus e para a economia da UE.

No âmbito nacional assinala-se igualmente um crescente foco nas temáticas trazidas pela transição verde.

A Direção-Geral do Consumidor (DGC) é a entidade pública em Portugal que tem por missão a definição e execução da política de defesa do consumidor, sendo responsável pelo acompanhamento e fiscalização da publicidade em Portugal e se tem movimentado numa ótica de sensibilização e informação tanto junto dos profissionais como dos consumidores.

Em Outubro de 2021, foi lançado pela DGC e pela Auto Regulação Publicitária, um guia explicativo, que visa orientar os profissionais para práticas transparentes e capacitar o consumidor para escolhas mais conscientes tendo em conta as implicações ecológicas dos seus hábitos de consumo.

São exemplificadas boas e más práticas, sendo claro que qualquer alegação ambiental deverá ser “verdadeira, precisa e capaz de ser comprovada através de provas científicas”, que por sua vez deverão estar disponibilizadas ao consumidor de forma imediata e junto da alegação em causa, devendo a linguagem ser acessível e clara.

É assim que aguardamos com expectativa as negociações e emendas do Parlamento Europeu e do Conselho, a publicação da Diretiva e a sua posterior transposição, sendo certo que todo o trabalho efetuado a nível Europeu e em Portugal permitirá uma maior capacitação do consumidor para um consumo sustentável, circular e consciente das suas implicações ecológicas.

“Sustainable development is development that meets the needs of the present without compromising the ability of future generations to meet their own needs.” Gro Harlem Brundtland, Líder internacional em desenvolvimento sustentável.

Caso Fuhrmann‑2 – O Tribunal de Justiça volta a chutar para canto

Jurisprudência

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu, no passado dia 7 de abril, o acórdão do Caso Fuhrmann-2 (Processo C-249/21). Tal como no recente Caso Tiketa, aqui analisado, em que o TJUE não conclui se uma simples remissão para o conteúdo de um link é suficiente para se considerar cumprido o dever de informação constante da Diretiva 2011/83/UE, também neste acórdão a questão fica em aberto, ainda que num contexto diferente.

O art. 8.º-2 da Diretiva 2011/83/UE, na parte relevante para este efeito, estabelece que, “se a realização de uma encomenda implicar a ativação de um botão ou uma função semelhante, o botão ou a função semelhante é identificado de forma facilmente legível, apenas com a expressão «encomenda com obrigação de pagar» ou uma formulação correspondente inequívoca, que indique que a realização de uma encomenda implica a obrigação de pagar ao profissional”.

No caso em análise, a questão resume-se, no essencial, a saber se a expressão «Terminar reserva» (na duvidosa tradução para português da expressão alemã «Buchung abschließen»), apresentada no site da internet da Booking, pode ser considerada equivalente à expressão «encomenda com obrigação de pagar».

Não havendo qualquer referência a “pagamento” na expressão em causa, a resposta negativa parece clara.

No entanto, o TJUE devolve a questão ao tribunal nacional, indicando, com utilidade, que “há que atender unicamente à indicação que figura [no] botão ou […] função semelhante”. É realçada, portanto, a autonomia do botão ou função semelhante em relação a momentos anteriores do caminho para a celebração do contrato. Ou, dizendo-o de outra forma (considerando 32), deve atender-se “apenas aos termos utilizados por essa formulação e independentemente das circunstâncias que rodeiam o processo de reserva”.

Como se pode ler no considerando 33, na sequência da decisão do TJUE, o tribunal nacional deverá “verificar se o termo «reserva» está, em língua alemã, tanto na linguagem corrente como no espírito do consumidor médio[1], normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, necessária e sistematicamente associado ao surgimento de uma obrigação de pagamento. Em caso de resposta negativa, não se pode deixar de observar o caráter ambíguo da expressão «Terminar reserva», pelo que esta expressão não pode ser considerada uma formulação correspondente à expressão «encomenda com obrigação de pagar»”. Ficaria muito surpreendido se o tribunal alemão viesse a concluir no sentido da equivalência entre as duas expressões, pelo que não compreendo a razão pela qual o TJUE não se limita a considerar a expressão «Terminar reserva» inadmissível, à luz do direito europeu. Tornaria o direito mais claro para todos, nomeadamente para as empresas que utilizam sistemas de contratação através da Internet.


[1] Trata-se da única referência ao “consumidor médio” em toda a decisão e que surge num contexto que não é tão habitual. Será que, no domínio do direito do consumo, a interpretação do contrato deverá passar a ter como referência o consumidor médio e não o declaratário normal? Ou ter-se-á tratado de um desvio linguístico inadvertido?

Em busca de um conceito de consumidor vulnerável

Legislação

O Programa do XXIII Governo Constitucional, apresentado e debatido no Parlamento nos dias 7  e 8 de abril de 2022, prevê a definição do Estatuto do Consumidor Vulnerável. A medida, pouco concretizada para já, assenta na fixação de um conjunto de critérios e direitos correspondentes à condição de consumidor vulnerável, o que parece apontar para aprovação de um instrumento legislativo de caráter transversal.

Entre nós, encontramos referência expressa ao consumidor vulnerável no art. 6.º-a) do Decreto-Lei n.º 57/2008, que transpôs para a nossa ordem jurídica a Diretiva n.º 2005/29/CE, relativa às práticas comerciais desleais (PCD).

Apesar de não avançar com uma definição em sentido próprio, o regime das PCD estabelece, com base numa delimitação subjetiva, dois níveis de proteção: um nível genérico, visando proteger todos tipos de consumidores relativamente a práticas comerciais desleais, e uma tutela reforçada, fundamentada na especial fragilidade dos consumidores que integram uma categoria específica, em função de três critérios não taxativos: doença mental ou física, idade ou credulidade.

Porém, enquanto na Diretiva o conceito emerge no art. 5.º-3, funcionando como um critério para a aplicação da cláusula geral do regime, na versão portuguesa, a matéria surge num patamar autónomo, sob a epígrafe “práticas comerciais desleais em especial, no art. 6.º-a), opção sistemática no mínimo discutível.

Na legislação nacional, assinala-se, ainda, uma diferenciação entre consumidores, com base em critérios económicos, nos diplomas que criaram as tarifas sociais de fornecimento de energia elétrica, de gás natural, de água e de serviços de acesso à Internet em banda larga, pese embora as expressões utilizadas sejam distintas[1].

Na mesma senda, também no art. 14.º do Código da Publicidade é possível encontrar regras que disciplinam a publicidade especialmente dirigida a menores, orientadas para proibir práticas que explorem a “vulnerabilidade psicológica”, enquanto caraterística comummente associada a este conjunto de consumidores.

Nos últimos dois anos, fruto da crise sanitária provocada pela pandemia de COVID-19, que colocou em evidência a situação de especial fragilidade de certos grupos de consumidores, a matéria da proteção dos consumidores vulneráveis ganhou novo fôlego.

Com isto em mente, no ponto 4 da Nova Agenda do Consumidor para 2020-2025, apresentada em novembro de 2020, a Comissão Europeia alertou para a necessidade de “dar resposta às necessidades específicas dos consumidores”, considerando que “certos grupos de consumidores podem, em determinadas situações, ser particularmente vulneráveis e necessitar de salvaguardas específicas”, numa abordagem muito voltada para os casos de endividamento.

Recentemente, no passado dia 2 de março, entrou em vigor em Espanha a Ley 4/2022, de 25 de febrero, relativa à proteção dos consumidores e utilizadores em situações de vulnerabilidade social e económica.

Em consonância com o regime especial, criado no contexto pandémico pelo Real Decreto-ley 1/2021, de 19 de enero, este diploma introduziu o art. 3.º- 2 na Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios, que passou a incluir a definição de consumidor vulnerável, integrando as pessoas singulares que, individual ou coletivamente, devido às suas características, necessidades ou circunstâncias pessoais, económicas, educacionais ou sociais, se encontram numa situação especial de subordinação, indefensabilidade ou falta de proteção que as impede de exercer os seus direitos como consumidores em condições de igualdade.

Assim, no art. 8.º-1 surgem elencados os direitos básicos dos consumidores e no art. 8.º-2 encontramos agora uma referência expressa a esta categoria, determinando que os direitos dos consumidores vulneráveis devem beneficiar de uma atenção especial, que será coberta pelos regulamentos e pelas regulamentações sectoriais aplicáveis em cada caso.

Já no Brasil, ordenamento no qual vigora a figura da hipervulnerabilidade por a vulnerabilidade ser encarada como uma caraterística ínsita no próprio conceito de consumidor, o art. 39.º, IV, do Código de Defesa do Consumidor proíbe o fornecedor de produtos ou serviços de “(…) prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços”.

Como pode constatar-se, tanto o legislador brasileiro como o espanhol optaram por reconhecer a existência de grupos que carecem de especial proteção em função de critérios qualificadores ricos em conceitos indeterminados, cujo preenchimento caberá ao intérprete-aplicador.

Conforme ficou patente, o grupo dos consumidores vulneráveis está longe de ser homogéneo. Com efeito, a vulnerabilidade assume contornos diversos e pode manifestar-se em diversos planos − socioeconómico, técnico, jurídico, informacional, psicológico, digital – e até de forma cumulativa.

Além disso, não se trata de uma realidade estanque: um consumidor pode encontrar-se numa situação de particular vulnerabilidade exclusivamente numa determinada conjuntura em função de circunstâncias que podem alterar-se no tempo e no espaço.

A natureza dinâmica do conceito reflete-se, também, nos novos desafios que o consumidor enfrenta em virtude da evolução tecnológica, que podem, por exemplo, realçar fragilidades específicas do ambiente digital[2].  

Neste quadro, cremos que a vulnerabilidade deve ser vista não como uma condição, mas como um estádio que pode ou não ser temporário, e, ainda, como um espectro, contemplando diversos graus de incidência[3].

De resto, cremos que aqui poderá residir uma das maiores dificuldades a enfrentar pelo nosso legislador no que toca à densificação do conceito: a vulnerabilidade é um fenómeno multidimensional e mutável, o que pode conviver mal com uma lógica de cristalização normativa. Aguardamos, por isso, com natural expectativa os desenvolvimentos que se avizinham neste domínio.


[1] No art. 5.º do Decreto-Lei n.º 138-A/2010, que fixa a tarifa social de fornecimento de energia elétrica e no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 101/2011, que cria a tarifa social de fornecimento de gás natural, o legislador refere-se a “clientes finais economicamente vulneráveis”, no art. 2.º do Decreto-Lei n.º 147/2017, que consagra o regime da tarifa social relativa à prestação dos serviços de águas, recorre-se ao conceito de “pessoas singulares que se encontrem em situação de carência económica” e no art. 4.º do Decreto-Lei n.º 66/2021, que estabelece a tarifa social de internet, determina-se que a medida se destina a “consumidores com baixos rendimentos ou com necessidades sociais especiais”.

[2] Nas Orientações sobre a interpretação e a aplicação da Diretiva 2005/29/CE, a Comissão Europeia refere que “as formas pluridimensionais de vulnerabilidade são particularmente acentuadas no ambiente digital, que se caracteriza cada vez mais pela recolha de dados sobre características sociodemográficas, mas também por características pessoais ou psicológicas, tais como interesses, preferências, perfil psicológico e humor”.

[3] Neste sentido, relatório final do estudo Consumer vulnerability across key markets in the European Union, que examinou a incidência da vulnerabilidade na UE a 28 e na Islândia e Noruega, divulgado pela Comissão Europeia, em 2016.

O Caso Tiketa e o alargamento do conceito de profissional ao intermediário

Jurisprudência

No dia 24 de fevereiro de 2022, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) proferiu um acórdão, no âmbito do Caso Tiketa (Processo C-536/20), que se debruça sobre duas questões muito relevantes em matéria de direito europeu do consumo. Em primeiro lugar, pergunta-se se o conceito de profissional da Diretiva 2011/83/UE abrange a pessoa que atua como intermediária de um profissional. Em segundo lugar, está em causa o valor jurídico de uma remissão para as condições gerais do serviço constantes de um site no caso de o consumidor ter declarado a sua aprovação. Por um lado, importa saber se essa aprovação implica o cumprimento do dever de informação pré-contratual. Por outro lado, é necessário verificar se está cumprida a obrigação de confirmação através de um suporte duradouro.

A Tiketa é uma empresa que exerce, na Lituânia, uma atividade de distribuição de bilhetes para eventos (14)[1]. No dia 7 de dezembro de 2017, o consumidor adquiriu um bilhete para um evento cultural, organizado pela Baltic Music, a realizar no dia 20 de janeiro de 2018. Antes da conclusão do contrato, constava no site da Tiketa que esse evento era organizado pela Baltic Music. Também se podia ler, em letras vermelhas, a seguinte informação: o “organizador do evento assume total responsabilidade pelo evento, pela sua qualidade e conteúdo, bem como por quaisquer informações relacionadas. A Tiketa é o distribuidor dos bilhetes e atua na qualidade de agente comercial”. Das “condições gerais da prestação de serviços”, disponíveis no site da Tiketa, constavam “informações mais precisas sobre o prestador de serviços em causa e o reembolso dos bilhetes” (15). O bilhete reproduzia apenas uma parte dessas condições gerais, contendo, “em especial, a menção de que os “bilhetes não são trocados nem reembolsados. Em caso de cancelamento ou de adiamento do evento, o organizador [deste] responde integralmente pelo reembolso do preço dos bilhetes”. Do bilhete constava igualmente “o nome, o endereço e o número de telefone do organizador do evento em causa e era indicado que este último era totalmente responsável «pelo evento, pela sua qualidade e conteúdo, bem como pelas informações relacionadas», na medida em que a Tiketa atuava apenas como distribuidor de bilhetes e «agente comercial»” (16).

No dia marcado para o evento, o consumidor ficou a saber, através de cartaz afixado no local, que o mesmo não se realizaria (17). Dois dias depois, a Tiketa informou o consumidor de que poderia obter, em linha, o reembolso do valor pago (18). No dia seguinte, o consumidor veio exigir à Tiketa o reembolso do valor pago e uma indemnização pelas “despesas de viagem” e pelos “danos morais sofridos devido ao cancelamento do evento em causa”, tendo esta remetido a questão para a Baltic Music, que nunca respondeu (19).

Em julho do mesmo ano, o consumidor propôs uma ação contra as duas empresas, pedindo a sua condenação solidária (20). O tribunal de primeira instância decidiu, menos de três meses depois (!), julgando “o pedido parcialmente procedente, condenando a Tiketa a pagar ao interessado as quantias pedidas a título de reparação dos seus danos materiais e uma parte das pedidas a título de reparação do seu dano moral, acrescendo juros à taxa anual de 5% a contar da propositura da ação até à execução integral da sua sentença” (21). O tribunal de segunda instância manteve a decisão, o que motivou o recurso para o Supremo Tribunal, que suspendeu a instância, submetendo várias questões prejudiciais ao TJUE, já resumidas no primeiro parágrafo do presente texto.

A primeira questão consiste em saber se o conceito de profissional abrange a pessoa que atua como intermediária.

O art. 2.º-2 define profissional como “qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que, nos contratos abrangidos pela presente diretiva, atue, incluindo através de outra pessoa que atue em seu nome ou por sua conta, no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.

A versão em lituano é diferente da versão em português (25 e 26): “qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que atue no âmbito de um contrato abrangido pela presente diretiva para fins ligados à sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional, incluindo qualquer outra pessoa que atue em nome ou por conta do comerciante”.

Segundo o TJUE (27), impõe-se uma interpretação das diretivas em caso de disparidades linguísticas que tenha em conta a sua economia geral, o que remete para o elemento sistemático de interpretação, e a sua finalidade (elemento teleológico). Conclui o TJUE, à luz destas orientações, que o intermediário é profissional, sendo irrelevante se o intermediário informou que era intermediário para ser qualificado como profissional nos termos do diploma (34). Constituem argumentos do TJUE que (i) o art. 6.º-1-c) pressupõe que é profissional o intermediário, uma vez que, além dos seus dados, devem ser prestados os dados “do profissional por conta de quem atua” (28), que (ii) se impõe uma interpretação homogénea, resultando do acórdão proferido no Caso Kamenova (32, 33, 36) que profissional é qualquer pessoa que atue com fins profissionais ou em nome ou por conta de um profissional (29), e que (iii) o art. 1.º convida a uma interpretação ampla do diploma (30).

Segundo o TJUE, o Caso Wathelet, que qualifica um intermediário como vendedor, não releva neste contexto, uma vez que a Diretiva 2011/83/UE não determina a identidade das partes nem a repartição das responsabilidades (33).

O TJUE conclui, portanto, que quer o intermediário quer o profissional em nome de quem este atua podem ser qualificados como profissionais para efeitos do cumprimento das normas do diploma europeu.

A segunda questão, apesar de não ser colocada nestes precisos termos pelo TJUE, consiste em concluir sobre o valor jurídico de uma remissão para as condições gerais do serviço constantes de um site no caso de o consumidor ter declarado a sua aprovação.

O TJUE começa (41) por distinguir as obrigações materiais de informação (art. 6.º) das obrigações formais (art. 8.º).

Antes da celebração do contrato, o profissional apenas deve fornecer as informações exigidas pelo art. 6.º-1 “de uma forma clara e compreensível” (45), só após a celebração do contrato se impondo ao profissional confirmar através de um suporte duradouro.

Logo, em abstrato, é suficiente que o consumidor selecione, no site, a casa prevista para o efeito para se considerar que as informações são levadas ao conhecimento (46). No entanto, salienta-se que cabe ao tribunal nacional avaliar se as informações foram fornecidas de forma clara e compreensível (47).

Na prática, tenho algumas dúvidas de que uma remissão para um site seja mais do que uma ficção de conhecimento (e de aprovação), claramente insuficiente para que se possa considerar cumprido o dever de informação de forma clara e compreensível.

Esse procedimento de informação (pré-contratual) não substitui a (obrigação contratual de) confirmação em suporte duradouro (48), uma vez que a informação constante de um site não é fornecida através de um suporte duradouro (51).

Independentemente do incumprimento da obrigação de confirmação em suporte duradouro, as informações prestadas são parte do contrato, nos termos do art. 6.º-5 (52). Em suma, o TJUE conclui que a Tiketa deve ser qualificada como profissional para efeitos de aplicação da Diretiva 2011/3/UE. Quanto ao cumprimento, pela Tiketa, do dever de informação pré-contratual de informação, a resposta cabe ao tribunal nacional, que deve avaliar se o mesmo foi cumprido através de uma forma clara e compreensível. Já quanto ao cumprimento da obrigação de confirmação através de um suporte duradouro, o TJUE conclui que não basta que a informação tenha estado disponível no site, com aprovação pelo consumidor, em momento anterior à celebração do contrato.


[1] Os contratos celebrados através da Tiketa não são, naturalmente, contratos de compra e venda de bilhete, uma vez que o bilhete não é o objeto principal do contrato. Se se tratar de espetáculo artístico, teremos um contrato para a assistência a espetáculo desportivo, contrato misto em que predomina o elemento prestação de serviço. Note-se que os números indicados entre parêntesis correspondem aos considerandos do Acórdão em que a questão em causa é abordada.