Carlos Ferreira de Almeida e o Direito do Consumo

Recensão

Não tive a honra de ser aluno do Professor Carlos Ferreira de Almeida nem sequer de o conhecer pessoalmente. Sei, porém, que o seu desaparecimento, no início de fevereiro último, marcou, de modo indelével, uma plêiade de juristas (e não juristas) que tiveram o privilégio de conviver e beber da inteligência e sabedoria do Professor e, como tal, guardam uma imensa saudade do insigne Mestre.

Em particular, colegas e estudantes da NOVA School of Law conservam uma dívida de gratidão para com o Professor Carlos Ferreira de Almeida por, ao lado de Diogo Freitas do Amaral, ter contribuído decisivamente para a criação desta Faculdade de Direito, integrando a sua Comissão Instaladora, no âmbito da qual assumiu um papel crucial na criação do seu curso de Doutoramento – então, uma novidade no cursus honorum dos académicos das Leis –, e na fundação da Unidade de Mediação e Acompanhamentos de Conflitos de Consumo (UMAC), que antecedeu ao NOVA Consumer Lab.

Como sublinhou Marcelo Rebelo de Sousa em mensagem evocativa publicada no sítio da internet da Presidência da República, a par de “diversas funções públicas de relevo” que desempenhou, o Professor Carlos Ferreira de Almeida foi um “jurista distinto”, “por todos respeitado e admirado pelas suas qualidades científicas e pedagógicas”, que, como todos os grandes cultores das Artes e das Letras, para lá da lei da morte, deixa uma “vasta e marcante obra” literária, que continuará a formar gerações de estudantes e profissionais do Direito.

Neste sentido, reportando-me à experiência pessoal, comecei a contactar com a produção científica do Professor Carlos Ferreira de Almeida no início do meu estágio de advocacia, pela mão do meu patrono, Paulo Duarte, por sorte um reconhecido estudioso e entusiasta do Direito do Consumo, que, em inúmeras ocasiões, me incitou a mergulhar na leitura e análise atentas de alguns dos principais manuais do aqui homenageado, nomeadamente os vários volumes da obra “Contratos” e a sua tese de Doutoramento “Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico”, publicada em dois volumes, que, nas palavras do meu patrono, constitui um dos maiores monumentos da ciência jurídica portuguesa, de passagem obrigatória na formação contínua de qualquer jurista luso.

Mais recentemente, graças ao contributo inestimável do Professor Jorge Morais Carvalho, tive a oportunidade de proceder à leitura integral de outras duas obras que, em diferentes estádios da afirmação do Direito do Consumo, se assumem como verdadeiros marcos incontornáveis na doutrina jurídico-consumerística, a saber: “Os Direitos dos Consumidores”, publicado em 1982, e “Direito do Consumo”, dado à estampa em 2005, ambos editados pela Almedina.

Assumidamente influenciado pelas lições do grego Simitis (“Verbraucherschutz, Schlagwort oder Rechtsprinzip?” – numa tradução livre, “Proteção do consumidor, bordão ou princípio jurídico?”) e do alemão Reich (“Markt und Recht: Theorie u. Praxis d. Wirtschaftsrechts in d. Bundesrepublik Deutschland – numa tradução livre, “Mercado e Direito: Teoria e Prática do Direito Empresarial na República Federal da Alemanha”), em 1982, Ferreira de Almeida brindou-nos com a primeira obra jurídica de fundo dedicada aos direitos dos consumidores (e não ao Direito do Consumidor, designação que sempre rejeitou, por circunscrever o tratamento das situações jurídicas de consumo a um dos conceitos subjetivos – que não o único – nelas considerados). A partir da leitura e exame desta obra, conseguimos percecionar as preocupações emergentes nos finais dos anos 70 e inícios dos anos 80, espelhadas, superlativamente, pelos textos da “Carta do Conselho da Europa sobre a Proteção do Consumidor” (Resolução n.º 543 de 17 de maio de 1973), do “Programa Preliminar da Comunidade Económica Europeia para uma política de proteção e de informação dos consumidores” (Resolução do Conselho de 14 de abril de 1975) e do “Segundo Programa da Comunidade Económica Europeia para uma Política de Proteção e de Informação dos Consumidores” (Resolução do Conselho de 19 de maio de 1981) – cláusulas abusivas em contratos-tipo; vendas agressivas; condições abusivas de crédito; vendas de bens não solicitados; responsabilidade do produtor (esta última, ainda hoje, com um regime objetivamente insatisfatório) –, bem como o catálogo de direitos fundamentais neles previstos, o qual serviu de base para a organização sistemática das matérias de direito substantivo e processual abordadas, sempre com encadeamento lógico, pelo Professor.

Numa breve afloração do conteúdo da obra ora em apreço e de entre os muitos aspetos dignos de destaque, pela sua relevância teórico-prática (aqui, considerando que o Professor nunca acreditou numa distinção rígida entre teoria e prática, seja no ensino universitário, seja na investigação científica, a qual, na sua perspetiva, sempre devia versar sobre situações reais da vida quotidiana em detrimento dos artificialismos que, amiúde, apaixonam os académicos, encerrados nas suas torres de marfim), tomamos a liberdade de enfatizar os seguintes: a exposição dos sistemas de controlo (judicial, administrativo e misto) das cláusulas abusivas integradas nos contratos-tipo, suas vantagens e deméritos, a qual reveste de extremo interesse para a análise crítica da solução normativa do art. 3.º da Lei n.º 32/2021, de 27 de maio, ainda a aguardar a necessária regulamentação; a exaltação da lesividade para o consumidor associada à prática de preços impostos verticalmente e de preços aconselhados, assim como dos limites à liberdade de fixação dos preços, nomeadamente, a sua determinabilidade objetiva, a não discriminação entre clientes (hoje, frequentemente posta em crise, com a prática de personalização de preços) e a proibição do “dumping”; a equiparação “tout court” do cumprimento defeituoso ao incumprimento contratual e o apelo à noção de desconformidade em sentido lato (por influência da Convenção de Haia de 1964 sobre a Compra e Venda e a Convenção de Viena sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias de 1980) para o tratamento da venda de bens de consumo defeituosos; a consideração da assistência pós-venda satisfatória como dever integrado no normal cumprimento dos contratos de fornecimento de bens de consumo; a demonstração dos inconvenientes da aplicação “tout court” dos princípios fundamentais do processo civil à resolução de litígios de consumo, concretamente, o princípio dispositivo, o princípio da igualdade (uma “pura abstração”) e as regras gerais de repartição do ónus da prova; a preocupação em salientar a inibição dos consumidores perante a ação judicial, determinada, esta, pelas despesas com o processo, pela morosidade e pelo “calão jurídico profissional”; a preocupação em abordar e sustentar a importância de criação de estruturas especializadas para resolução dos litígios de consumo com tramitação processual simplificada (além de simplificação das provas e maior peso do princípio inquisitório), que privilegiem a definição da competência territorial em função do domicílio do consumidor e que não sirvam de instrumento ao serviço da cobrança de dívidas pelas empresas; a constatação do papel de destaque (então) conferido às associações de defesa dos consumidores (sobretudo as de estatuto pleno) na tutela coletiva dos direitos do sujeito mais débil da relação jurídica de consumo e ao nível da participação na tomada de decisões político-legislativas; a crítica à desconsideração do pequeno valor que, tipicamente, assumem as ações relativas a litígios de consumo para efeitos de assistência judiciária, já então marcada pela incapacidade de assegurar compensação adequada aos advogados envolvidos no sistema de acesso aos direito e aos tribunais; a inadmissibilidade do “dolus bonus” nos negócios jurídicos de consumo; o destaque e tratamento conferidos ao elemento relacional para caracterizar o negócio jurídico (e não apenas o contrato) de consumo (assim abarcando figuras como a proposta contratual, a oferta ao público, o negócio a favor de terceiro e a responsabilidade extracontratual); a promoção da extensão da relação de consumo aos membros do agregado familiar que vivem com o sujeito adquirente em economia comum (relevante, por exemplo, para a admissibilidade de ressarcimento de danos reclamados por pessoa diferente do titular do contrato de fornecimento de energia elétrica em caso de interrupção ilícita do serviço); a caracterização da natureza (tríplice) dos direitos dos consumidores consagrados na Lei de Defesa do Consumidor de 1981 como “direitos económicos gerais” em relação ao Estado (e que dele requerem a sua concretização como incumbências prioritárias, nos termos da alínea i) do art. 81.º da CRP), “direitos coletivos” (na promoção e tutela de interesses difusos) e direitos subjetivos (oponíveis aos profissionais, nas relações diretas com eles mantidas); e o não reconhecimento de autonomia científica ao Direito do Consumo, antes tratando-o como um tema de Direito Económico (quanto aos “direitos económicos gerais” e aos “direitos coletivos”) e de Direito Comercial e Civil (quanto aos “direitos subjetivos”).

Volvidos 23 anos, embora continuando a negar a sua autonomia científica, o Professor Carlos Ferreira de Almeida embarcou em nova deambulação pelo Direito Privado do Consumo, que veio a conquistar um merecido lugar de entre os manuais obrigatórios no estudo universitário das relações jurídico-consumerísticas. Adotando uma estrutura peculiar na exposição das matérias, diversa daquelas que, habitualmente, encontramos em manuais similares, mas que conserva, a todo o momento, uma conexão e encadeamento lógicos entre temas, é de imperiosa justiça enaltecer, em primeiro lugar, a preocupação do Professor em desenvolver, sempre que pertinentes, exercícios de Direito Comparado, seja para compreensão dos antecedentes legislativos que inspiraram os diplomas em análise, seja para retratar as soluções vigentes nos principais ordenamentos das famílias romano-germânica e anglo-saxónica.

Ademais, a par de outros méritos de que a obra é merecidamente credora, ousamos destacar: o aprumo e rigor técnico-jurídico no tratamento da figura do direito de arrependimento, sua natureza e efeitos, consoante o modelo (de eficácia suspensiva ou de eficácia resolúvel) em causa, distinguindo-a de realidades afins, particularmente, a faculdade de retratação; a preocupação em exaltar que os habitualmente identificados deveres de comunicação e de informação, consagrados nos arts. 5.º e 6.º do DL n.º 446/85, de 25 de outubro, se assumem, na verdade, como ónus, cujo incumprimento determina a consequência desfavorável da não inclusão, no contrato, de cláusulas contratuais (gerais); a arrumação dos padrões relevantes para a qualidade da coisa vendida, distinguindo entre requisitos objetivos e subjetivos, em termos próximos daqueles que, previsivelmente, passarão a constar do decreto-lei de transposição das Diretivas 2019/770 e 2019/771, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, sobre certos aspetos relativos aos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais e relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens, respetivamente; o tratamento das mensagens publicitárias como cláusulas contratuais gerais para efeitos da sua inserção nos contratos singulares (art. 2.º do DL n.º 446/85), o que parece ter sido ignorado pelo legislador nacional aquando da adoção da já referida Lei n.º 32/2021; a caracterização da conformidade, com recurso a uma fórmula de suma eloquência, como relação deôntica entre o ser (referente) e o dever ser (referência), reconduzindo-a ao cumprimento da obrigação de entrega; e a aplicação da figura da promessa pública para caracterização da declaração ou compromisso de garantia comercial/voluntária.

Uma derradeira consideração importa dedicar ao prognóstico desenvolvido nesta segunda obra quanto ao futuro do Direito do Consumo, entre a sua autonomização e a diluição no direito comum, que suscitou em mim um interesse particular, atenta a evolução conhecida desde a elaboração da obra, nomeadamente quanto ao conceito de consumidor (predominando, aqui, a conceção estrita, pelo menos ao nível do Direito da União Europeia, em que releva o elemento subjetivo) e quanto ao caminho trilhado no sentido da harmonização legislativa máxima (ainda que com recurso a diretivas comunitárias), factores que, segundo o autor, concorrem para o progresso em caminhos opostos.

Remetendo-me à minha humilde condição de curioso por algumas das temáticas acima afloradas, que captam a atenção e alimentam a paixão dos verdadeiros cultores do Direito do Consumo, por tudo quanto expus (e muito mais havia a exaltar!), vergo-me perante a memória do Professor Carlos Ferreira do Almeida e convido todos quantos seguem o projeto NOVA Consumer Lab nas plataformas digitais a escutarem (ou voltarem a escutar) a entrevista que o insigne Mestre concedeu ao NOVA Consumer Podcast, no ano transato, a qual constitui um valioso e inspirador documento para todos os membros desta equipa.

Até sempre, Professor!

Aplicação no tempo da “arbitragem necessária” prevista na Lei de Defesa do Consumidor

Doutrina

Com a publicação da Lei n.º 63/2019, de 16 de agosto, em vigor desde 15.09.2019 (art. 3.º), foi alterada a redação das normas do art. 14.º da Lei de Defesa do Consumidor, nomeadamente os seus n.ºs 2 e 3. Os conflitos de consumo cujo valor não exceda a alçada dos tribunais de 1.ª instância (€ 5 000, cf. art. 44.º-1 da Lei n.º 62/2013) estão sujeitos a arbitragem necessária (rectius, arbitragem potestativa) quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados. Trata-se de um alargamento do âmbito da arbitragem potestativa em matéria de conflitos de consumo, até então circunscrito aos serviços públicos essenciais.

Ora, desde a entrada em vigor da Lei n.º 63/2019 e com base na norma do art. 2.º-1 da Lei n.º 144/2015 (Lei RALC) que se vem discutindo a aplicação no tempo da solução legislativa acima destacada, com particular enfoque nos seguintes critérios relevantes: a) a data de celebração do contrato de consumo (anterior ou posterior a 15.09.2019); b) a data de emergência do conflito de consumo (anterior ou posterior a 15.09.2019).

Em extrema síntese, aplicando os princípios gerais sobre a aplicação da lei no tempo plasmados no art. 12.º do Código Civil, revestiria meridiana clareza que, por apelo ao critério sob alínea a), a Lei n.º 63/2019 aplicar-se-ia aos conflitos de consumo radicados num contrato celebrado após a entrada em vigor do referido diploma. Sem prejuízo, em face do disposto pelo n.º 2 do art. 12.º do Código Civil e considerando a possibilidade de existência de situações jurídicas que tenham sido constituídas na vigência da lei anterior e que subsistam ao abrigo da nova lei (seja no caso de contratos de execução duradoura, seja mesmo no caso de contratos de execução instantânea, como seja a compra e venda de bens de consumo, em que assiste ao consumidor o exercício de um conjunto de “remédios” em caso de desconformidade do bem manifestada no prazo de garantia legal), sob pena de limitação do direito de acesso à justiça por parte dos consumidores, admitir-se-ia, em tais casos, a aplicação imediata da nova lei, desde que, conforme critério sob alínea b), o litígio de consumo ocorresse depois da entrada em vigor da Lei n.º 63/2019.

Ora, além de o entendimento acima exposto colocar ao intérprete-aplicador o problema de definir exatamente quando é que se tem por configurado um conflito de consumo (depende ou não de formalização de reclamação por parte do consumidor; carece ou não de resposta liminarmente desfavorável aos intentos do consumidor da parte do profissional), creio que o mesmo ignora o facto de as normas dos n.ºs 2 e 3 do art. 14.º da Lei n.º 24/96 revestirem cariz processual, porquanto o momento a considerar para a sua aplicação (ou não) a um caso concreto será, na verdade, o da data da entrada do requerimento de arbitragem no tribunal arbitral adstrito a centro de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizado.

E não se diga que esta outra compreensão da aplicação no tempo da Lei n.º 63/2019 importa uma afetação de expectativas do profissional, violadora do princípio da proteção da confiança (ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2.º da CRP), visto que aquela lei apenas veio facultar ao consumidor, parte mais fraca no âmbito de uma relação jurídica de consumo, “uma forma adicional mais acessível de fazer valer os seus direitos”[1].

Além de se conformar com a regra, relativa à competência dos tribunais, da aplicação imediata da nova lei processual às ações futuras (enquanto às ações pendentes se aplica a lei vigente no momento em que foram propostas), o entendimento que preconizo oferece um momento objetivo e preciso para a inclusão (ou não) do litígio no âmbito da “arbitragem necessária” prevista na Lei n.º 63/2019.

Assim, para se poder concluir que o consumidor exerceu o direito potestativo de submeter o litígio de que é parte à apreciação de tribunal arbitral adstrito a centro de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizado, com fundamento no disposto pelo art. 14.º-2 e 3 da Lei de Defesa do Consumidor e, por essa via, afirmar a competência do tribunal para conhecer, apreciar e decidir a ação arbitral, importará verificar se está em causa um “conflito de consumo” (tal como definido pela alínea h) do art. 3.º da Lei RALC[2]), se o processo de arbitragem foi instaurado em momento posterior à data da entrada em vigor da Lei n.º 63/2019 e se o valor da causa não excede os € 5 000.


[1] Como se defendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.03.2021, já comentado aqui. Como se pode ler na decisão arbitral do CASA, analisada pelo Tribunal da Relação de Lisboa nesse processo, “aquilo que a empresa poderia alegar é que a arbitragem é uma forma mais acessível ao consumidor. Porém, parece-nos que o argumento de que a parte tinha a expectativa de que a outra tivesse maior dificuldade em exigir o cumprimento não é atendível”.

[2] Embora, aqui, seguindo de perto Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2019, pp. 28-29, consideremos que “não existe qualquer fundamento objetivo que permita a aplicação de regras e princípios diferentes aos mesmos procedimentos de RALC [Resolução Alternativa de Litígios de Consumo] apenas em função do tipo contratual em causa [contrato de compra e venda ou de prestação de serviços]. Tal interpretação poderia, aliás, conduzir a um efeito contrário ao pretendido pela Diretiva RALC, reduzindo a confiança dos consumidores no mercado interno em consequência da disparidade de regras aplicáveis aos mesmos procedimentos”, justificando-se, como tal, uma “interpretação extensiva” da norma do n.º 1 do art. 2.º da Lei RALC, “que alargue o seu âmbito de aplicação aos restantes tipos contratuais”, à semelhança do que decorre da norma do n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96.

A faturação da potência contratada viola o artigo 8.º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais?

Doutrina

Em post anterior, dedicado aos 25 anos da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (LSPE), notámos que, tendo como pano de fundo o princípio da boa-fé, aquele diploma impõe às entidades prestadoras dos serviços de interesse económico geral nele elencados uma proibição de cobrança de consumos mínimos e de quaisquer outras importâncias e/ou taxas que não tenham uma correspondência direta com um encargo em que aquelas efetivamente incorram, com exceção da contribuição audiovisual[1] (art. 8.º).

A lei faz depender a repercussão no cliente final de valores diversos dos especificamente respeitantes aos consumos realizados pelo mesmo de um critério de correspetividade estrita com encargos que a entidade realmente suporta com a efetiva prestação do serviço.

Posto isto, será que a cobrança dos encargos com a potência contratada na faturação do serviço de fornecimento de energia elétrica se conforma com o imposto pelo art. 8.º da LSPE?

Para respondemos à questão, importa retomar algumas considerações já tecidas aqui e aqui a propósito do movimento liberalizador tendente à criação do mercado europeu de eletricidade (anteriormente assente em empresas públicas monopolistas verticalmente integradas), superiormente retratado no e-book “Reflexões de Direito da Energia”, recentemente publicado pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) e da autoria de Filipe Matias Santos, que, aqui, seguimos de perto.

Na verdade, com a transposição para a ordem jurídica portuguesa dos princípios da Diretiva n.º 2003/54/CE e, posteriormente, da Diretiva n.º 2009/72/CE[2], instituiu-se e aprofundou-se a separação (unbundling) jurídica dos operadores das redes de transporte e de distribuição das demais atividades do setor elétrico (nomeadamente, a produção e a comercialização), o que importou o seu desdobramento em diferentes empresas (ainda que permanecendo concentradas no mesmo grupo empresarial) e a proibição de os operadores das redes comercializarem energia (atividade que apenas é permitida aos produtores e aos comercializadores).

A atividade de compra e venda de energia elétrica passou a ser exercida em regime de livre concorrência, embora sujeita a registo, por decisão da Direção-Geral de Energia e Geologia (arts. 45.º-1, 46.º e 47.º do Decreto-Lei n.º 172/2006), possibilitando-se aos clientes finais, destinatários dos serviços de fornecimento de eletricidade, procederem à escolha de um comercializadores em regime de mercado para com ele se relacionarem contratualmente.

Por sua vez, os comercializadores, visto que não podem proceder à entrega física da energia elétrica aos utentes com quem contratam o fornecimento, gozam do direito de livre acesso às infraestruturas de transporte e de distribuição (third-party access to networks) por força de contratos de uso das redes (art. 351.º do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC) e arts. 8.º e seguintes do Regulamento de Acesso às Redes e às Interligações – RARI).

Neste seguimento, porque as redes de transporte e de distribuição subsistiram como monopólios naturais, sendo as respetivas atividades exercidas mediante a atribuição de concessões de serviço público, colocou-se a necessidade de regular os proveitos permitidos (allowed revenues) dos operadores, os quais devem proporcionar às empresas concessionárias uma remuneração bastante (mas não desproporcional) para a recuperação do investimento na instalação, manutenção e atualização das infraestruturas que têm a seu cargo e o cumprimento, de modo eficiente, das obrigações de serviço público e padrões de qualidade a que se encontram vinculados, impedindo a subsidiação cruzada entre atividades.

É, assim, nesta base, que a ERSE procede à fixação de tarifas de acesso às redes, calculadas para cada uma das atividades reguladas e respeitantes ao uso de cada uma das redes (de transporte e de distribuição), à operação logística de mudança de comercializador e à gestão global do sistema, sendo que tais tarifas, por força do funcionamento do princípio da aditividade, são juridicamente repercutidas sobre os clientes finais nas faturas do serviço de eletricidade emitidas pelo comercializador.

Ora, com a faturação da potência contratada (em euros por mês), procede-se à cobrança dos encargos em que os operadores das redes incorrem com a colocação à disposição da potência no ponto de entrega, sendo a potência contratada uma das grandezas a determinar para efeitos de faturação das tarifas de acesso às redes (aplicáveis às entregas em Baixa Tensão Normal, i.e., com a potência contratada inferior ou igual a 41,4 kVA) aos comercializadores e por estes depois repercutidas junto dos seus clientes (arts. 47.º-2, 200.º-1-b) e 2 e 201.º-1 do RRC e 41.º-1-a) do Regulamento Tarifário do Setor Elétrico). Logo, uma mudança de escalão da potência contratada para escalão superior implica um incremento do preço da potência contratada e, por conseguinte, um aumento da tarifa de acesso às redes, isto porque, em tais circunstâncias, tornam-se necessários maiores investimentos nas redes elétricas. Além da tarifa de acesso às redes, o valor do preço da potência contratada inclui, também, uma margem de comercialização, a qual varia de comercializador para comercializador

Daí que, sem violar o disposto no art. 8.º da LSPE, porquanto se verifica uma correspondência direta com um encargo suportado pela entidade prestadora, a fatura do serviço de fornecimento de energia elétrica apresentada ao cliente final reflita, para além do preço da energia efetivamente consumida, o preço da potência contratada.


[1] Criada pela Lei n.º 30/2003, de 22 de agosto, a contribuição audiovisual destina-se a financiar o serviço público de radiodifusão e de televisão. Tem o valor mensal de € 2,85, sendo liquidada pelas empresas comercializadoras de eletricidade nas faturas respeitantes ao fornecimento daquele serviço (arts. 4.º-1 e 5.º-1 e 2 da Lei n.º 30/2003).

[2] Entretanto revogada pela Diretiva (UE) 2019/944, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2021 (art. 72.º)

Há um direito a (ter) conta bancária? – A conta de serviços mínimos bancários

Doutrina

Manuel Januário da Costa Gomes, na sua obra Contratos Comerciais, levanta a questão colocada no título a propósito do Decreto-Lei n.º 27-C/2000, que criou o sistema de acesso aos serviços mínimos bancários (SMB), com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 19/2011, ou seja, num momento em que vigorava, ainda, um “regime de adesão voluntária” ao sistema pelas instituições de crédito.

Entretanto, com a terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 27-C/2000 operada pela Lei n.º 66/2015, foi imposta a obrigação de disponibilização de SMB a todas as instituições de crédito que disponibilizem ao público os serviços que integram as contas de pagamento com características básicas (basic bank accounts), assim denominadas ao nível dos instrumentos normativos de soft law e de hard law da União Europeia, de entre os quais se destaca a Recomendação da Comissão de 18 de julho de 2011 e a  Diretiva 2014/92/CE.

Neste novo contexto, reveste ainda maior acuidade a questão de saber se se revela ajustada a afirmação de um direito universal a (ter) conta bancária. E, em caso de resposta afirmativa, importa deslindar as implicações que o reconhecimento de tal posição jurídica assume na configuração tradicional da relação bancária.

Porém, antes de avançar com uma proposta de resposta às interrogações acima enunciadas, creio necessário desenvolver uma breve caracterização do regime jurídico dos SMB.

Apesar de não integrar o elenco taxativo de serviços públicos essenciais constante no art. 1.º-2 da LSPE, numa moderna sociedade europeia como a portuguesa, a prestação universal de serviços de pagamento constitui uma condição cada vez mais indispensável ao desenvolvimento de uma economia sem fronteiras internas e socialmente inclusiva e coesa, em que todos os cidadãos, independentemente da sua situação de vulnerabilidade (resultante, e.g., de uma situação financeira difícil ou de uma formação escolar rudimentar), da sua nacionalidade, do seu local de residência ou de qualquer outro dos fatores referidos no art. 21.º da CDFUE, participam plenamente na dinâmica do mercado interno e colhem os benefícios que dele advêm.

Nesta era de financeirização da economia e do cidadão superiormente retratada por Guido Comparato, a titularidade de uma conta bancária à ordem (e de um cartão de débito) constitui condição necessária ou, pelo menos, significativamente facilitadora da execução de operações de depósito, de transferência ou levantamento de fundos. Pense-se, em particular, no recebimento de retribuições laborais ou prestações sociais, no pagamento de impostos e de contribuições para a Segurança Social e no pagamento das contraprestações periódicas devidas pelo fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas.

Por conseguinte, afigurando-se incontornável o reconhecimento do estatuto de serviços de interesse económico geral a certos serviços bancários[1], nos dias de hoje, qualquer consumidor que tenha o direito de residir num Estado-Membro em virtude do direito da União Europeia ou nacional goza da prerrogativa de solicitar, junto de uma instituição de crédito à sua escolha, a abertura de uma conta de SMB (ou a conversão de uma conta de depósito à ordem de que já seja titular numa conta de SMB), ficando a instituição adstrita, salvo se se verificar fundamento legítimo de recusa[2], ao dever de, sem demora indevida e o mais tardar 10 dias úteis após a receção do pedido, celebrar contrato de depósito à ordem e, nesse seguimento, disponibilizar os seguintes serviços: manutenção, gestão, titularidade e encerramento da conta; disponibilização de um cartão de débito para movimentação da conta através dos caixas automáticos em Portugal e nos restantes Estados-Membros da União Europeia, de homebanking e dos balcões da instituição de crédito; execução de ordens de depósito e de levantamento de numerário e ordens de pagamentos de bens e serviços, nomeadamente na modalidade de débito direto; realização de transferências intrabancárias, interbancárias (através de caixas automáticos, sem limite de número de operações), via homebanking (com o limite de 24 transferências nacionais e no interior da União Europeia, por cada ano civil) e através de aplicações de pagamento operadas por terceiros (por exemplo, MBWay, com o limite de 5 transferências mensais e de valor igual ou inferior a € 30 por operação) – arts. 1.º-2-a), 2.º-1, 3.º-2, 4.º-1, 3 e 5, 4.º-A, 4.º-B e 4.º-C-1 do Decreto-Lei n.º 27-C/2000.

A fim de assegurar o acesso a estas contas de pagamento com características básicas ao maior número possível de consumidores, de acordo com o art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 27/C-2000, pelos serviços e operações acima elencados, não podem ser cobrados, pelas instituições de crédito, comissões, despesas ou outros encargos que, anualmente, e no seu conjunto, representem montante superior ao equivalente a 1% do valor do Indexante dos Apoios Sociais (cujo valor, em 2021, é de € 438,81).

Face ao exposto, temos que o sistema de acesso aos SMB obedece, quanto ao modelo formal adotado, a um figurino de hétero-regulação, porquanto as obrigações assumidas pelas instituições de crédito e toda a restante disciplina que rege as contas bancárias básicas radicam em fonte legal[3]. E, indo mais além, parece-me indiscutível que, no âmbito do sistema de que aqui trato, se encontra configurada uma restrição à liberdade de contratar, enquanto dimensão do princípio da liberdade contratual (art. 405.º do Código Civil), pois a instituição de crédito tem a obrigação (legal) de contratar com o consumidor, desde que este revista a qualidade de “interessado” nos termos do Decreto-Lei n.º 27-C/2000 (ser pessoa singular e ter o direito de residir num Estado-Membro em virtude do direito da União Europeia ou nacional – art. 1.º-2-g)), e em relação a ele não se verifique algum dos fundamentos taxativos, legalmente determinados, de recusa, impeditivos do reconhecimento do direito a conta de SMB. Mais concretizadamente, porque o cliente, por um ato livre de vontade e preenchidos aqueles requisitos, não carece da cooperação da instituição de crédito para a conclusão do contrato de depósito à ordem, entendo que, em bom rigor, o mesmo se encontra investido num direito potestativo, a que se opõe um estado de sujeição da contraparte, que tem de suportar inelutavelmente na sua esfera a consequência jurídica cominada (no caso, a abertura de conta de SMB domiciliada na instituição de crédito escolhida pelo consumidor), sem nada poder (nem dever) fazer para o evitar.

Ora, a compreensão que acabo de assumir no sentido da afirmação de um direito universal a (ter) conta bancária não pode deixar de espoletar uma discussão, ainda que breve, sobre o mérito do entendimento dominante na literatura e jurisprudência acerca da configuração da relação bancária.

Entre nós, é comum sustentar-se que a relação bancária tem fonte contratual, radicando num “contrato bancário geral” – o contrato de abertura de conta à ordem –, que reveste a natureza de contrato-quadro, pois não só constitui o negócio jurídico nuclear que assinala o início de relação complexa e dotada de vocação de perdurabilidade, como estabelece o quadro básico do relacionamento entre cliente e instituição de crédito numa multiplicidade de contratos concomitantes e futuros, projetando-se ao nível da conta-corrente bancária e do giro bancário, os dois elementos necessários do contrato de abertura de conta[4].

Penso, contudo, que a teoria ora descrita sucintamente não se assume como a mais adequada para caracterizar a relação bancária instituída ao abrigo do sistema de acesso aos SMB. Como vimos acima, a operação de abertura de conta de SMB não é conduzida sob a égide do princípio da liberdade de celebração contratual, nem reveste de caráter intuitu personae, visto que a instituição de crédito não pode recusar-se (salvo motivo legítimo) a contratar com qualquer interessado. Como tal, parece-me que, neste caso (e, talvez até, na generalidade dos casos, fora do universo dos SMB), a relação bancária encontra melhor respaldo na teoria da relação obrigacional legal, sem dever primário de prestação, defendida por Claus-Wilhelm Canaris[5], porquanto se funda no direito objetivo, sendo anterior à celebração de qualquer contrato bancário, não apenas no que tange aos deveres gerais de proteção (em particular, os deveres de informação), mas mesmo, em larga medida, em relação ao conjunto do programa obrigacional norteador da situação jurídica que liga cliente e instituição de crédito[6].

Por outras palavras, e em síntese, não deixando, naturalmente, de reconhecer a existência de contrato entre o cliente e a instituição de crédito, creio, ainda assim, que a disciplina da relação de prestação de SMB decorre imediatamente da lei.


[1] Neste sentido, já no longínquo ano de 2001, Rodrigo Gouveia, Os serviços de interesse geral em Portugal, Coimbra Editora, 2001, pp. 123-125.

[2] A saber: à data do pedido de abertura de conta de SMB (ou de conversão de depósito à ordem em conta de SMB), o cliente é titular de outra conta de depósito à ordem, junto de instituição de crédito estabelecida em território nacional (a menos que um dos contitulares da conta de SMB seja uma pessoa singular com mais de 65 anos ou dependente de terceiros, por apresentar um grau de invalidez permanente igual ou superior a 60 %); o cliente recusar a emissão da declaração de não titularidade de outra conta de depósito à ordem prevista no n.º 2 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 27-C/2000.

[3] José Simões Patrício, Serviços Mínimos Bancários, in “Direito dos Valores Mobiliários”, volume IV, Coimbra Editora, 2003, pp. 223-225.

[4] António Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 5.ª edição, 2013, Almedina, pp. 532-533 e 552-569.

[5] Claus-Wilhelm Canaris, Bankvertragsrecht, I, 3.ª edição, Walter de Gruyter, 1988, n.º 12 e ss.

[6] Manuel Carneiro da Frada, Deveres de informação e relação bancária (com vista para a intermediação financeira), in “Revista de Direito da Responsabilidade”, Ano 3, 2021, pp. 184-196.

Aplicação da regra “na dúvida contra o predisponente” em contrato de seguro padronizado – um caso prático

Jurisprudência

Imagine-se o seguinte caso prático[1]:

– “A”, tomador de seguro, celebrou com “B”, seguradora, um contrato de seguro do ramo Multirriscos Habitação, titulado pela apólice n.º 008521475213, na modalidade “Domus X”, que teve o seu início em 01.06.2017 e tem por objeto o edifício e respetivo recheio do imóvel sito na Rua X, Vila Nova de Gaia, correspondendo ao edifício, na medida dos riscos assumidos por “B”, um capital seguro de € 150.000,00, e ao recheio, na medida dos riscos assumidos por “B”, um capital seguro de € 40.000,00;

– Em 28.12.2020, registaram-se ventos fortes e precipitação intensa na região onde está localizado o imóvel, associados à denominada “tempestade Ana”;

– Em consequência destas condições atmosféricas, verificaram-se os seguintes danos no objeto seguro: o telhado ficou com telhas partidas e levantadas pelo vento e rufos danificados e a empena do lado poente apresentava ardósias danificadas e deslocadas; no interior do imóvel, o teto e as paredes do quarto ficaram deteriorados devido à infiltração de água proveniente da chuva;

– Em 30.12.2020, “A” participou o sinistro a “B”, na convicção de que os factos descritos se enquadravam no âmbito da cobertura da apólice acima identificada e, dias depois, “A” fez chegar a “B” um orçamento da reparação dos danos, com o valor total de € 3.378,00, e fotografias dos mesmos;

– Em 29.03.2021, após a realização de uma peritagem ao imóvel pela empresa “C” nomeada pela seguradora, “B” enviou uma carta a “A”, a declinar a responsabilidade pelo sinistro, nos seguintes termos: «Após análise dos elementos reunidos acerca do sinistro, em que se inclui o relatório do perito, concluímos que este sinistro não aciona nenhuma das garantias da sua apólice. Segundo o que apurámos, ocorreram infiltrações na habitação segura alegadamente devido a telhas quebradas por ventos fortes. Sucede que, na data do sinistro participado e conforme consulta ao Instituto Português do Mar e da Atmosfera mais próximo, não foram registados ventos iguais ou superiores a 100 km/h. Deste modo, o evento reportado não é passível de acionar a garantia de Tempestades (…)»;

– No âmbito da cobertura “Tempestades”, prevista no ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais” da apólice n.º 008521475213, consta o seguinte:

  1. Esta cobertura integra os riscos a seguir definidos:
    • a) tufões, ciclones, tornados e toda a ação direta de ventos fortes, bem como o choque de objetos arremessados ou projetados pelos mesmos desde que a sua violência destrua ou danifique instalações, objetos ou árvores num raio de 5 km, tendo como centro a localização dos bens seguros (em caso de dúvida, poderá o Segurado fazer prova, mediante documento da estação meteorológica mais próxima, que, no momento do sinistro, os ventos atingiram intensidade excecional – velocidade superior a 100 km/hora);
    • b) alagamento pela queda de chuva, neve ou granizo, desde que se verifiquem conjuntamente as seguintes condições: – que estes agentes atmosféricos penetrem no interior do edifício seguro em consequência de danos causados pelos riscos referidos na alínea anterior; – que os danos se verifiquem nas 48 horas seguintes ao momento em que ocorreu a danificação ou a destruição parcial do edifício.
  2. (…)
  3. Exclusões – Para além das exclusões gerais previstas no art. 7.º destas Condições Gerais, ficam ainda excluídos do âmbito da presente cobertura as perdas ou danos:
    • a) (…)
    • b) (…)
    • c) (…)
    • d) (…)
    • e) provocados por infiltrações através de paredes e/ou tetos, humidade e/ou condensação, exceto quando se trate de danos resultantes do risco contemplado nesta cobertura.

A edição online do jornal “D” publicou, às 15h16m de 28.12.2020, uma notícia a dar conta de que, pelas 14:00h, havia registo de uma dezena de incidentes, como queda de árvores e infiltrações de água na zona do Grande Porto, devido ao mau tempo.

“A” tem direito a exigir o pagamento da quantia de € 3.378,00 por “B”?

“A” e “B” acham-se ligados por um contrato de seguro multirriscos habitação, nos termos do qual “B”, seguradora, se obrigou perante “A”, tomador do seguro, a satisfazer indemnização pelos prejuízos resultantes da verificação de determinados riscos nos objetos seguros (edifício e recheio do imóvel sito na Rua X, Vila Nova de Gaia). Estão em causa, nomeadamente, os riscos da cobertura “Tempestades” (ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais”), até ao limite do capital seguro fixado nas “Condições Particulares” (arts. 49.º-1, 128.º e 138.º-1 do Anexo ao Decreto-Lei n.º 72/2008 – LCS) e com dedução das franquias (quando) convencionadas (art. 49.º-3 da LCS), mediante o pagamento, pelo primeiro à segunda, de uma importância (prémio de seguro), na data da celebração do contrato (prémio inicial) e nas datas estabelecidas no contrato (prémio de anuidades subsequentes) – cf. arts. 51.º, n.º 1, 52.º e 53.º da LCS.

Para além de constituir fonte de uma relação jurídica de consumo (art. 2.º-1 da Lei n.º 24/96), o contrato em apreço, particularmente quanto às condições gerais (e especiais), foi concluído através da técnica das cláusulas contratuais gerais, pré-elaboradas pelo predisponente “B”, com vista à sua utilização generalizada numa pluralidade de contratos a celebrar, e aceites pelo aderente “A”, o qual não teve a possibilidade de as negociar, limitando-se a aceitá-las, ou, pelo menos, cujo conteúdo não pôde influenciar. Como tal, encontra-se sujeito ao regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, instituído pelo Decreto-Lei n.º 446/85 – LCCG (art. 1.º), nomeadamente ao sistema de controlo (de inclusão e de conteúdo) aí estabelecido, integrado por normas procedimentais e materiais que determinam quais as cláusulas que se consideram e podem ser incluídas num contrato de adesão e a extensão da sua admissibilidade, o qual funciona como um mecanismo de proteção daquele que se limita a aderir ao programa contratual.

Isto posto, a interpretação da cláusula contratual (geral) prevista no ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais” da apólice n.º 008521475213 obedece ao regime previsto nos arts. 10.º e 11.º da LCCG, no qual se estabelece a observância, para o efeito, da disciplina geral da interpretação do negócio jurídico, consagrada nos arts. 236.º a 238.º do Código Civil, dentro do contexto do contrato singular em que aquela cláusula se inclui (art. 10.º da LCCG). Prevê-se ainda que, tratando-se de uma cláusula ambígua, tem a mesma o sentido que lhe daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-la ou aceitá-la, quando colocado na posição de aderente real, sendo que, na dúvida, deve ser operada a exegese mais favorável ao aderente da cláusula contratual (art. 11.º-1 e 2 da LCCG).

Neste sentido, assinalo, em primeiro lugar, que a norma do n.º 1 do ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais” da apólice fixa, como elemento constitutivo da responsabilidade de “B”, sob alínea a), a prova da ocorrência de «tufões, ciclones, tornados» e/ou de «ventos fortes» – neste último caso, com a prova cumulativa de que «a sua violência destrua ou danifique instalações, objetos ou árvores num raio de 5 km, tendo como centro a localização dos bens seguros»[2] – enquanto causa dos danos sofridos nos objetos seguros. E, em segundo lugar, no que tange em particular aos “ventos fortes”, seguindo de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.01.2019, creio que, devidamente interpretada, a cláusula do contrato de seguro consagra dois casos autónomos de responsabilização de “B”:

– um primeiro caso, sem exigência de prova da velocidade, desde que, em face do acervo probatório disponível, resulte demonstrada a ocorrência de ventos que “por aproximação e/ou intuitiva e subjetivamente” possam ser classificados como fortes (“«grosso modo», são, ou é aceitável que possam ser, desde logo pelo senso comum e experiência da vida, aqueles que sopram a partir dos 50, 60, 70 Km/h”) – “ou, inclusive, se prove com rigor ou objetivamente”, que tais ventos atingiram uma velocidade de até 100 km/h – e, cumulativamente, se evidencie que os mesmos causaram danos na envolvência do objeto seguro, nomeadamente em instalações, objetos ou árvores num raio de 5 km, tendo como centro a localização dos bens seguros, assim se superando a dúvida determinada pela não demonstração da concreta velocidade do vento;

– uma segunda hipótese, aplicável apenas se existirem dúvidas quanto à ocorrência de ventos fortes que tenham provocado danos nas imediações do objeto seguro, valendo, aqui, um “critério/elemento de dissipação” das mesmas: tem o lesado que provar – “e, note-se que não por qualquer meio, mas antes apenas por prova taxada ou tarifada, qual seja, por documento eivado de verdade científica rigorosa, i.e., o emitido pela estação meteorológica mais próxima” – que, no momento do sinistro, os ventos atingiram intensidade excepcional – velocidade superior a 100 km/hora, facto que, se demonstrado por aquele concreto meio de prova e dada a classificação da velocidade (em termos predispostos por “B”) como “excecional”, dispensa a prova da verificação de danos ao redor do objeto seguro.

É, portanto, de rejeitar, à luz das regras interpretativas, mormente os n.ºs 1 e 2 do art. 11.º da LCCG, a adoção de uma compreensão da norma contratual do n.º 1 do ponto 13. (do art. 9.º das “Condições Gerais”) que aponte no sentido de que a responsabilidade de “B” depende, sempre e em todo o caso (e não apenas “em caso de dúvida”, como se extrai do elemento literal da norma), do cumprimento de ónus probatório por “A”, consistente na apresentação de declaração oficial emitida pelos serviços meteorológicos da estação mais próxima, da qual resulte que, no momento do sinistro, os ventos atingiram intensidade excecional (velocidade superior a 100 km/hora). De modo diverso, o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, deduz da redação da aludida cláusula é que o destacado encargo probatório apenas se coloca e envolve situações de dúvida quanto à imputação, em termos de causalidade, do sinistro aos fenómenos climáticos (tufões, ciclones, tornados, ventos fortes)[3], o que não sucede neste caso.

De qualquer modo, à semelhança do que se fez no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.06.2004, também aqui não podemos deixar de salientar que a cláusula predisposta por “B” não satisfaz a exigência imposta pelo n.º 1 do art. 36.º da LCS (“[a] apólice de seguro é redigida de modo compreensível, conciso e rigoroso”) quanto à sua redação, nem apresenta uma estrutura que prime pela inteligibilidade e clareza, sendo certo que, por aplicação das soluções normativas consagradas no art. 11.º da LCCG para os casos de ambiguidade, não pode deixar-se de assumir a exegese acima externada (em sentido mais favorável ao aderente da cláusula contratual). Impunha-se a “B”, a fim de poder sustentar o entendimento declarado na carta enviada a “A”, que elaborasse cláusula com uma redação e estrutura que exprimisse, em termos inequívocos, a imposição da exigência probatória (a impender sobre o segurado) em local apropriado (por exemplo, com a seguinte redação: “tufões, ciclones, tornados e toda a ação direta de ventos fortes com velocidade superior a 100 km/hora (…)”.

Ante o exposto, estando demonstrado que os danos no imóvel segurado se ficaram a dever à ação direta de ventos fortes, acompanhados de precipitação intensa, os quais implicaram vários incidentes na zona do Grande Porto relacionados com as condições atmosféricas adversas, está explicado por que razão ocorreu o sinistro. Por outro lado, considerando que os danos infligidos no teto e nas paredes do quarto do objeto seguro ficaram deteriorados em resultado do risco contemplado na cobertura “Tempestades”, não se encontra preenchida a exclusão prevista sob alínea e) do n.º 3 do ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais”, pelo que, em suma, é de reconhecer mérito à pretensão de “A”.


[1] Inspirado no caso decidido pela Sentença do Julgado de Paz de Vila Nova de Gaia de 07.03.2016, e no caso decidido pela Sentença do CIAB, de 06.10.2020, proferida no Processo n.º 155/2020, de que fui relator.

[2] Em relação a cláusula de contrato de seguro que tomava idêntica redação, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.01.2019, mediante aplicação da regra interpretativa do n.º 2 do art. 11.º da LCCG, considerou que “nem sequer se deve entender que a exigência cumulativa desta destruição ou dano com a existência de ventos fortes, se reporte aos tufões, ciclones e tornados. Pois que estes fenómenos são de cariz extremo, os quais, só por si, fazem presumir aquela destruição”.

[3] Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.06.2004, no qual se repara, com acerto, que “[u]ma tal exigência de prova, a impor a apresentação de uma declaração oficial emitida pelos serviços meteorológicos da estação mais próxima, não pode resultar de uma mera divergência entre segurados e seguradora acerca da velocidade do vento. Com efeito, o facto de numa determinada estação a medição do vento se situar a um determinado nível não impede que noutro local (v.g., no local do sinistro) determinadas condições físicas determinem que se registem, em determinado momento, ventos de velocidade superior. De outro modo, bastaria que a seguradora rejeitasse o sinistro reclamado, deixando o segurado inteiramente dependente da obtenção de um elemento que, revelando a velocidade medida num ponto oficialmente determinado, não impediria, no entanto, a ocorrência de velocidades superiores noutro local, seja devido às especiais condições orográficas, seja à confluência de factores que tenham potenciado velocidades superiores”.

Contratação de serviços adicionais associados ao fornecimento de energia elétrica ou de gás

Doutrina

Atualmente, os comercializadores de energia elétrica e de gás natural, no desenvolvimento da sua estratégia mercantil, além de promoverem ofertas de prestação dos serviços públicos essenciais (art. 1.º-2-b) e c) da LSPE), também procedem, de forma associada, à comercialização de “serviços adicionais” (art. 2.º-bbbb) do RRCSEG), designadamente serviços de assistência técnica a equipamentos e a instalações domésticas (e.g. “Funciona”, da EDP Comercial; “Assistência Casa”, da Galp Power; “OK Serviços de Assistência”, da Endesa) e serviços de análise e gestão de consumos, através de equipamento com acesso por internet integrado ou aplicação em dispositivo móvel autónomo (e.g. “EDP Re:dy”, da EDP Comercial; “app Casa Galp”, da Galp Power; “app Iberdrola Clientes Portugal”, da Iberdrola).

Como vem sendo experienciado por muitos consumidores, quer na fase pré-contratual (i.e., no momento da sua formação), quer na fase contratual (i.e., aquando da sua execução) nota-se uma incontornável conexão entre os contratos que têm por objeto aqueles “serviços adicionais” e o(s) contrato(s) de fornecimento de eletricidade e/ou gás natural. Desde logo, e em todos os casos, porque a celebração dos primeiros pressupõe logicamente a existência do(s) segundo(s). Depois, porque, nalguns casos, a oferta da possibilidade de celebração simultânea dos contratos com a mesma contraparte, não constituindo fundamento suficiente para determinar a diferenciação de propostas de fornecimento (art. 16.º-2 a 4 do RRCSEG), possibilita o acesso a condições mais favoráveis, em termos de preço e, até, de prazo (mais curto) de disponibilização do “serviço adicional”. Ademais, quando aplicável, a interpelação para pagamento de prestação (mensal) devida pela disponibilização do “serviço adicional” é integrada na fatura emitida pelo comercializador (também, em regra, com periodicidade mensal – arts. 9.º-2 da LSPE e 45.º-1 do RRCSEG) para discriminação dos serviços de fornecimento de energia elétrica e/ou de gás prestados na instalação do utente.

Assim sendo, ainda que os contratos de prestação de “serviços adicionais” não se confundam juridicamente com o(s) contrato(s) de fornecimento de eletricidade e/ou gás natural, afigura-se necessário acautelar o risco de o consumidor, no momento da conclusão dos contratos, não percecionar, com clareza, a existência de contratos autónomos, as condições que regem cada um dos contratos e as eventuais implicações de vicissitudes sofridas por uma das relações jurídicas no outro vínculo negocial.

Para tanto, e conferindo obrigatoriedade às boas práticas a adotar no âmbito dos mercados, dirigidas aos comercializadores de energia por via da Recomendação da ERSE n.º 1/2017, o art. 17.º do RRCSEG dispõe, sob o n.º 1, que “[o] comercializador em regime de mercado deve informar, de forma completa, clara, adequada, acessível e transparente, os seus clientes quanto à subscrição de serviços adicionais”. Trata-se da consagração de um particularmente exigente dever de informação (constitucionalmente consagrado no art.º 60.º-1 da CRP e previsto, em termos gerais, no plano do direito ordinário, no art. 8.º-1 da LDC e nos arts. 5.º e 6.º do RJCCG, estes últimos aplicáveis pelo facto de a subscrição dos “serviços adicionais” se operar através da aposição da assinatura em contrato de adesão formado com recurso à predisposição de cláusulas contratuais gerais), que reclama uma identificação inequívoca dos “serviços adicionais” e respetivos preços.

Tanto assim que, logo no n.º 2 do mesmo art. 17.º do RRCSEG, se prescreve que “[o] comercializador deve igualmente explicitar que os serviços adicionais são independentes e não interferem com a prestação do serviço público essencial[1], salvo na situação em que haja eventual concessão de descontos pela subscrição desses serviços” – os quais devem ser claramente identificados e quantificados na ficha contratual padronizada, prevista no n.º 6 do art. 16.º do RRCSEG, a entregar ao utente consumidor – e, no mesmo sentido, o n.º 3 do art. 47.º do RRCSEG postula que “(…) os preços praticados relativos a produtos e serviços (…) adicionais [devem] ser autonomamente apresentados aos clientes, tendo por base o contrato celebrado que não seja o contrato de fornecimento”.

Sem prejuízo, cumpre notar que o referido dever de informação não impende sobre o comercializador somente na fase pré-contratual. Na verdade, atendendo ao facto, já acima exaltado, de a ligação entre os contratos que têm por objeto os “serviços adicionais” e o(s) contrato(s) de fornecimento de energia elétrica e/ou gás natural se fazer sentir, de igual modo, na fase do cumprimento destes vínculos negociais, a observância daquele dever de informação também se exige e impõe, nomeadamente, no momento da renovação contratual da prestação de “serviços adicionais”, geralmente sujeita a período mínimo de vigência do contrato (período de fidelização).

Neste caso, de acordo com a Recomendação n.º 1/2017 e à semelhança do que se dispõe no n.º 5 do art. 19.º do RRCSEG para o contrato de fornecimento de energia elétrica ou de gás, a renovação do período de fidelização deve ser objeto de aviso prévio, separado da fatura de energia, remetido com uma antecedência mínima razoável (diria, 30 dias, por analogia com a solução prevista no n.º 3 do art. 69.º do RRCSEG para a alteração unilateral do contrato pelo comercializador) ao consumidor, a fim de este, querendo, exercer o direito de oposição à renovação.

Também no âmbito da execução dos contratos conexos a que vimos fazendo referência, ao abrigo da previsão do art. 6.º da LSPE (que remete para o n.º 4 do art. 5.º do mesmo diploma legal), se o consumidor, por algum motivo, não proceder ao pagamento de valor correspondente a “serviço adicional”, sem, todavia, deixar de efetuar a contraprestação devida pelo fornecimento de eletricidade e/ou gás, tem o mesmo direito à quitação da divida relativa ao(s) serviço(s) público(s) essencial(ais)[2]. Ainda que incluído na mesma fatura (por intermédio da qual é reclamado o pagamento de um preço unitário) e associado ao fornecimento de energia elétrica e/ou de gás, o “serviço adicional” é funcionalmente dissociável do(s) serviço(s) de interesse económico geral, porque a cessação da prestação de um dos serviços não implica necessariamente a cessação da prestação do(s) restante(s)[3].

Por outro lado, se se verificar a migração do(s) contrato(s) de fornecimento de energia de um comercializador cessante para um novo comercializador com o qual o consumidor celebrou ou pretende celebrar um novo contrato de fornecimento de energia elétrica e/ou de gás (processo de mudança de comercializador, regulado, entre outros, nos arts. 235.º a 238.º do RRCSEG e no Anexo I à Diretiva n.º 15/2018 da ERSE), conforme assinala a Recomendação n.º 1/2017, importa, igualmente, assegurar a tutela do cliente (por forma a que este não sofra quaisquer entraves, ainda que indiretos, à mudança de comercializador), em face de um de dois cenários possíveis: a) caso o programa contratual do “serviço adicional” a que o utente consumidor aderiu preveja que a mudança de comercializador determina a cessação daquele serviço associado (ao fornecimento de energia pelo comercializador cessante), tal mudança não deve implicar qualquer penalização ou pagamento posterior correspondente a serviços que não tenham sido efetivamente prestados; b) na hipótese de o mesmo clausulado contratual não estipular, para a situação de ocorrência de migração de contrato(s), a cessação automática do “serviço adicional” (v.g., deixando tal extinção do contrato sob dependência de uma opção do cliente), a mudança não pode implicar um agravamento do preço, das condições ou dos prazos de pagamento do serviço que se mantenha vigente.

Uma derradeira consideração para manifestar discordância com a 7.ª e última recomendação constante da Recomendação n.º 1/2017. Sustenta o Conselho de Administração da ERSE que «[q]uando, nos termos da lei, seja invocada a prescrição ou caducidade do direito ao recebimento do preço dos serviços públicos essenciais, deve entender-se que tal invocação abrange os serviços (…) “adicionais” ligados e faturados conjuntamente». Ora, a prescrição extintiva de curta duração prevista no art.10.º-1 e 2 da LSPE aplica-se ao direito ao recebimento do preço relativo ao(s) serviço(s) público(s) essencial(ais), entendido em sentido estrito, e, no limite, aos demais créditos relativos ao(s) contrato(s) de fornecimento daqueles serviços que mantenham uma relação de acessoriedade com o crédito (principal) do preço (v.g. crédito de juros e, eventualmente, indemnização por incumprimento de obrigação de permanência/cláusula de fidelização[4]). O facto de os créditos respeitantes a “serviços adicionais” serem faturados conjuntamente com os relativos aos serviços essenciais a que estão associados, não constitui fundamento ponderoso para apoiar uma extensão do âmbito da aplicação das soluções normativas consagradas no art.10.º-1 e 2 da LSPE nos termos sugeridos pela recomendação.


[1] Uma previsão que também foi refletida, sob ponto 1.5., na Recomendação da ERSE n.º 1/2019, entre um elenco de recomendações dirigidas aos comercializadores de eletricidade para reformulação de cláusulas dos contratos de adesão propostos aos utentes consumidores.

[2] Neste sentido, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito de Consumo, Coimbra, Almedina, 7.ª edição, 2020, p. 392, e Pedro Falcão, O Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica, Petrony Editora, 2019, pp. 84-85.

[3] Flávia da Costa de Sá, Contratos de Prestação de Serviços de Comunicações Eletrónicas: A Suspensão do Serviço em Especial, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2014, p. 62.

[4] Como defendido, recentemente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.04.2021.

Período de fidelização e alteração da morada, desemprego ou emigração nos serviços de comunicações eletrónicas

Doutrina

Uma das questões que vem sendo dirimida com mais frequência nos centros de arbitragem de conflitos de consumo prende-se com a existência (ou não) do direito de o consumidor fazer cessar unilateralmente um contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas, no decurso do período de fidelização convencionado com o profissional, fundamentando a desvinculação numa alteração das circunstâncias em que as partes basearam a decisão de contratar.

Os casos de alegada modificação da “base do negócio objetiva” reportam-se, essencialmente, a situações de alteração do local de residência do consumidor, existindo, contudo, registo de diferendos entre assinante e prestador de serviços de comunicações eletrónicas determinados por declaração de resolução do contrato (emitida pelo primeiro e com a qual o segundo não se conformou) fundada em situação de emigração ou de desemprego (ou quebra acentuada de rendimentos) do consumidor titular do contrato (ou do seu agregado familiar).

Nestes casos, revela-se pacífico que a possibilidade de o profissional prestar o serviço em determinada morada de instalação e o consumidor nele poder recebê-lo constitui uma condição determinante para a decisão de contratar das partes. E não raras vezes se verifica que a proposta apresentada pelo operador para modificação do contrato não se afigura a mais equilibrada no que tange aos interesses do assinante, sobretudo por força da diminuição qualitativa, de modo sensível, dos serviços a prestar pelo primeiro. Acresce que, nas situações de alteração do local de residência do consumidor, o facto de este, por um lado, continuar a pagar as prestações devidas por um serviço de que não vai usufruir (por continuar a ser fornecido na sua morada antiga) e, por outro lado, contratar serviços de comunicações eletrónicas para a sua nova residência (por nisso ter interesse e se tratar de um serviço público essencial – art. 1.º-2-d) da LSPE) determina uma situação de desequilíbrio entre o prejuízo causado na esfera jurídico-patrimonial do assinante e o lucro auferido pelo prestador, à custa daquele prejuízo[1].

Noutra perspetiva, a morada de prestação do serviço constitui um elemento essencial do contrato e, nessa medida, o profissional apenas se encontra adstrito a assegurar o cumprimento da sua obrigação principal com as características acordadas no concreto local estipulado no negócio celebrado com o consumidor, não podendo ser forçado a aceitar a alteração do contrato quanto à instalação de consumo[2], sobretudo quando o obstáculo que se colocou ao normal desenvolvimento do quadro contratual previsto surgiu por vontade do utente (e não por facto exterior à vontade das partes), não se revelando imprevisto e anómalo.

Não ignorando a assinalável litigiosidade em torno desta matéria, a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM), no seu Anteprojeto de diploma de transposição do Código Europeu das Comunicações Eletrónicas[3], gizou, nos arts. 132.º (Alteração da morada de instalação) e 133.º (Situação de desemprego ou emigração do titular do contrato), duas soluções normativas inovadoras, especificamente pensadas para as situações acima identificadas.

Assim, nos termos do art. 132.º do Anteprojeto, “[e]m caso de alteração do local de residência do consumidor, a empresa que oferece serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público (…) não lhe pode exigir o pagamento de quaisquer encargos relacionados com o incumprimento do período de fidelização, caso não possa assegurar a prestação do serviço contratado ou de serviço equivalente, nomeadamente em termos de características e de preço, na nova morada (n.º 1), sendo que, para tais efeitos, “o consumidor comunica à empresa que oferece os serviços a alteração da respetiva morada com uma antecedência mínima de um mês, apresentando documentação que a comprove” (n.º 2), fixada pela ANACOM (n.º 3), isto sem prejuízo do “direito de a empresa cobrar os serviços prestados durante o período de pré-aviso” (n.º 4).

Já de acordo com o art. 133.º do Anteprojeto, “[e]m situações de emigração ou de desemprego do consumidor titular do contrato devidamente comprovadas, a empresa que oferece serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público (…) não lhe pode exigir o pagamento de quaisquer encargos relacionados com o incumprimento do período de fidelização (n.º 1), podendo a ANACOM “determinar quais os elementos comprovativos que podem ser exigidos pelas empresas que oferecem serviços aos consumidores” (n.º 2). Esta solução normativa apresenta semelhanças com o disposto no art. 361.º-3-a) da Lei n.º 75-B/2020 (aqui já referido no blog), podendo representar uma sobrevigência de uma medida excecional e temporária para além do atual contexto de emergência de saúde pública provocado pela pandemia da doença COVID-19.

Ora, com base no anteprojeto preparado pela ANACOM (e noutros contributos recolhidos), em 9.4.2021, o Governo apresentou à Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 83/XIV/2.ª (PL), a qual, no que respeita à matéria de que aqui trato, acolheu, no essencial, a disciplina desenhada pela ANACOM para as situações de alteração do local de residência do consumidor (art. 132.º da PL). Porém, eliminou o art. 133.º constante do Anteprojeto, quedando-se por uma regra que pouco ou nada acrescenta (em face da prática dos tribunais): “[o] disposto nos artigos 131.º e 132.º não prejudica a aplicação dos regimes de resolução e de modificação do contrato por alteração das circunstâncias previstos no Código Civil” (art. 133.º da PL).

Acompanhando a apreciação efetuada pela Direção-Geral do Consumidor (DGC) em parecer sobre a PL, independentemente da bondade da solução, certo é que o art. 132.º da PL “vem sanar, de forma inequívoca, a questão, eliminando o espaço de discricionariedade existente, até ao momento, com eventuais ganhos em termos de segurança jurídica”, deixando de ser “os operadores a definir, numa primeira instância, se a mudança de residência constitui ou não uma alteração anormal das circunstâncias”. Sem embargo, diversamente do que se verificava no Anteprojeto, o PL surge desprovido de uma “norma estabelecendo o poder de a ARN determinar quais os elementos comprovativos que podem ser exigidos pelas empresas para efeitos de prova da alteração de morada”, o que, de acordo com a mesma lógica de preclusão da margem de discricionariedade, é merecedor de crítica. Acresce que, como nota a DGC, afigura-se «necessária a clarificação do que se entende por “serviço equivalente”», devendo ficar expresso em letra de lei que “serviço equivalente” é todo aquele que não importa “qualquer downgrade da tecnologia do serviço contratado, uma vez que, em qualquer tecnologia, este downgrade acarreta uma perda significativa da qualidade do serviço contratado”.

Já a supressão do art. 133.º do Anteprojeto deveria ser repensada, atenta a necessidade de intervenção legislativa para pacificação dos conflitos existentes entre assinantes e prestadores de serviços em casos de emigração ou de desemprego (ou quebra acentuada de rendimentos) do consumidor titular do contrato (ou do seu agregado familiar), ainda que, como reconhece a ANACOM com a sua nova proposta de redação para o artigo vertida em parecer sobre a PL (p. 207), a previsão normativa possa (e deva) ser mais “equilibrada, do ponto de vista da proteção dos legítimos interesses das empresas” e no quadro de uma disciplina jurídica dos contratos que encontra no princípio pacta sunt servanda (os contratos devem ser pontualmente cumpridos – art. 406.º do Código Civil) um dos seus princípios fundamentais.


[1] Dália Shashati, Períodos de Fidelização, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito na especialidade de Ciências Jurídicas Empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2015, pp. 81-93.

[2] Flávia da Costa de Sá, Contratos de Prestação de Serviços de Comunicações Eletrónicas: A Suspensão do Serviço em Especial, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2014, p. 45.

[3] O Código Europeu das Comunicações Eletrónicas foi estabelecido pela Diretiva (UE) 2018/1972, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, tendo o Anteprojeto de diploma de transposição sido aprovado por Decisão de 31.07.2020, para envio à Assembleia da República e ao Secretário de Estado Adjunto e das Comunicações.

Procedimento fraudulento e titularidade do direito ao valor da energia não faturada

Jurisprudência

Em post anterior, dedicado à exposição do enquadramento normativo que rege a verificação da prática de procedimento fraudulento e a “determinação do valor do consumo irregularmente feito”, tive oportunidade de defender que a referência ao “distribuidor” enquanto titular do crédito à diferença entre o valor da eletricidade paga e o valor da eletricidade efetivamente consumida (art. 3.º-1,-b) e 2 do DL 328/90) teria de ser objeto de uma interpretação atualista, devendo tal referência entender-se como reportada ao “comercializador”.

Volto ao tema com uma análise mais aprofundada, seguindo de perto a Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 20.09.2017, Processo n.º 1735/2017, Relator: Paulo Duarte.

Ao tempo da entrada em vigor do DL 328/90, «a comercialização estava associada à distribuição de energia elétrica, em correspondência com a realidade infraestrutural da ligação da rede de distribuição (sobretudo da rede em baixa tensão) aos locais de consumo. A situação alterou-se com a privatização e liberalização do mercado da eletricidade, que obrigou à introdução de regras que (…) impõem (…) a separação (…) entre certas atividades e certos operadores, em termos de “proibição de acumulação de missões a desempenhar pelo mesmo sujeito económico”».

Mais desenvolvidamente, com a adoção do DL 29/2006, «instituiu-se um regime de estrita “separação jurídica e patrimonial” (full ownwership unbundling) entre a atividade de transporte de eletricidade e as atividades de produção e de comercialização, impedindo a sua concentração vertical sob o domínio de um mesmo sujeito operador» (art. 25.º-1), sendo que, «[n]o que diz respeito à atividade de distribuição de energia elétrica, o legislador, ainda assim, não é tão severo, ficando-se pela exigência da sua “separação jurídica” (legal unbundling)» – arts. 36.º-1 e 43.º do DL 29/2006 (no mesmo sentido, os arts. 338.º-1, 339.º-1 e 2, 343.º-5, 350.º-1 e 2 e 370.º-1 do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC)).

Por conseguinte, e ainda de acordo com a mesma decisão arbitral, «segundo a atual arquitetura normativa do SEN [Sistema Elétrico Nacional], o distribuidor de eletricidade não pode vendê-la – atividade que apenas é permitida (mais: que lhes está reservada) aos produtores e aos comercializadores». Daí que o art. 22.º do Regulamento Tarifário (RT) Setor Elétrico (para o qual remete o art. 343.º-6 do RRC) restrinja os “proveitos permitidos” da atividade de distribuição de energia elétrica aos que “são obtidos através da tarifa de uso das redes de distribuição, excluindo qualquer remuneração pela comercialização de energia elétrica atividade cujo exercício lhe está vedado”.

Como tal, apesar de o DL 328/90 se referir ao “distribuidor” para efeitos do exercício do “direito ao acerto dos valores pagos pelo consumidor (o direito à diferença entre o valor pago e o valor do consumo real, ainda que apurado por estimativa em caso de anomalia ou viciação do contador)”, em face da evolução da realidade histórica existente ao tempo da entrada em vigor daquele compêndio legal, tal menção só pode ser interpretada como se dirigindo ao comercializador, “uma vez que só este pode ligar-se ao consumidor através do contrato de fornecimento (compra e venda) que o legislador considera violado” (cf. arts. 1.º-1 do DL 328/90, 44.º-3 do DL 29/2006 e 7.º-1 do RRC)[1].

Ao entendimento que aqui se acompanha não se opõe o ponto 31.3 do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental (GMLDD), no qual se determina que “[a] energia elétrica associada a procedimento fraudulento comprovadamente identificada e registada em cada ano não deve ser imputada a carteiras de comercializadores”. Retomando a jurisprudência que vimos seguindo de perto, a compreensão do alcance da norma do ponto 31.3 do GMLDD depende do conhecimento da distinção que a mesma pressupõe: a destrinça, estabelecida no ponto 31.2.2.1 daquele GMLDD “entre, por um lado, a energia registada, fiavelmente (apesar da prática fraudulenta), pelos equipamentos de medição e, por outro lado, a energia estimada”, admitindo-se, assim, a possibilidade de o procedimento fraudulento não impedir “o conhecimento direto (e não apenas estimado) da eletricidade consumida”. Ora, o ponto 31.3 do GMLDD «apenas se refere à energia “comprovadamente identificada e registada em cada ano”, e não à energia estimada na sequência da deteção do procedimento fraudulento», o que bem se compreende, pois, se a energia já foi considerada em períodos anteriores, carecia de sentido imputá-la, de novo, a carteiras de comercializadores. Já quanto ao consumo de energia elétrica, associado a fraude, apurado por via de estimativa, não se lhe aplica, afinal, o ponto 31.3 do GMLDD.

Em sentido diverso, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Coimbra em Acórdão de 21.11.2017, proferido no Processo n.º 502/16.7T8GRD.C1, Relator: Fonte Ramos, no qual se sustenta, a partir do mesmo ponto 31.3 do GMLDD, que “(…) só o Distribuidor, em benefício do SEN, terá competência para exigir do consumidor final o ressarcimento do valor da energia consumida ilicitamente, e nunca o comercializador (ou, no limite, o produtor/múltiplos produtores a operar atualmente no SEN)”.

Acolhendo o entendimento assumido neste último acórdão e ao arrepio de tudo o que defendemos acima (a que acresce o facto, de que partimos no post anterior, segundo o qual a verificação de procedimento fraudulento motiva “acertos de faturação”, da responsabilidade do comercializador, ainda que fundados em estimativas de consumo realizadas pelo distribuidor – art. 43.º-2 e 4 do RRC), a norma do n.º 5 do art. 33.º-5 do recém-adotado RRC veio determinar que “[n]as situações previstas no número anterior [erros de medição da energia e da potência resultantes de qualquer anomalia verificada no equipamento de medição, com origem em procedimento fraudulento], cabe ao operador da rede de distribuição que serve a instalação de consumo assegurar a recuperação integral para o Sistema Elétrico Nacional (…) dos consumos de energia não faturada, neles incluindo o valor da energia, que foi considerada em perdas [diferença entre a energia que entra num sistema elétrico e a energia que sai desse sistema elétrico, no mesmo intervalo de tempo], e a componente dos acessos, valorizada por aplicação da tarifa transitória correspondente, ou na sua ausência, da tarifa de acesso acrescida da tarifa de energia.”

Pela minha parte, em face da antinomia entre as normas dos arts. 1.º-1 do DL 328/90 e 44.º-3 do DL 29/2006, por um lado, e a norma do art. 33.º-5 do RRC, por outro, e lançando mão do critério hierárquico expresso no brocardo latino lex superior derogat legi inferiori (“lei superior derroga leis inferiores”), creio que o primeiro par de normas, portador de um status hierarquicamente superior à norma do diploma regulamentar, continua a determinar que o direito ao valor da energia não faturada tem por sujeito ativo o comercializador.


[1] Tal compreensão não é extensível ao exercício do direito a tutela reparatória em relação ao eventual dano patrimonial sofrido com a destruição (parcial) do equipamento de medição, de que o operador da rede de distribuição é proprietário (art. 29.º-1-b) e 3 do RRC), como nota Pedro Falcão, O Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica, Petrony Editora, 2019, pp. 109-114, em especial p. 112.

Procedimento fraudulento e determinação do consumo de energia elétrica

Doutrina

Além da hipótese de faturação baseada em estimativa de consumo (já aflorada em post anterior), a realização de “acertos de faturação” de energia elétrica pode fundar-se, também, em “procedimento fraudulento” (art. 49.º-1-b) do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC)).

Nos termos do art. 1.º-1 e 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro (DL 328/90)[1], “[c]onstitui violação do contrato de fornecimento de energia elétrica qualquer procedimento fraudulento suscetível de falsear a medição da energia elétrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra dos selos ou por violação dos fechos ou fechaduras”, sendo que “[q]ualquer procedimento fraudulento detetado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respetivo consumidor”.

Estabelece-se, assim, uma presunção ilidível contra o consumidor, no sentido em que este é o presuntivo responsável por qualquer procedimento fraudulento que se verifique em “recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica”, salvo se aquele demonstrar, de modo cabal, que tal procedimento não procede de culpa sua[2]. Como sucede com qualquer presunção, “a prova inferencial (por meio, precisamente, da inferência, do desconhecido a partir do conhecido, em que consiste a presunção) do facto presumido depende da prova do facto indiciário”, que, na estrutura da norma do art. 1.º-2 do DL 328/90 consiste na ocorrência de “procedimento fraudulento (…) no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica”[3].

Existindo indícios ou suspeita da prática de qualquer procedimento fraudulento, o operador da rede de distribuição pode proceder à inspeção da instalação elétrica pela qual é responsável, por meio de um técnico seu (entre as 10 e as 18 horas, incluindo os equipamentos de medição – art. 2.º-1 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD), de que é lavrado auto. A inspeção deve ser feita, sempre que possível, na presença do consumidor (ou de quem no local o represente, designadamente um seu familiar ou empregado), a quem deverá ser deixada cópia. No auto, se for o caso, é descrito, sumariamente, o procedimento fraudulento detetado, bem como quaisquer outros elementos relevantes para a identificação, comprovação e imputação da responsabilidade do procedimento, sendo o mesmo instruído com os elementos de prova eventualmente recolhidos (art. 2.º-2 e 3 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD).

Após a identificação e verificação de factos passíveis de configurarem a prática de procedimento fraudulento, o operador da rede de distribuição deve notificar, por escrito, o consumidor a quem é imputável a sua autoria, devendo constar dessa notificação a identificação, entre outros, dos factos justificativos, do valor presumido do consumo irregularmente feito e do período de tempo devido para efeitos de acerto de faturação, bem como dos direitos do consumidor, designadamente, o de requerer a avaliação da prova recolhida. A avaliação é feita através de vistoria à instalação elétrica, a realizar pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), no prazo máximo de 48 horas após ter tido conhecimento do facto, sempre que aplicável (cf. arts. 4.º-1 e 5.º-2 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD). Diga-se, aliás, que uma eventual interrupção do fornecimento de energia elétrica da instalação (arts. 3.º-1-a) do DL 328/90 e 79.º-1-g) do RRC e ponto 31.1 do GMLDD), consequente à deteção do procedimento fraudulento por facto imputável ao consumidor, sob pena da prática de ato ilícito, não pode deixar de ser antecedida daquela notificação (art. 4.º-1 do DL 328/90)[4].

Ainda que se conclua que o consumidor não foi autor ou responsável pelo procedimento fraudulento, o art. 3.º-2 do DL 328/90 reconhece ao “distribuidor” (leia-se, numa interpretação atualista, ao “comercializador”) o direito a ser “ressarcido” do consumo irregularmente feito (mas já não, claro, dada a ausência de culpa, das “despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude” a que alude a alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 3.º)[5].

O art. 6.º-1 do DL 328/90 vem oferecer diretrizes para a “determinação do valor do consumo irregularmente feito”, estabelecendo que devem ter-se em conta “todos os factos relevantes para a estimativa do consumo real durante o período em que o ato fraudulento se manteve, designadamente as características da instalação de utilização, o seu regime de funcionamento, as leituras antecedentes, se as houver, e as leituras posteriores, sempre que necessário”. Este regime permite ao comercializador a satisfação possível do seu crédito perante uma situação deste tipo[6].

Densificando algumas destas orientações, o ponto 31.2.1 do GMLDD faz impender sobre o operador da rede de distribuição o encargo probatório de apurar o período de tempo durante o qual subsistiu o procedimento fraudulento. O período ficará sempre condicionado pela data de início do contrato do titular a quem for imputada a responsabilidade pela prática do procedimento, se existir contrato, não podendo, em qualquer caso, ser superior a 36 meses. O operador da rede deve verificar, entre outras situações, a eventual ocorrência de variações abruptas no perfil de consumo da instalação e a data da última deslocação à instalação, com acesso ao equipamento de medição. Já o ponto 31.2.2 admite que o cálculo do consumo de energia elétrica associado a procedimento fraudulento possa atender, se o mesmo existir, ao histórico de registos fiáveis do equipamento de medição. Na sua ausência, o quantum do consumo de energia elétrica será estimado com base no consumo médio anual por escalão de potência contratada(sempre que o Dispositivo de Controlo de Potência não tiver sido manipulado, deve atender-se à potência que estiver regulada nesse dispositivo), nos termos do ponto 33.1.2. do GMLDD, adicionado do respetivo desvio padrão, sendo que os valores a atender para ambos os elementos constam da Diretiva n.º 11/2016, da ERSE.


[1] V., de forma mais desenvolvida, também o ponto 31.1 do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental (GMLDD), no qual se preveem, ainda, situações de ligação direta à rede.

[2] Sentença do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo, de 30.05.2017, Relator: Jorge Morais Carvalho.

[3] Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 29.01.2017, proferida no Processo n.º 3283/2016, Relator: Paulo Duarte.

[4] Ver, a este propósito e com interesse, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.05.2016, proferido no Processo n.º 1929/13.1TBPVZ.P1.S1, Relator: Gabriel Catarino, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.11.2019, proferido no Processo n.º 3823/18.0T8BRG.G1, Relator: António Sobrinho.

[5] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.05.2021, proferido no Processo n.º 2422/19.4T8AGD.P1, Relator: Aristides Rodrigues de Almeida.

[6] Pedro Falcão, A tutela do prestador de serviços públicos essenciais no ordenamento jurídico português, in Estudos de Direito do Consumidor, n.º 12, 2017, p. 416.

Uma análise empírica do Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de conflitos de consumo – Parte II

Doutrina

Prosseguindo a análise ao Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de consumo, iniciada em post anterior, julgamos que a redação das normas regentes da elaboração da sentença arbitral, plasmadas no artigo 15.º do Regulamento, impõem duas observações críticas.

Em primeiro lugar, à semelhança do que é imposto pelo n.º 4 do artigo 607.º do CPC, inexiste fundamento bastante para se considerar inexigível a declaração, na sentença arbitral, dos factos que se julgam não provados de entre aqueles que hajam sido alegados pelas partes, tendo em consideração o objeto do litígio, para além dos factos que se encontram em contradição com os julgados provados e dos prejudicados por estes e excluindo aqueles que são meramente conclusivos.

Em segundo lugar, atendendo à tendencial maior complexidade que os litígios de consumo submetidos à jurisdição arbitral vêm conhecendo, à qual não é, de todo, alheia a previsão de arbitragem necessária na Lei de Defesa do Consumidor entendemos razoável um aumento do prazo para prolação da sentença arbitral em mais 15 (quinze) dias, desta forma se promovendo um alinhamento com a solução prevista no n.º 1 do artigo 607.º do CPC, aplicável aos tribunais judiciais de 1.ª instância.

Por sua vez, a letra da regra consagrada no artigo 17.º do Regulamento, sob a epígrafe “Prazos processuais”, ao referir-se a “processos de reclamação”, alimenta dúvidas quanto à aplicação do prazo de conclusão de 90 (noventa) dias ao conjunto dos procedimentos de resolução alternativa de litígios de consumo (mediação, conciliação e arbitragem) ou a cada procedimento individualmente considerado. Com efeito, em face do disposto pelo n.º 5 do artigo 10.º da Lei RAL, dúvidas não devem subsistir de que o prazo de 90 dias se aplica a cada procedimento de RAL. O Regulamento do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo já o estabelece de forma inequívoca. Esta é a única solução que se conforma com a lógica de “multi-step dispute resolution” adotada nos centros de arbitragem de conflitos de consumo nacionais (surgindo a mediação como fase prévia, seguida da conciliação e da arbitragem) e que assegura a exigível proteção ao consumidor[1].

Uma derradeira e mais aturada consideração se impõe acerca de uma diferença relevante e que salta à vista na redação que toma a norma do n.º 3 do artigo 19.º do regulamento interno de cada um dos centros de arbitragem de conflitos de consumo. Se, por um lado, os regulamentos do CIAB – Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Consumo (Tribunal Arbitral de Consumo), do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP), do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo da Região de Coimbra (CACRC) e do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa (CACCL) preveem que, em caso de omissão, se aplica, subsidiariamente e “com as devidas adaptações”, o Código de Processo Civil, já os regulamentos do TRIAVE – Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Ave, Tâmega e Sousa, do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Algarve (CIMAAL) e do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo não estatuem o recurso às regras e princípios da lei processual civil “em tudo o que não estiver previsto” no Regulamento Harmonizado.

Nesta controvérsia sobre a aplicação do Código de Processo Civil à arbitragem de conflitos de consumo, posicionamo-nos a favor de uma aplicação, de último grau, da lei adjetiva comum, ainda que adaptada “à natureza marcadamente abreviada e informal do procedimento arbitral”, como dispõe, com particular acerto, a regra do n.º 2 do artigo 32.º do Regulamento do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros (CIMPAS).

Não se ignora que, como salienta Manuel Pereira Barrocas, “[o] Código de Processo Civil, tal como qualquer outra lei processual, nacional ou estrangeira, não foi pensado, elaborado e publicado para regular a arbitragem em geral e o processo arbitral em particular, sob pena de se transpor para a arbitragem a complexidade, quando não discussões doutrinarias e jurisprudenciais que não têm a ver com a arbitragem, desvirtuando e retirando as vantagens que lhe são próprias”. Afinal, “[a] jurisdição arbitral funda-se em juízos de equidade e na extrema simplificação e agilização dos procedimentos, recortando-se como uma forma de resolução de litígios em modo simplex, ao passo que a jurisdição estadual assenta no rigor do estrito cumprimento da lei processual e na absoluta salvaguarda de todas as garantias do pleno exercício das mais amplas faculdades processuais, de que não abre mão em circunstância alguma.”

Sem prejuízo do que antecede e, ainda, do disposto no n.º 3 do artigo 30.º da Lei da Arbitragem Voluntária, propugnamos, porém, que a certeza e da segurança jurídicas na aplicação do Direito reclamam que, na ausência de solução aplicável prevista na Lei RAL, na Lei da Mediação (aplicável ao procedimento de RAL de mediação) ou na LAV (aplicável ao procedimento de RAL de arbitragem), se imponha aos colaboradores das entidades de RAL responsáveis por cada um dos procedimentos a convocação e observância das regras e princípios postulados no Código de Processo Civil, ainda que despojados dos formalismos próprios e específicos de uma lei que rege o processo perante os tribunais estaduais.

A aplicação da lei processual civil reveste de particular interesse na verificação dos pressupostos processuais de que depende a regularidade da instância arbitral, seja os relativos ao próprio tribunal arbitral, e.g. competência em razão do valor (artigos 296.º e seguintes do CPC), seja os relativos às partes, e.g. personalidade e capacidade judiciárias (artigos 11.º e seguintes e 15.º e seguintes do CPC), seja, ainda, os relativos ao próprio objeto da demanda arbitral, e.g. aptidão da reclamação (artigo 186.º do CPC) e inexistência de litispendência e de caso julgado (artigos 577.º, alínea i), 580.º, 581.º e 582.º, todos do CPC), seguindo-se aqui de perto Sara Lopes Ferreira, em apresentação feita recentemente num webinar.

Mas não só. Também algumas disposições relativas à prática dos atos processuais, como o princípio da proibição da prática de atos inúteis (artigo 130.º do CPC), a alegação e prova de “justo impedimento” pela parte ou seu representante ou mandatário que obste à prática atempada do ato ou à presença na audiência arbitral, cuja marcação, por norma, não é antecedida de acordo prévio das partes, seja por contacto direto do tribunal, seja com a intermediação do secretariado do tribunal (artigos 139.º, n.º 4, 140.º, 151.º, n.ºs 2 e 3 e 603.º, n.º 1, todos do CPC), ou atinentes à instrução do processo, como a inexigibilidade de alegação e prova dos factos públicos e notórios (artigo 412.º do CPC), o critério de julgamento em caso de dúvida sobre a realidade de um facto (artigo 414.º do CPC), a prova por apresentação de coisas móveis ou imóveis (artigo 416.º do CPC), a prova por depoimento de parte e por declarações de parte, prova por inspeção e prova testemunhal (artigos 452.º e seguintes, artigo 466.º, artigos 490.º e seguintes e artigos 495.º e seguintes, todos do CPC, com as devidas adaptações), ou mesmo respeitantes à sequência dos atos a praticar na audiência de julgamento (artigo 604.º, n.º 3 do CPC) devem ser, a nosso ver, atendidas e respeitadas pelo árbitro na condução do processo arbitral.            

Por último, sem embargo do disposto no n.º 2 do artigo 10.º da Lei RAL, considerando que, paulatinamente, demandados e, sobretudo, demandantes vêm tomando consciência da importância que, amiúde, reveste a constituição de mandatário forense em prol da melhor tutela da sua posição jurídica no litígio, importa levar em consideração, no sentido do texto, que os advogados e os solicitadores trabalham quotidianamente com o Código de Processo Civil e têm a sua forma mentis moldada pela lei adjetiva comum.


[1] Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2017, p. 130.