Do #NOFILTER ao #FILTERDROP: o esforço legislativo no combate à distorção digital da beleza

Doutrina

Tem circulado pela internet nos últimos dias a notícia de que fora sancionada no último dia 11, através do Decreto Legislativo 146 (2020-2021), a emenda à Lei de Marketing norueguesa, que “visa ajudar a reduzir a pressão corporal na sociedade devido às pessoas idealizadas na publicidade[1]. Após uma esmagadora votação de 72 votos a favor e 15 contra, a alteração legislativa passa a obrigar os influenciadores digitais a identificar as fotografias que tenham sido retocadas. As redes sociais visadas pela medida vão desde o Instagram, passando pelo Facebook, TikTok, Twitter e Snapchat.

Não é de hoje que o NOVA Consumer Lab tem trabalhado sobre a influência das redes sociais e das tecnologias sobre o comportamento social. Mais do que nunca, as redes sociais deixaram de ser meros instrumentos de compartilhamento de rotina e vida pessoal, com fotos de família, crianças e animais para ceder espaço ao lucro e à comercialização de produtos e serviços. Hoje, a regra é clara: curvas incríveis, padrões inigualáveis e um quase “conto de fadas da beleza”.

Por trás da perfeição dos corpos e lifestyle presentes nas mídias sociais, sob a égide da despretensiosa naturalidade, estão, entretanto, os patrocínios, parcerias, publicidades e, sobretudo, os inúmeros retoques às fotos e vídeos publicados por aqueles que ditam, para além de tendências, o novo ideal de vida e beleza.  Naomi Wolf, autora feminista e ativista dos direitos civis nos EUA, já em 1992 apontava o fato de o mito da beleza estar sempre prescrevendo comportamentos, não aparência[2]. Cada vez mais incomodados com os resultados sociais advindos dessa dita pressão estética, reguladores e legisladores pelo mundo estão a reagir à propaganda da perfeição aparente. Em fevereiro deste ano, logo após uma campanha que circulava dentro das próprias redes sociais (#filterdrop), a Advertising Standards Authority (ASA) – agência reguladora de propagandas do Reino Unido, aprovou uma legislação muito semelhante à norueguesa, e passou a determinar que os influenciadores digitais do país não fizessem mais uso de filtros “enganosos” em campanhas com produtos de beleza nas mídias.

Na França, desde 2017, vigora a determinação de obrigatoriedade da mensagem “photografie retouchée” para fotos que tenham sofrido qualquer tipo de alteração por programas digitais, demonstrando o esforço por tornar a mídia mais responsável em termos de publicidade.

Já na Noruega, a regra visa proibir que os influenciadores compartilhem imagens sem a devida sinalização de retoque e uso de filtros de beleza, os quais foram projetados para melhorar a aparência, incluídos como recursos comuns aos aplicativos de redes sociais atuais. Proposta pelo Ministério da Infância e da Família, a lei integra os esforços públicos de contenção da distorção de imagem no país, devendo ser seguida por todos influenciadores e celebridades que recebam pagamento para criação de anúncios nas redes com uso de técnicas de pré e pós-produção de imagem. O não cumprimento da lei pode implicar não somente em sanções pecuniárias, como também pena de prisão.

Acerca da construção de um ideal de beleza física e da influência das redes sociais sobre o bem-estar, uma pesquisa recente realizada pela Dove, e conduzida pela Edelman Data & Intelligence, com mulheres dos EUA, Reino Unido e Brasil, aponta que 84% das jovens com 13 anos já aplicaram filtro ou realizaram algum tipo de edição em suas fotos. Os dados divulgados pela pesquisa ainda tratam do fato de que mais da metade das mulheres se compara com as fotos publicadas na internet, além de temer publicar fotos de seu corpo em virtude dos padrões atualmente estabelecidos.

Em Portugal, a pesquisa aponta que 2 em cada 3 raparigas tentem mudar ou esconder pelo menos uma parte do corpo antes de publicarem uma fotografia sua, tal como a cara, o cabelo, a pele, a barriga ou o nariz, para removerem “imperfeições” e corresponderem a padrões de beleza irrealistas”.

As técnicas de produção que aprimoram ou alteram uma imagem com fins comerciais não são novidade no mundo da publicidade e exige atenção dos consumidores que, em razão dos retoques realizados, possam vir a ser enganados pelas alegações visuais exageradas ou, até mesmo, impossíveis de atingir. Em Portugal, o tema ainda não tem nenhum tipo de tratamento especial, embora vigore o Código da Publicidade e a Constituição da República Portuguesa estabeleça, no art. 60º, a proibição à publicidade considerada oculta, o que, em nossa visão, pode estar pressuposta em posts relacionados a produtos e serviços de estética, alimentação ou emagrecimento, por exemplo.

No mesmo sentido, a Entidade Reguladora da Saúde, em 2015, após a aprovação do Decreto-Lei n.º 238/20, tornou-se a entidade competente para a fiscalização em matéria de publicidade em saúde. A normativa é mais uma a prescrever a obrigatoriedade de clareza na publicidade, em seu art. 7.º, ainda que não trate especificamente da abordagem relacionada às redes sociais. 

Fato é que padrões de beleza sempre existiram e as características ideais variam ao longo da história. A despeito do esforço legislativo em favor do combate à distorção digital de corpos e da construção de padrões inatingíveis de beleza física, normalmente ocultos sob retoques e adaptações de imagem, é preciso notar que nem sempre o Direito terá as soluções para problemas cujas raízes são de cunho muito mais social, e psíquico, do que legal. Atualmente, até mesmo a mercantilização do movimento “body positive” pode impedir uma autêntica solução da questão que, historicamente, remonta ao uso de espartilhos, pílulas de arsênicos, maquiagens com chumbo e dietas absurdamente restritivas.

Ainda que os instrumentos regulamentares sejam necessários e possamos enxergá-los como meios hábeis a reduzir a pressão sobre a imagem física, é preciso compreender o espectro limitado dessas atuações e recordar que a idealização da beleza é muito mais profunda e complexa do que a utilização de filtros. Não podemos, não queremos e nem devemos nos reduzir a somente legislar o tema, quando é preciso discutir seriamente questões como representação, sexualização e objetificação do corpo como instrumento comercial, atentos ao fato de que redes sociais são mais do que redes de socialização, mas grandes empresas voltadas, sobretudo, ao lucro.


[1] Tradução da Decisão resumida da emenda legislativa à Lei de Marketing, 2009, da Noruega.

[2] WOOLF, N. O Mito da Beleza. Como as Imagens de Beleza são usadas contra as Mulheres. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro. Ed. Rocco, 1992


Laranjas do Algarve e a relevância contratual da publicidade

Consumo em Ação

Por André Neves, Beatriz Pereira e Luís Cruz

Hipótese: Xavier viu um anúncio na televisão com a seguinte mensagem: “Laranjas do Algarve a € 0,70 o quilo. Só esta semana, no sítio de que mais gosta”. Entusiasmado, Xavier dirigiu-se ao supermercado, mas foi informado de que as laranjas do Algarve estavam agora a € 1,20 o quilo. O que pode Xavier fazer?

Resolução: O primeiro passo a dar na resolução de uma hipótese como esta é analisar se o anúncio constitui uma proposta contratual. Ora, não se levantam problemas a esse nível, na medida em que estamos perante uma declaração completa, precisa, firme e formalmente adequada[1]. Mais concretamente, uma vez que se trata de uma proposta que não tem destinatário ou destinatários determinados, podemos qualificá-la como sendo uma proposta ao público[2].

Esta modalidade de proposta contratual “coloca o [seu] emitente […] em situação de sujeição […], concedendo a cada um dos destinatários indeterminados o direito potestativo de concluir o contrato”[3] . Significa isto que, caso consideremos que a proposta não foi válida e eficazmente revogada pelo supermercado, está nas mãos de Xavier celebrar ou não o contrato por 0,70 euros o quilo.

Assim sendo, importa referir que a proposta ao público é eficazmente revogável quando é feita na forma da oferta ou em forma equivalente (art. 230.º-3 do Código Civil – CC), ainda que seja durante o período de duração da proposta fixado pelo proponente (art. 228.º-2)[4]. A questão é complexa, e partindo do pressuposto de que a eventual revogação da proposta opera por via de um anúncio similar àquele em que foi emitida (que passou na televisão durante o período entre o qual Xavier viu o primeiro anúncio e chegou ao supermercado), à primeira vista poderíamos ser levados a crer que houve efetivamente uma revogação da primeira proposta e uma nova proposta já com o preço de 1,20 euros o quilo. Contudo, entendemos que essa não é a melhor interpretação para esta situação em concreto.

Há um elemento de atração fundamental na publicidade, na medida em que o grande objetivo da empresa, quando emite um anúncio na televisão, é promover a aquisição ou estimular a procura[5], fazendo com que os consumidores se dirijam ao supermercado. Assim sendo, se Xavier se dirige ao supermercado depois de ter visto o anúncio, e porque viu o anúncio, parece-nos que não podemos considerar que neste caso tenha havido uma revogação da proposta contratual em relação a ele. Aliás, impedir esta revogação parece-nos uma forma adequada de “responsabilizar os lojistas” quanto à forma como indicam os preços.

O anúncio diz expressamente que as laranjas estão a 0,70 euros o quilo durante aquela semana. Xavier dirige-se ao supermercado para as comprar e só quando lá chega é que é informado que, entretanto, o preço aumentou. Numa interpretação do art. 230.º-3 do CC à luz dos princípios fundamentais orientadores do ordenamento jurídico, nomeadamente à luz da boa-fé (art. 9.º-1 da Lei de Defesa do Consumidor), parece-nos que é necessário “dar um tempo”, isto é, parece-nos que os consumidores que estejam a deslocar-se para a loja em virtude de terem visto o anúncio não podem ser abrangidos pela revogação operada por meio do segundo anúncio (que nem sequer temos a certeza se existiu).

Tendo em conta a razão de ser do art. 230.º-3, entendemos que só um anúncio que, em circunstâncias normais, permitisse a Xavier ter a perceção de que o preço havia aumentado antes de se ter deslocado ao supermercado, é que poderia configurar uma revogação da proposta “feita na forma da oferta ou em forma equivalente” em relação a si.

Se porventura não tiver existido nenhum anúncio posterior ao que configurou a proposta, ainda mais fortalecida se torna a nossa posição de que não há qualquer revogação que abranja Xavier. Pela teleologia dos argumentos já expostos, que a este caso também se aplica, a tentativa de revogação da proposta que havia sido operada por meio de um anúncio, tentativa essa feita já no supermercado, não pode abranger quem se dirige ao mesmo precisamente para comprar o produto anunciado e por conta de ter visto o tal anúncio. Não havendo qualquer revogação que abranja Xavier, este tem o direito potestativo de concluir o contrato por 0,70 euros o quilo, sendo que a sua aceitação dar-se-á no momento em que apresentar as laranjas na caixa, pois será nesse momento que manifestará de forma inequívoca a sua intenção de aceitar a proposta.


[1] Ac. do STJ, de 27 de outubro de 2011, Processo nº 2279/07.8TBOVR.C1.S1 (Oliveira Vasconcelos).

[2] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, p. 83.

[3] Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, Almedina, 2005, p. 98.

[4] Admitimos que no caso em que é anunciado um período de duração de determinada proposta (“Só esta semana”) e essa proposta é revogada, poderemos estar perante uma prática comercial desleal, assim como admitimos a eventual possibilidade de, em tal caso, por via da articulação entre a norma geral e as normas especiais de direito do consumo, se considerar o prazo como vinculativo. Contudo, uma vez que neste caso conseguimos garantir a proteção do consumidor por uma outra via, a nosso ver mais clara, decidimos optar por essa outra via.

[5] Carlos Ferreira de Almeida, “Conceito de Publicidade”, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 349, 1985, pp. 115-134.

As taxas de juro bancárias estão liberalizadas?

Doutrina

De acordo com o entendimento jurisprudencial dominante[1], as taxas de juro bancárias, seja em relação aos juros remuneratórios, seja no que tange aos juros de mora, podem ser livremente estabelecidas pelas instituições de crédito e sociedades financeiras, pelo que não se encontram sujeitas aos limites ditados pelos arts. 559.º-A e 1146.º do Código Civil, aplicáveis ex vi art. 102.º, § 2 do Código Comercial.

Sustenta esta corrente que, por força do n.º 2 do Aviso n.º 3/93, do Banco de Portugal (Aviso n.º 3/93), foram praticamente liberalizadas as taxas de juro no domínio das operações e contratos bancários, representando aquelas, assim, no que respeita à sua formação nominal, o resultado da livre concorrência no mercado financeiro, salvo nos casos em que sejam fixadas por lei que regule, em especial, o crédito bancário, de que é exemplo paradigmático o art. 28.º do Decreto-Lei n.º 133/2009.

Ora, se a quase unanimidade da nossa jurisprudência afirma a inaplicabilidade do disposto pelos arts. 559.º-A e 1146.º do Código Civil nos casos em que o concedente do crédito é uma entidade sob a supervisão do Banco de Portugal (com esta exceção), já na doutrina vozes se insurgem contra tal posição. Não é o caso de Jorge Morais Carvalho, que, no seu Manual de Direito de Consumo (p. 422), também apresenta outras referências doutrinais (Carlos Ferreira de Almeida e Maria Cristina Portugal) que defendem a liberalização dos juros bancários.

Carlos Gabriel da Silva Loureiro terá sido o primeiro autor a pugnar pela sujeição dos juros estipulados por instituições bancárias ao regime da usura da lei civil comum, observando que a norma do n.º 2 do Aviso n.º 3/93, enquanto manifestação do poder regulamentar da autoridade reguladora do sistema bancário, foi emitido depois da revogação da norma habilitante, que constava do art. 28.º-1-b) da Lei Orgânica do Banco de Portugal de 1975[2] (revogada, esta, pela LOBP 90). À luz do princípio da legalidade​, nas vertentes de precedência e prevalência da lei (arts. 112.º-7 e 266.º-2 da CRP), pode, “por isso, questionar-se (…) a virtualidade de uma disposição com a referida natureza poder derrogar normas legais de natureza claramente imperativa”, como são os arts. 102.º do Código Comercial e 1146.º do Código Civil[3].

No mesmo sentido, também se pronuncia Manuel Januário da Costa Gomes, que revela sérias dúvidas quanto à idoneidade das “vagas e difusas” normas dos arts. 18.º, 22.º e 23.º-f), da LOBP 90 para conferirem a necessária habilitação à previsão daquela disciplina em matéria de juros. E ainda que se admita a existência de lei prévia, com um grau de pormenorização suficiente, que habilite o Banco de Portugal a emanar aquele Aviso n.º 3/93, acrescenta o mesmo autor que importa «(…) demonstrar – ponto este que exige urna valoração que extravasa o campo estritamente jurídico, entrando no financeiro e até na macroeconomia – que essa “intervenção” é necessária», nos termos do art. 16-1-a) da LOBP 98 (atualmente em vigor), para “garantir os objetivos da política monetária e cambial”.

Por sua vez, Pedro Pais de Vasconcelos enfatiza que a ressalva final da norma do n.º 2 do Aviso n.º 3/93 (“salvo nos casos em que sejam fixadas por diploma legal”) “é muito significativa e não tem merecido a devida atenção”. Assinalando a insuficiência dos Avisos do Banco de Portugal para, por si só, concretizarem a derrogação dos limites de taxas de juro estatuídos no Código Civil e no Código Comercial e aditando que, mesmo fundados em lei prévia habilitante, tais Avisos “não dispensariam, sem mais, as taxas TAEG do regime do art. 1146.º do Código Civil” (i.e., os limites gerais e não apenas os limites especiais), este autor nota que “[d]a comparação dos três regimes legais, da LOBP 75, da LOBP 90 e da LOBP 98, resulta com clareza a perda pelo Banco de Portugal da competência para fixar os limites de taxas de juro das operações ativas bancárias. Logo na LOBP 90 deixou de haver qualquer preceito que atribuísse ao Banco Central essa competência, e assim se manteve na LOBP 98. E, no entanto, os Avisos emitidos pelo Banco de Portugal em que regeu sobre taxas de juro TAEG continuam a referir como normas habilitantes o art. 17.º da LOBP 98, além do art. 28.º do Decreto-Lei n.º 133/09, de 2 de junho (que rege atualmente o crédito ao consumo)”.

A propósito do regime especial sobre a usura no crédito ao consumo que, em termos inovadores, foi consagrado no art. 28.º do DL 133/2009, alerta, de resto, o mesmo autor que este preceito, “se interpretado como único limite de taxas de juro e de usura, permite que as taxas de juro cresçam exponencialmente [um acréscimo, em cada trimestre, de 25% da taxa média do trimestre anterior para aquele específico tipo de operação, ou de 50% da taxa média da globalidade do contrato de crédito ao consumo celebrado no trimestre anterior] sem limite” temporal. Donde, considerando que “a ratio juris imanente ao regime jurídico do crédito ao consumo é de ordem pública de proteção do consumidor, não é de proteção do seu financiador”, na perspetiva do autor, não é defensável (…) o abandono dos consumidores a taxas de juro como aquelas que são permitidas pela sua limitação apenas ao regime do art. 28º do DL 133/09 com dispensa [da aplicação] dos limites dos arts. 559.º e 559.º-A do Código Civil e do art. 102.º do Código Comercial” a “(…) taxas das operações bancárias (…) objetivamente mercantis, porque assim o são as operações de banco, segundo o art. 362.º do Código Comercial” – em sentido objetivo (v., também, art. 2.º-1.ª parte do Código Comercial) – e de acordo com os arts. 2.º-2.ª parte e 13.º do Código Comercial – em sentido subjetivo.

Por último e em idêntico sentido da aplicação dos limites legais do Código Civil e do Código Comercial às taxas de juro bancárias, Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, em artigo publicado na Revista de Direito Comercial e em recente webinar organizado pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto, realça a elasticidade da redação do art. 559.º-A do Código Civil (aditado pelo Decreto-Lei n.º 262/83) quanto ao âmbito de aplicação do disposto no art. 1146.º do Código Civil – “[é] aplicável o disposto no artigo 1146.º a toda a estipulação de juros ou quaisquer outras vantagens em negócios ou atos de concessão, outorga, renovação, desconto ou prorrogação do prazo de pagamento de um crédito e em outros análogos” –, extensível a todas as obrigações que se traduzam em formas de remuneração de capital mutuado. Por conseguinte, advoga, nenhum sentido faria estabelecer um “duplo regime” em que “a lei criava quase sem brechas (ver o art. 559.º-A) um regime protetor do creditado, e afastava-o depois na esmagadora maioria dos casos em que é concedido crédito, através dos seus concedentes profissionais (…)”, que “(…) têm uma capacidade muitíssimo maior do que os que não (…) para o obter [o crédito] mais barato, e para avaliarem melhor o risco – e a consistência das garantias, se elas forem exigidas.”

Socorrendo-se ao argumento histórico da hermenêutica jurídica, exalta o último autor referido que o regime do Código Civil deriva daqueloutro (de fixação das taxas de juro dos empréstimos feitos por particulares) consagrado no Decreto 21730, de 14 de outubro de 1932, mas com uma destrinça não despicienda: “enquanto no regime anterior se excecionavam os juros bancários [art. 10.º], o Código Civil não consagrou exceção alguma, sendo assim evidente a intenção [de] os submeter ao regime geral.”

Projetando a sua posição no regime do art. 28.º do DL 133/2009, Pestana de Vasconcelos, depois de acentuar que a norma que determina a redução automática da TAEG, prevista do art. 28.º, n.º 6, daquele diploma legal, “(…) não constitui uma regra excecional relativamente ao art. 1146.º, permitindo a fixação de taxas de juro superiores” e que os comandos normativos ora em confronto visam “(…) regular figuras diferentes, calculadas de forma diversa: num caso uma taxa de juro, noutra uma forma de expor percentualmente o conjunto de custos associados ao crédito, no qual se inclui, também, a taxa de juro”, assevera que a aplicação do art. 1146.º do Código Civil importa, então, “a realização de três operações diversas:

(i) Em primeiro lugar, verificar se a taxa de juro nominal está dentro dos limites do art. 1146.º, e, quando não esteja, proceder à redução aos máximos legais (art. 1146.º, n.º 4). Desde logo, por força da aplicação deste limite, o valor em excesso que tenha sido pago terá que ser restituído, uma vez que se trata de um caso de nulidade parcial (art. 289.º, n.º 1).

(ii) De seguida, integrar na fórmula de cálculo da TAEG a taxa de juro nominal apurada, traduzi-la no montante de juros, e fixar o seu valor.

(iii) Por fim, aplicar os limites definidos para a TAEG (e já não para a taxa nominal, sublinhe-se novamente) ao valor apurado. Ultrapassados esses máximos, que assentam (…) nas taxas médias para a generalidade, ou determinados, contratos de crédito ao consumo, poderá proceder-se à redução”.

Pela nossa parte, embora entendamos que a inexistência de previsão legislativa, mormente no Decreto-Lei n.º 58/2013 (diploma fundamental na regulação dos juros bancários), que determine expressamente a inaplicabilidade dos limites de taxas de juro estatuídos nos arts. 559.º-A e 1146.º do Código Civil e 102.º do Código Comercial às operações bancárias ativas abona a favor da corrente doutrinal aqui desenvolvida, a fim de se dissiparem as divergências persistentes, seria aconselhável uma intervenção legislativa que viesse consagrar expressis verbis uma das soluções em confronto.


[1] V., neste sentido, só desde 2010, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.02.2010, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.06.2012, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.03.2014, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.05.2017, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.11.2017, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.04.2018, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.05.2020.

[2] O art. 28.º-1-b) da LOBP 75 rezava nos seguintes termos: “Com vista à orientação e contrôle das instituições de crédito, compete ao Banco [de Portugal], nomeadamente: (…) b) Fixar o regime das taxas de juro, comissões e quaisquer outras formas de remuneração para as operações efetuadas pelas instituições de crédito ou por quaisquer outras entidades que atuem nos mercados monetário e financeiro (…)”.  

[3] Na LOBP 90, o preceito correspondente ao art. 28.º-1-b) da LOBP 75 encontrava-se plasmado no art. 22.º-1-a) e já não permitia a fixação administrativa das taxas de juro: “Para orientar e fiscalizar os mercados monetário, financeiro e cambial, cabe ao Banco [de Portugal]: a) Regular o funcionamento desses mercados, adotando providências genéricas ou intervindo, sempre que necessário, para garantir o cumprimento dos objetivos da política económica, em particular no que se refere ao comportamento das taxas de juro e de câmbio (…)”.

Fornecimento de água e rotura em rede predial

Doutrina

Infelizmente, alguns de nós já tivemos de lidar com uma situação de rotura na rede predial de imóvel que, nos termos de contrato, é abastecido de água através da rede pública. Nessas circunstâncias, além dos encargos com a verificação e reparação da rotura, tememos a repercussão em faturação do volume de água perdida. Do ponto de vista jurídico, como deve a rotura no sistema de distribuição predial ser refletida em termos de faturação?

Com efeito, em primeiro lugar, importa ter presente que, na situação exposta, utilizador e entidade gestora se acham ligados por contrato para prestação do serviço de fornecimento de água, um contrato misto, com elementos de compra e venda e de prestação de serviços, de execução duradoura, nos termos do qual a segunda se obriga ao fornecimento permanente de água canalizada potável (prestação de execução continuada), encontrando-se o utente adstrito a contraprestações, de execução periódica, consistentes, nomeadamente, no pagamento de uma “tarifa de disponibilidade”, devida em função do intervalo temporal objeto de faturação, e de uma “tarifa variável”, proporcional à quantidade de água por si efetivamente consumida – art. 81.º do Regulamento n.º 594/2018, da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR).

Na vigência do contrato, assiste ao utente o direito à medição dos respetivos níveis de utilização do serviço de abastecimento de água, a ser assegurado pela colocação de instrumento de medição (contador) adequado às características do local e ao perfil de consumo do utilizador (arts. 66.º-1 e 2 do DL 194/2009 e 84.º-1 e 4 do Regulamento n.º 594/2018).

De acordo com o art. 69.º-1 do DL 194/2009 (assim como o art. 41.º-1 e 2 do Regulamento n.º 594/2018), “[t]odos os edifícios, existentes ou a construir, com acesso ao serviço de abastecimento público de água ou de saneamento de águas residuais devem dispor de sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais devidamente licenciados, de acordo com as normas de conceção e dimensionamento em vigor, e estar ligados aos respetivos sistemas públicos”, sendo o abastecimento predial de água (em boas condições de caudal e pressão), desde a rede pública até ao limite da propriedade a servir, assegurado por ramal de ligação, cuja instalação (assim como a respetiva conservação, renovação e substituição) é da responsabilidade da entidade gestora (arts. 32.º-1, 282.º, 284.º e 285.º do Decreto Regulamentar n.º 23/95, 69.º-9 do DL 194/2009 e 43.º-2 do Regulamento n.º 594/2018).

O art. 59.º-2 do DL 194/2009 (como também o art. 37.º-2 do Regulamento n.º 594/2018) dispõe que o serviço de abastecimento público de água através de redes fixas se considera disponível – e, portanto, o utente tem direito à prestação do serviço público essencial (art. 1.º-2-a) da LSPE) – desde que o sistema infraestrutural da entidade gestora do serviço esteja localizado a uma distância igual ou inferior a 20 metros do limite da propriedade, caso em que os proprietários dos prédios existentes ou a construir (qualquer que seja a sua utilização) são obrigados a instalar, por sua conta, a rede de distribuição predial (arts. 69.º-4 do DL 194/2009 e 41.º-1-a) e 44.º-3 do Regulamento n.º 594/2018) e a solicitar a ligação ao sistema público de abastecimento de água (arts. 69.º-1 do DL 194/2009 e 41.º-1-b) do Regulamento n.º 594/2018).

A conservação em boas condições de funcionamento e salubridade do sistema de distribuição predial também é da responsabilidade do proprietário, uma incumbência que abarca a deteção e a reparação de roturas ou de anomalias nos dispositivos de utilização (arts. 69.º-4 do DL 194/2009 e 44.º-3 e 4 do Regulamento n.º 594/2018). No entanto, de forma a garantir a integridade dos sistemas prediais de distribuição de água, a entidade gestora deve tomar as medidas necessárias para evitar a deterioração anormal ou mesmo a produção de danos naqueles sistemas, resultantes de pressão excessiva ou variação brusca de pressão na rede pública de distribuição de água (ou de alteração das características físico-químicas da água suscetíveis de causar incrustações nas redes), assegurando, para tanto, a manutenção da pressão de serviço dentro dos intervalos indicados no art. 21.º do Decreto Regulamentar n.º 23/95 (arts. 71.º-1-a) do DL n.º 194/2009 e 35.º-2-c) e 47.º do Regulamento n.º 594/2018).

Um dos motivos para a realização de “acertos de faturação”, além da produção de faturação baseada em estimativa de consumo nos períodos em que não haja leitura do contador, assenta na situação de comprovada rotura na rede predial (art. 99.º-1-e) do Regulamento n.º 594/2018).

Citando a Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 6.7.2014, proferida no Processo n.º 7/2014, Relator: Paulo Duarte, a partir do ensinamento de M.J. Almeida Costa, o fornecimento de água pela entidade gestora do serviço origina uma obrigação genérica, que se concentra no momento da «passagem da água da rede pública para o sistema predial, através do contador, coincidindo com o acionamento dos dispositivos de utilização pelo utente. Nesse momento, nos termos do art. 408.º-2 do Código Civil, transfere-se para o utente a propriedade sobre a quantidade de água especificada (estando aquele obrigado ao pagamento do preço correspetivo). Tendo em conta o art. 796.º-1 do Código Civil, porque a transferência do risco acompanha, em regra, a transmissão da propriedade, o risco de perda (ou perecimento) da água já medida e entregue, por causa não imputável ao utente nem ao prestador do serviço, corre por conta do utente. Em suma, independentemente de ter consumido ou não a água, o utente tem de pagar o respetivo preço.

Assim, nos casos em que o utente usa, ao longo do período de faturação, os dispositivos que provocam o consumo de água, e parte dessa água, por motivo de rotura, acaba por perder-se no circuito da sua rede predial, é o mesmo responsável pelo pagamento de toda a água que lhe tenha sido entregue, mesmo a que não tenha consumido[1]. Sem embargo, em caso de comprovada rotura na rede predial, há lugar à correção da faturação emitida, operando-se o acerto de faturação nos seguintes termos: a) Ao consumo médio apurado nos termos do art. 93.º do Regulamento n.º 594/2018[2] aplicam-se as tarifas dos respetivos escalões tarifários e ao volume remanescente, que se presume imputável à rotura, a tarifa do escalão que permite a recuperação de custos nos termos do Regulamento Tarifário aprovado pela ERSAR[3]; b) O volume de água perdida e não recolhida pelo sistema público de drenagem de águas residuais não é considerado para efeitos de faturação dos serviços de saneamento e de gestão de resíduos urbanos, quando indexados ao consumo de água (art. 99.º-6 do Regulamento n.º 594/2018).


[1] Pedro Falcão, O problema jurídico das fugas de água, in “Novos Estudos sobre Serviços Públicos Essenciais”, Petrony Editora, 2018, p. 97; Cátia Sofia Ramos Mendes, O contrato de prestação de serviços de fornecimento de água, Dissertação submetida com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2015, p. 51.

[2] Apurado, em princípio, entre as duas últimas leituras reais efetuadas pela entidade gestora, dividindo os m3 consumidos entre as duas últimas leituras pelo número de dias decorridos entre as mesmas, multiplicando o consumo diário assim obtido pelos dias que pretende faturar por estimativa (art. 67.º-6-a) do DL 194/2009, art. 93.º-1-a) e 2 do Regulamento n.º 594/2018). Ou em função do consumo médio do período homólogo do ano anterior quando o histórico de consumos revele a existência de sazonalidade ou, ainda, em função do consumo médio de utilizadores com características similares no âmbito do território municipal verificado no ano anterior, na ausência de qualquer leitura subsequente à instalação do contador (art. 67.º-6-b) do DL 194/2009 e art. 93.º-1-b) e c) do Regulamento n.º 594/2018).

[3] Sendo que, até à presente data, a ERSAR ainda não fez aprovar o Regulamento Tarifário dos Serviços de Águas (RTA), no uso da competência prevista nos arts. 11.º, alínea a) e 13.º do Anexo à Lei n.º 10/2014, de 6 de março. Neste caso, a definição da tarifa do escalão que permite a recuperação de custos resultará do regulamento tarifário de cada município ou sistema multimunicipal, adotado nos termos do respetivo procedimento aplicável previsto nos artigos 24.º a 28.º do Regulamento dos Procedimentos Regulatórios da ERSAR.

Período de fidelização e alteração da morada, desemprego ou emigração nos serviços de comunicações eletrónicas

Doutrina

Uma das questões que vem sendo dirimida com mais frequência nos centros de arbitragem de conflitos de consumo prende-se com a existência (ou não) do direito de o consumidor fazer cessar unilateralmente um contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas, no decurso do período de fidelização convencionado com o profissional, fundamentando a desvinculação numa alteração das circunstâncias em que as partes basearam a decisão de contratar.

Os casos de alegada modificação da “base do negócio objetiva” reportam-se, essencialmente, a situações de alteração do local de residência do consumidor, existindo, contudo, registo de diferendos entre assinante e prestador de serviços de comunicações eletrónicas determinados por declaração de resolução do contrato (emitida pelo primeiro e com a qual o segundo não se conformou) fundada em situação de emigração ou de desemprego (ou quebra acentuada de rendimentos) do consumidor titular do contrato (ou do seu agregado familiar).

Nestes casos, revela-se pacífico que a possibilidade de o profissional prestar o serviço em determinada morada de instalação e o consumidor nele poder recebê-lo constitui uma condição determinante para a decisão de contratar das partes. E não raras vezes se verifica que a proposta apresentada pelo operador para modificação do contrato não se afigura a mais equilibrada no que tange aos interesses do assinante, sobretudo por força da diminuição qualitativa, de modo sensível, dos serviços a prestar pelo primeiro. Acresce que, nas situações de alteração do local de residência do consumidor, o facto de este, por um lado, continuar a pagar as prestações devidas por um serviço de que não vai usufruir (por continuar a ser fornecido na sua morada antiga) e, por outro lado, contratar serviços de comunicações eletrónicas para a sua nova residência (por nisso ter interesse e se tratar de um serviço público essencial – art. 1.º-2-d) da LSPE) determina uma situação de desequilíbrio entre o prejuízo causado na esfera jurídico-patrimonial do assinante e o lucro auferido pelo prestador, à custa daquele prejuízo[1].

Noutra perspetiva, a morada de prestação do serviço constitui um elemento essencial do contrato e, nessa medida, o profissional apenas se encontra adstrito a assegurar o cumprimento da sua obrigação principal com as características acordadas no concreto local estipulado no negócio celebrado com o consumidor, não podendo ser forçado a aceitar a alteração do contrato quanto à instalação de consumo[2], sobretudo quando o obstáculo que se colocou ao normal desenvolvimento do quadro contratual previsto surgiu por vontade do utente (e não por facto exterior à vontade das partes), não se revelando imprevisto e anómalo.

Não ignorando a assinalável litigiosidade em torno desta matéria, a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM), no seu Anteprojeto de diploma de transposição do Código Europeu das Comunicações Eletrónicas[3], gizou, nos arts. 132.º (Alteração da morada de instalação) e 133.º (Situação de desemprego ou emigração do titular do contrato), duas soluções normativas inovadoras, especificamente pensadas para as situações acima identificadas.

Assim, nos termos do art. 132.º do Anteprojeto, “[e]m caso de alteração do local de residência do consumidor, a empresa que oferece serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público (…) não lhe pode exigir o pagamento de quaisquer encargos relacionados com o incumprimento do período de fidelização, caso não possa assegurar a prestação do serviço contratado ou de serviço equivalente, nomeadamente em termos de características e de preço, na nova morada (n.º 1), sendo que, para tais efeitos, “o consumidor comunica à empresa que oferece os serviços a alteração da respetiva morada com uma antecedência mínima de um mês, apresentando documentação que a comprove” (n.º 2), fixada pela ANACOM (n.º 3), isto sem prejuízo do “direito de a empresa cobrar os serviços prestados durante o período de pré-aviso” (n.º 4).

Já de acordo com o art. 133.º do Anteprojeto, “[e]m situações de emigração ou de desemprego do consumidor titular do contrato devidamente comprovadas, a empresa que oferece serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público (…) não lhe pode exigir o pagamento de quaisquer encargos relacionados com o incumprimento do período de fidelização (n.º 1), podendo a ANACOM “determinar quais os elementos comprovativos que podem ser exigidos pelas empresas que oferecem serviços aos consumidores” (n.º 2). Esta solução normativa apresenta semelhanças com o disposto no art. 361.º-3-a) da Lei n.º 75-B/2020 (aqui já referido no blog), podendo representar uma sobrevigência de uma medida excecional e temporária para além do atual contexto de emergência de saúde pública provocado pela pandemia da doença COVID-19.

Ora, com base no anteprojeto preparado pela ANACOM (e noutros contributos recolhidos), em 9.4.2021, o Governo apresentou à Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 83/XIV/2.ª (PL), a qual, no que respeita à matéria de que aqui trato, acolheu, no essencial, a disciplina desenhada pela ANACOM para as situações de alteração do local de residência do consumidor (art. 132.º da PL). Porém, eliminou o art. 133.º constante do Anteprojeto, quedando-se por uma regra que pouco ou nada acrescenta (em face da prática dos tribunais): “[o] disposto nos artigos 131.º e 132.º não prejudica a aplicação dos regimes de resolução e de modificação do contrato por alteração das circunstâncias previstos no Código Civil” (art. 133.º da PL).

Acompanhando a apreciação efetuada pela Direção-Geral do Consumidor (DGC) em parecer sobre a PL, independentemente da bondade da solução, certo é que o art. 132.º da PL “vem sanar, de forma inequívoca, a questão, eliminando o espaço de discricionariedade existente, até ao momento, com eventuais ganhos em termos de segurança jurídica”, deixando de ser “os operadores a definir, numa primeira instância, se a mudança de residência constitui ou não uma alteração anormal das circunstâncias”. Sem embargo, diversamente do que se verificava no Anteprojeto, o PL surge desprovido de uma “norma estabelecendo o poder de a ARN determinar quais os elementos comprovativos que podem ser exigidos pelas empresas para efeitos de prova da alteração de morada”, o que, de acordo com a mesma lógica de preclusão da margem de discricionariedade, é merecedor de crítica. Acresce que, como nota a DGC, afigura-se «necessária a clarificação do que se entende por “serviço equivalente”», devendo ficar expresso em letra de lei que “serviço equivalente” é todo aquele que não importa “qualquer downgrade da tecnologia do serviço contratado, uma vez que, em qualquer tecnologia, este downgrade acarreta uma perda significativa da qualidade do serviço contratado”.

Já a supressão do art. 133.º do Anteprojeto deveria ser repensada, atenta a necessidade de intervenção legislativa para pacificação dos conflitos existentes entre assinantes e prestadores de serviços em casos de emigração ou de desemprego (ou quebra acentuada de rendimentos) do consumidor titular do contrato (ou do seu agregado familiar), ainda que, como reconhece a ANACOM com a sua nova proposta de redação para o artigo vertida em parecer sobre a PL (p. 207), a previsão normativa possa (e deva) ser mais “equilibrada, do ponto de vista da proteção dos legítimos interesses das empresas” e no quadro de uma disciplina jurídica dos contratos que encontra no princípio pacta sunt servanda (os contratos devem ser pontualmente cumpridos – art. 406.º do Código Civil) um dos seus princípios fundamentais.


[1] Dália Shashati, Períodos de Fidelização, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito na especialidade de Ciências Jurídicas Empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2015, pp. 81-93.

[2] Flávia da Costa de Sá, Contratos de Prestação de Serviços de Comunicações Eletrónicas: A Suspensão do Serviço em Especial, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2014, p. 45.

[3] O Código Europeu das Comunicações Eletrónicas foi estabelecido pela Diretiva (UE) 2018/1972, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, tendo o Anteprojeto de diploma de transposição sido aprovado por Decisão de 31.07.2020, para envio à Assembleia da República e ao Secretário de Estado Adjunto e das Comunicações.

Transposition of Directives 2019/770 and 2019/771

Legislação

The deadline for the transposition of Directives 2019/770 (supply of digital content and digital services) and 2019/771 (sale of consumer goods) expired yesterday.

On the dedicated page for each of the Directives on the official EUR-Lex portal[1], only implementation measures in four Member States (Bulgaria, Spain, France and Austria) are listed. In fact, if we analyse the diplomas indicated for each of these countries, in France we are dealing only with a legislative authorisation to regulate the subject and in Austria we are dealing with a Federal Act amending the Consumer Protection Authorities Cooperation Act, the Telecommunications Act 2003 and the Competition Act, which does not transpose the Directives. That leaves Spain, whose transposition legal regime we have already briefly commented on in this blog, and Bulgaria.

The transposition of the two Directives into Bulgarian law was made by Decree No. 90, made available on 11 March 2021, which approves the Law on the supply of digital content and digital services and the sale of goods. As in Spain, the two directives are transposed through a single legislative act, but, unlike in Spain, the two subjects (supply of digital content and digital services on the one hand and sale of consumer goods on the other hand) are treated separately. After a first chapter with some special provisions (arts. 1 to 3), the second chapter is dedicated to the supply of digital content and services (arts. 4 to 22) and the third chapter to the sale of consumer goods (arts. 23 to 40). Then there are further chapters dedicated to claims (arts. 41 to 48), means of dispute resolution (arts. 49 to 56), implementation and control (arts. 57 to 62) and administrative sanction (arts. 63 to 75). There are also a number of additional provisions and final and transitional provisions.

From a substantive point of view, I would highlight the maintenance of the liability (or legal guarantee) period at the minimum of two years provided for in the Directives (as regards the sale of consumer goods, Spanish law is more favourable to the consumer, as was pointed out in a previous post) – arts. 14-2 and 31-1. Under art. 44, in addition to the legal guarantee period, an identical limitation period is provided for. The period within which the lack of conformity is presumed to have existed at the time of supply/delivery is also stipulated as a minimum of one year (art. 32-1). There is no obligation on the consumer to notify the seller of the lack of conformity.

Although no further implementation measures have yet been reported, there is news about the process in several other Member States.

Karin Sein and Martin Ebers divide (taking into account the texts published in Vol. 12, no. 2 (2021) of JIPITEC (Journal of Intellectual Property, Information Technology and Electronic Commerce Law), which is a very interesting read) the countries belonging to the civil law family, as regards the transposition of the Directives, into three groups: (i) transposition into the general part of contract law in the Civil Code (Germany, Lithuania and Estonia); (ii) transposition into the special contracts part of the Civil Code (the Netherlands); (iii) transposition into a piece of legislation other than the Civil Code (Austria and Poland).

This classification is very interesting, although I believe it can be further broken down, separating three possible situations in the last mentioned group: (i) transposition into a legal regime regulating consumer relations in general; (ii) transposition in a separate but single statute regulating both the supply of digital content and digital services and the sale of consumer goods; and (iii) transposition in two separate statutes, one relating to the supply of digital content and digital services and the other to the sale of consumer goods.

This would result in five categories:

(1) General part of contract law in the Civil Code.

(2) Special part on contracts in the Civil Code.

(3) Legal regime regulating consumer relations in general.

(4) Single separate legal regime.

(5) Two separate legal regimes.

In group 1, we have Germany, Lithuania, and Estonia; in group 2, the Netherlands; in group 3, Spain (and we will probably soon have Poland, as mentioned here, and France, given the Preliminary Draft presented in March); in group 4, Bulgaria. The plans of the Austrian Ministry of Justice, indicated here by Brigitta Zöchling-Jud, seem to point to the inclusion of Austria in group 4, although it may be in the vicinity of the border with group 3.

Another interesting question, not to be confused with this one, is whether the subject of conformity with the contract will be uniformly regulated for the supply of digital content and digital services and for the sale of consumer goods, or whether there will be two different sets of provisions.

Spain has opted for a unitary regulation (this also seems to be the path followed by Austria and, at least in part, as regards the conformity criteria, by Poland), while Bulgaria regulates successively both subjects in the same statute. The Netherlands also seems to be aiming at regulating the two subjects autonomously, as is clear from this text by Marco B. M. Loos. The same can be said of Estonia, according to this text by Irene Kull, and Lithuania (see the text by Laurynas Didžiulis).

Other classifications could be interesting, such as the one regarding the scope of application of the transposition rules, i.e. whether they are or not limited to consumer relations. This remains for a future text. A final note on Portugal. There is still no news in the public domain about the transposition of the directives. The Secretary of State for Commerce, Services and Consumer Protection (João Torres) said in an interview in mid-March that the transposition of these Directives and of Directive 2019/2161 (which amends several consumer law directives) was being prepared, promising to “make a difference in the short term” in the field of the online sale of goods online and the supply of digital content and digital services. It was also indicated that the government is working on a law to increase the liability of digital platforms that sell third-party goods.


[1] Website consultation made on 30 June 2021.

Segurança geral dos produtos e créditos ao consumo

Legislação

O legislador europeu tem estado bastante ativo nos últimos dois anos em matérias relacionadas com o direito do consumo.

Ontem, a Comissão Europeia apresentou mais duas iniciativas legislativas com grande relevância nesta área. Segundo se pode ler na nota de imprensa emitida, os dois novos diplomas, ainda em fase de proposta, visam reforçar os direitos dos consumidores, em especial tendo em conta os desafios da digitalização e da pandemia de COVID-19. Se reforçam ou não é outra questão, que certamente irá ser objeto de discussão, aqui e em muitas outras sedes.

Em primeiro lugar, temos uma Proposta de Regulamento relativo à segurança geral dos produtos.

Nota-se mais uma vez neste diploma a tendência recente da União Europeia em legislar por via de Regulamento, tentando uniformizar as regras a nível europeu. Esta tendência já foi identificada e discutida aqui no blog, num texto de Paula Ribeiro Alves.

Propõe-se a revogação de duas diretivas, passando as respetivas matérias a ser tratadas num único diploma. São elas a Diretiva 87/357/CEE, do Conselho, de 25 de Junho de 1987, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos produtos que, não possuindo a aparência do que são, comprometem a saúde ou a segurança dos consumidores (imitações perigosas), e a Diretiva 2001/95/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Dezembro, relativa à segurança geral dos produtos. A primeira foi transposta em Portugal pelo Decreto-Lei n.º 150/90, enquanto a segunda foi transposta pelo Decreto-Lei n.º 69/2005, de 17 de março (alterado pelos Decretos Regulamentares n.os 57/2007, de 27 de abril, e 38/2012, de 10 de abril, e pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro).

A proposta contém várias normas inovadoras, que visam regular melhor todo o processo relativo aos produtos perigosos.

Gostaria, no entanto, de realçar o art. 35.º da Proposta, que vem acrescentar direitos subjetivos aos consumidores, além dos previstos na Diretiva 2019/771 (venda de bens de consumo), em caso de recall (definido como qualquer medida destinada a obter a devolução de um produto que já tenha sido colocado à disposição do consumidor). O operador económico responsável pelo recall deve oferecer ao consumidor um serviço rápido, eficaz e sem custos, que tem de permitir, no mínimo, a reparação do produto, a substituição do produto por outro de igual valor e qualidade ou o reembolso do valor do produto recolhido. A reparação, a eliminação ou a destruição do produto pelo consumidor só é aceitável se puder ser feita de forma fácil e segura. O profissional deve fornecer as instruções necessárias e/ou, em caso de reparação, a substituição gratuita das peças ou as necessárias atualizações de software. A solução também não pode implicar inconvenientes significativos para o consumidor, não devendo este suportar os custos de transporte ou de devolução do produto. No caso de produtos difíceis de transportar, a recolha deve ser feita pelo profissional.

Em segundo lugar, temos uma Proposta de Diretiva sobre créditos ao consumo.

Se vier a ser adotado o diploma, teremos um novo regime do crédito ao consumo, agora designado no plural (“créditos ao consumo”), sendo revogada a Diretiva 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril, relativa a contratos de crédito aos consumidores, transposta, em Portugal, pelo Decreto-Lei n.º 133/2009.

Trata-se de um regime bastante complexo, pelo que não irei aqui analisá-lo em profundidade neste texto.

Deixo, no entanto, uma nota para uma das principais novidades: a aplicação da generalidade do regime a serviços de crédito de crowdfunding, definidos como serviços prestados por uma plataforma de crowdfunding para facilitar a concessão de crédito ao consumo.

Também é introduzida uma regra sobre ofertas personalizadas emitidas com base em profiling ou outras formas de processamento automatizado de dados pessoais. A prática é permitida, mas o consumidor tem de ser informado (art. 13.º). Se estiver em causa a avaliação da solvabilidade do consumidor, o consumidor tem direito a uma revisão da decisão com intervenção humana (art. 18.º-6).

As sanções em caso de incumprimento das regras também são reforçadas, mantendo-se a tendência recente de definir um patamar mínimo, calculado em função do volume de negócios do profissional, como limite máximo para o valor das contraordenações. Os próximos tempos serão interessantes, prevendo-se uma discussão acesa em tornos destes temas. Cá estaremos para acompanhar o processo.

Música para os ouvidos de Paul

Consumo em Ação

Por Francisco Colaço, Heloísa Monte e Tiago Pedro

Hipótese: Paul, músico, cidadão alemão que vive e trabalha em Portugal há alguns anos, amante de música oriental, estava em casa sem nada para fazer e decidiu proceder ao download da aplicação Chinese Songs, gerida por uma empresa chinesa, a partir da App Store. Quando Paul começou a utilizar a aplicação, teve de se registar e dar o seu consentimento para a recolha de dados, incluindo a música que ouvia, a hora do dia e o local. Estes dados seriam então tratados pela empresa para descobrir a hora e o local de uso do telefone por parte do utilizador. Paul não precisava de pagar nenhum valor para fazer o download ou para se registar na aplicação. De acordo com as informações disponíveis nos termos e condições, o utilizador pode ouvir cinco músicas completas por dia, sem interrupções. Quando Paul estava a ouvir a segunda música, esta foi interrompida a meio por publicidade. Os termos e condições também indicam que a lei chinesa é aplicável a qualquer litigioso resultante do contrato.

Questão 1 – Assumindo que a lei alemã é mais favorável ao consumidor, seguida da lei portuguesa e finalmente da lei chinesa, qual será a lei aplicável ao contrato?

Para determinarmos qual a lei aplicável, temos de recorrer ao Regulamento Roma I, o qual trata da lei aplicável às obrigações contratuais, em especial quando estão em causa obrigações contratuais em matéria comercial que impliquem um conflito de leis. De acordo com o art. 3.º, prevalece a liberdade de escolha das partes quanto ao direito aplicável, pelo que se aplicaria, à partida, a lei chinesa, em resultado dos Termos e Condições previstos no contrato celebrado entre Paul e a Chinese Songs. Todavia, numa análise mais atenta, verificamos que se trata de uma cláusula contratual geral, e tendo em conta que um contrato não deve criar um desequilíbrio entre as partes, podemos eventualmente considerá-la como uma cláusula potencialmente abusiva, a qual não vincularia o consumidor e não poderia ser invocada pelo profissional. Por conseguinte, deixando de ser vinculativa, estaríamos perante a falta de escolha quanto ao direito a aplicar, o que nos conduziria para o art. 4.º, segundo o qual, perante a falta de escolha, é aplicável a lei do país em que o vendedor tem a sua residência habitual.  Tratando-se de uma pessoa coletiva (empresa gestora da Chinese Songs), é considerado o lugar da sua sede, pelo que se aplicaria a lei chinesa. Neste sentido, independentemente de ter existido ou não um acordo entre as partes, ou de estarmos ou não perante uma cláusula abusiva, seríamos sempre conduzidos para a aplicabilidade da lei chinesa.

No entanto, no art. 6.º do Regulamento encontramos um regime especial que se destina aos contratos celebrados por consumidores, o qual prevê que seja aplicável a lei do país onde o consumidor reside habitualmente, se se verificar uma de duas condições: (i) o profissional exerça as suas atividades no país onde o consumidor reside habitualmente ou, (ii) por qualquer meio, dirigir as suas atividades a esse país.

Neste sentido, primeiramente teremos de verificar se Paul pode ser qualificado como consumidor, para efeitos de aplicação do Regulamento Roma I. Importa referir que este conceito de consumidor é um conceito restrito, na medida em que basta uma utilização profissional, ainda que mínima, para que Paul não possa ser qualificado como consumidor. Assim, mediante os dados apresentados, não obstante o Paul ser músico, iremos assumir que o elemento teleológico se encontra preenchido, ou seja, que Paul fez o download das músicas com a única finalidade de satisfação pessoal, despido de qualquer intenção profissional, uma vez que o fez por ser um apaixonado por música oriental e se encontrar num momento de lazer. Ultrapassada esta questão, constata-se que os demais elementos constitutivos do conceito de consumidor (objetivo, subjetivo e relacional) não levantam dúvidas face à sua verificação, pelo que, de acordo com o art. 6.º-1, Paul é consumidor.

Relativamente às condições impostas pelo artigo, pode desde logo excluir-se a possibilidade de a empresa exercer atividade através de um estabelecimento localizado em Portugal, uma vez que não temos dados que nos orientem nesse sentido, acrescendo o facto de a aplicação poder ser descarregada a partir de um qualquer lugar geográfico. Por conseguinte, resta-nos aferir se essa empresa direciona as suas atividades para o país onde o consumidor tem residência habitual, ou seja, para Portugal. Paul, quando estava na sua residência (em Portugal), fez o download da aplicação a partir da App Store e registou-se na mesma. Assumindo que as cláusulas estavam escritas em português e que o download foi possível tendo em consideração a localização e os dados do utilizador (uma vez que nem todas as aplicações estão disponíveis em todos os países) e que não existiu da parte de Paul uma procura específica na China por esse tipo de serviço, podemos concluir que a Chinese Songs direciona as suas atividades (também) para um público português. Assim, verificados os pressupostos, afasta-se a aplicabilidade dos arts. 3.º e 4.º e, de acordo com o art. 6.º, será aplicável a lei Portuguesa (que é a mais favorável). Não obstante, se a lei chinesa fosse mais favorável, Paul poderia invocar a sua aplicação ao abrigo do art. 6.º-2 do Regulamento. 

Resta acrescentar que, não descurando a complexidade existente em distinguir na internet o tipo de consumidor que se trata, este é um artigo que visa garantir uma proteção acrescida do chamado consumidor passivo, ou seja, do consumidor que contrata sem sair do seu país, em contraposição ao consumidor ativo (ou tradicionalmente turista), que ativamente se desloca para ser consumidor, contratando no âmbito de uma relação internacional[1].

Questão 2 – Paul pode exercer algum direito contra a empresa que gere a aplicação? Responda tendo em conta a legislação europeia.

Para determinar os possíveis direitos de Paul na presente situação, primeiramente temos que aferir se existe alguma desconformidade no contrato celebrado. Ora, Paul celebrou um contrato inicial misto de conteúdos e serviços digitais (com maior predominância na prestação de serviços digitais, por associação a uma aplicação, esta última, conteúdo digital), matéria que é regulada pela Diretiva 2019/770

Recorrendo ao art. 7.º-a) da Diretiva, verificando-se uma desconformidade (subjetiva) com o contrato, na medida em que o serviço digital prestado a Paul não corresponde à descrição feita pelo profissional. Naturalmente, podemos questionar se as cinco músicas sem interrupções são seguidas ou se serão cinco músicas sem interrupções ao longo do dia, num universo de muitas mais, uma vez que o modo como se interpreta pode ter implicações práticas. Ora, o critério mais adequado para esclarecer esta questão passará por recorrer a uma interpretação à luz do art. 236.º do Código Civil, segundo a qual se deve colocar um declaratário normal na posição do real declaratário e daí retirar o sentido depreendido por este (sentido objetivo). Por conseguinte, é sensato afirmar que o declaratário normal colocado na posição de Paul, entenderia que a descrição constante das cláusulas contratuais gerais corresponderia às primeiras cinco músicas que fossem ouvidas, sendo impossível, de outra forma, determinar o número de músicas ouvidas por um utilizador ao longo do dia. Assim, perante os factos apresentados, estamos perante uma desconformidade evidente entre o serviço contratado e o serviço prestado.

O art. 14.º da Diretiva 2019/770 elenca os direitos do consumidor: reposição da conformidade, redução proporcional do preço ou resolução do contrato. Poderia, neste caso, Paul exigir uma redução do preço? Parece-nos lógico que não, porque, ainda que exista uma contraprestação associada, não existe um preço. O direito à resolução do contrato não traria também qualquer vantagem para Paul, uma vez que os seus efeitos típicos passariam pelo término da prestação do serviço digital e pela devolução do preço, o que remete para o problema acima apresentado. Acresce ainda que a eventual “vantagem” que Paul poderia obter, no que respeita ao tratamento dos dados pessoais, poderia sempre ser alcançada por outras vias, como através da revogação de consentimento ou através do direito ao esquecimento, previstos respetivamente nos arts. 7.º e 17.º do RGPD. Assim, no nosso entender, a solução mais adequada passa, neste caso, pela reposição da conformidade.


[1] Claudia Lima Marques, “Por um direito internacional de proteção dos consumidores: sugestões para a nova lei de introdução ao Código Civil brasileiro no que se refere à lei aplicável a alguns contratos e acidentes de consumo”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Vol. 24, n.º 1, 2004, pp. 89-137, p. 94.

Procedimento fraudulento e titularidade do direito ao valor da energia não faturada

Jurisprudência

Em post anterior, dedicado à exposição do enquadramento normativo que rege a verificação da prática de procedimento fraudulento e a “determinação do valor do consumo irregularmente feito”, tive oportunidade de defender que a referência ao “distribuidor” enquanto titular do crédito à diferença entre o valor da eletricidade paga e o valor da eletricidade efetivamente consumida (art. 3.º-1,-b) e 2 do DL 328/90) teria de ser objeto de uma interpretação atualista, devendo tal referência entender-se como reportada ao “comercializador”.

Volto ao tema com uma análise mais aprofundada, seguindo de perto a Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 20.09.2017, Processo n.º 1735/2017, Relator: Paulo Duarte.

Ao tempo da entrada em vigor do DL 328/90, «a comercialização estava associada à distribuição de energia elétrica, em correspondência com a realidade infraestrutural da ligação da rede de distribuição (sobretudo da rede em baixa tensão) aos locais de consumo. A situação alterou-se com a privatização e liberalização do mercado da eletricidade, que obrigou à introdução de regras que (…) impõem (…) a separação (…) entre certas atividades e certos operadores, em termos de “proibição de acumulação de missões a desempenhar pelo mesmo sujeito económico”».

Mais desenvolvidamente, com a adoção do DL 29/2006, «instituiu-se um regime de estrita “separação jurídica e patrimonial” (full ownwership unbundling) entre a atividade de transporte de eletricidade e as atividades de produção e de comercialização, impedindo a sua concentração vertical sob o domínio de um mesmo sujeito operador» (art. 25.º-1), sendo que, «[n]o que diz respeito à atividade de distribuição de energia elétrica, o legislador, ainda assim, não é tão severo, ficando-se pela exigência da sua “separação jurídica” (legal unbundling)» – arts. 36.º-1 e 43.º do DL 29/2006 (no mesmo sentido, os arts. 338.º-1, 339.º-1 e 2, 343.º-5, 350.º-1 e 2 e 370.º-1 do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC)).

Por conseguinte, e ainda de acordo com a mesma decisão arbitral, «segundo a atual arquitetura normativa do SEN [Sistema Elétrico Nacional], o distribuidor de eletricidade não pode vendê-la – atividade que apenas é permitida (mais: que lhes está reservada) aos produtores e aos comercializadores». Daí que o art. 22.º do Regulamento Tarifário (RT) Setor Elétrico (para o qual remete o art. 343.º-6 do RRC) restrinja os “proveitos permitidos” da atividade de distribuição de energia elétrica aos que “são obtidos através da tarifa de uso das redes de distribuição, excluindo qualquer remuneração pela comercialização de energia elétrica atividade cujo exercício lhe está vedado”.

Como tal, apesar de o DL 328/90 se referir ao “distribuidor” para efeitos do exercício do “direito ao acerto dos valores pagos pelo consumidor (o direito à diferença entre o valor pago e o valor do consumo real, ainda que apurado por estimativa em caso de anomalia ou viciação do contador)”, em face da evolução da realidade histórica existente ao tempo da entrada em vigor daquele compêndio legal, tal menção só pode ser interpretada como se dirigindo ao comercializador, “uma vez que só este pode ligar-se ao consumidor através do contrato de fornecimento (compra e venda) que o legislador considera violado” (cf. arts. 1.º-1 do DL 328/90, 44.º-3 do DL 29/2006 e 7.º-1 do RRC)[1].

Ao entendimento que aqui se acompanha não se opõe o ponto 31.3 do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental (GMLDD), no qual se determina que “[a] energia elétrica associada a procedimento fraudulento comprovadamente identificada e registada em cada ano não deve ser imputada a carteiras de comercializadores”. Retomando a jurisprudência que vimos seguindo de perto, a compreensão do alcance da norma do ponto 31.3 do GMLDD depende do conhecimento da distinção que a mesma pressupõe: a destrinça, estabelecida no ponto 31.2.2.1 daquele GMLDD “entre, por um lado, a energia registada, fiavelmente (apesar da prática fraudulenta), pelos equipamentos de medição e, por outro lado, a energia estimada”, admitindo-se, assim, a possibilidade de o procedimento fraudulento não impedir “o conhecimento direto (e não apenas estimado) da eletricidade consumida”. Ora, o ponto 31.3 do GMLDD «apenas se refere à energia “comprovadamente identificada e registada em cada ano”, e não à energia estimada na sequência da deteção do procedimento fraudulento», o que bem se compreende, pois, se a energia já foi considerada em períodos anteriores, carecia de sentido imputá-la, de novo, a carteiras de comercializadores. Já quanto ao consumo de energia elétrica, associado a fraude, apurado por via de estimativa, não se lhe aplica, afinal, o ponto 31.3 do GMLDD.

Em sentido diverso, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Coimbra em Acórdão de 21.11.2017, proferido no Processo n.º 502/16.7T8GRD.C1, Relator: Fonte Ramos, no qual se sustenta, a partir do mesmo ponto 31.3 do GMLDD, que “(…) só o Distribuidor, em benefício do SEN, terá competência para exigir do consumidor final o ressarcimento do valor da energia consumida ilicitamente, e nunca o comercializador (ou, no limite, o produtor/múltiplos produtores a operar atualmente no SEN)”.

Acolhendo o entendimento assumido neste último acórdão e ao arrepio de tudo o que defendemos acima (a que acresce o facto, de que partimos no post anterior, segundo o qual a verificação de procedimento fraudulento motiva “acertos de faturação”, da responsabilidade do comercializador, ainda que fundados em estimativas de consumo realizadas pelo distribuidor – art. 43.º-2 e 4 do RRC), a norma do n.º 5 do art. 33.º-5 do recém-adotado RRC veio determinar que “[n]as situações previstas no número anterior [erros de medição da energia e da potência resultantes de qualquer anomalia verificada no equipamento de medição, com origem em procedimento fraudulento], cabe ao operador da rede de distribuição que serve a instalação de consumo assegurar a recuperação integral para o Sistema Elétrico Nacional (…) dos consumos de energia não faturada, neles incluindo o valor da energia, que foi considerada em perdas [diferença entre a energia que entra num sistema elétrico e a energia que sai desse sistema elétrico, no mesmo intervalo de tempo], e a componente dos acessos, valorizada por aplicação da tarifa transitória correspondente, ou na sua ausência, da tarifa de acesso acrescida da tarifa de energia.”

Pela minha parte, em face da antinomia entre as normas dos arts. 1.º-1 do DL 328/90 e 44.º-3 do DL 29/2006, por um lado, e a norma do art. 33.º-5 do RRC, por outro, e lançando mão do critério hierárquico expresso no brocardo latino lex superior derogat legi inferiori (“lei superior derroga leis inferiores”), creio que o primeiro par de normas, portador de um status hierarquicamente superior à norma do diploma regulamentar, continua a determinar que o direito ao valor da energia não faturada tem por sujeito ativo o comercializador.


[1] Tal compreensão não é extensível ao exercício do direito a tutela reparatória em relação ao eventual dano patrimonial sofrido com a destruição (parcial) do equipamento de medição, de que o operador da rede de distribuição é proprietário (art. 29.º-1-b) e 3 do RRC), como nota Pedro Falcão, O Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica, Petrony Editora, 2019, pp. 109-114, em especial p. 112.

Tribunal de Justiça e a Diretiva 93/13: Cláusulas Abusivas em Contratos de Mútuo em Divisa Estrangeira

Jurisprudência

No passado mês, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidiu sobre os processos apensos C-776/19 a C-782/19, que trouxeram novos desenvolvimentos à interpretação da Diretiva 93/13/CEE e ao regime das cláusulas abusivas nos contratos celebrados com consumidores, em particular no que toca a contratos de mútuo hipotecário em divisa estrangeira. Em causa estão contratos celebrados com o Banco BNP Paribas Personal Finance, conhecidos como “Helvet Immo”.

Concretamente, os contratos em causa incluíam as seguintes cláusulas: (i) os créditos em questão eram financiados por empréstimos subscritos em francos suíços e esses créditos eram geridos simultaneamente em francos suíços (moeda de conta) e em euros (moeda de pagamento); (ii) quanto às operações cambiais, os pagamentos relativos aos empréstimos em causa só podiam ser efetuados em euros para um reembolso em francos suíços; (iii) as operações cambiais a efetuar estavam enumeradas nos contratos de mútuo em causa nos processos principais, e em caso de incumprimento por parte do mutuário, o mutuante tinha a possibilidade de substituir unilateralmente o franco suíço pelo euro; (iv) uma vez que a amortização depende da evolução da paridade euro/franco suíço, esta seria menos rápida se a operação cambial resultasse numa quantia inferior à data do vencimento em francos suíços, e a eventual parte do capital não amortizada seria inscrita no saldo devedor. Caso contrário, o reembolso do crédito seria mais rápido; (v) se a manutenção do montante dos pagamentos em euros não permitisse regularizar a totalidade do saldo da conta sobre o período residual inicial acrescido de cinco anos, os pagamentos seriam aumentados. Se, no termo do quinto ano de prorrogação, subsistisse um saldo devedor, os pagamentos deviam continuar até ao reembolso integral; (vi) a taxa de juro fixa, inicialmente acordada, era passível de revisão de cinco em cinco anos, segundo uma fórmula predeterminada e, nessa ocasião, o mutuário podia optar pela transição para euros da moeda de conta, escolhendo quer a aplicação de uma nova taxa de juro fixa aumentada quer a aplicação de uma taxa variável.

Neste seguimento, e devido a uma evolução desfavorável das taxas de câmbio, os demandantes tiveram dificuldade em reembolsar o mútuo hipotecário. Por isso, intentaram ações judiciais onde alegaram o caráter abusivo das cláusulas dos contratos em causa, nas quais a BNP Paribas Personal Finance alega a prescrição dos pedidos, de acordo com as normas nacionais aplicáveis.

Por isso, o tribunal de reenvio francês endereçou oito questões ao TJUE. Em primeiro lugar, se a Diretiva 93/13, lida em conjugação com o princípio da efetividade, se opõe à aplicação de normas de prescrição para a declaração do caráter abusivo de uma cláusula e para eventuais restituições devidas ao abrigo dessa declaração. Em caso de resposta negativa, ou parcialmente negativa, questiona o TJUE se a Diretiva, lida em conjugação com o princípio da efetividade, se opõe à aplicação de uma jurisprudência nacional que fixa como início da contagem do prazo de prescrição a data da aceitação da proposta de empréstimo e não a data da ocorrência de dificuldades financeiras sérias. Em segundo lugar, se as cláusulas que preveem que o franco suíço é a moeda de conta e o euro a moeda de reembolso e que, como tal, imputam o risco cambial no mutuário, se incluem no objeto principal do contrato, na aceção do art. 4.º-2 da Diretiva 93/13. Por outro lado, perguntou também se a Diretiva 93/13, lida em conjugação com o princípio da efetividade, se opõe a uma jurisprudência nacional que considera cláusulas como as discutidas nos processos em causa como claras e compreensíveis. Em quarto lugar, se o ónus de prova do caráter claro e compreensível de uma cláusula incumbe ao profissional ou ao consumidor. Caso incumba ao profissional, se a Diretiva 93/13 se opõe a uma jurisprudência nacional que considera que, quando existem documentos relativos a técnicas de venda, que compete aos mutuários provar, por um lado, que foram destinatários das informações contidas nesses documentos e, por outro, que foi o banco que lhes transmitiu tais informações, ou, pelo contrário, a Diretiva exige que estes elementos constituam uma presunção de que as informações contidas nestes documentos foram transmitidas, incluindo verbalmente, aos mutuários, presunção simples que incumbe ao profissional refutar. Por último, se se pode considerar que cláusulas como as presentes nos processos em causa podem levar a um desequilíbrio significativo, dado que, por um lado, o profissional dispõe de meios superiores ao consumidor para antecipar o risco cambial e, por outro, o risco suportado pelo profissional está limitado, ao passo que o suportado pelo consumidor não o está.

Começando pela primeira e segunda questões, o Tribunal clarifica que, no caso em apreço, temos duas situações diferentes. Em primeiro lugar, temos a oposição de um prazo de prescrição a um pedido apresentado por um consumidor relativo ao caráter abusivo de cláusulas contratuais e, em segundo lugar, a oposição desse prazo para efeitos de restituição de quantias indevidamente pagas.

Assim, e no que concerne à primeira situação, o Tribunal concluiu que estes casos não podem estar sujeitos a prazos de prescrição, com base num argumento fundamental: a proteção efetiva dos direitos conferidos ao consumidor pela Diretiva 93/13 implica que o poder de invocar, a qualquer momento, o caráter abusivo de uma cláusula contratual, não pode estar sujeita a prazos de prescrição.

Já no que se refere à segunda situação (invocação do prazo de prescrição no contexto da restituição de quantias indevidamente pagas), o Tribunal optou por uma rota oposta. De facto, e recordando a sua jurisprudência anterior[1], afirmou que a Diretiva 93/13, em particular os arts. 6.º-1 e 7.º-1 não se opõem a uma regulamentação nacional que, embora preveja a imprescritibilidade da ação que vise obter a nulidade da cláusula abusiva, sujeita a ação destinada a invocar os efeitos restitutivos dessa nulidade a um prazo de prescrição. Por isso, a existência de um prazo de prescrição, no que concerne aos pedidos de caráter restitutivo, não é contrária ao princípio da efetividade, desde que a sua aplicação não torne impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela Diretiva.

Neste contexto, importa chamar à atenção para mais três notas feitas pelo Tribunal. Em primeiro lugar, este afirma que prazos de prescrição de três a cinco anos não são incompatíveis com o princípio da efetividade, desde que estabelecidos e conhecidos atempadamente pelo consumidor, permitindo-lhe preparar e recorrer a uma via judicial efetiva a fim de invocar os seus direitos. Em segundo lugar, e no que concerne ao início do prazo de prescrição, o Tribunal afirma que este só será compatível com o princípio da efetividade se o consumidor tiver tido a possibilidade de conhecer os seus direitos antes de esse prazo começar a correr ou de terminar. Por isso, o começo da contagem do prazo de prescrição na data da aceitação da proposta de mútuo não é suscetível de assegurar uma proteção efetiva ao consumidor, já que esse prazo pode expirar antes de o consumidor poder tomar conhecimento do caráter abusivo da cláusula em causa.

Passando à terceira questão, o Tribunal começa por afirmar que, num contrato de mútuo, o mutuante obriga-se, em primeiro lugar, a disponibilizar ao mutuário um determinado montante e este, por sua vez, obriga-se a reembolsar (regra geral com juros) esse montante em datas previamente determinadas. Sendo que as prestações essenciais do contrato se referem a um montante em dinheiro, estas devem fazer referência às moedas de pagamento e reembolso. Por isso, o TJUE conclui que o facto de o reembolso ter de ser feito numa determinada moeda refere-se não a uma modalidade acessória do pagamento, mas sim, em regra, à própria natureza da obrigação, sendo assim um elemento essencial do contrato de mútuo.

Não obstante, conclui igualmente que compete ao tribunal de reenvio apreciar se as cláusulas em causa, que regulam a moeda de reembolso e pretendem imputar o risco no mutuário, dizem respeito à própria natureza da obrigação. Precisa também que a existência de uma cláusula que permita ao mutuário exercer uma opção de conversão em euros não pode significar que as cláusulas relativas ao risco cambial adquirem uma natureza acessória, só por si. Na verdade, e de acordo com o TJUE, o facto de as partes poderem alterar, em certas datas, uma das cláusulas essenciais do contrato permite ao mutuário alterar as condições do seu mútuo, sem que tal tenha incidência direta na apreciação da prestação essencial do contrato.

Passando à quarta e à quinta questões, o Tribunal começa por clarificar que a exigência de transparência deve ser analisada pelo órgão jurisdicional de reenvio, à luz de todos os elementos pertinentes. Em particular, menciona que cabe a este verificar se foram comunicados ao consumidor todos os elementos suscetíveis de terem incidência no alcance do seu compromisso, nomeadamente o custo total do empréstimo. Nessa análise, deverá ter em particular atenção se as cláusulas estão escritas de forma clara e compreensível e a falta – ou presença – de informações consideradas essenciais, tendo em conta a natureza do objeto do contrato. Virando-se para o contrato em causa, o Tribunal conclui que, em contratos de mútuo em divisa estrangeira, é importante a prestação de informação por parte do profissional que vise esclarecer o consumidor relativamente ao funcionamento do mecanismo de câmbio e ao risco que lhe está associado.

Assim sendo, de modo a respeitar a exigência de transparência, as informações transmitidas pelo profissional devem permitir a um consumidor médio, normalmente informado e razoavelmente atento e sensato, compreender que, em função das variações da taxa de câmbio e a evolução da paridade entre a moeda de conta e a moeda de pagamento podem acarretar consequências desfavoráveis para si. Por outro lado, deverá também compreender o risco real a que se expõe, durante toda a vigência do contrato, caso haja uma desvalorização significativa da moeda em que recebe os seus rendimentos relativamente à moeda de conta.

Virando-se para a sexta e sétima questões, o Tribunal volta a focar-se no princípio de efetividade. Contudo, aqui o ponto de discussão prende-se com a compatibilidade desse princípio com a pendência do ónus da prova do caráter claro e compreensível sob o consumidor. Nesse sentido, e como ponto introdutório, o TJUE afirma que a efetividade dos direitos conferidos pela Diretiva 93/13 não poderia ser consolidada se o consumidor estivesse obrigado a provar um facto negativo, ou seja, que o profissional não lhe forneceu todas as informações necessárias para satisfazer a exigência decorrente do art. 4.º-2 da Diretiva. Nesse seguimento, conclui que a obrigação do profissional de demonstrar o cumprimento das suas obrigações pré-contratuais e contratuais deve igualmente abranger a prova relativa à comunicação da informação contida em documentos relativos as técnicas de venda, particularmente quando a informação aí constante se mostre relevante para garantir a clareza e compreensão das cláusulas contratuais inseridas nos contratos em causa. Ademais, já que o profissional controla (ou deve controlar) os meios pelos quais os seus produtos são distribuídos, deverá também dispor de elementos de prova relativos ao facto de ter procedido a um correto cumprimento das obrigações pré-contratuais e contratuais a que está adstrito.

Chegado à oitava e última questão, o TJUE começa por recordar a sua jurisprudência[2], segundo a qual, nos contratos de mútuo em divisa estrangeira, cabe ao juiz nacional apreciar o possível incumprimento da exigência de boa-fé e, num segundo momento, a existência de um eventual desequilíbrio significativo, nos termos do art. 3.º da Diretiva 93/13. Relativamente à obrigação de boa-fé, importa ter em conta, nomeadamente, a força das posições de negociação das partes e a possibilidade de o consumidor ter sido de alguma forma incentivado a aceitar as cláusulas em causa. Assim, de modo a verificar se as cláusulas em causa dão origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, há que ter em conta as circunstâncias de que o profissional podia ter conhecimento no momento da celebração do contrato, tendo em conta a sua experiência no que se refere às variações das taxas de câmbio e aos riscos inerentes a estes contratos.

Tendo isso em atenção, o Tribunal conclui que há que considerar que existe um desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes, decorrentes do contrato em causa, em detrimento do consumidor. Para o justificar, afirma que as cláusulas em causa parecem fazer recair sobre o consumidor um risco desproporcionado em relação às prestações recebidas, uma vez que a aplicação das mesmas tem como consequência obrigar o consumidor a suportar o custo da evolução das taxas de câmbio. Assim, e tendo em conta a exigência de transparência decorrente do art. 5.º da Diretiva 93/13, não se pode considerar que o profissional podia razoavelmente esperar que, negociando de forma transparente com o consumidor, este aceitaria as cláusulas na sequência de uma negociação individual. Não obstante, o TJUE reforça que a aplicação desta lógica ao caso concreto cabe, em última instância, ao órgão jurisdicional de reenvio.


[1] Acórdãos de 9 de julho de 2020, Raiffeisen Bank e BRD Groupe Société Générale, C-698/18 e C-699/18, EU:C:2020:537, n.º 58 e de 16 de julho de 2020, Caixabank e Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, C-224/19 e C-259/19, EU:C:2020:578, n.º 84.

[2] Acórdão de 20 de setembro de 2017, Andriciuc e o., C-186/16, EU:C:2017:703, n.º 56.