Há um direito a (ter) conta bancária? – A conta de serviços mínimos bancários

Doutrina

Manuel Januário da Costa Gomes, na sua obra Contratos Comerciais, levanta a questão colocada no título a propósito do Decreto-Lei n.º 27-C/2000, que criou o sistema de acesso aos serviços mínimos bancários (SMB), com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 19/2011, ou seja, num momento em que vigorava, ainda, um “regime de adesão voluntária” ao sistema pelas instituições de crédito.

Entretanto, com a terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 27-C/2000 operada pela Lei n.º 66/2015, foi imposta a obrigação de disponibilização de SMB a todas as instituições de crédito que disponibilizem ao público os serviços que integram as contas de pagamento com características básicas (basic bank accounts), assim denominadas ao nível dos instrumentos normativos de soft law e de hard law da União Europeia, de entre os quais se destaca a Recomendação da Comissão de 18 de julho de 2011 e a  Diretiva 2014/92/CE.

Neste novo contexto, reveste ainda maior acuidade a questão de saber se se revela ajustada a afirmação de um direito universal a (ter) conta bancária. E, em caso de resposta afirmativa, importa deslindar as implicações que o reconhecimento de tal posição jurídica assume na configuração tradicional da relação bancária.

Porém, antes de avançar com uma proposta de resposta às interrogações acima enunciadas, creio necessário desenvolver uma breve caracterização do regime jurídico dos SMB.

Apesar de não integrar o elenco taxativo de serviços públicos essenciais constante no art. 1.º-2 da LSPE, numa moderna sociedade europeia como a portuguesa, a prestação universal de serviços de pagamento constitui uma condição cada vez mais indispensável ao desenvolvimento de uma economia sem fronteiras internas e socialmente inclusiva e coesa, em que todos os cidadãos, independentemente da sua situação de vulnerabilidade (resultante, e.g., de uma situação financeira difícil ou de uma formação escolar rudimentar), da sua nacionalidade, do seu local de residência ou de qualquer outro dos fatores referidos no art. 21.º da CDFUE, participam plenamente na dinâmica do mercado interno e colhem os benefícios que dele advêm.

Nesta era de financeirização da economia e do cidadão superiormente retratada por Guido Comparato, a titularidade de uma conta bancária à ordem (e de um cartão de débito) constitui condição necessária ou, pelo menos, significativamente facilitadora da execução de operações de depósito, de transferência ou levantamento de fundos. Pense-se, em particular, no recebimento de retribuições laborais ou prestações sociais, no pagamento de impostos e de contribuições para a Segurança Social e no pagamento das contraprestações periódicas devidas pelo fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas.

Por conseguinte, afigurando-se incontornável o reconhecimento do estatuto de serviços de interesse económico geral a certos serviços bancários[1], nos dias de hoje, qualquer consumidor que tenha o direito de residir num Estado-Membro em virtude do direito da União Europeia ou nacional goza da prerrogativa de solicitar, junto de uma instituição de crédito à sua escolha, a abertura de uma conta de SMB (ou a conversão de uma conta de depósito à ordem de que já seja titular numa conta de SMB), ficando a instituição adstrita, salvo se se verificar fundamento legítimo de recusa[2], ao dever de, sem demora indevida e o mais tardar 10 dias úteis após a receção do pedido, celebrar contrato de depósito à ordem e, nesse seguimento, disponibilizar os seguintes serviços: manutenção, gestão, titularidade e encerramento da conta; disponibilização de um cartão de débito para movimentação da conta através dos caixas automáticos em Portugal e nos restantes Estados-Membros da União Europeia, de homebanking e dos balcões da instituição de crédito; execução de ordens de depósito e de levantamento de numerário e ordens de pagamentos de bens e serviços, nomeadamente na modalidade de débito direto; realização de transferências intrabancárias, interbancárias (através de caixas automáticos, sem limite de número de operações), via homebanking (com o limite de 24 transferências nacionais e no interior da União Europeia, por cada ano civil) e através de aplicações de pagamento operadas por terceiros (por exemplo, MBWay, com o limite de 5 transferências mensais e de valor igual ou inferior a € 30 por operação) – arts. 1.º-2-a), 2.º-1, 3.º-2, 4.º-1, 3 e 5, 4.º-A, 4.º-B e 4.º-C-1 do Decreto-Lei n.º 27-C/2000.

A fim de assegurar o acesso a estas contas de pagamento com características básicas ao maior número possível de consumidores, de acordo com o art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 27/C-2000, pelos serviços e operações acima elencados, não podem ser cobrados, pelas instituições de crédito, comissões, despesas ou outros encargos que, anualmente, e no seu conjunto, representem montante superior ao equivalente a 1% do valor do Indexante dos Apoios Sociais (cujo valor, em 2021, é de € 438,81).

Face ao exposto, temos que o sistema de acesso aos SMB obedece, quanto ao modelo formal adotado, a um figurino de hétero-regulação, porquanto as obrigações assumidas pelas instituições de crédito e toda a restante disciplina que rege as contas bancárias básicas radicam em fonte legal[3]. E, indo mais além, parece-me indiscutível que, no âmbito do sistema de que aqui trato, se encontra configurada uma restrição à liberdade de contratar, enquanto dimensão do princípio da liberdade contratual (art. 405.º do Código Civil), pois a instituição de crédito tem a obrigação (legal) de contratar com o consumidor, desde que este revista a qualidade de “interessado” nos termos do Decreto-Lei n.º 27-C/2000 (ser pessoa singular e ter o direito de residir num Estado-Membro em virtude do direito da União Europeia ou nacional – art. 1.º-2-g)), e em relação a ele não se verifique algum dos fundamentos taxativos, legalmente determinados, de recusa, impeditivos do reconhecimento do direito a conta de SMB. Mais concretizadamente, porque o cliente, por um ato livre de vontade e preenchidos aqueles requisitos, não carece da cooperação da instituição de crédito para a conclusão do contrato de depósito à ordem, entendo que, em bom rigor, o mesmo se encontra investido num direito potestativo, a que se opõe um estado de sujeição da contraparte, que tem de suportar inelutavelmente na sua esfera a consequência jurídica cominada (no caso, a abertura de conta de SMB domiciliada na instituição de crédito escolhida pelo consumidor), sem nada poder (nem dever) fazer para o evitar.

Ora, a compreensão que acabo de assumir no sentido da afirmação de um direito universal a (ter) conta bancária não pode deixar de espoletar uma discussão, ainda que breve, sobre o mérito do entendimento dominante na literatura e jurisprudência acerca da configuração da relação bancária.

Entre nós, é comum sustentar-se que a relação bancária tem fonte contratual, radicando num “contrato bancário geral” – o contrato de abertura de conta à ordem –, que reveste a natureza de contrato-quadro, pois não só constitui o negócio jurídico nuclear que assinala o início de relação complexa e dotada de vocação de perdurabilidade, como estabelece o quadro básico do relacionamento entre cliente e instituição de crédito numa multiplicidade de contratos concomitantes e futuros, projetando-se ao nível da conta-corrente bancária e do giro bancário, os dois elementos necessários do contrato de abertura de conta[4].

Penso, contudo, que a teoria ora descrita sucintamente não se assume como a mais adequada para caracterizar a relação bancária instituída ao abrigo do sistema de acesso aos SMB. Como vimos acima, a operação de abertura de conta de SMB não é conduzida sob a égide do princípio da liberdade de celebração contratual, nem reveste de caráter intuitu personae, visto que a instituição de crédito não pode recusar-se (salvo motivo legítimo) a contratar com qualquer interessado. Como tal, parece-me que, neste caso (e, talvez até, na generalidade dos casos, fora do universo dos SMB), a relação bancária encontra melhor respaldo na teoria da relação obrigacional legal, sem dever primário de prestação, defendida por Claus-Wilhelm Canaris[5], porquanto se funda no direito objetivo, sendo anterior à celebração de qualquer contrato bancário, não apenas no que tange aos deveres gerais de proteção (em particular, os deveres de informação), mas mesmo, em larga medida, em relação ao conjunto do programa obrigacional norteador da situação jurídica que liga cliente e instituição de crédito[6].

Por outras palavras, e em síntese, não deixando, naturalmente, de reconhecer a existência de contrato entre o cliente e a instituição de crédito, creio, ainda assim, que a disciplina da relação de prestação de SMB decorre imediatamente da lei.


[1] Neste sentido, já no longínquo ano de 2001, Rodrigo Gouveia, Os serviços de interesse geral em Portugal, Coimbra Editora, 2001, pp. 123-125.

[2] A saber: à data do pedido de abertura de conta de SMB (ou de conversão de depósito à ordem em conta de SMB), o cliente é titular de outra conta de depósito à ordem, junto de instituição de crédito estabelecida em território nacional (a menos que um dos contitulares da conta de SMB seja uma pessoa singular com mais de 65 anos ou dependente de terceiros, por apresentar um grau de invalidez permanente igual ou superior a 60 %); o cliente recusar a emissão da declaração de não titularidade de outra conta de depósito à ordem prevista no n.º 2 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 27-C/2000.

[3] José Simões Patrício, Serviços Mínimos Bancários, in “Direito dos Valores Mobiliários”, volume IV, Coimbra Editora, 2003, pp. 223-225.

[4] António Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 5.ª edição, 2013, Almedina, pp. 532-533 e 552-569.

[5] Claus-Wilhelm Canaris, Bankvertragsrecht, I, 3.ª edição, Walter de Gruyter, 1988, n.º 12 e ss.

[6] Manuel Carneiro da Frada, Deveres de informação e relação bancária (com vista para a intermediação financeira), in “Revista de Direito da Responsabilidade”, Ano 3, 2021, pp. 184-196.

A Odisseia da Troca das Prendas de Natal

Consumo em Ação

Por Carolina Silva e Leonor Guiomar

Hipótese: Teodoro recebeu duas prendas iguais no Natal, compradas na mesma loja. Os talões contêm a seguinte indicação: “trocas até ao dia 3 de janeiro”. Quando se dirigiu à loja para efetuar a troca, a funcionária informou Teodoro que este apenas poderia trocar o seu bem por outro de igual valor (e não por um de valor superior, como Teodoro pretendia, pagando a diferença de preço). A funcionária também informou Teodoro de que política da loja não admite a atribuição de vales. Teodoro pode fazer alguma coisa?

Resolução: No caso em apreço, somos confrontados com uma questão referente à interpretação da informação presente no talão entregue a Teodoro (T). Ora, uma vez que esse talão não tinha todas as informações posteriormente dadas pela funcionária da loja, cabe-nos interpretar o sentido da declaração negocial à luz do art. 236.º-1 do Código Civil (CC). Posto isto, o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, iria olhar para a indicação do talão e entender que é possível proceder à troca por outra ou outras coisas de valor igual ou diferente (pagando a respetiva diferença, no caso de o valor ser superior).

Outra questão é o facto de podermos estar perante uma prática desleal, o que nos leva à aplicação do regime das práticas comerciais desleais (Decreto-Lei n.º 57/2008).

Este diploma é aplicável “às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores” (art. 1.º-1). Cumpre apreciar se T é consumidor para efeitos do diploma.

Não parecem existir factos que obstem à consideração de T como consumidor, dado que se encontram preenchidos os elementos previstos do art. 3.º. Começando pelo elemento subjetivo, tem-se em conta a alínea a), concluindo-se que T é uma pessoa singular. É ainda nesta alínea que se evidencia a verificação do elemento teleológico, na medida em que T não pretendia utilizar a prenda para fins profissionais. Também a alínea b) parece estar devidamente preenchida, dado que a loja se enquadra abrangida na definição de profissional aí presente (elemento relacional). Por fim, temos a alínea d), que reflete o elemento objetivo, estando em causa uma prática comercial. Perante o exposto, concluímos, então, que T é considerado consumidor para efeitos do DL 57/2008.

Cumpre, agora, analisar se a prática levada a cabo pela loja pode ser considerada desleal. A prática não se inclui em nenhuma das situações enumeradas nos arts. 8.º e 12.º do diploma, pelo que temos de recorrer aos arts. 7.º, 9.º e 11.º, que se referem às práticas enganosas e agressivas, respetivamente.

Olhando para as características do caso concreto, encaixamos esta prática no art. 9.º-1, estando em causa uma prática que conduz ou é pelo menos suscetível de conduzir o consumidor a tomar uma decisão diferente daquela que teria tomado. Ora, em virtude da omissão de uma informação fundamental, nomeadamente, “a troca estar limitada a bens do mesmo valor”, T foi privado de efetuar a troca nos termos em que seria expectável que o pudesse fazer. Ademais, poderíamos reforçar esta ideia recorrendo à cláusula geral presente no art. 5.º.

A omissão realizada pela loja é proibida, não só pelo art. 4.º do diploma indicado, como também parece colidir com o art. 60.º da Constituição da República Portuguesa, que tutela o direito à informação, um dos direitos fundamentais dos consumidores.

Por estarmos perante uma prática comercial desleal, são aplicáveis sanções contraordenacionais (arts. 19.º e segs.), pode ser invocada a invalidade do contrato (art. 14.º) e o profissional incorre em responsabilidade civil (art. 15.º). Em suma, T pode exigir a troca por coisa(s) de valor diferente. Ao mesmo tempo, poderá ser aplicada ao profissional uma sanção contraordenacional relativa à prática comercial desleal.

As chamadas telefónicas com os prefixos 760 e 761 nos concursos publicitários de programas televisivos

Doutrina

Em post anterior, dedicado a uma primeira análise crítica do recém-adotado Decreto-Lei n.º 59/2021, relevou-se positivamente o estabelecimento de um “regime autónomo e mais robusto, que visa garantir, finalmente, uma aplicação prática efetiva” da obrigação de que as linhas telefónicas disponibilizadas pelos profissionais sejam gratuitas ou correspondam a uma gama de numeração geográfica ou móvel (com os prefixos “2” ou “9”), para contacto do consumidor, no âmbito de uma relação jurídica de consumo.

Sem prejuízo, a questão da necessidade de regulação do preço das chamadas telefónicas, encarada como medida de tutela da posição dos consumidores, também se coloca com particular acuidade no que tange às chamadas por aqueles realizadas para inscrição (e eventual seleção e participação) em concursos publicitários de programas televisivos que recorrem à utilização de números de telefone com custos acrescidos, como sejam as linhas telefónicas das gamas 760 e 761 do Plano Nacional de Numeração da ANACOM, as quais identificam serviços de tarifa única em que o preço máximo por chamada é de, respetivamente, € 0,60 (mais IVA) e € 1,00 (mais IVA).

Neste domínio, como explanaremos de seguida, por força de práticas comerciais desleais (enganosas e agressivas), consumidores particularmente vulneráveis em razão da idade (igual ou superior a 65 anos) ou de situação de carência económica vêm a adotar reiteradas decisões de transação (no caso, decisões de participação em concursos publicitários mediante realização de várias chamadas telefónicas) que os levam ao depauperamento das finanças pessoais e, até, à colocação em situação (de risco) de sobre-endividamento.

A comunicação comercial a concurso publicitário difundida por um operador de televisão enquadra-se no âmbito da figura da autopromoção, prevista no art. 2.º-1-c) da Lei n.º 27/2007, de 30 de julho, na medida em que constitui a promoção de um serviço oferecido pelo próprio operador, integrado em programa de entretenimento pelo mesmo emitido, com vista à atribuição de prémios aos telespectadores, mediante a realização, por este, de chamadas telefónicas pagas, sendo que a receita das chamadas reverte, em parte, para o titular do serviço de programas televisivo.

Neste encalço, por estar em causa a divulgação de serviços próprios do operador televisivo, que atua no âmbito da sua atividade comercial (portanto, um profissional), dirigida a pessoas singulares que, embora com um interesse económico subjacente, intervêm na prática comercial do profissional, mediante o pagamento de um preço (custo fixo da chamada telefónica), com fins que não se incluem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional (isto é, consumidores), deve concluir-se que a promoção dos referidos concursos publicitários, inseridos em programas de TV, está subordinada à disciplina normativa do Decreto-Lei n.º 57/2008[1].

Isto posto, conquanto se reconheça que os concursos em causa geram uma receita significativa para a salvaguarda do equilíbrio financeiro das estações televisivas que as promovem, não pode deixar-se de acompanhar o entendimento do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, organicamente integrado no Instituto do Turismo de Portugal, I.P., quando preconiza que, atendendo à regularidade dos concursos, aos montantes neles envolvidos e à “forte promoção e [a]o insistente e persistente apelo à participação dos telespectadores”, poder-se-á “justificar um eventual recurso à possibilidade conferida pelo n.º 3 do artigo 159.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, com a adoção de medidas convenientes à proteção dos consumidores e de medidas restritivas da exploração de concursos com as características mencionadas por parte dos canais de televisão”[2].

Na verdade, como resulta patente a partir do simples visionamento de qualquer dos programas de entretenimento de day-time dos operadores televisivos generalistas (em dias úteis e, em particular, ao fim-de-semana) e foi declarado, de forma assertiva e categórica, nas Deliberações 32/2016 (OUT-TV), 33/2016 (OUT-TV) e 34/2016 (OUT-TV) da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, as promoções de concursos publicitários no decurso de tais programas consubstanciam práticas comerciais desleais porque: a) por um lado, são suscetíveis de induzirem em erro o telespectador sobre as características do concurso, levando-o a adotar uma decisão de transação (no caso, decisão de participar no concurso e os termos da sua participação) que, de outro modo, não tomaria, caso conhecesse, cabalmente, as reais características daquele; b) e, por outro lado, exercem uma influência indevida sobre o telespectador – acentuada pelo facto de o público-alvo destes programas ser composto, maioritariamente, por pessoas com idade ou superior a 65 anos ou que enfrentam algum infortúnio na sua vida pessoal e/ou profissional ou dos membros do seu agregado familiar –, sendo aptas a limitar de forma significativa a capacidade de decisão do mesmo, conduzindo-o a tomar decisão de transação que, não fosse a pressão psicológica exercida pelos apelos verbais dos apresentadores e pelas mensagens gráficas persistentes, não adotariam.

Quanto à asserção produzida em a), que reúne os pressupostos de que depende a prática de uma ação enganosa, nos termos do disposto nos arts. 6.º-b) e 7.º-1-b) do Decreto-Lei n.º 57/2008, ainda que, após a celebração do “Acordo de Autorregulação em Matéria de Concursos com Participação Telefónica” entre os operadores RTP, SIC e TVI se tenha começado a verificar que os apelos verbais dos apresentadores e as mensagens gráficas apresentadas no decurso dos programas contemplam referência à real natureza do prémio (cartão de débito VISA Electron pré-carregado e não dinheiro), constata-se que, não raras vezes, a promoção não é clara relativamente às pessoas que se podem habilitar ao prémio (apenas os maiores de 18 anos) nem às concretas utilizações que lhe podem ser conferidas (o cartão apenas pode ser utilizado para efetuar pagamentos de compras através de terminais da rede VISA, não sendo possível a sua transferência para outras contas, nem o seu levantamento em numerário).

Ademais, é criada a convicção no telespectador de que pode efetuar um número ilimitado de chamadas para se habilitar a ganhar o prémio em jogo (recorrendo ao adágio orelhudo “quantas mais vezes ligar, mais hipótese tem de ganhar”), o que não corresponde à verdade, pois cada participante apenas pode efetuar até 10 ou 6 chamadas diárias por concurso e por número de telefone de origem (consoante o número de destino pertença à gama de numeração 760 ou 761, limitação automática que, contudo (ressalvam os regulamentos destes concursos[3]), por razões técnicas, o sistema informático pode não lograr operar, caso em que a chamada seguinte será considerada uma inscrição válida e será cobrada a tarifa única, sem que, pasme-se, possa ser exigida dos promotores qualquer indemnização ou compensação). E, bem assim, é prometido o imediato envio do cartão de débito para a casa do vencedor do concurso, o que também, de facto, pode não suceder, visto que, de acordo com os regulamentos destes concursos, a entrega do prémio poderá ter lugar até 90 dias a contar da data da realização do sorteio que apura o candidato contemplado.

Acresce, ainda, o facto de ser omitida qualquer referência à existência de um intervalo temporal contado desde a data de emissão do cartão para a utilização do saldo nele creditado, sob pena de caducidade do direito à utilização do saldo remanescente (se o houver).

E não se diga que o conhecimento de algumas das características dos concursos acima destacadas resulta assegurada pela mera remissão para o regulamento aplicável. Não obstante se terem operado progressos louváveis, ao nível da informação gráfica exibida em cada período de apelo (feito pelos apresentadores), após a conclusão do “Acordo de Autorregulação” acima referido[4], entendo que subsiste uma desproporção manifesta entre o destaque conferido ao número de telefone a ligar e ao valor do prémio em jogo e as demais características relevantes do concurso, a qual não é, de todo em todo, mitigada pela disponibilização do regulamento do concurso em sítio da internet ou em página do teletexto, plataformas cujo acesso e consulta requerem capacidades que os targets dominantes dos programas de entretenimento de day-time, em muitos casos, não dispõem.

Uma derradeira consideração acerca da asserção produzida em a) para notar que, ao contrário do que estabelece o “Acordo de Autorregulação”, os operadores de televisão recorrem a suportes gráficos de comunicação com função primordialmente apelativa à participação nos concursos, como é o caso da colocação de relógio em countdown no canto superior direito do ecrã, mormente na parte final dos programas.

Já no que respeita à afirmação sob alínea b) acima, que congrega os requisitos necessários à configuração de uma prática comercial agressiva, nos termos dos arts. 6.º-b) e 11.º-1 e 2-a) do Decreto-Lei n.º 57/2008, reveste meridiana clareza que, em todos os programas de entretenimento de day-time se pratica um apelo insistente, com recurso a uma linguagem persuasiva (empregue por apresentadores que gozam de elevada notoriedade e, mesmo, credibilidade junto dos telespectadores), à inscrição nos concursos publicitários, sugerindo-se facilidade na realização da chamada (“é o preço de um café”) e na obtenção do prémio, incitando-se à realização de mais do que uma chamada e alimentando-se a expectativa de o consumidor conseguir, por aquela via, fazer face a todos os seus compromissos financeiros e realizar os seus sonhos de vida. Seja em espaços exclusivamente dedicados ao efeito, seja no decurso de espaços de entrevistas a convidados ou de momentos musicais, os apelos verbais surgem acompanhados por elementos gráficos, que estimulam, igualmente, à realização de chamadas, os quais permanecem no ecrã desde alguns segundos até vários minutos.

Neste particular, creio que a norma autorreguladora gizada pelos operadores de televisão não satisfaz, minimamente, as exigências de proteção dos consumidores vulneráveis, ao prever que “apenas serão permitidos, no máximo, 5 (cinco) períodos de apelo pelos apresentadores, com a duração total máxima de 12 minutos, por hora de programa” (art. 10.º). A quantificação do tempo de duração máxima dos períodos de apelo revela-se manifestamente excessiva, tanto mais porque é utilizada, até ao limite estipulado, no final dos programas de entretenimento, coincidentes com períodos de confeção e toma de refeições (almoço ou jantar) ou de regresso a casa de trabalhadores (após jornada de trabalho) e imediatamente anteriores a espaços de informação, logo, previsivelmente, de maior audiência. No limite, como alerta a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, com a promoção persistente dos concursos nos programas de day-time, corre-se o risco de se desvirtuar a “linha editorial subjacente a um programa de entretenimento, comprometendo-se, deste modo, a identidade e integridade do mesmo”, a ponto de se inverter “toda a lógica do programa (…) anunciado, (…) transformando-o num conteúdo essencialmente promocional, onde o entretenimento e as variedades tendencialmente se convertem em mero pretexto para captar a atenção do espectador para a verdadeira mensagem que se quer passar: a da promoção do concurso e da persuasão à realização do maior número de chamadas telefónicas”, em contravenção com o disposto no art. 9.º-1-a) da Lei n.º 27/2007.

Por todo o exposto, merece o nosso aplauso a decisão de criação de um Grupo de Trabalho para a Revisão do Regime dos Concursos e Passatempos, vertida no Despacho n.º 1620/2021 do Secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor – cujas conclusões ainda não são conhecidas (embora já devessem ter sido apresentadas até ao dia 15 de abril de 2021) –, consequente à Recomendação n.º 7/B/2020 da Senhora Provedora de Justiça, na qual, a par da necessidade de reforço da proteção dos consumidores mais vulneráveis, também se suscitam sérias dúvidas quanto à conformidade dos regulamentos dos concursos com o Decreto-Lei n.º 422/89, mormente os seus arts. 159.º e ss., por estar em causa uma modalidade afim dos jogos de fortuna ou azar. Muito sucintamente, conclui-se naquela Recomendação que o uso de números de tarifa especial majorada, como sejam os números com prefixo 760 e 761, viola o disposto no art. 161.º-2 do Decreto-Lei n.º 422/89, que proíbe dispêndio para o jogador que não seja o do custo normal de serviço público de telecomunicações (cfr. arts. 3.º-jj) e 86.º e ss. da Lei n.º 5/2004), assim como se sustenta que a utilização de cartões de débito como prémio colide com o preceito do art. 159.º-1-in fine, isto porque, como já referido pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, “um cartão de débito não constitui uma coisa «com valor económico», mas um verdadeiro prémio em dinheiro, uma vez que o cartão de débito constitui uma forma de pagamento eletrónico que permite a dedução do valor de uma compra diretamente no cartão do titular e por representar um título indicativo de uma quantia monetária suscetível de ser movimentada a qualquer momento”.


[1] Neste sentido, o Considerando (82) da Diretiva 2010/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2010, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à oferta de serviços de comunicação social audiovisual (Diretiva «Serviços de Comunicação Social Audiovisual»), que reza nos seguintes termos: “Para além das práticas reguladas pela presente diretiva, as práticas comerciais desleais, como as práticas enganosas e agressivas, que se verifiquem nos serviços de comunicação social audiovisual são reguladas pela Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno”, que foi transposta para a ordem jurídica nacional por via do Decreto-Lei n.º 57/2008.

[2] Pronúncia reproduzida na Deliberação 99/2015 (OUT-TV) do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (Concursos publicitários de participação telefónica nos serviços de programas televisivos generalistas RTP1, SIC e TVI)

[3] Ver, a título exemplificativo, os regulamentos dos concursos “Casa Feliz 2021 – 2.ª Edição” e “Camião da Sorte 2021”, promovidos pela SIC, e “Dois às 10 2021 – 2.ª Série” e “Somos Portugal – Junho/Julho 2021”, promovidos pela TVI.

[4] Previstos no art. 11.º do “Acordo de Autorregulação”, onde se prevê: a emissão de texto em oráculo – “O concurso publicitário x/x foi autorizado pela SGMAI. Prémio em [menção do prémio em espécie], não convertível em dinheiro. Antes de participar, consulte o regulamento em [sítio da internet] e no teletexto. Cada chamada tem o custo de € x + IVA. Idade mínima de participação: 18 anos. Limite máximo diário de x chamadas neste concurso, por número de telefone de origem. Participe no concurso de forma informada e responsável” –, o qual deve obrigatoriamente obedecer a um tamanho e um tipo de letra que torne possível a sua leitura pela generalidade dos espectadores, devendo a altura dos caracteres corresponder, no mínimo, a um terço da altura dos caracteres utilizados no oráculo para a divulgação do número de telefone usado para inscrição nos concursos; caso o oráculo seja divulgado em movimento (vulgo, ticker), deve o mesmo deslocar-se a uma velocidade que permita a sua leitura pela generalidade dos espectadores; deve ser divulgado, pelo menos 4 vezes por hora de programa, o sítio da internet e/ou a página de teletexto onde se encontra disponível o regulamento relativo ao concurso (observando-se, para tanto, as exigências formais de tamanho e tipo de letra e velocidade do oráculo anteriormente referidas); sempre que seja utilizado um grafismo para comunicação dos concursos, deve ser mencionada regularmente informação sobre a existência de regulamento aplicável ao concurso e a forma de acesso ao mesmo, bem como informação sobre valor e natureza do prémio (“em cartão”), sendo aplicáveis a tais grafismos os já referidos requisitos quanto ao tamanho e tipo de letra.

La perspectiva de un sistema obligatorio de arbitraje de consumo en España

Doutrina

Por Rosa Barceló Compte (Investigadora postdoctoral. Universidad de Barcelona. Email: rbarcelo@ub.edu) y Mariló Gramunt Fombuena (Profesora titular de Derecho civil. Universidad de Barcelona. Presidenta de la Junta Arbitral de Consumo de Catalunya (Agència Catalana de Consum). Generalitat de Catalunya. Email: marilo.gramunt@ub.edu)

1. Introducción

Es bien conocido que el art. 114 TFUE es la base jurídica de la que se sirve el legislador europeo para abordar las medidas de armonización del Derecho privado que tienen como objetivo el establecimiento del mercado interior. A su vez, el art. 169 TFUE dispone el fundamento para toda una serie de acciones en el ámbito de la protección de los consumidores.

Junto con el corpus normativo sustantivo de protección de los consumidores, la UE ha elaborado un conjunto de instrumentos legislativos y no legislativos destinados a mejorar, precisamente, la eficacia del sistema de amparo de los derechos de los consumidores en los Estados miembros. Así, la resolución alternativa de litigios en materia de consumo es uno de los instrumentos esenciales de este conjunto. A nadie se le escapa que las leyes pueden reconocer al consumidor un amplio catálogo derechos pero que la eficiencia de la protección dependerá de la existencia de medios sencillos, rápidos y gratuitos que permitan al consumidor hacer exigibles sus derechos cuando los mismos no hayan sido respetados adecuadamente[1]. Son evidentes, además, las ventajas de la vía arbitral como instrumento para descongestionar la función judicial.

La Directiva 2013/11/UE del Parlamento Europeo y del Consejo, de 21 de mayo de 2013, relativa a la resolución alternativa de litigios en materia de consumo (en adelante, Directiva RAL) obliga los Estados miembros a garantizar a los consumidores la posibilidad de resolver sus litigios mediante la intervención de entidades de resolución alternativa. Sobre la base de un planteamiento de armonización mínima, la Directiva persigue la creación de una red europea de entidades de resolución de litigios de consumo de calidad. La Ley 7/2017, de 2 de noviembre, incorpora al Derecho español la Directiva RAL. Junto con dicha Directiva, la UE adoptó el Reglamento UE nº 524/2013, sobre resolución de litigios en línea en materia de consumo, que se basa en la infraestructura de entidades con certificado de calidad creada en virtud de la Directiva y se aplica a litigios en materia de consumo con relación a compras efectuadas en línea. En otro sentido, y tratándose de un procedimiento judicial -pero con clara conexión con todo lo apuntado hasta ahora-, cabe traer a colación el Reglamento (CE) 861/2007, del Parlamento Europeo y del Consejo, de 11 de julio de 2007, por el que se establece un proceso europeo de escasa cuantía. El objetivo de dicho proceso es facilitar el acceso a la justicia. Los asuntos a los que se aplica el Reglamento son aquellos en materia civil y mercantil cuyo valor de la demanda no rebase los 2000 € (art. 2.1) con la finalidad de simplificar y acelerar los litigios de escasa cuantía en asuntos transfronterizos, reduciendo los costes mediante un instrumento opcional.

En la línea del Reglamento mencionado, se modificó la Ley de Enjuiciamiento Civil española (LEC), por una parte, para adaptar el procedimiento del juicio verbal al Reglamento; por otro, para suprimir la posibilidad de presentar recurso de apelación contra las sentencias de primera instancia en aquellos litigios cuya cuantía sea inferior a 3.000 € (art. 455.1 LEC) y tramitados por el procedimiento del juicio verbal por razón de la cuantía (art. 250.2 LEC).

2. La relevancia de la STC 1/2028, de 11 de enero de 2018 en la perspectiva de introducción del arbitraje de consumo obligatorio en España

El punto de inflexión en cuanto a la posibilidad de establecer un sistema obligatorio de arbitraje de consumo en el Estado español es la interpretación dada por el Tribunal Constitucional (TC) del art. 24 Constitución española (CE) que reconoce el derecho fundamental a la tutela judicial efectiva.

La reciente STC 1/2018, de 11 de enero de 2018, resuelve la cuestión de inconstitucionalidad del art. 76 e) de la Ley 50/1980, de 8 de octubre, de contrato de seguro (LCS en lo sucesivo). De la lectura de dicho precepto se desprende que se atribuye al asegurado la facultad de someter a arbitraje sus discrepancias con el asegurador; obsérvese que se trata de una facultad del asegurado, de modo que no se encuentra obligado a optar por este procedimiento, quedando en cualquier caso abierta la vía judicial. Sin embargo, no se atribuye dicha facultad al asegurador, ya que el motivo de su reconocimiento al asegurado es su situación contractual, esto es, por ser este la parte más débil de la relación. La cuestión a dirimir es si la promoción de un sistema arbitral que permita prescindir de la voluntad de uno de los contratantes, al que se obliga a renunciar a la vía judicial acudiendo a la resolución arbitral, implica una vulneración el art. 24.1 CE. Expresivamente el TC constata que “la falta de la necesaria concurrencia de la voluntad de ambas partes litigantes para someterse a este mecanismo extrajudicial de resolución de conflictos y su imposición a una de ellas, en principio, no compadece bien con el básico aspecto contractual del arbitraje y con el derecho fundamental a la tutela judicial efectiva que garantiza el derecho de acceso a los órganos jurisdiccionales (art. 24.1 CE)” (FJ 3º). Dicha sentencia destaca por la existencia de tres votos particulares de sus magistrados. Subrayamos el del magistrado Xiol Ríos quien argumenta que el TC debía haberse planteado si, una vez alcanzada la conclusión de que la imposición del arbitraje a una de las partes limita el derecho a la tutela judicial efectiva, es posible dicha excepción a la restricción de la libertad individual en pro de la salvaguarda de los intereses generales; es decir, si la restricción del ejercicio a la tutela judicial efectiva que impone el art. 76 e) LCS está justificada. A juicio de dicho magistrado, lo estaría en aras al mandato constitucional de velar por la protección de los consumidores y usuarios (ex art. 51 CE). Compartimos la opinión del magistrado Xiol Ríos pues es evidente que el consumidor se encuentra en una situación de desigualdad debido a las características del contrato de seguro, lo que hace que el recurso al arbitraje sea un medio idóneo y plenamente justificado para reequilibrar las posiciones contractuales; incide además, en la actual tendencia política en materia de contratos, alejada de la concepción jurídica y social propia del liberalismo y proclive a un humanismo contractual que tiende a proteger a la parte más débil en escenarios de contratación asimétricos. El arbitraje de consumo, como medio de resolución de conflictos, es un instrumento rápido, ágil y eficaz -virtudes que no siempre pueden predicarse de la tutela judicial- que permite alcanzar la protección dispensada por la regulación sustantiva.

Como consecuencia de lo que hemos expuesto hasta ahora, defendemos la necesidad de establecer un arbitraje de consumo obligatorio –jurídicamente viable si se establece con todas las garantías, tal y como acabamos de argumentar[2]. La justificación de dicha obligatoriedad radica en la necesidad de proteger la parte débil de la relación: el consumidor (art. 51 CE). Asimismo, la posibilidad de sustituir el conocimiento de un asunto a los tribunales por la vía arbitral es perfectamente posible cuando se hace por disposición legal, sobre la base de la obtención de finalidades claramente beneficiosas tales como la descarga del poder judicial, el acceso a un proceso más económico y, sobre todo, como ya se ha dicho, el reequilibrio de las posiciones contractuales[3].

La modificación que se propone haría potestativo para el consumidor, pero obligatorio para las empresas o profesionales, el recurso al arbitraje de consumo en aquellos litigios cuya cuantía no exceda los tres mil euros[4], con independencia del sector económico en el cual quede encuadrada la empresa o profesional. La propuesta parte de la concepción actual del arbitraje de consumo que tiene como base la adopción de la decisión arbitral sobre la base de la equidad, excepto que cualquiera de las partes solicite la decisión en derecho. Si fuese la empresa quien propone la decisión en derecho, el consumidor debería aceptarlo para poder continuar con el procedimiento arbitral. En caso de no hacerlo, no podría proseguir. Además, con la finalidad de cumplir con los requerimientos del Tribunal Constitucional respecto a la necesidad de que los tribunales puedan revisar el fondo del laudo en el supuesto de que el laudo debiera adoptarse en derecho, ambas partes podrían recurrir el laudo ante la jurisdicción civil, resultando encargado de resolver el recurso el Juzgado de primera instancia que resultase competente territorialmente (lugar de emisión del laudo)[5]. En cambio, si las partes están conformes con la decisión en equidad, implícitamente renuncian a la posibilidad de recurrirlo.

Siendo el arbitraje obligatorio, no serían admisibles limitaciones por razón de la materia –ni por razón de cuantía si esta es inferior a los 3.000 €-, bastando con que la controversia tenga su fundamento en una relación de consumo. Estos y otros aspectos requerirán una modificación legislativa de calado (LEC, Ley de arbitraje, entre otras) y, además, deberán tener su reflejo en la norma de desarrollo del sistema arbitral de consumo. Para los casos en que la cuantía de la controversia exceda los 3.000 €, el régimen jurídico seguiría siendo el actual, basado en la completa voluntariedad y fomentando la adhesión al sistema arbitral de consumo, tal y como actualmente prevén los art. 25 y sig del RD 231/2008.


* Este comentario tiene su base en el artículo que lleva como título: “La Propuesta de arbitraje de consumo obligatorio en España: el impulso definitivo al “access to justice””, pendiente de publicación por la Revista sobre Consumidores y Usuarios vLex.

[1] Para que las normas sustantivas sean efectivas, pues, se necesitan, también, medios eficaces para su aplicación, véase Morais Carvalho, J., (2021): “Consumer ADR in the European Union and in Portugal as a means of ensuring consumer protection”, en Riefa, C., Saintier, S., (eds): Vulnerable consumers and the Law. Consumer Protection and Access to justice, London and New York: Routledge, p. 245.

[2] Cabe señalar aquí que el sistema arbitral portugués, a raíz de la Ley [PORT] 63/2019, de 16 de agosto ha vuelto a modificar la norma que sigue considerando el arbitraje de consumo voluntario para los consumidores, pero obligatorio para las empresas, cuando la cuantía del litigio no supere la de la competencia de los tribunales de primera instancia (5.000 €).

[3][3] Véase la ponencia de Gramunt Fombuena, M., (2020) “Perspectives sobre l’arbitratge obligatori” en Jornada Virtual Internacional d’Arbitratge de Consum, Barcelona, 22 y 23 de octubre de 2020”, accesible en: https://jornadainternacionalarbitratge.xstreaming.es/

[4] La elección de la cuantía está relacionada con el alcance del recurso de apelación establecido por el art. 455.1 LEC. Es decir, se trata de hacer coincidir la cuantía de las sentencias excluidas del recurso de apelación, con la cuantía de los asuntos sometidos con carácter obligatorio al arbitraje de consumo.

[5] De nuevo se ha buscado en la LEC la referencia para determinar el órgano judicial competente para conocer del recurso. Así, hemos considerado oportuno recurrir al símil del recurso de apelación de las decisiones adoptadas por los Juzgados de Paz, en cuyo caso el art. 455.1 1º LEC atribuye la competencia a los Juzgados de Primera instancia.

Aplicação da regra “na dúvida contra o predisponente” em contrato de seguro padronizado – um caso prático

Jurisprudência

Imagine-se o seguinte caso prático[1]:

– “A”, tomador de seguro, celebrou com “B”, seguradora, um contrato de seguro do ramo Multirriscos Habitação, titulado pela apólice n.º 008521475213, na modalidade “Domus X”, que teve o seu início em 01.06.2017 e tem por objeto o edifício e respetivo recheio do imóvel sito na Rua X, Vila Nova de Gaia, correspondendo ao edifício, na medida dos riscos assumidos por “B”, um capital seguro de € 150.000,00, e ao recheio, na medida dos riscos assumidos por “B”, um capital seguro de € 40.000,00;

– Em 28.12.2020, registaram-se ventos fortes e precipitação intensa na região onde está localizado o imóvel, associados à denominada “tempestade Ana”;

– Em consequência destas condições atmosféricas, verificaram-se os seguintes danos no objeto seguro: o telhado ficou com telhas partidas e levantadas pelo vento e rufos danificados e a empena do lado poente apresentava ardósias danificadas e deslocadas; no interior do imóvel, o teto e as paredes do quarto ficaram deteriorados devido à infiltração de água proveniente da chuva;

– Em 30.12.2020, “A” participou o sinistro a “B”, na convicção de que os factos descritos se enquadravam no âmbito da cobertura da apólice acima identificada e, dias depois, “A” fez chegar a “B” um orçamento da reparação dos danos, com o valor total de € 3.378,00, e fotografias dos mesmos;

– Em 29.03.2021, após a realização de uma peritagem ao imóvel pela empresa “C” nomeada pela seguradora, “B” enviou uma carta a “A”, a declinar a responsabilidade pelo sinistro, nos seguintes termos: «Após análise dos elementos reunidos acerca do sinistro, em que se inclui o relatório do perito, concluímos que este sinistro não aciona nenhuma das garantias da sua apólice. Segundo o que apurámos, ocorreram infiltrações na habitação segura alegadamente devido a telhas quebradas por ventos fortes. Sucede que, na data do sinistro participado e conforme consulta ao Instituto Português do Mar e da Atmosfera mais próximo, não foram registados ventos iguais ou superiores a 100 km/h. Deste modo, o evento reportado não é passível de acionar a garantia de Tempestades (…)»;

– No âmbito da cobertura “Tempestades”, prevista no ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais” da apólice n.º 008521475213, consta o seguinte:

  1. Esta cobertura integra os riscos a seguir definidos:
    • a) tufões, ciclones, tornados e toda a ação direta de ventos fortes, bem como o choque de objetos arremessados ou projetados pelos mesmos desde que a sua violência destrua ou danifique instalações, objetos ou árvores num raio de 5 km, tendo como centro a localização dos bens seguros (em caso de dúvida, poderá o Segurado fazer prova, mediante documento da estação meteorológica mais próxima, que, no momento do sinistro, os ventos atingiram intensidade excecional – velocidade superior a 100 km/hora);
    • b) alagamento pela queda de chuva, neve ou granizo, desde que se verifiquem conjuntamente as seguintes condições: – que estes agentes atmosféricos penetrem no interior do edifício seguro em consequência de danos causados pelos riscos referidos na alínea anterior; – que os danos se verifiquem nas 48 horas seguintes ao momento em que ocorreu a danificação ou a destruição parcial do edifício.
  2. (…)
  3. Exclusões – Para além das exclusões gerais previstas no art. 7.º destas Condições Gerais, ficam ainda excluídos do âmbito da presente cobertura as perdas ou danos:
    • a) (…)
    • b) (…)
    • c) (…)
    • d) (…)
    • e) provocados por infiltrações através de paredes e/ou tetos, humidade e/ou condensação, exceto quando se trate de danos resultantes do risco contemplado nesta cobertura.

A edição online do jornal “D” publicou, às 15h16m de 28.12.2020, uma notícia a dar conta de que, pelas 14:00h, havia registo de uma dezena de incidentes, como queda de árvores e infiltrações de água na zona do Grande Porto, devido ao mau tempo.

“A” tem direito a exigir o pagamento da quantia de € 3.378,00 por “B”?

“A” e “B” acham-se ligados por um contrato de seguro multirriscos habitação, nos termos do qual “B”, seguradora, se obrigou perante “A”, tomador do seguro, a satisfazer indemnização pelos prejuízos resultantes da verificação de determinados riscos nos objetos seguros (edifício e recheio do imóvel sito na Rua X, Vila Nova de Gaia). Estão em causa, nomeadamente, os riscos da cobertura “Tempestades” (ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais”), até ao limite do capital seguro fixado nas “Condições Particulares” (arts. 49.º-1, 128.º e 138.º-1 do Anexo ao Decreto-Lei n.º 72/2008 – LCS) e com dedução das franquias (quando) convencionadas (art. 49.º-3 da LCS), mediante o pagamento, pelo primeiro à segunda, de uma importância (prémio de seguro), na data da celebração do contrato (prémio inicial) e nas datas estabelecidas no contrato (prémio de anuidades subsequentes) – cf. arts. 51.º, n.º 1, 52.º e 53.º da LCS.

Para além de constituir fonte de uma relação jurídica de consumo (art. 2.º-1 da Lei n.º 24/96), o contrato em apreço, particularmente quanto às condições gerais (e especiais), foi concluído através da técnica das cláusulas contratuais gerais, pré-elaboradas pelo predisponente “B”, com vista à sua utilização generalizada numa pluralidade de contratos a celebrar, e aceites pelo aderente “A”, o qual não teve a possibilidade de as negociar, limitando-se a aceitá-las, ou, pelo menos, cujo conteúdo não pôde influenciar. Como tal, encontra-se sujeito ao regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, instituído pelo Decreto-Lei n.º 446/85 – LCCG (art. 1.º), nomeadamente ao sistema de controlo (de inclusão e de conteúdo) aí estabelecido, integrado por normas procedimentais e materiais que determinam quais as cláusulas que se consideram e podem ser incluídas num contrato de adesão e a extensão da sua admissibilidade, o qual funciona como um mecanismo de proteção daquele que se limita a aderir ao programa contratual.

Isto posto, a interpretação da cláusula contratual (geral) prevista no ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais” da apólice n.º 008521475213 obedece ao regime previsto nos arts. 10.º e 11.º da LCCG, no qual se estabelece a observância, para o efeito, da disciplina geral da interpretação do negócio jurídico, consagrada nos arts. 236.º a 238.º do Código Civil, dentro do contexto do contrato singular em que aquela cláusula se inclui (art. 10.º da LCCG). Prevê-se ainda que, tratando-se de uma cláusula ambígua, tem a mesma o sentido que lhe daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-la ou aceitá-la, quando colocado na posição de aderente real, sendo que, na dúvida, deve ser operada a exegese mais favorável ao aderente da cláusula contratual (art. 11.º-1 e 2 da LCCG).

Neste sentido, assinalo, em primeiro lugar, que a norma do n.º 1 do ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais” da apólice fixa, como elemento constitutivo da responsabilidade de “B”, sob alínea a), a prova da ocorrência de «tufões, ciclones, tornados» e/ou de «ventos fortes» – neste último caso, com a prova cumulativa de que «a sua violência destrua ou danifique instalações, objetos ou árvores num raio de 5 km, tendo como centro a localização dos bens seguros»[2] – enquanto causa dos danos sofridos nos objetos seguros. E, em segundo lugar, no que tange em particular aos “ventos fortes”, seguindo de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.01.2019, creio que, devidamente interpretada, a cláusula do contrato de seguro consagra dois casos autónomos de responsabilização de “B”:

– um primeiro caso, sem exigência de prova da velocidade, desde que, em face do acervo probatório disponível, resulte demonstrada a ocorrência de ventos que “por aproximação e/ou intuitiva e subjetivamente” possam ser classificados como fortes (“«grosso modo», são, ou é aceitável que possam ser, desde logo pelo senso comum e experiência da vida, aqueles que sopram a partir dos 50, 60, 70 Km/h”) – “ou, inclusive, se prove com rigor ou objetivamente”, que tais ventos atingiram uma velocidade de até 100 km/h – e, cumulativamente, se evidencie que os mesmos causaram danos na envolvência do objeto seguro, nomeadamente em instalações, objetos ou árvores num raio de 5 km, tendo como centro a localização dos bens seguros, assim se superando a dúvida determinada pela não demonstração da concreta velocidade do vento;

– uma segunda hipótese, aplicável apenas se existirem dúvidas quanto à ocorrência de ventos fortes que tenham provocado danos nas imediações do objeto seguro, valendo, aqui, um “critério/elemento de dissipação” das mesmas: tem o lesado que provar – “e, note-se que não por qualquer meio, mas antes apenas por prova taxada ou tarifada, qual seja, por documento eivado de verdade científica rigorosa, i.e., o emitido pela estação meteorológica mais próxima” – que, no momento do sinistro, os ventos atingiram intensidade excepcional – velocidade superior a 100 km/hora, facto que, se demonstrado por aquele concreto meio de prova e dada a classificação da velocidade (em termos predispostos por “B”) como “excecional”, dispensa a prova da verificação de danos ao redor do objeto seguro.

É, portanto, de rejeitar, à luz das regras interpretativas, mormente os n.ºs 1 e 2 do art. 11.º da LCCG, a adoção de uma compreensão da norma contratual do n.º 1 do ponto 13. (do art. 9.º das “Condições Gerais”) que aponte no sentido de que a responsabilidade de “B” depende, sempre e em todo o caso (e não apenas “em caso de dúvida”, como se extrai do elemento literal da norma), do cumprimento de ónus probatório por “A”, consistente na apresentação de declaração oficial emitida pelos serviços meteorológicos da estação mais próxima, da qual resulte que, no momento do sinistro, os ventos atingiram intensidade excecional (velocidade superior a 100 km/hora). De modo diverso, o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, deduz da redação da aludida cláusula é que o destacado encargo probatório apenas se coloca e envolve situações de dúvida quanto à imputação, em termos de causalidade, do sinistro aos fenómenos climáticos (tufões, ciclones, tornados, ventos fortes)[3], o que não sucede neste caso.

De qualquer modo, à semelhança do que se fez no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.06.2004, também aqui não podemos deixar de salientar que a cláusula predisposta por “B” não satisfaz a exigência imposta pelo n.º 1 do art. 36.º da LCS (“[a] apólice de seguro é redigida de modo compreensível, conciso e rigoroso”) quanto à sua redação, nem apresenta uma estrutura que prime pela inteligibilidade e clareza, sendo certo que, por aplicação das soluções normativas consagradas no art. 11.º da LCCG para os casos de ambiguidade, não pode deixar-se de assumir a exegese acima externada (em sentido mais favorável ao aderente da cláusula contratual). Impunha-se a “B”, a fim de poder sustentar o entendimento declarado na carta enviada a “A”, que elaborasse cláusula com uma redação e estrutura que exprimisse, em termos inequívocos, a imposição da exigência probatória (a impender sobre o segurado) em local apropriado (por exemplo, com a seguinte redação: “tufões, ciclones, tornados e toda a ação direta de ventos fortes com velocidade superior a 100 km/hora (…)”.

Ante o exposto, estando demonstrado que os danos no imóvel segurado se ficaram a dever à ação direta de ventos fortes, acompanhados de precipitação intensa, os quais implicaram vários incidentes na zona do Grande Porto relacionados com as condições atmosféricas adversas, está explicado por que razão ocorreu o sinistro. Por outro lado, considerando que os danos infligidos no teto e nas paredes do quarto do objeto seguro ficaram deteriorados em resultado do risco contemplado na cobertura “Tempestades”, não se encontra preenchida a exclusão prevista sob alínea e) do n.º 3 do ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais”, pelo que, em suma, é de reconhecer mérito à pretensão de “A”.


[1] Inspirado no caso decidido pela Sentença do Julgado de Paz de Vila Nova de Gaia de 07.03.2016, e no caso decidido pela Sentença do CIAB, de 06.10.2020, proferida no Processo n.º 155/2020, de que fui relator.

[2] Em relação a cláusula de contrato de seguro que tomava idêntica redação, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.01.2019, mediante aplicação da regra interpretativa do n.º 2 do art. 11.º da LCCG, considerou que “nem sequer se deve entender que a exigência cumulativa desta destruição ou dano com a existência de ventos fortes, se reporte aos tufões, ciclones e tornados. Pois que estes fenómenos são de cariz extremo, os quais, só por si, fazem presumir aquela destruição”.

[3] Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.06.2004, no qual se repara, com acerto, que “[u]ma tal exigência de prova, a impor a apresentação de uma declaração oficial emitida pelos serviços meteorológicos da estação mais próxima, não pode resultar de uma mera divergência entre segurados e seguradora acerca da velocidade do vento. Com efeito, o facto de numa determinada estação a medição do vento se situar a um determinado nível não impede que noutro local (v.g., no local do sinistro) determinadas condições físicas determinem que se registem, em determinado momento, ventos de velocidade superior. De outro modo, bastaria que a seguradora rejeitasse o sinistro reclamado, deixando o segurado inteiramente dependente da obtenção de um elemento que, revelando a velocidade medida num ponto oficialmente determinado, não impediria, no entanto, a ocorrência de velocidades superiores noutro local, seja devido às especiais condições orográficas, seja à confluência de factores que tenham potenciado velocidades superiores”.

Contratação de serviços adicionais associados ao fornecimento de energia elétrica ou de gás

Doutrina

Atualmente, os comercializadores de energia elétrica e de gás natural, no desenvolvimento da sua estratégia mercantil, além de promoverem ofertas de prestação dos serviços públicos essenciais (art. 1.º-2-b) e c) da LSPE), também procedem, de forma associada, à comercialização de “serviços adicionais” (art. 2.º-bbbb) do RRCSEG), designadamente serviços de assistência técnica a equipamentos e a instalações domésticas (e.g. “Funciona”, da EDP Comercial; “Assistência Casa”, da Galp Power; “OK Serviços de Assistência”, da Endesa) e serviços de análise e gestão de consumos, através de equipamento com acesso por internet integrado ou aplicação em dispositivo móvel autónomo (e.g. “EDP Re:dy”, da EDP Comercial; “app Casa Galp”, da Galp Power; “app Iberdrola Clientes Portugal”, da Iberdrola).

Como vem sendo experienciado por muitos consumidores, quer na fase pré-contratual (i.e., no momento da sua formação), quer na fase contratual (i.e., aquando da sua execução) nota-se uma incontornável conexão entre os contratos que têm por objeto aqueles “serviços adicionais” e o(s) contrato(s) de fornecimento de eletricidade e/ou gás natural. Desde logo, e em todos os casos, porque a celebração dos primeiros pressupõe logicamente a existência do(s) segundo(s). Depois, porque, nalguns casos, a oferta da possibilidade de celebração simultânea dos contratos com a mesma contraparte, não constituindo fundamento suficiente para determinar a diferenciação de propostas de fornecimento (art. 16.º-2 a 4 do RRCSEG), possibilita o acesso a condições mais favoráveis, em termos de preço e, até, de prazo (mais curto) de disponibilização do “serviço adicional”. Ademais, quando aplicável, a interpelação para pagamento de prestação (mensal) devida pela disponibilização do “serviço adicional” é integrada na fatura emitida pelo comercializador (também, em regra, com periodicidade mensal – arts. 9.º-2 da LSPE e 45.º-1 do RRCSEG) para discriminação dos serviços de fornecimento de energia elétrica e/ou de gás prestados na instalação do utente.

Assim sendo, ainda que os contratos de prestação de “serviços adicionais” não se confundam juridicamente com o(s) contrato(s) de fornecimento de eletricidade e/ou gás natural, afigura-se necessário acautelar o risco de o consumidor, no momento da conclusão dos contratos, não percecionar, com clareza, a existência de contratos autónomos, as condições que regem cada um dos contratos e as eventuais implicações de vicissitudes sofridas por uma das relações jurídicas no outro vínculo negocial.

Para tanto, e conferindo obrigatoriedade às boas práticas a adotar no âmbito dos mercados, dirigidas aos comercializadores de energia por via da Recomendação da ERSE n.º 1/2017, o art. 17.º do RRCSEG dispõe, sob o n.º 1, que “[o] comercializador em regime de mercado deve informar, de forma completa, clara, adequada, acessível e transparente, os seus clientes quanto à subscrição de serviços adicionais”. Trata-se da consagração de um particularmente exigente dever de informação (constitucionalmente consagrado no art.º 60.º-1 da CRP e previsto, em termos gerais, no plano do direito ordinário, no art. 8.º-1 da LDC e nos arts. 5.º e 6.º do RJCCG, estes últimos aplicáveis pelo facto de a subscrição dos “serviços adicionais” se operar através da aposição da assinatura em contrato de adesão formado com recurso à predisposição de cláusulas contratuais gerais), que reclama uma identificação inequívoca dos “serviços adicionais” e respetivos preços.

Tanto assim que, logo no n.º 2 do mesmo art. 17.º do RRCSEG, se prescreve que “[o] comercializador deve igualmente explicitar que os serviços adicionais são independentes e não interferem com a prestação do serviço público essencial[1], salvo na situação em que haja eventual concessão de descontos pela subscrição desses serviços” – os quais devem ser claramente identificados e quantificados na ficha contratual padronizada, prevista no n.º 6 do art. 16.º do RRCSEG, a entregar ao utente consumidor – e, no mesmo sentido, o n.º 3 do art. 47.º do RRCSEG postula que “(…) os preços praticados relativos a produtos e serviços (…) adicionais [devem] ser autonomamente apresentados aos clientes, tendo por base o contrato celebrado que não seja o contrato de fornecimento”.

Sem prejuízo, cumpre notar que o referido dever de informação não impende sobre o comercializador somente na fase pré-contratual. Na verdade, atendendo ao facto, já acima exaltado, de a ligação entre os contratos que têm por objeto os “serviços adicionais” e o(s) contrato(s) de fornecimento de energia elétrica e/ou gás natural se fazer sentir, de igual modo, na fase do cumprimento destes vínculos negociais, a observância daquele dever de informação também se exige e impõe, nomeadamente, no momento da renovação contratual da prestação de “serviços adicionais”, geralmente sujeita a período mínimo de vigência do contrato (período de fidelização).

Neste caso, de acordo com a Recomendação n.º 1/2017 e à semelhança do que se dispõe no n.º 5 do art. 19.º do RRCSEG para o contrato de fornecimento de energia elétrica ou de gás, a renovação do período de fidelização deve ser objeto de aviso prévio, separado da fatura de energia, remetido com uma antecedência mínima razoável (diria, 30 dias, por analogia com a solução prevista no n.º 3 do art. 69.º do RRCSEG para a alteração unilateral do contrato pelo comercializador) ao consumidor, a fim de este, querendo, exercer o direito de oposição à renovação.

Também no âmbito da execução dos contratos conexos a que vimos fazendo referência, ao abrigo da previsão do art. 6.º da LSPE (que remete para o n.º 4 do art. 5.º do mesmo diploma legal), se o consumidor, por algum motivo, não proceder ao pagamento de valor correspondente a “serviço adicional”, sem, todavia, deixar de efetuar a contraprestação devida pelo fornecimento de eletricidade e/ou gás, tem o mesmo direito à quitação da divida relativa ao(s) serviço(s) público(s) essencial(ais)[2]. Ainda que incluído na mesma fatura (por intermédio da qual é reclamado o pagamento de um preço unitário) e associado ao fornecimento de energia elétrica e/ou de gás, o “serviço adicional” é funcionalmente dissociável do(s) serviço(s) de interesse económico geral, porque a cessação da prestação de um dos serviços não implica necessariamente a cessação da prestação do(s) restante(s)[3].

Por outro lado, se se verificar a migração do(s) contrato(s) de fornecimento de energia de um comercializador cessante para um novo comercializador com o qual o consumidor celebrou ou pretende celebrar um novo contrato de fornecimento de energia elétrica e/ou de gás (processo de mudança de comercializador, regulado, entre outros, nos arts. 235.º a 238.º do RRCSEG e no Anexo I à Diretiva n.º 15/2018 da ERSE), conforme assinala a Recomendação n.º 1/2017, importa, igualmente, assegurar a tutela do cliente (por forma a que este não sofra quaisquer entraves, ainda que indiretos, à mudança de comercializador), em face de um de dois cenários possíveis: a) caso o programa contratual do “serviço adicional” a que o utente consumidor aderiu preveja que a mudança de comercializador determina a cessação daquele serviço associado (ao fornecimento de energia pelo comercializador cessante), tal mudança não deve implicar qualquer penalização ou pagamento posterior correspondente a serviços que não tenham sido efetivamente prestados; b) na hipótese de o mesmo clausulado contratual não estipular, para a situação de ocorrência de migração de contrato(s), a cessação automática do “serviço adicional” (v.g., deixando tal extinção do contrato sob dependência de uma opção do cliente), a mudança não pode implicar um agravamento do preço, das condições ou dos prazos de pagamento do serviço que se mantenha vigente.

Uma derradeira consideração para manifestar discordância com a 7.ª e última recomendação constante da Recomendação n.º 1/2017. Sustenta o Conselho de Administração da ERSE que «[q]uando, nos termos da lei, seja invocada a prescrição ou caducidade do direito ao recebimento do preço dos serviços públicos essenciais, deve entender-se que tal invocação abrange os serviços (…) “adicionais” ligados e faturados conjuntamente». Ora, a prescrição extintiva de curta duração prevista no art.10.º-1 e 2 da LSPE aplica-se ao direito ao recebimento do preço relativo ao(s) serviço(s) público(s) essencial(ais), entendido em sentido estrito, e, no limite, aos demais créditos relativos ao(s) contrato(s) de fornecimento daqueles serviços que mantenham uma relação de acessoriedade com o crédito (principal) do preço (v.g. crédito de juros e, eventualmente, indemnização por incumprimento de obrigação de permanência/cláusula de fidelização[4]). O facto de os créditos respeitantes a “serviços adicionais” serem faturados conjuntamente com os relativos aos serviços essenciais a que estão associados, não constitui fundamento ponderoso para apoiar uma extensão do âmbito da aplicação das soluções normativas consagradas no art.10.º-1 e 2 da LSPE nos termos sugeridos pela recomendação.


[1] Uma previsão que também foi refletida, sob ponto 1.5., na Recomendação da ERSE n.º 1/2019, entre um elenco de recomendações dirigidas aos comercializadores de eletricidade para reformulação de cláusulas dos contratos de adesão propostos aos utentes consumidores.

[2] Neste sentido, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito de Consumo, Coimbra, Almedina, 7.ª edição, 2020, p. 392, e Pedro Falcão, O Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica, Petrony Editora, 2019, pp. 84-85.

[3] Flávia da Costa de Sá, Contratos de Prestação de Serviços de Comunicações Eletrónicas: A Suspensão do Serviço em Especial, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2014, p. 62.

[4] Como defendido, recentemente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.04.2021.

Direito de arrependimento e cláusulas contratuais

Consumo em Ação

Por Luís Neves, Pedro Barata e Shiping Shen

Hipótese: Qual das seguintes cláusulas é admissível de acordo com o Decreto-Lei n.º 24/2014?

a) Cláusula de renúncia ao direito de arrependimento num contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas com período de fidelização de 24 meses;

b) Cláusula de acordo com a qual o direito de arrependimento só pode ser exercido através de carta registada com aviso de receção;

c) Cláusula que estipule que o direito de arrependimento deve ser exercido num prazo máximo de 7 dias úteis;

d) Cláusula que estabeleça que, em caso de exercício do direito de arrependimento, as despesas de devolução do bem superiores a € 10 serão suportadas pelo consumidor.

Resolução: Aplica-se o DL 24/2014, pelo que se pressupõe que as cláusulas em questão advêm de contratos celebrados à distância ou fora do estabelecimento comercial.

a) O art. 11.º-7 estabelece que as cláusulas que prevejam a renúncia ou uma penalização para o exercício do direito de livre resolução por parte do consumidor são nulas. O art. 29.º fixa o caráter imperativo do regime. Mesmo que se tivesse acordado integrar esta cláusula no contrato, esta seria nula. O direito ao arrependimento é um direito de suma importância para o consumidor. Nos contratos celebrados à distância ou fora do estabelecimento, a necessidade de proteção é ainda maior, devido à utilização de métodos consideravelmente mais agressivos de comercialização, em que o consumidor é muitas vezes surpreendido.

b) O art. 11.º-1 estabelece que o consumidor pode exercer o direito de arrependimento através do envio de um modelo de livre resolução ou de qualquer outra declaração inequívoca da vontade de findar o contrato. O n.º 2 especifica que a declaração de vontade é inequívoca se tiver sido comunicada através de qualquer meio, desde que suscetível de prova. O consumidor pode assim exercer o direito através de carta registada com aviso de receção, mas não pode ser limitado a exercê-lo apenas através dessa forma. Face ao art. 29.º, o leque de hipóteses em alternativa previsto no art. 11.º não pode ser limitado. Conclui-se que a cláusula é nula.

c) Segundo o art. 10.º-1, o consumidor pode exercer o direito de livre resolução num prazo de 14 dias a contar da data da entrega, no caso de contratos de compra e venda, ou a contar da data da celebração do contrato, em contratos de prestação de serviços. O prazo pode ser alargado em benefício do consumidor, mas nunca reduzido. Como o regime é imperativo, a cláusula é nula.

d) A regra geral estabelecida no 13.º-2 estabelece que é o consumidor quem suporta o custo da devolução dos bens, exceto se se verificarem as situações previstas nas alíneas do preceito. Segundo a alínea a), o consumidor deixa de ter que pagar o valor relativo à devolução do bem se o fornecedor tiver assumido esses custos. A alínea b) vai mais longe, estabelecendo que, se o fornecedor não tiver comunicado previamente que é o consumidor quem suporta os custos, deve aquele suportá-los. Recorrendo a uma interpretação a contrario sensu desta alínea, se o consumidor não tiver sido informado, cabe ao fornecedor arcar com os custos. Está em causa uma cláusula contratual, tendo o consumidor sido previamente informado. Conclui-se, assim, que a cláusula é válida.

A venda de smartphones sem carregador constitui uma prática comercial desleal?

Doutrina

Esta questão surge no seguimento do meu primeiro texto sobre a admissibilidade da venda de smartphones sem adaptador à luz do direito à informação, no qual referi que, caso exista falta de informação, o consumidor tem o direito de resolução do contrato no prazo de sete dias úteis a contar da data de receção do bem, assim como o direito a indemnização nos termos gerais.
Trata-se agora de saber quais as possíveis repercussões da não inclusão de adaptadores ao nível do regime das práticas comerciais desleais, presente no Decreto-Lei n.º 57/2008.
No âmbito deste regime, conseguimos identificar três possíveis situações relacionadas com a questão inicial.

A primeira será a do profissional que não inclui um adaptador de corrente com o smartphone e que não presta de forma diligente a informação necessária para o esclarecimento do consumidor.
Este caso configura uma omissão enganosa, nos termos do art. 9.º-1-a) do DL 57/2008. Desta norma retiramos como critério que “é enganosa, e portanto conduz ou é suscetível de conduzir o consumidor a tomar uma decisão de transação que não teria tomado de outro modo, a prática comercial […] que omite uma informação com requisitos substanciais para uma decisão negocial esclarecida do consumidor”. Este artigo pressupõe uma análise da definição de “decisão de transação” e que se preencham os conceitos de “requisitos substanciais” e de “consumidor”.
A definição de decisão de transação está presente no art. 3.º l), não constituindo qualquer entrave ao nosso caso.
Em relação ao conceito de “requisitos substanciais” devemos recorrer ao art. 10.º-a), que nos esclarece que “são consideradas substanciais para efeitos do artigo anterior […] as características principais do bem ou serviço, na medida adequada ao meio e ao bem ou serviço”. Assim, podemos afirmar que o adaptador de corrente, que de forma reiterada sempre foi parte integrante do conteúdo da caixa, é um requisito substancial.
O conceito de consumidor, para efeitos deste diploma, resulta da articulação das definições dos arts. 3.º-a) e 5.º-2. Da referida alínea, retiramos que é consumidor “qualquer pessoa singular que […] atue com fins que não se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional” e, do art 5.º-2, que “o carácter leal ou desleal da prática comercial é aferido utilizando-se como referência o consumidor médio”.
Devido à popularidade dos telemóveis, e pelo facto de estarem a ser retirados adaptadores de corrente de telemóveis que abrangem gamas altas e médias, é difícil concretizar o que será o “consumidor médio”.
Sobre o nível de diligência esperado por parte do consumidor médio, a doutrina divide-se. Na jurisprudência portuguesa, no âmbito da propriedade industrial[1], o consumidor médio será apressado, distraído e desatento se estiverem em causa bens de valor reduzido ou elevado consumo[2].  No direito da União Europeia, o considerando 18 da Diretiva 2005/29/CE revela que o consumidor médio é “normalmente informado e razoavelmente atento e advertido, tendo em conta fatores de ordem social, cultural e linguística”.
Independentemente do critério adotado é certo dizer que, se não existir informação suficiente por parte do profissional, por estarmos perante uma modificação de uma prática comercial consolidada, o consumidor médio não será capaz de prever que o carregador não está incluído na caixa.
A respeito do critério do art. 9.º-1, sobre a suscetibilidade de poder conduzir o consumidor médio a não tomar uma decisão de transação que este não teria tomado de outro modo, podemos simplesmente afirmar que a não inclusão de um acessório é algo que pode conduzir o consumidor a optar por outro telemóvel que tenha o acessório incluído. Esta afirmação preenche o requisito de mera suscetibilidade de condução a uma decisão de transação do n.º 1 e, em articulação com a análise que foi feita em relação aos restantes elementos da norma, podemos afirmar que estamos perante uma omissão enganosa caso o consumidor não seja informado sobre a não inclusão do adaptador de corrente na caixa do telemóvel.

A segunda prática comercial desleal acontece em torno da tecnologia de carregamento rápido (fast charging). Passou a ser comum a indicação das velocidades de carregamento dos dispositivos por forma a cativar os consumidores. Como o tempo de carregamento está diretamente dependente do adaptador que se utiliza, o profissional deve esclarecer este facto perante o consumidor. Se o profissional não fizer esta indicação, podemos estar novamente no âmbito do art. 9.º-1-a) do DL 57/2008, em articulação com o art. 10.º-a), por existir uma omissão de informação que incide sobre uma característica principal do bem (a velocidade de carregamento). O profissional deve indicar que as velocidades anunciadas só serão atingidas se for adquirido, em separado, um adaptador compatível com fast charging. Se não for feita esta advertência, o consumidor (médio) poderá pensar que qualquer adaptador servirá para carregar rapidamente o seu telemóvel e, se utilizar um antigo adaptador que já disponha em sua casa (em linha com os objetivos ambientais), é provável que não beneficie desta nova tecnologia se este não for apto para o efeito. A falta de informação também pode conduzir o consumidor a comprar um adaptador sem fast charging, o que não só contribui negativamente para os alegados objetivos de sustentabilidade a que se compromete o profissional, como também lesaria o consumidor que teria de adquirir outro adaptador para poder usufruir das velocidades anunciadas.

É ainda possível encontrar uma terceira prática comercial desleal no caso em análise.
O art. 7.º-1-c), relativo às ações enganosas, indica que a motivação da prática comercial é um elemento capaz de induzir, ou ser suscetível a induzir, o consumidor em erro. A estrutura do art. 7.º-1 é semelhante à do art. 9.º-1, na medida em que utiliza a mera suscetibilidade de o consumidor ser induzido em erro para efeitos de aplicação da norma. Como o consumidor pode ser influenciado se for anunciado que um telemóvel de uma determinada marca é mais “amigo do ambiente” que outros dispositivos concorrentes, podemos afirmar que existe suscetibilidade de conduzir o consumidor a tomar uma decisão de transação que não tomaria de outro modo, preenchendo os elementos do art. 7.º-1. Deste modo, se o profissional divulgar que está a retirar os adaptadores de corrente das caixas dos telemóveis por motivos ambientais e de sustentabilidade, é importante que esses motivos sejam verificados e que correspondam à realidade. Se, em vez disso, estiverem exclusivamente relacionados com o aumento de lucro ou se comprovar que colocar os adaptadores numa caixa em separado contribui negativamente para o ambiente, estaremos perante uma ação enganosa por parte do profissional[3].

Quais são as consequências de uma prática comercial desleal para o profissional?

A consequência jurídica poderá passar, em primeiro lugar, pela anulabilidade do contrato de compra e venda, no prazo de um ano a contar da data da prática comercial desleal, por aplicação do art. 14.º-1 que, por sua vez, remete para o art. 287.º do Código Civil.

Em segundo lugar, em alternativa à anulabilidade, podemos ter a modificação do contrato segundo juízos de equidade, a requerimento do consumidor. A qualificação desta solução não se configura como uma redução (art. 292.º do Código Civil), aproximando-se mais da conversão (art. 293.º do Código Civil). Como refere Jorge Morais Carvalho, “a modificação do contrato não fica dependente do requisito estabelecido na parte final daquele preceito, não relevando a avaliação da vontade hipotética das partes”[4]. Se tivéssemos em consideração a vontade do profissional, este não quereria a celebração do contrato com outro objeto. Por este motivo, não podemos valorizar a vontade hipotética do profissional, pelo que a solução passa pela “justiça do caso concreto, devendo ser ponderados todos os elementos que sejam considerados relevantes”. Partindo deste preceito, uma forma de obter a justiça do caso concreto poderia passar pela inclusão do carregador, a título de liberalidade, no contrato de compra e venda do telemóvel.

Nos termos do n.º 3, “se a invalidade afetar apenas uma ou mais cláusulas do contrato, pode o consumidor optar pela manutenção deste, reduzido ao seu conteúdo válido”. Esta norma, ao contrário da anterior, aponta para uma redução nos termos do art. 292.º do CC. Poderíamos ter uma situação em que seria vendido o telemóvel sem o carregador, sendo descontado o valor deste ao preço final.

Estas consequências não operam automaticamente. É necessário que o consumidor atue dentro do prazo referido, sob pena de se manter o contrato de compra e venda.

O DL 57/2008 prevê ainda a aplicação de sanções contraordenacionais (art. 21.º) e o direito do consumidor a indemnização (art. 15.º).


[1] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 138-140, expõe a noção de consumidor médio e demonstra a diferença que existe a respeito deste no direito da U.E. e no direito nacional.

[2] Acórdão do TRL, de 19-01-2010, processo 25/07.5TYLSB.L1-1.

[3] Como exemplo de uma decisão fundamentada, em parte, na necessidade de saber a motivação do profissional que retira os adaptadores da caixa, encontramos a decisão do Procon-SP contra a Apple. Na notificação, de 28 de outubro de 2020, o Procon-SP solicita à Apple que apresente “quais [as] razões [que] fundamentam a decisão comercial” de retirar os adaptadores. Como não obteve resposta, o Procon-SP multou a empresa em R$ 10.546.442,48, a 22 de março de 2021.

[4] Jorge Morais Carvalho, in Código Civil Anotado, coord. de Ana Prata, Volume I, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 386-388.

O envio de pré-aviso de interrupção de serviço público essencial como prática comercial desleal

Doutrina

Por Carlos Filipe Costa e Sara Fernandes Garcia

No contexto da pandemia da doença COVID-19, numa fase inicial, foi consagrado um regime excecional vedando a suspensão da prestação dos serviços públicos essenciais de fornecimento de água, energia elétrica e gás natural, “durante o estado de emergência e no mês subsequente”, através do art. 4.º da Lei n.º 7/2020, retificada pela Declaração de Retificação n.º 18/2020. No caso do serviço de comunicações eletrónicas, a proibição de suspensão só seria aplicável se motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20%, ou por infeção por COVID-19, solução já aqui comentada.

Posteriormente, o regime foi atualizado, por via da Lei n.º 18/2020, que prolongou o prazo relativo à proibição, até 30 de setembro de 2020, mas introduziu algumas limitações na proteção conferida aos utentes (v. aqui e aqui).

No âmbito da Lei do Orçamento de Estado para 2021, aprovada pela Lei n.º 75-B/2020, através do art. 361.º, n.º 1, a) a c), a medida extraordinária foi novamente prorrogada, passando a vigorar, durante o primeiro semestre de 2021, com o retorno ao tratamento diferenciado dos serviços de comunicações eletrónicas, como se analisou aqui.

Mais recentemente, foi publicado o Decreto-Lei n.º 56-B/2021, que se ocupa da garantia de acesso aos serviços essenciais, a par da regulação do regime excecional para as situações de mora no pagamento da renda. O art. 3.º deste diploma, em vigor a partir de 1 de julho, estabelece que, até 31 de dezembro de 2021, não pode ser suspenso o fornecimento dos serviços de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas, sem, contudo, fixar condições de aplicação, optando por uma formulação mais ampla e protetora, com o fito de “debelar os constrangimentos temporários e possibilitar maior liquidez aos cidadãos e às famílias durante o período de normalização de vida”, conforme resulta do preâmbulo.

Neste quadro, perante uma situação típica que, nos termos da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (LSPE) e do regulamento de relações comerciais do respetivo setor, possa determinar a interrupção do fornecimento destes serviços essenciais, deve a suspensão ser precedida de “pré-aviso adequado” por não se fundar em “caso fortuito ou de força maior” (art. 5.º-1 da LSPE). A questão que colocamos é a seguinte: pode o comercializador ou a entidade gestora enviar o pré-aviso ao utente durante o período em que vigora a proibição de suspensão, ainda que este só venha a produzir efeitos em data ulterior?

A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), em memorando intitulado “Nota Interpretativa do regime de interrupção de fornecimento por facto imputável ao cliente”, depois de assinalar a ausência de solução legislativa quanto à (in)admissibilidade do envio de pré-aviso de interrupção ao utente, tomou posição no sentido de que “(…) nada inibe os comercializadores de enviar aos seus consumidores os respetivos pré-avisos, desde que respeite o disposto na lei e em regulamento, designadamente a data a partir da qual pode ocorrer a interrupção”.

De acordo com a perspetiva da ERSE, em caso de falta de pagamento dos montantes devidos no prazo estipulado (mora do utente), se o comercializador tivesse exigido a prestação pecuniária devida pelos serviços prestados em janeiro, através de fatura comunicada ao utente a 3.2.2021, sem que tivesse ocorrido o pagamento até 22.2.2021 (arts. 10.º-3 da LPSE e 66.º-1 do RRCSEG), podia emitir, de imediato, o pré-aviso de interrupção do fornecimento de energia elétrica (ou de gás natural) ao cliente, ainda que a suspensão só pudesse ter lugar, forçosamente, em data posterior à proibição de suspensão.

O regime de proibição da suspensão que vem sendo sucessivamente prorrogado não constitui uma consagração da “teoria do limite do sacrifício”, não bastando que a prestação se tenha tornado extraordinariamente onerosa ou excessivamente difícil para o devedor se exonerar do cumprimento. Não funciona também como uma moratória legal facultada ao utente para regularização das prestações que, entretanto, já se venceram. O regime não teve em vista a promoção do incumprimento, pelos utentes, dos contratos de prestação dos serviços públicos essenciais, o que, de resto, atentaria, de modo ostensivo, contra o princípio fundamental estruturante do nosso Direito dos Contratos contido no brocardo latino pacta sunt servanda (art. 406.º-1 do Código Civil).

Ainda assim, afigura-se incontornável que, com a adoção desta solução normativa de caráter excecional, o legislador, colocando em confronto os interesses do cumprimento pontual dos contratos e da continuidade da prestação dos serviços, fez pender os pratos da balança para a preponderância da essencialidade do fornecimento permanente dos serviços de interesse económico geral em causa, porque tendentes à satisfação de necessidades primaciais na vida de qualquer cidadão, particularmente num período pautado pelo recolhimento domiciliário.

Acresce que, embora uma interrupção de um daqueles serviços por mora no pagamento não permita a imediata resolução do contrato por parte do comercializador ou da entidade gestora (arts. 83.º-1 do RRCSEG e art. 79.º-4 do RRCSAR), certo é que o pré-aviso, previsto no art. 5.º-1 a 3 da LSPE se traduz numa intimação para o cumprimento, mediante concessão de um prazo perentório − não inferior a 20 dias − para regularização do valor em dívida, sob cominação de suspensão do abastecimento.

Assim, à semelhança do que sucede com a interpelação admonitória, prevista no art. 808.º-1-2.ª parte do Código Civil, também o pré-aviso cumpre uma função de injunção cominatória para cumprimento da prestação. Ora, esse desiderato só se produz eficazmente com a concessão de um prazo que, embora suficiente para o utente “desassorear e remover os obstáculos que estão a impedir o cabal e perfeito cumprimento do contrato”[1], inculque a ideia de que o fornecedor não suportará a situação de inadimplência por muito mais tempo.

Daí que, no quadro do relacionamento comercial habitualmente mantido entre comercializadores (ou entidades gestoras) e clientes (ou utilizadores), os pré-avisos de interrupção do fornecimento dos serviços essenciais não sejam remetidos com uma antecedência muito superior à mínima legal ou regulamentarmente exigida face à data em que a suspensão se poderá concretizar (caso subsista a razão fundante), o que permite manter a sua atualidade, primordial no desempenho da sua função.

Neste seguimento, um utente menos atento ao regime excecional vigente, mesmo enfrentando dificuldades no cumprimento, em face de um pré-aviso de interrupção de fornecimento que chegue ao seu conhecimento, poder-se-á sentir condicionado a oferecer, a breve trecho, o pagamento integral do preço, dada a ameaça de perda de acesso ao serviço essencial no seu local de consumo. De resto, a probabilidade de tal suceder agudizar-se-ia perante uma sucessão de pré-avisos de suspensão de fornecimento, ainda que emitidos com base em fundamento normativamente legitimante, considerando o efeito negativo que tais comunicações têm na gestão da vida pessoal e familiar de qualquer utente.

Por quanto se expôs, entendemos que a emissão de pré-aviso de suspensão de fornecimento dos serviços essenciais de fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas, em data que supere, em larga medida, a antecedência legal ou regularmente imposta, é suscetível de configurar uma prática comercial desleal, na modalidade de prática agressiva, nos termos dos arts. 3.º-a) a d), j) e l), 6.º-b), e 11.º-1 e 2-a) e c) do Decreto-Lei n.º 57/2008.

Com efeito, a emissão do pré-aviso nestes moldes pode exercer uma influência indevida sobre o consumidor, suscetível de limitar, de modo significativo, o seu comportamento e conduzir à adoção de decisão de transação que, de outro modo, não teria tomado, a qual, neste caso, se traduz no pagamento imediato do valor ou de parte do valor em dívida[2].

Esta conduta por parte do profissional, assente na exploração de uma posição de poder, é capaz de criar no espírito do consumidor a ideia de que deve proceder de imediato à regularização dos pagamentos, de forma a evitar consequências negativas, o que restringe consideravelmente a sua capacidade de tomar uma decisão livre.

Ainda que se sustente que se trata de adiantar uma informação relativa a uma situação de incumprimento já consumada, que leva o utente a antecipar o pagamento devido e que provavelmente teria lugar no futuro, importa recordar que este regime de exceção visa precisamente assegurar a continuidade da prestação destes serviços públicos essenciais, permitindo ultrapassar, ainda que temporariamente, problemas de liquidez, lógica que ficaria subvertida com a adoção desta prática, constituindo eventualmente uma forma de fraude à lei.


[1] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.2015.

[2] A “decisão de transação” está associada, em regra, à decisão tomada por um consumidor sobre a aquisição de bens ou serviços. Porém, de acordo com as Orientações sobre a aplicação da Diretiva relativa às práticas comerciais desleais, SWD (2016) 163 final, de 25.5.2016, pp. 39-40, a noção adotada é bastante lata, abrangendo decisões prévias e posteriores à compra. Atendendo ao espírito de completude inerente a esta Diretiva-quadro, defendemos que a decisão de pagamento de uma dívida, num contrato de execução duradoura em que o consumidor realiza a contraprestação pecuniária periodicamente, é enquadrável no conceito amplo de decisão de transação, para efeitos de aplicação do regime.

Pela não aplicação subsidiária do CPC na arbitragem de consumo

Doutrina

Carlos Filipe Costa defendeu recentemente no blog a tese da necessidade de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil (CPC) na arbitragem de consumo. Apresento neste texto uma perspetiva diferente, defendendo que essa solução contraria o espírito da arbitragem em geral e da arbitragem de consumo em particular.

A Lei 144/2015, que regula a resolução alternativa de litígios de consumo, estabelece poucas regras aplicáveis à arbitragem (v. art. 10.º), não tendo igualmente qualquer norma de aplicação subsidiária. Devem aplicar-se, portanto, as normas da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV).

O art. 30.º da LAV regula precisamente os princípios e as regras do processo arbitral. Depois de realçar a vinculação do tribunal arbitral aos princípios do processo justo (n.º 1), estabelece-se a regra geral relativa às regras processuais da arbitragem: livre escolha pelas partes (até à designação do árbitro), com o limite das normas imperativas (n.º 2).

Na arbitragem de consumo, a livre escolha das regras processuais pelas partes consubstancia-se normalmente na seleção do centro de arbitragem de consumo que vai resolver o litígio. Ao recorrerem a um centro, as partes tornam suas as cláusulas do regulamento desse centro (cfr. art. 6.º da LAV).

O art. 30.º-3 da LAV trata do caso em que as partes não acordaram sobre a regra processual necessária para resolver alguma questão (o que implica que o regulamento do centro também não a resolveu) e a LAV ou outro diploma, como a Lei 144/2015, não regulam imperativamente a matéria. Se assim for, “o tribunal arbitral pode conduzir a arbitragem do modo que considerar apropriado, definindo as regras processuais que entender adequadas, devendo, se for esse o caso, explicitar que considera subsidiariamente aplicável o disposto na lei que rege o processo perante o tribunal estadual competente”.

Da parte final da norma decorre que a “lei que rege o processo perante o tribunal estadual competente”, ou seja, no caso português, em litígios civis ou comerciais, o CPC, só será aplicável se o tribunal arbitral o explicitar, o que implica referir expressamente que é essa a sua opção. Isto significa que, nos termos da LAV, o CPC não é aplicável subsidiariamente à arbitragem.

A forma de suprir lacunas nas regras de processo é a indicada neste art. 30.º-3: o tribunal arbitral define, em cada caso, as regras processuais que entender adequadas. A flexibilidade é um instrumento fundamental da arbitragem e esta solução é essencial para garantir essa flexibilidade.

A previsão no regulamento de um centro de arbitragem da aplicação subsidiária do CPC é contrária ao espírito da arbitragem em geral e da arbitragem de consumo em particular.

Alguns centros que seguiram o modelo de regulamento harmonizado têm a seguinte regra nos seus regulamentos: “Para além dos diplomas legais referidos nos números anteriores [Lei 144/2015 e Regulamento RLL], em tudo o que não estiver previsto no presente Regulamento aplica-se, com as devidas adaptações, a Lei da Arbitragem Voluntária, a Lei da Mediação e o Código do Processo Civil”.

O Regulamento do CNIACC, que contém uma regra semelhante (art. 19.º-3), omite a referência ao CPC.

O Regulamento do CNIACC constitui, aliás, um bom exemplo de flexibilidade processual. O art. 14.º, que trata do processo arbitral, estabelece que, “apresentados o requerimento inicial e a contestação, o tribunal adota a tramitação processual adequada às especificidades da causa, definindo designadamente: a) Se o processo comporta fases orais para a produção de prova ou para a exposição oral dos argumentos das partes ou se é decidido apenas com base nos documentos e outros elementos de prova, dispensando a realização de qualquer audiência; b) Se há necessidade de delimitar a matéria de prova, separando-a da matéria que considera já provada; c) Quais os meios de prova a produzir, aqui se incluindo o depoimento de parte, a prova testemunhal, documental, pericial e por exame a coisas; d) Qual o número de testemunhas a apresentar, com o limite de três testemunhas por cada uma das partes, limite esse elevado para o dobro nos processos de valor superior a € 5 000” (n.º 3). O n.º 5 determina que, nesta decisão de gestão processual, “o tribunal fixa ainda as datas para a entrega de quaisquer elementos, a realização de audiências ou outras diligências de prova”. O n.º 6 permite a alteração da decisão de gestão processual “no decurso do processo, caso se mostre necessário”.

O Regulamento da Arbitragem e das Custas do CIMPAS indicava, numa versão que já não está em vigor, que, “em caso de omissão, aplicar-se-ão, subsidiariamente, as regras e princípios do Código de Processo Civil, adaptados à natureza marcadamente abreviada e informal do procedimento arbitral”. A versão atual, embora mantenha uma referência, dispensável, ao CPC, é mais clara no sentido de este não se se aplicar de forma subsidiária, acrítica e desligada das circunstâncias do caso contrato: “em caso de omissão caberá ao tribunal arbitral conduzir a arbitragem, suprindo do modo que considerar apropriado, as regras em falta, designadamente aplicando subsidiariamente, as regras e princípios do Código de Processo Civil, adaptados à natureza marcadamente abreviada e informal do procedimento arbitral”.

A prescrição da aplicação subsidiária do CPC por via do regulamento de arbitragem é, na minha perspetiva, criticável (e deve ser afastada por via interpretativa). Esta regra não permite, ao contrário do que resulta do espírito da arbitragem, claramente presente na LAV, a aplicação da regra mais adequada ao caso, impondo a aplicação de uma norma do CPC que pode ser menos adequada (ou não ser de todo adequada). Uma das vantagens da arbitragem, não sendo a arbitragem de consumo exceção, é precisamente a não sujeição ao formalismo excessivo do CPC. Ora, se, por regra, se aplicar subsidiariamente o CPC, desvirtua-se a essência da arbitragem. Será, naturalmente, mais fácil para advogados e árbitros de consumo aplicarem as normas a que estão habituados (ou mais habituados), mas o objetivo das regras processuais não consiste, na minha perspetiva, em facilitar o trabalho dos juristas, evitando que tenham de estudar e pensar soluções em alternativa. O objetivo é garantir a justiça e o cumprimento dos princípios fundamentais do processo justo, tendo em conta o meio de resolução de litígios em causa. E, na arbitragem, estes desígnios passam por existir uma maior flexibilidade processual (v. Ac. do TRP, de 7/2/2017) e pela aplicação, em cada caso, da regra mais adequada, o que é totalmente incompatível com a prescrição da aplicação subsidiária do CPC.