Contratação de serviços adicionais associados ao fornecimento de energia elétrica ou de gás

Doutrina

Atualmente, os comercializadores de energia elétrica e de gás natural, no desenvolvimento da sua estratégia mercantil, além de promoverem ofertas de prestação dos serviços públicos essenciais (art. 1.º-2-b) e c) da LSPE), também procedem, de forma associada, à comercialização de “serviços adicionais” (art. 2.º-bbbb) do RRCSEG), designadamente serviços de assistência técnica a equipamentos e a instalações domésticas (e.g. “Funciona”, da EDP Comercial; “Assistência Casa”, da Galp Power; “OK Serviços de Assistência”, da Endesa) e serviços de análise e gestão de consumos, através de equipamento com acesso por internet integrado ou aplicação em dispositivo móvel autónomo (e.g. “EDP Re:dy”, da EDP Comercial; “app Casa Galp”, da Galp Power; “app Iberdrola Clientes Portugal”, da Iberdrola).

Como vem sendo experienciado por muitos consumidores, quer na fase pré-contratual (i.e., no momento da sua formação), quer na fase contratual (i.e., aquando da sua execução) nota-se uma incontornável conexão entre os contratos que têm por objeto aqueles “serviços adicionais” e o(s) contrato(s) de fornecimento de eletricidade e/ou gás natural. Desde logo, e em todos os casos, porque a celebração dos primeiros pressupõe logicamente a existência do(s) segundo(s). Depois, porque, nalguns casos, a oferta da possibilidade de celebração simultânea dos contratos com a mesma contraparte, não constituindo fundamento suficiente para determinar a diferenciação de propostas de fornecimento (art. 16.º-2 a 4 do RRCSEG), possibilita o acesso a condições mais favoráveis, em termos de preço e, até, de prazo (mais curto) de disponibilização do “serviço adicional”. Ademais, quando aplicável, a interpelação para pagamento de prestação (mensal) devida pela disponibilização do “serviço adicional” é integrada na fatura emitida pelo comercializador (também, em regra, com periodicidade mensal – arts. 9.º-2 da LSPE e 45.º-1 do RRCSEG) para discriminação dos serviços de fornecimento de energia elétrica e/ou de gás prestados na instalação do utente.

Assim sendo, ainda que os contratos de prestação de “serviços adicionais” não se confundam juridicamente com o(s) contrato(s) de fornecimento de eletricidade e/ou gás natural, afigura-se necessário acautelar o risco de o consumidor, no momento da conclusão dos contratos, não percecionar, com clareza, a existência de contratos autónomos, as condições que regem cada um dos contratos e as eventuais implicações de vicissitudes sofridas por uma das relações jurídicas no outro vínculo negocial.

Para tanto, e conferindo obrigatoriedade às boas práticas a adotar no âmbito dos mercados, dirigidas aos comercializadores de energia por via da Recomendação da ERSE n.º 1/2017, o art. 17.º do RRCSEG dispõe, sob o n.º 1, que “[o] comercializador em regime de mercado deve informar, de forma completa, clara, adequada, acessível e transparente, os seus clientes quanto à subscrição de serviços adicionais”. Trata-se da consagração de um particularmente exigente dever de informação (constitucionalmente consagrado no art.º 60.º-1 da CRP e previsto, em termos gerais, no plano do direito ordinário, no art. 8.º-1 da LDC e nos arts. 5.º e 6.º do RJCCG, estes últimos aplicáveis pelo facto de a subscrição dos “serviços adicionais” se operar através da aposição da assinatura em contrato de adesão formado com recurso à predisposição de cláusulas contratuais gerais), que reclama uma identificação inequívoca dos “serviços adicionais” e respetivos preços.

Tanto assim que, logo no n.º 2 do mesmo art. 17.º do RRCSEG, se prescreve que “[o] comercializador deve igualmente explicitar que os serviços adicionais são independentes e não interferem com a prestação do serviço público essencial[1], salvo na situação em que haja eventual concessão de descontos pela subscrição desses serviços” – os quais devem ser claramente identificados e quantificados na ficha contratual padronizada, prevista no n.º 6 do art. 16.º do RRCSEG, a entregar ao utente consumidor – e, no mesmo sentido, o n.º 3 do art. 47.º do RRCSEG postula que “(…) os preços praticados relativos a produtos e serviços (…) adicionais [devem] ser autonomamente apresentados aos clientes, tendo por base o contrato celebrado que não seja o contrato de fornecimento”.

Sem prejuízo, cumpre notar que o referido dever de informação não impende sobre o comercializador somente na fase pré-contratual. Na verdade, atendendo ao facto, já acima exaltado, de a ligação entre os contratos que têm por objeto os “serviços adicionais” e o(s) contrato(s) de fornecimento de energia elétrica e/ou gás natural se fazer sentir, de igual modo, na fase do cumprimento destes vínculos negociais, a observância daquele dever de informação também se exige e impõe, nomeadamente, no momento da renovação contratual da prestação de “serviços adicionais”, geralmente sujeita a período mínimo de vigência do contrato (período de fidelização).

Neste caso, de acordo com a Recomendação n.º 1/2017 e à semelhança do que se dispõe no n.º 5 do art. 19.º do RRCSEG para o contrato de fornecimento de energia elétrica ou de gás, a renovação do período de fidelização deve ser objeto de aviso prévio, separado da fatura de energia, remetido com uma antecedência mínima razoável (diria, 30 dias, por analogia com a solução prevista no n.º 3 do art. 69.º do RRCSEG para a alteração unilateral do contrato pelo comercializador) ao consumidor, a fim de este, querendo, exercer o direito de oposição à renovação.

Também no âmbito da execução dos contratos conexos a que vimos fazendo referência, ao abrigo da previsão do art. 6.º da LSPE (que remete para o n.º 4 do art. 5.º do mesmo diploma legal), se o consumidor, por algum motivo, não proceder ao pagamento de valor correspondente a “serviço adicional”, sem, todavia, deixar de efetuar a contraprestação devida pelo fornecimento de eletricidade e/ou gás, tem o mesmo direito à quitação da divida relativa ao(s) serviço(s) público(s) essencial(ais)[2]. Ainda que incluído na mesma fatura (por intermédio da qual é reclamado o pagamento de um preço unitário) e associado ao fornecimento de energia elétrica e/ou de gás, o “serviço adicional” é funcionalmente dissociável do(s) serviço(s) de interesse económico geral, porque a cessação da prestação de um dos serviços não implica necessariamente a cessação da prestação do(s) restante(s)[3].

Por outro lado, se se verificar a migração do(s) contrato(s) de fornecimento de energia de um comercializador cessante para um novo comercializador com o qual o consumidor celebrou ou pretende celebrar um novo contrato de fornecimento de energia elétrica e/ou de gás (processo de mudança de comercializador, regulado, entre outros, nos arts. 235.º a 238.º do RRCSEG e no Anexo I à Diretiva n.º 15/2018 da ERSE), conforme assinala a Recomendação n.º 1/2017, importa, igualmente, assegurar a tutela do cliente (por forma a que este não sofra quaisquer entraves, ainda que indiretos, à mudança de comercializador), em face de um de dois cenários possíveis: a) caso o programa contratual do “serviço adicional” a que o utente consumidor aderiu preveja que a mudança de comercializador determina a cessação daquele serviço associado (ao fornecimento de energia pelo comercializador cessante), tal mudança não deve implicar qualquer penalização ou pagamento posterior correspondente a serviços que não tenham sido efetivamente prestados; b) na hipótese de o mesmo clausulado contratual não estipular, para a situação de ocorrência de migração de contrato(s), a cessação automática do “serviço adicional” (v.g., deixando tal extinção do contrato sob dependência de uma opção do cliente), a mudança não pode implicar um agravamento do preço, das condições ou dos prazos de pagamento do serviço que se mantenha vigente.

Uma derradeira consideração para manifestar discordância com a 7.ª e última recomendação constante da Recomendação n.º 1/2017. Sustenta o Conselho de Administração da ERSE que «[q]uando, nos termos da lei, seja invocada a prescrição ou caducidade do direito ao recebimento do preço dos serviços públicos essenciais, deve entender-se que tal invocação abrange os serviços (…) “adicionais” ligados e faturados conjuntamente». Ora, a prescrição extintiva de curta duração prevista no art.10.º-1 e 2 da LSPE aplica-se ao direito ao recebimento do preço relativo ao(s) serviço(s) público(s) essencial(ais), entendido em sentido estrito, e, no limite, aos demais créditos relativos ao(s) contrato(s) de fornecimento daqueles serviços que mantenham uma relação de acessoriedade com o crédito (principal) do preço (v.g. crédito de juros e, eventualmente, indemnização por incumprimento de obrigação de permanência/cláusula de fidelização[4]). O facto de os créditos respeitantes a “serviços adicionais” serem faturados conjuntamente com os relativos aos serviços essenciais a que estão associados, não constitui fundamento ponderoso para apoiar uma extensão do âmbito da aplicação das soluções normativas consagradas no art.10.º-1 e 2 da LSPE nos termos sugeridos pela recomendação.


[1] Uma previsão que também foi refletida, sob ponto 1.5., na Recomendação da ERSE n.º 1/2019, entre um elenco de recomendações dirigidas aos comercializadores de eletricidade para reformulação de cláusulas dos contratos de adesão propostos aos utentes consumidores.

[2] Neste sentido, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito de Consumo, Coimbra, Almedina, 7.ª edição, 2020, p. 392, e Pedro Falcão, O Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica, Petrony Editora, 2019, pp. 84-85.

[3] Flávia da Costa de Sá, Contratos de Prestação de Serviços de Comunicações Eletrónicas: A Suspensão do Serviço em Especial, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2014, p. 62.

[4] Como defendido, recentemente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.04.2021.

4 thoughts on “Contratação de serviços adicionais associados ao fornecimento de energia elétrica ou de gás

  1. Mais um excelente texto de Carlos Filipe Costa.

    Na minha opinião, justifica-se 7.ª recomendação constante da Recomendação n.º 1/2017, considerando-se abrangidos pelo prazo mais curto de prescrição ou caducidade do art. 10.º da Lei n.º 23/96 os direitos de crédito relativos aos serviços adicionais.

    Em primeiro lugar, a ligação dos serviços adicionais ao objeto principal do contrato é tão forte que não me parece haver razão para o consumidor estar menos protegido em relação àqueles. Estes são, pelo menos da perspetiva do consumidor, na esmagadora maioria dos casos, acessórios em relação ao objeto principal do contrato.
    Em segundo lugar, o objetivo de prever um prazo tão curto de prescrição é evitar a acumulação de dívidas e o sobreendividamento dos utentes. A razão de ser da norma aplica-se aqui integralmente.
    Em terceiro lugar, a forma como estes serviços são contratados é, muitas vezes, duvidosa. Bem sei que há outras vias para resolver o problema, mas, quando for possível, a via da prescrição do crédito respetivo no mesmo prazo da do crédito principal parece-me uma solução justa e equilibrada.
    Em quarto lugar, os serviços adicionais são muitas vezes utilizados como forma de manter o utente fidelizado à empresa no âmbito do contrato de fornecimento de energia elétrica ou gás natural, o que mostra a ligação clara entre ambos os objetos contratuais. Um prazo de prescrição mais curto pode ajudar no objetivo do sistema de garantir a mobilidade dos utentes.

  2. Muito obrigado Professor Jorge Morais Carvalho!

    Apresenta argumentos muito pertinentes para uma solução diversa “de iure constituendo”. Creio, contudo, que uma interpretação extensiva da atual redação normativa não salvaguarda o mínimo de correspondência com a letra da lei.

  3. Obrigado pela resposta.

    Compreendo a ideia. No entanto, parece-me que esta interpretação ainda tem um “mínimo” de correspondência na letra da lei, correspondendo também ao seu espírito. O elemento teleológico é o elemento interpretativo que julgo que deve ser privilegiado.

  4. Os contratos de serviços adicionais são, no essencial, contratos de assistência técnica e de manutenção – instalações e aparelhos elétricos e de gás natural -, logo, serão verdadeiros contratos de prestação de serviços. Tratam-se de contratos de execução continuada na exata medida em que se decompõem em vistorias periódicas e na obrigação, assumida por quem disponibiliza, a proceder a reparações quando solicitada, por contrapartida do pagamento de certo valor por mês, pelo que esta constitui prestação duradoura, que se encontra intimamente ligada ao decurso do tempo e que se renova periodicamente. Cabem tais prestações na previsão do art. 310 g) CC, sendo de cinco anos o prazo de prescrição?
    Pelo valor que assumem tais prestações – valor que as partes conhecem ao contrário do consumo que muitas vezes só é percebido através da faturas e quando já é tarde –, é forçoso concluir que se lhe aplicam o prazo de seis meses com base num hipotetico risco de acumulação de dívidas.
    Aliás, a recomendação ERSE é, em si mesma, contraditória excluindo inicialmente – e bem -, os serviços adicionais da esfera dos serviços públicos essencial (pois não o é) para depois querer abrangê-los pela LSPE.
    E nos serviços adicionais prestados o prestador não se distingue grandemente de um qualquer serviço de assistência técnica.

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