Kits de reparação self-service: sustentabilidade e (des)proteção do consumidor

Doutrina

No último trimestre de 2021 foi publicado o Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, que veio transpor para a Ordem Jurídica Portuguesa a Diretiva (EU) 770/2021 e a Diretiva (UE) 2019/771 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativas a contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais e contratos de compra e venda de bens, respetivamente.

Além do seu propósito de modernizar a legislação de Direito do Consumo e fazer refletir a realidade digital que atualmente faz parte da nossa vida, estas novas normas procuram também promover a sustentabilidade, como aliás é percetível em prorrogativas como a do artigo 21.º do referido Decreto-Lei, que prevê o dever de o produtor disponibilizar peças sobresselentes durante um prazo de 10 anos após a colocação da última unidade do bem em mercado, procurando prolongar a vida dos bens e evitando a sua substituição desnecessária.

É inegável que todo o processo de industrialização, assim como a adoção das novas tecnologias de produção em massa, tem impulsionado o desenvolvimento económico e sido absolutamente fundamentais para a melhoria da qualidade de vida de todos os que temos a sorte de poder aproveitar os resultados desta produção de bens.

Não obstante, é inevitável reconhecer que esses avanços têm tido um impacto significativo no meio ambiente, em particular para a nossa análise, nos resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos. O Parlamento Europeu divulgou que se reciclam menos de 40% dos resíduos deste tipo de equipamentos, evidenciando um atraso notório na reciclagem em relação à produção.

Nesse sentido, tornou-se essencial implementar medidas que prevejam e promovam a sustentabilidade em todos os setores da economia, incluindo no setor dos equipamentos elétricos e eletrónicos. Este processo implica não só a busca por processos de produção mais eficientes e ecologicamente responsáveis, como também a redução do desperdício através da adoção de práticas que visem a reparação de bens de forma a conservá-los durante mais tempo, evitar a sua substituição desnecessária e, consequentemente, conservar o nosso planeta para as futuras gerações.

A interseção entre a industrialização e a sustentabilidade é fundamental para garantir um equilíbrio entre o progresso económico e a preservação ambiental.

Neste contexto, as empresas começam a pôr em prática a venda de kits de reparação em self-service, que consistem na venda ou aluguer de ferramentas e de peças específicas para que os consumidores possam, com a ajuda das instruções, também disponibilizadas, reparar os seus equipamentos eletrónicos em casa.

A Apple e a Samsung já disponibilizam estes kits de reparação em vários países da Europa, incluindo Espanha, pelo que se pode esperar que possa ser uma realidade em breve no nosso país.

Em primeiro lugar, importa distinguir esta realidade quando aplicada durante o período de responsabilidade do profissional (anteriormente conhecido como “garantia”) – três anos – ou num período posterior. Isto ocorre porque, do ponto de vista do comportamento do consumidor, a sua disponibilidade para aderir a este processo de reparação self-service pode variar consoante se encontre dentro ou fora do período de responsabilidade do profissional, no limite, mostrando mais ou menos resistência a estas novas soluções.

Durante os primeiros três anos, os consumidores podem sempre solicitar ao profissional a reparação dos seus equipamentos eletrónicos, pelo que não deverão tender a optar por adquirir, durante esse período, um kit de reparação self-service e correr o risco de abrir o equipamento e não conseguir reparar ou cometer algum erro e danificar ainda mais o seu equipamento eletrónico.

Esse risco existe porque, embora a garantia associada aos kit de reparação self-service seja sempre adicional em relação à garantia legal originária durante o período de responsabilidade do profissional, as empresas que venderam os bens podem não querer assumir a responsabilidade por erros que os consumidores possam cometer durante a reparação self-service, se não estiverem diretamente relacionadas com aspetos sob o controlo desses profissionais, por exemplo, defeitos nas ferramentas ou instruções deficientes ou insuficientes. Note-se que embora os kits de reparação self-service possuam uma garantia própria, esta deverá apenas incluir a sua conformidade e não o ato ou as consequências da reparação em si.

Os kits de reparação self-service serão, assim, uma solução mais atrativa para a fase da vida dos equipamentos eletrónicos após o término do período de responsabilidade do profissional. Isto ocorre porque, a partir desse momento, as reparações dos equipamentos já correm por conta dos consumidores e são frequentemente dispendiosas, levando muitas vezes os consumidores a pensar em “comprar um novo” em vez de reparar.

Agora, caso os kits de reparação self-service sejam vendidos por valores razoáveis, podem representar uma excelente alternativa, tanto para os consumidores, como para as empresas que valorizam a manutenção de clientela e os valores de sustentabilidade.

Em suma, tudo evidencia que Portugal pode em breve estar no radar destas empresas multinacionais de tecnologia e é positivo considerar estas opções de reparação para não só otimizar a vida nos nossos equipamentos eletrónicos, como também fomentar a consciencialização ecológica e sustentável que deve pautar os nossos comportamentos enquanto consumidores atentos e cautelosos.

“Garantia” das peças inseridas num bem no âmbito da sua reparação

Doutrina

A questão a que se pretende dar resposta neste pequeno texto consiste em saber se as peças inseridas no bem no âmbito de uma reparação beneficiam de uma “garantia legal”[1] autónoma e/ou nova em relação à do próprio bem. Para esta análise é fundamental refletir sobre o problema mais geral do destino da “garantia” em caso de substituição e de reparação.

A reparação a que este texto diz respeito é a reparação feita na sequência da falta de conformidade do bem, ao abrigo do artigo 15.º-1-a) do DL 84/2021. Se se tratar de uma reparação feita fora do período de responsabilidade do vendedor, às peças inseridas no bem é aplicável o DL 84/2021, nos termos do artigo 3.º-1-b), uma vez que estaremos perante um contrato misto com elementos de prestação de serviço e de compra e venda, tendo o consumidor os direitos previstos no diploma.

A matéria foi objeto de discussão em outubro de 2004, na sequência de pedido feito à UMAC (hoje NOVA Consumer Lab) pela Direção-Geral do Consumidor. Joana Galvão Teles, Pedro Félix, Sofia Cruz e eu preparámos, então, um parecer sobre “Venda de Bens de Consumo: Garantia das Peças Inseridas Num Bem no Âmbito da Sua Reparação”, posteriormente publicado na obra Conflitos de Consumo, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 225-244 (disponível aqui).

Apesar de o Comité Económico e Social e o Parlamento Europeu, nos seus pareceres, terem sugerido que se regulasse a matéria (defendendo-se o recomeço do prazo de “garantia” após a reparação), a Diretiva 1999/44/CE deixou a questão em aberto. O DL 67/2003, na versão originária, não resolveu a questão. Face a essa omissão, defendemos no referido parecer que “as peças novas colocadas no bem no âmbito da sua reparação, dentro do período da garantia legal, não eram abrangidas por um novo período de garantia legal”. Na nossa perspetiva, a lei deveria tratar da mesma forma os casos em que o consumidor exerce o direito à reposição da conformidade, quer este seja exercido através de reparação ou de substituição.

Em 2008, o DL 67/2003 foi alterado pelo DL 84/2008, passando a prever-se, no artigo 5.º-6, que, “havendo substituição do bem, o bem sucedâneo goza de um prazo de garantia de dois ou de cinco anos a contar da data da sua entrega, conforme se trate, respetivamente, de bem móvel ou imóvel”.

Ao contrário do que tínhamos defendido no Parecer, distinguiu-se expressamente entre a reparação e a substituição, tornando a substituição muito mais apetecível para o consumidor. Assim, face ao regime anterior, em caso de reparação, o período de “garantia” inicial continuava a correr, sem qualquer alargamento. Em caso de substituição, reiniciava-se esse período de “garantia”.

A lei não definiu, contudo, se às peças inseridas no âmbito de uma reparação era ou não aplicável o artigo 5.º-6. Na nossa perspetiva, embora com dúvidas, a resposta deveria ser negativa. Tratando-se de reparação (e não de substituição), não se estabelecia um novo período de “garantia”.

A Diretiva 2019/771 também não regula a matéria, sendo este um tema em relação ao qual os Estados-Membros mantêm alguma liberdade (v. considerando 44).

Ao transpor a Diretiva 2019/771, Portugal veio finalmente esclarecer a dúvida de forma expressa, utilizando a possibilidade conferida pelo referido considerando 44 na sua plenitude. Com efeito, no artigo 18.º do DL 84/2021 prevê-se o que acontece ao período de “garantia”, quer no caso de reparação, quer no caso de substituição.

Se se tratar de substituição, aplica-se o artigo 18.º-6, reiniciando-se o prazo, tal como estava previsto no regime anterior. Não há, aqui, novidades.

A novidade é a norma relativa à reparação (artigo 18.º-4), a qual abrange, naturalmente, os casos em que uma peça é inserida no bem no âmbito dessa reparação. Nesse caso, o bem reparado beneficia de um prazo de “garantia” adicional de seis meses. Assim, em caso de reparação, não se reinicia a contagem do período de “garantia”, mas este é alargado em seis meses.

Pela primeira vez no ordenamento jurídico português, resulta claro que a peça inserida no âmbito dessa reparação não tem uma “garantia” autónoma, uma vez que a conformidade não foi reposta por via de substituição, a qual implica a devolução do bem desconforme e a entrega de um novo bem conforme.

Por exemplo, imaginemos um contrato de compra e venda de um automóvel. Em caso de desconformidade, o consumidor pode exercer o direito à reposição da conformidade através de reparação. Se, no âmbito dessa reparação, for necessário substituir o motor, o novo motor não beneficia de uma “garantia” autónoma e nova, mas todo o automóvel beneficiará de um alargamento do período de garantia em seis meses. A resposta será a mesma se, por exemplo, a reparação tiver como objeto a pintura para remoção de um risco ou a substituição dos estofos.

Embora continue a discordar de uma solução que passe pela existência de regras distintas em caso de reparação ou substituição quanto ao reinício do período de “garantia”, o DL 84/2021 tem o mérito de resolver em definitivo a questão das peças inseridas no bem no âmbito de uma reparação. A solução em que a substituição é mais favorável para o consumidor do que a reparação é particularmente criticável em termos de sustentabilidade do planeta.

A solução constante do artigo 18.º-4 tem algumas parecenças com a que se encontra prevista no direito francês. Com efeito, o primeiro parágrafo do artigo L. 217-13 do Code de la consommation, na redação dada pela Ordonnance n.° 2021-1247, estabelece que “o bem reparado no quadro da garantia legal de conformidade beneficia de uma extensão dessa garantia em seis meses” (tradução minha). Note-se que, neste caso, ao contrário da lei portuguesa, não se prevê qualquer limite ao número de extensões do período da “garantia” (em Portugal, o limite corresponde a quatro extensões). Contrastando com o que sucede em Portugal, em França, o período de “garantia” não se reinicia em caso de substituição do bem. Tal apenas sucede, nos termos do segundo parágrafo do artigo L. 217-13 do Code de la consommation, na redação de 2021, nos casos em que o consumidor tenha escolhido a reparação, mas o profissional não tenha reparado o bem, tendo sido posteriormente reposta a conformidade por via de substituição. É a única situação em que a substituição do bem implica o reinício do período de “garantia”. Trata-se de um incentivo à reparação, mensagem oposta àquela que é dada pela lei portuguesa.


[1] O conceito de “garantia” não deveria ser utilizado neste contexto, uma vez que pode ser enganoso na perspetiva do consumidor. A sua constante utilização na linguagem comum justifica a referência neste texto. Como defendo na obra Compra e Venda e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – Anotação ao Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, Almedina, 2022, p. 16, «se já era discutível a utilização da palavra “garantia” face ao DL 67/2003, essa expressão é ainda mais enganosa com o novo regime. Na nossa perspetiva, não sendo os dois prazos idênticos, não se pode falar em garantia. Reforçando a ideia, parece-nos estar mais próximo de um eventual prazo de “garantia” o período de dispensa ou liberação do ónus da prova de anterioridade da desconformidade do que o período de responsabilidade do vendedor». Neste texto, por “garantia” deve entender-se o período de responsabilidade do vendedor acrescido do período dentro do qual se prevê a dispensa ou liberação do ónus da prova da anterioridade da desconformidade.