O consumidor como produtor de informação

Doutrina

A proteção do consumidor nasce da constatação de que na sociedade de consumo em massa o cliente individualmente considerado se encontra numa posição de fragilidade em relação ao produtor e ao vendedor. Estes, além de provavelmente mais ricos e poderosos, estariam na posse de informação fundamental para que o comprador tivesse a oportunidade de formar adequadamente a sua vontade de adquirir certos bens ou serviços. Estará aqui a principal justificação para muito da legislação de defesa do consumidor assentar uma parte relevante do seu regime de proteção, na obrigação de ser transmitida informação ao tal ser estereotipado: o consumidor.

Há muito que se encontra cientificamente demonstrado que grande parte das decisões humanas não são ponderadas. Não se trata de falta de informação, trata-se do modo como o cérebro humano usualmente funciona. A economia comportamental, que combina a vertente económica com as ciências cognitivas, estudou detalhadamente o fenómeno.  Por todos, podemos ler “Pensar, depressa e devagar”, de Daniel Kahneman que questionou o modelo racional de tomada de decisões e de formulação de juízos. Licenciado em matemática e psicologia pela Universidade de Telaviv, posteriormente doutorado em psicologia pela Universidade de Berkeley, ganhou em 2002 o (mal) denominado Prémio Nobel da Economia “Por integrar aspetos da pesquisa psicológica sobre o comportamento económico do homem em situações de incerteza e a tomada de decisões nessas circunstâncias”.

Este livro, acessível a leigos, é mais que suficiente para se ficar sem grandes dúvidas sobre o processo mental usualmente subjacente à quantidade descomunal de decisões que o ser humano tem de estar sempre a tomar. A decisão rápida, digamos que instintiva, instantânea, impensada, inconsciente, é a regra e não a exceção.

Mesmo que não existissem estudos a evidenciar esta realidade, uma simples observação atenta dum consumidor médio por um jurista médio, há muito que permite concluir que dar-lhe informação pode ser infinitamente pouco se, efetivamente, se pretende protegê-lo. Bastaria, até, que cada um de nós observasse a sua própria atitude face ao modo como emite os “Aceito” todos os dias, para suspeitar da pouca eficácia da informação acessível.

Paradoxalmente, o aumento da quantidade de informação, quanto mais não seja por manifesta falta de tempo, parece contribuir mais para a desresponsabilização de quem a entrega do que para a formação da vontade de quem a recebe. O Manifesto contra a subversão do contrato, de Margarida Lima Rego, apresenta com veemência esta realidade, em contexto financeiro e meio digital. O assunto foi também abordado neste blog por Jorge Morais Carvalho, a propósito da adesão a contratos celebrados com recurso a cláusulas contratuais gerais. No limite, sabendo-se que os clausulados não são, nem podem razoavelmente ser, lidos por pessoas diligentes, a incerteza associada ao seu efetivo conteúdo é grande.

Embora as evidências científicas e de senso comum mostrem à saciedade, e também à sociedade, que esta coagida dádiva, menos em linha com a convicção, que em automática inserção de novos formulários aptos a serem em bloco e acriticamente “aceites”, não funciona, o “legislador” insiste em fazer assim, principalmente por não saber fazer doutra maneira. No limite, não prescindindo da soterração e saturação do consumidor e da desresponsabilização do produtor/prestador de serviços que, através da entrega de informação sobre os defeitos e insuficiências do que vende, pode responder menos pela falta de qualidades, diversa legislação distingue o mais importante do menos, estabelece hierarquias, impõe formulários de informação uniforme, sinalética visual mais ou menos colorida, tudo com vista a proporcionar a esse idílico ser racional, o consumidor, os instrumentos intelectuais de que necessita para fazer, contra toda a probabilidade e informação científica, uma escolha ponderada, tanto na necessidade como na qualidade, pensando se realmente precisa do que vai adquirir e comparando caraterísticas, preços, condições dos contratos, garantias, tudo, tudo, de vários produtos ou serviços semelhantes, para escolher mesmo bem. Exercício, atualmente, repetido muitas vezes ao longo do dia, intercalado por tomadas de conhecimento e aceitação de políticas de privacidade, mais especificamente “cookies”, e de proteção de dados, os mais recentes fornecedores de listas de declarações paralelas, mas integrantes da relação comercial.

O “direito à informação” é, assim, um dos grandes pilares da defesa do consumidor e, no essencial, usa-se quando meios realmente eficazes não estão disponíveis para o proteger.

Até há relativamente pouco tempo, ao falar-se de informação e de consumidor, o verbo mais usado era o “dar”. O profissional obrigado a dar e o consumidor obrigado a receber, sob pena de poder vir a ser considerado desleixado, pouco diligente, abaixo de “médio”, o que lhe retiraria alguma proteção.

Há, no entanto, que assinalar que os tempos mudaram e atualmente o consumidor, além de recetor, passou a produtor intensivo de informação. Tanto online, como no mundo físico, embora em ambiente digital a recolha, registo e tratamento de dados assuma maiores proporções.

As pessoas, pelo simples facto de se movimentarem em sociedades industrializadas e conectadas, usando sistematicamente dispositivos digitais, principalmente o telemóvel, criam informação, sobre si próprias e sobre o mundo, que é usada pelas empresas e pelo Estado.

Essa informação tem valor e vem suscitando já vasta discussão sobre se deverá ou não ser paga, bem como sobre a ideia de gratuitidade de produtos ou serviços que acabam por ter como “contrapartida”, dados sobre quem os adquire. Martim Farinha analisou o conceito de pagamento neste blog, no contexto da Diretiva das Praticas Comerciais Desleais.

Parece, pois, que no que diz respeito à informação, o consumidor tem o direito e o dever de a receber, ainda que daí não resulte benefício efetivo para nenhuma das partes. Uma espécie de óleo de fígado de bacalhau que tem de ser dado por uns e engolido por outros, perpetuando-se a tradição. É o consumidor como recetor de informação.

O consumidor como produtor de informação é algo novo, diferente, desafiante. Apetece perguntar várias coisas a esse respeito. Neste contexto, pergunta-se simplesmente: será que o consumidor ao receber pela informação que produz, em dinheiro ou géneros (produtos e/ou serviços), se torna “profissional”?

A produção de informação é uma atividade, de algum modo, comercial a que o consumidor moderno se vai dedicando bastante.

A garrafa de vinho mais cara do que o jantar

Consumo em Ação

Por Leandro Pinto, Matilde Pinho e Rita Saramago

Hipótese: No dia 15 de junho, Joaquim telefonou para o restaurante Belos Cozinhados e reservou uma mesa para nove pessoas para as 21h. Joaquim combinou a ementa com  o empregado do restaurante. Com o grupo totalmente instalado e com os pratos já servidos, o empregado veio perguntar o que pretendiam beber. Joaquim pediu vinho e água para todos. Uns minutos depois, o empregado apareceu com uma garrafa de vinho na mão, que apresentou como sugestão do restaurante. Joaquim aceitou sem colocar qualquer questão sobre o preço, tendo sido pedida uma segunda garrafa de vinho a meio da refeição. Terminada a refeição, Joaquim pediu a conta e, quando esta chegou, ficou surpreendido com o valor apresentado (€ 1 500), dos quais € 1 300 diziam respeito às duas garrafas de vinho, referidas na conta como sendo “Barca Velha” (um conhecido vinho, bastante caro). Joaquim tem de pagar?

Resolução: No caso em análise, o processo negocial pode ser objeto de duas leituras diferentes. A primeira é considerar-se que foi celebrado apenas um contrato atípico que junta elementos de vários tipos. Neste caso, teríamos dois elementos principais – empreitada (no que à confeção do jantar diz respeito) e prestação de serviços (serviço do restaurante) – e dois elementos secundários – compra e venda (relativamente ao vinho e à água) e aluguer (talheres, cadeiras, mesas do restaurante). Diferentemente, pode autonomizar-se o contrato de compra e venda das garrafas de vinho, o que nos parece ser a solução mais correta para o tratamento do caso.

Quanto ao jantar, o contrato celebrou-se por telefone. Joaquim tem a obrigação de pagar o preço e o restaurante deve confecionar e servir o jantar.

No que respeita ao vinho, temos um contrato de compra e venda. Cabe analisar se o ato de apresentar a garrafa ao cliente consubstancia uma proposta contratual e se foi, de facto, celebrado um contrato. É inequívoco que o comportamento do empregado se apresenta como uma proposta contratual e que Joaquim, ao aceitar que este servisse o vinho, a aceitou. A questão incide no preço, que não é comunicado no momento da aceitação, o que nos levará posteriormente a discutir a validade do contrato, por violação do direito à informação do consumidor, plasmado no art. 8.º-1-c) da Lei de Defesa do Consumidor.

Antes de passarmos à questão da validade do contrato, importa percebermos qual seria a determinação mais correta do valor do vinho. Por força do Decreto-Lei n.º 138/90 de 26 de abril, é obrigatória a indicação dos preços dos bens e serviços colocados à disposição do consumidor no mercado, o que à partida pressupõe que o restaurante tinha afixada a tabela de preços praticados no estabelecimento comercial e, como é sabido por regras de experiência comum, teria também um menu à disposição dos seus clientes. Podemos, assim, concluir que o preço do vinho estava determinado, mas que não foi comunicado ao consumidor no momento de apresentação da proposta. Houve uma omissão por parte do empregado.

Terá havido uma prática comercial desleal e, consequentemente, o consumidor pode resolver o contrato? Se assim for, não tem de pagar qualquer valor pelas garrafas? Ou, pelo contrário, o empregado (e representante do restaurante) foi diligente e era o consumidor quem tinha o dever de solicitar o menu, verificando o preço do vinho?

Para determinar se existiu uma prática comercial desleal, recorremos ao Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março. Este regime pode ser analisado numa estrutura de pirâmide, em três níveis de análise diferentes: listagem normativa (arts. 8.º e 12.º), que indica práticas enganosas e agressivas em qualquer circunstância; práticas comerciais desleais em especial [art. 6.º-b) e c)]; cláusula geral (arts. 4.º e 5.º).

A prática em apreço não se enquadra nas listas dos arts. 8.º e 12.º, pelo que cabe averiguar se estamos perante uma prática comercial desleal em especial. Ao abrigo dos arts. 9.º-1-a) e 10.º-c), aplicáveis por remissão do art. 6.º-b), é discutível se a omissão do preço se traduz numa omissão de informação com requisitos substanciais para a decisão negocial. Atendendo às circunstâncias do caso concreto, nomeadamente o preço exorbitante do vinho, consideramos que sim, pois trata-se de uma informação de relevo, que interferiria, com elevada probabilidade, na decisão negocial do consumidor. Deste modo, esta informação deveria ter sido transmitida pelo profissional, através do seu representante (empregado), e não foi, impossibilitando Joaquim de tomar uma decisão negocial esclarecida.

Embora Joaquim não tenha especificado as bebidas no ato da reserva, tendo em conta o contexto e o preço médio da refeição, entendemos que foi tacitamente acordado um limite para o custo do vinho. O entendimento esperado de um cliente colocado na posição de Joaquim seria o de que o vinho não custaria mais de € 30, o preço médio de uma garrafa de vinho num restaurante.

Por este motivo, consideramos que se verificou uma prática comercial desleal especial por omissão.

Se dúvidas ainda existissem, chegaríamos à mesma conclusão através do nível seguinte de análise, a cláusula geral, plasmada no art. 5.º-1. Esta cláusula inclui quatro requisitos cumulativos[1]: (i) relação jurídica de consumo; (ii) existência de uma  prática comercial; (iii) contrariedade à diligência profissional; (iv) suscetibilidade da distorção do comportamento económico do consumidor.

Tendo já sido feita a verificação relativa aos pontos (i) e (ii), passamos a dedicar a nossa atenção aos pontos (iii) e (iv).

Tendo em conta o preço avultado do vinho comparado com o preço da refeição, seria expectável que o profissional, ao sugeri-lo, informasse o cliente, evitando que este fosse surpreendido em momento posterior. O comportamento não foi honesto, contrariando a diligência profissional que incumbe ao profissional.

A falta de honestidade teve como efeito o cliente ter um comportamento diferente daquele que teria caso tivesse todas as informações. Atendendo ao preço avultado do vinho, é (quase) certo que Joaquim adotaria um comportamento diferente se tivesse sido informado, não aceitando a proposta.

Paralelamente, a determinação do valor do vinho não resultou de um acordo entre as partes, tendo sido definido um valor de forma unilateral por parte do restaurante (em respeito pelas regras de fixação de preços que não cabe aqui aprofundar), valor este que não foi comunicado a Joaquim.

Violado o direito à informação do consumidor, Joaquim teria o direito de resolução do contrato, por força do art. 8.º-4 da Lei de Defesa do Consumidor. Tal implicaria que o consumidor tivesse de devolver o bem ao vendedor e este deixaria de poder exigir a obrigação de pagamento do preço. Neste caso, é evidente que esta não é uma solução adequada, uma vez que o vinho é um bem consumível e que, neste caso, já foi consumido durante a refeição, ficando Joaquim impossibilitado de devolver o conteúdo da garrafa.

Tratando-se de uma prática comercial desleal, aplica-se o art. 14.º-1 do Decreto-Lei n.º 57/2008 e o consumidor pode exigir a redução adequada do preço do bem, solução adequada neste caso. Em vez de serem cobrados € 1300 euros pelas duas garrafas, seria fixado um preço mais reduzido por cada garrafa, de acordo com o preço de mercado de um vinho, normalmente recomendado num restaurante como o Belos Cozinhados e expectável pelo consumidor médio colocado naquela posição.

Respondendo à questão colocada, Joaquim tem de pagar, mas não o valor exigido pelo restaurante. O valor deverá ser reduzido, equivalendo ao valor de mercado de duas garrafas de um vinho médio, normalmente recomendado em restaurantes como o Belos Cozinhados, cujo preço seja expectável para o consumidor médio colocado na posição do Joaquim.


[1] Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Almedina, 2020, p. 142.