A ressarcibilidade de danos não patrimoniais no Direito Civil e no Direito do Consumo

Doutrina

Durante muito tempo, a doutrina viu-se animada por um intenso debate sobre a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais (também designados “danos morais”), atenta a sua insuscetibilidade de avaliação em dinheiro, a inelutável subjetividade inerente à sua valoração e o risco de arbitrariedade na fixação do valor a pagar pelo lesante. Ainda assim, sob pena de afronta ao valor e virtude cardeal da justiça e atento o princípio-regra de tutela geral da personalidade previsto no art. 70.º do Código Civil, não podiam os interesses imateriais permanecer desprovidos de qualquer tutela resssarcitória.

Pelo mesmo fundamento relevante, também constitui, atualmente, entendimento pacífico, após uma acesa querela doutrinal e jurisprudencial, que deve proceder-se à aplicação analógica do princípio da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, expresso na secção do Código Civil dedicada à responsabilidade extracontratual (art. 496.º), à responsabilidade contratual. Já no âmbito da disciplina especialmente aplicável às relações jurídicas de consumo, o legislador assumiu inequivocamente posição sobre a referida controvérsia, determinando no art. 12.º-1 da Lei n.º 24/96, que “[o] consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos”.

Assente que está a reparabilidade dos danos não patrimoniais, importa sublinhar que, nos termos do art. 496.º-1 do Código Civil, o arbitramento de uma compensação (e não de uma indemnização, dado tratar-se de danos insuscetíveis de eliminação por meio de reposição ou reconstituição natural ou de conversão direta numa quantia pecuniária equivalente) só se coloca em relação aos prejuízos que, pela sua gravidade, justifiquem a tutela do direito (art. 496.º-1 do Código Civil).

Ora, como ensina Antunes Varela, aquela “gravidade” deve “medir-se por um padrão objetivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)”, pelo que “o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado”[1]. Por conseguinte, têm-se por “irrelevantes os pequenos incómodos ou contrariedades, assim como os sofrimentos ou desgostos que resultem de uma sensibilidade anómala”[2].

De forma algo diversa, no Direito do Consumo, atenta a assimetria de formação e de informação que notabiliza o relacionamento entre consumidores e profissionais, os eventuais transtornos, incómodos, angústia e desgosto do consumidor, ainda que com uma expressão económica diminuta, desde que devidamente provados e não derivados de uma sensibilidade particularmente aguçada, são compensáveis[3].

Neste domínio, por revestir contornos de transtorno e incomodidade bastantes para ser juridicamente protegida pelo mecanismo reparatório da responsabilidade civil quando dela brotem danos autónomos, destaca-se a privação da acessibilidade dos serviços de interesse económico geral de energia elétrica, água e gás, cuja prestação deve obedecer a elevados padrões de qualidade (art. 7.º da Lei n.º 23/96) e se revela essencial para o consumidor (e seu agregado familiar) realizar a higiene diária, confecionar as refeições quotidianas e desenvolver outras tarefas domésticas no local de consumo[4].

Ressalva-se, contudo, que, conforme enfatizado, entre outras, na Sentença do CICAP de 20.08.2018, proferida no Processo n.º 121/2018, Relator: Paulo Duarte, “os transtornos, incomodidades e eventuais despesas ligadas ao próprio litígio e à atividade extraprocessual em que se concretiza a sua constituição, desenvolvimento e resolução não estão em relação de causalidade adequada com o ilícito contratual que está na sua origem. Há que distinguir dois planos: o plano das consequências do próprio ilícito; e o plano das incidências do litígio que se gera, por iniciativa do lesado, para obter a reparação dessas consequências danosas. O nexo de causalidade juridicamente relevante (enquanto pressuposto da obrigação de indemnizar, nos termos do artigo 563.º do Código Civil) opera no primeiro plano, mas não no segundo”.

Isto posto, postula o n.º 4 do artigo 496.º do Código Civil que “[o] montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º (…)”, a saber, “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso”.

A este propósito, cumpre notar que o juízo de equidade, ao promover uma justiça individualizadora, atenta às particularidades do caso concreto, encerra necessariamente uma margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso àquele critério de fixação do valor da compensação. Tal não significa, contudo, a concessão de um poder arbitrário e insindicável ao julgador, devendo o mesmo obediência, em última instância, ao princípio da igualdade material (tratar de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual).

Sem prejuízo, ultrapassada que está a adoção de um critério miserabilista na fixação do montante equitativo da compensação por danos não patrimoniais, não deve, contudo, o julgador ir além do arbitramento de uma quantia que, “dentro dos limites que foi possível ter por provados”, se revele suficientemente elevada para proporcionar ao lesado a necessária reparação, por apelo a “parâmetros de razoabilidade, adequação e justa proporção” e “tendo em conta os dados da experiência comum e um padrão de normal diligência”[5]. Como tal, não é de incluir na compensação por danos morais os denominados “danos punitivos” (punitive damages), teleologicamente funcionalizados a castigar o profissional pela sua conduta e a servir de exemplo para práticas similares de outros agentes económicos.


[1] João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, Vol. I, 8.ª edição, Almedina, 1994, p. 617.

[2] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª edição, Almedina, 2001, p. 550.

[3] Neste sentido, a Sentença do Processo n.º 187/2018 do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Distrito de Coimbra (CACRC).

[4] Neste sentido, entre outros, a Sentença do CICAP de 06.11.2017, proferida no Processo n.º 442/2017, e a Sentença do CIAB de 26.02.2020, proferida no Processo n.º 1486/2019, de que fui relator.

[5] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.10.2014.

O Barco Comprado Através do Facebook

Consumo em Ação

Por Beatriz Alves, Diogo Sereno e Pedro Catanho

Hipótese: No dia 13 de dezembro de 2017, Diamantina estava a navegar na internet quando surgiu no seu feed de notícias do Facebook a seguinte mensagem, colocada pela empresa Barcos & Barcos, Lda.: “Grande oportunidade. Compre um barco da marca Velejar 4300. Como novo. Preço imbatível: € 120 000. Financiamento pela empresa Crédito para Barcos, S.A.”. A mensagem continha ainda uma foto de um barco da marca Velejar 4300. Entusiasmada, Diamantina enviou de imediato uma mensagem de correio eletrónico à Barcos & Barcos, dizendo que estava muito interessada, mas que pretendia ver o barco antes de decidir. No dia seguinte, a Barcos & Barcos respondeu, também por correio eletrónico, agradecendo o contacto e anexando dois documentos, designados Contrato de compra e venda de barco e Proposta de crédito, ambos contendo um conjunto de cláusulas. Diamantina foi ver o barco no dia 17 de dezembro de 2012 e, apesar de ter ficado um pouco desiludida por perceber que este tinha apenas uma janela, ao contrário do barco da foto que constava da mensagem do Facebook, assinou os documentos. Dois dias depois, a empresa Crédito para Barcos aprovou o crédito, tendo a Barcos & Barcos entregue a Diamantina as chaves do barco. Indique o modelo de celebração deste contrato, qualificando cada uma das mensagens referidas no enunciado.

Resolução: No caso em concreto verificamos a celebração de um contrato de compra e venda e um possível contrato de crédito. Por tal, será necessário focar as nossas atenções nos regimes legais aplicáveis e nos trâmites que deles derivam.

Para a resolução do caso sub judice é necessário abordar cinco aspetos cruciais. Primeiramente temos de averiguar se estamos perante uma proposta contratual quando analisamos o anúncio da empresa Barcos & Barcos. A declaração negocial constitui uma proposta contratual quando esta for completa, firme, formalmente adequada e precisa, sendo uma “declaração em que a iniciativa de vinculação contratual pertence ao seu autor”[1].

Uma proposta é completa e firme quando todos os elementos essenciais e necessários para a celebração do contrato estão presentes. No caso em análise, este requisito não levanta dúvidas, visto que toda a informação fulcral para a aceitação do contrato está presente. Relativamente à forma adequada, verifica-se que estamos perante um contrato de compra e venda de um barco, bem móvel que não está sujeito a forma legalmente exigida, cumprindo assim este requisito.

Assim, concluímos que estamos perante uma proposta contratual sendo esta, em concreto, feita ao público. Neste tipo de proposta há uma indeterminação e fungibilidade dos destinatários.

Deste modo, verificados todos os requisitos de uma proposta, concluímos que bastaria um sim do destinatário para que se considerasse aceite e o contrato concluído. A proposta contratual, a partir do momento em que é formulada, “independentemente de ser ou não aceite, investe cada uma das pessoas que satisfaça os requisitos nela previstos no direito potestativo de formação do contrato e coloca o proponente na situação de sujeição correspondente”[2] , ficando assim vinculado a cumpri-la.

Neste seguimento, para a formação de um contrato é necessária a aceitação por parte de Diamantina, ou seja, uma declaração dirigida ao proponente, que reflete uma concordância com todos os aspetos contratualmente relevantes da proposta apresentada. Tem, no entanto, que cumprir dois requisitos: a conformidade com a proposta (ideia subjacente ao art. 232.º do Código Civil) e a adequação formal.

Importa agora analisar o financiamento pela empresa Crédito para Barcos, S.A.. Também aqui é necessário verificar os mesmos requisitos para concluir se estamos perante uma proposta ou um mero convite a contratar. Neste caso, um simples sim de Diamantina não chegaria para a concretização do contrato de crédito.

No que diz respeito a contratos de crédito, temos sempre de considerar que, sem ter sido feita a avaliação da solvabilidade (art. 10.º do DL 133/2009), não é possível considerar a declaração como uma proposta. Trata-se de um convite a contratar, pois, após avaliação da solvabilidade, o credor tem a possibilidade de recusar-se a conceder o crédito. Efetivamente, o próprio regime do crédito ao consumo impõe um dever de avaliação da solvabilidade, desde 2009, no direito português. O que distingue a proposta contratual do convite a contratar é que este último não preenche todos os requisitos supramencionados, uma vez que a aceitação do convite a contratar não leva à celebração do contrato.

Coloca-se agora a questão de saber se há ou não uma relação entre o contrato de crédito e o contrato de compra e venda.

O contrato de compra e venda pode estar intimamente ligado ao contrato de crédito, se Diamantina necessitar do crédito para conseguir comprar o barco. Neste caso, a celebração do contrato de compra e venda poderá estar dependente da eficácia do contrato de crédito. 

Podemos também abrir a hipótese de o contrato de crédito não colocar em causa o contrato de compra e venda, visto que a consumidora não é obrigada a celebrar ambos os contratos, podendo optar apenas pela celebração do contrato de compra e venda.

Para o seguimento de análise do caso partiremos desta última hipótese, em que a junção de uma proposta de contrato e um eventual convite a contratar não põe em causa a compra e venda do barco, uma vez que esta, por si só, é considerada como uma proposta.

A mensagem enviada por Diamantina por correio eletrónico pode considerar-se como uma aceitação da proposta ao público emitida pela empresa Barcos & Barcos? Como supramencionado, para ser considerada uma aceitação é necessário que, in casu, da mensagem enviada por Diamantina, seja possível retirar uma concordância com todos os aspetos referidos no anúncio, mesmo que tal não seja expressa, tendo por base os arts. 234.º e 217.º do Código Civil. Podemos então concluir, atendendo ao conteúdo da mensagem, que não estamos perante uma declaração de aceitação, na medida em que esta não revela uma concordância em relação ao conteúdo da proposta.

Será, por sua vez, uma proposta contratual?

Para ser uma proposta contratual, teria que reunir as já anteriormente referidas características: ser completa, contendo todo o conteúdo que a lei exija e que as partes entendam ser necessário para a celebração do negócio; precisa, não podendo resultar dúvidas acerca da forma e do conteúdo do contrato a celebrar; firme, não só revelando de forma inequívoca que há intenção de contratar como também, da sua aceitação pela outra parte, resultar a celebração automática do contrato; formalmente adequada, que por regra é livre exceto nos casos em que a lei preveja forma especial.

Não podemos considerar que se trata de uma proposta contratual, na medida em que Diamantina não decidiu ainda se pretende adquirir o barco ou não, já que esta só decidirá depois de ver o barco. Por isso, não é firme. Nesse sentido, é um convite a contratar, já que não cumpriu todos os requisitos para ser considerada uma proposta contratual. O convite a contratar não vincula o proponente à realização de qualquer negócio jurídico.

Em resposta a Diamantina, a Barcos & Barcos, Lda., envia uma mensagem de correio eletrónico, anexando dois documentos denominados “Contrato de compra e venda de barco” e “Proposta de crédito”, contendo cada um deles um conjunto de cláusulas. Importa então perceber se estamos perante uma proposta contratual ou um convite a contratar.

Relativamente à compra do barco, estamos perante uma situação semelhante à da primeira proposta efetuada pela Barcos & Barcos, com a diferença de que esta já não é uma proposta dirigida ao público, mas sim dirigida diretamente a Diamantina. Podemos concluir que estamos perante uma declaração completa, precisa, firme e formalmente adequada. Consequentemente, Diamantina vê surgir na sua esfera jurídica um direito potestativo de aceitação da proposta, aceitação essa que produziria os efeitos contratualmente previstos, estando então a empresa Barcos & Barcos numa situação de sujeição. Posto isto, assim que a declaração de aceitação fosse do conhecimento da Barcos & Barcos, a declaração negocial tornar-se-ia eficaz.

Já quanto ao contrato de crédito, levantam-se as mesmas questões acima referidas. Estamos perante um mero convite a contratar, uma vez que ainda será necessária a avaliação da solvabilidade de Diamantina.

Por último, e para rematar o caso, temos de considerar dois momentos. Em primeiro lugar, o momento em que Diamantina assina os documentos contratuais e, em segundo lugar, o momento em que, posteriormente, a empresa Crédito para Barcos, S.A., aprova o crédito. Quando o crédito é aprovado, ficam ainda a faltar certos elementos, nomeadamente a assinatura e a entrega de cópia do documento contratual. A partir desse momento, já não estaremos perante um convite a contratar, mas sim perante uma proposta contratual. A aceitação dá-se com a assinatura dos documentos contratuais, ficando Diamantina vinculada nos termos da proposta da Barcos & Barcos. Quanto à entrega dos documentos contratuais ao consumidor, importa relembrar que, se não houver assinatura pelo credor no contrato de crédito e se não for entregue um exemplar do contrato ao consumidor, a consequência é a nulidade do negócio jurídico (art. 13.º-1 do DL 133/2009). Quando a Barcos & Barcos entrega as chaves do barco, dá-se a entrega da coisa, sendo já este um ato de cumprimento do contrato, posterior à sua celebração.


[1] Carlos Ferreira de Almeida, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, Almedina, 1992, p. 784.

[2] Carlos Ferreira de Almeida, Texto e enunciado na teoria do negócio jurídico, Almedina, 1992, p. 788

Aplicação no tempo da “arbitragem necessária” prevista na Lei de Defesa do Consumidor

Doutrina

Com a publicação da Lei n.º 63/2019, de 16 de agosto, em vigor desde 15.09.2019 (art. 3.º), foi alterada a redação das normas do art. 14.º da Lei de Defesa do Consumidor, nomeadamente os seus n.ºs 2 e 3. Os conflitos de consumo cujo valor não exceda a alçada dos tribunais de 1.ª instância (€ 5 000, cf. art. 44.º-1 da Lei n.º 62/2013) estão sujeitos a arbitragem necessária (rectius, arbitragem potestativa) quando, por opção expressa dos consumidores, sejam submetidos à apreciação de tribunal arbitral adstrito aos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados. Trata-se de um alargamento do âmbito da arbitragem potestativa em matéria de conflitos de consumo, até então circunscrito aos serviços públicos essenciais.

Ora, desde a entrada em vigor da Lei n.º 63/2019 e com base na norma do art. 2.º-1 da Lei n.º 144/2015 (Lei RALC) que se vem discutindo a aplicação no tempo da solução legislativa acima destacada, com particular enfoque nos seguintes critérios relevantes: a) a data de celebração do contrato de consumo (anterior ou posterior a 15.09.2019); b) a data de emergência do conflito de consumo (anterior ou posterior a 15.09.2019).

Em extrema síntese, aplicando os princípios gerais sobre a aplicação da lei no tempo plasmados no art. 12.º do Código Civil, revestiria meridiana clareza que, por apelo ao critério sob alínea a), a Lei n.º 63/2019 aplicar-se-ia aos conflitos de consumo radicados num contrato celebrado após a entrada em vigor do referido diploma. Sem prejuízo, em face do disposto pelo n.º 2 do art. 12.º do Código Civil e considerando a possibilidade de existência de situações jurídicas que tenham sido constituídas na vigência da lei anterior e que subsistam ao abrigo da nova lei (seja no caso de contratos de execução duradoura, seja mesmo no caso de contratos de execução instantânea, como seja a compra e venda de bens de consumo, em que assiste ao consumidor o exercício de um conjunto de “remédios” em caso de desconformidade do bem manifestada no prazo de garantia legal), sob pena de limitação do direito de acesso à justiça por parte dos consumidores, admitir-se-ia, em tais casos, a aplicação imediata da nova lei, desde que, conforme critério sob alínea b), o litígio de consumo ocorresse depois da entrada em vigor da Lei n.º 63/2019.

Ora, além de o entendimento acima exposto colocar ao intérprete-aplicador o problema de definir exatamente quando é que se tem por configurado um conflito de consumo (depende ou não de formalização de reclamação por parte do consumidor; carece ou não de resposta liminarmente desfavorável aos intentos do consumidor da parte do profissional), creio que o mesmo ignora o facto de as normas dos n.ºs 2 e 3 do art. 14.º da Lei n.º 24/96 revestirem cariz processual, porquanto o momento a considerar para a sua aplicação (ou não) a um caso concreto será, na verdade, o da data da entrada do requerimento de arbitragem no tribunal arbitral adstrito a centro de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizado.

E não se diga que esta outra compreensão da aplicação no tempo da Lei n.º 63/2019 importa uma afetação de expectativas do profissional, violadora do princípio da proteção da confiança (ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2.º da CRP), visto que aquela lei apenas veio facultar ao consumidor, parte mais fraca no âmbito de uma relação jurídica de consumo, “uma forma adicional mais acessível de fazer valer os seus direitos”[1].

Além de se conformar com a regra, relativa à competência dos tribunais, da aplicação imediata da nova lei processual às ações futuras (enquanto às ações pendentes se aplica a lei vigente no momento em que foram propostas), o entendimento que preconizo oferece um momento objetivo e preciso para a inclusão (ou não) do litígio no âmbito da “arbitragem necessária” prevista na Lei n.º 63/2019.

Assim, para se poder concluir que o consumidor exerceu o direito potestativo de submeter o litígio de que é parte à apreciação de tribunal arbitral adstrito a centro de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizado, com fundamento no disposto pelo art. 14.º-2 e 3 da Lei de Defesa do Consumidor e, por essa via, afirmar a competência do tribunal para conhecer, apreciar e decidir a ação arbitral, importará verificar se está em causa um “conflito de consumo” (tal como definido pela alínea h) do art. 3.º da Lei RALC[2]), se o processo de arbitragem foi instaurado em momento posterior à data da entrada em vigor da Lei n.º 63/2019 e se o valor da causa não excede os € 5 000.


[1] Como se defendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.03.2021, já comentado aqui. Como se pode ler na decisão arbitral do CASA, analisada pelo Tribunal da Relação de Lisboa nesse processo, “aquilo que a empresa poderia alegar é que a arbitragem é uma forma mais acessível ao consumidor. Porém, parece-nos que o argumento de que a parte tinha a expectativa de que a outra tivesse maior dificuldade em exigir o cumprimento não é atendível”.

[2] Embora, aqui, seguindo de perto Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2019, pp. 28-29, consideremos que “não existe qualquer fundamento objetivo que permita a aplicação de regras e princípios diferentes aos mesmos procedimentos de RALC [Resolução Alternativa de Litígios de Consumo] apenas em função do tipo contratual em causa [contrato de compra e venda ou de prestação de serviços]. Tal interpretação poderia, aliás, conduzir a um efeito contrário ao pretendido pela Diretiva RALC, reduzindo a confiança dos consumidores no mercado interno em consequência da disparidade de regras aplicáveis aos mesmos procedimentos”, justificando-se, como tal, uma “interpretação extensiva” da norma do n.º 1 do art. 2.º da Lei RALC, “que alargue o seu âmbito de aplicação aos restantes tipos contratuais”, à semelhança do que decorre da norma do n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96.

Fake news: queremos transferir poderes do Estado para as Big Tech?

Doutrina

A denominada “desinformação”, mais conhecida pela expressão em inglês “fake news” tem vindo a aumentar, quer em quantidade, quer em consciencialização da sua existência por parte do público. O tema já foi abordado neste blog a propósito da discussão sobre “censura” que se gerou em torno do artigo 6.º da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (Carta). Voltamos ao assunto de uma perspetiva diferente, relativa ao seu enquadramento no âmbito da União Europeia.

A disseminação da internet, em dispositivos acessíveis a quase todos, que estão aos milhões ligados em redes que permitem, instantaneamente, divulgar textos e imagens é o caldo de cultura adequado a que notícias se espalhem. Dos meios de comunicação social, passou-se aos meios de comunicação pessoal, mais poderosos por diversas razões, de que se destacam a credibilidade que a chancela de quem envia aporta e a rapidez da propagação. Receber uma informação de um amigo, conhecido ou ídolo (a que atualmente se vem chamando influencer, coisa que sempre foi, o que muda é a escala), além de um interesse acrescido, incrementa a crença na veracidade e, consequentemente, a vontade de transmitir a novidade a terceiros. A cusquice faz parte da natureza humana. Acresce que vários estudos têm vindo a demonstrar que as pessoas tendem a acreditar e preferem informação alinhada ou que reforça as suas convicções.

A desinformação preocupou, e bem, a União Europeia que, como é seu apanágio, se vem multiplicando em intenções, comunicações e planos para dominar e procurar eliminar o fenómeno. Sabendo que é nas grandes empresas tecnológicas e suas plataformas que está, realmente, o poder, tanto de propiciar a transmissão e divulgação de informação, como o de a impedir, é aí que está a focar a sua atenção e ação. 

É assim que, em 26 de abril de 2018, surge a Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões “Combater a desinformação em linha: uma estratégia europeia”, que informa que “[a] exposição dos cidadãos à desinformação em larga escala, incluindo informação comprovadamente falsa ou enganadora, é um importante desafio para a Europa”.

No âmbito dessa Comunicação, “[a] Comissão insta as plataformas a intensificarem, de forma decisiva, os seus esforços no sentido de combater a desinformação em linha” e afirma que “[u]ma rede densa de verificadores de factos, fortes e independentes, é um requisito essencial para um ecossistema digital saudável. Os verificadores de factos têm de operar com base em padrões elevados, como o código de princípios da Rede Internacional de Verificação de Factos”.

Em 5 de dezembro de 2018, em nova Comunicação, a Comissão apresenta o “Plano de Ação contra a Desinformação”.

Em 3 de dezembro de 2020, surge a Comunicação da Comissão sobre o “plano de ação para a democracia europeia”, com um Ponto 4 dedicado ao “Combate à Desinformação”, em que se preconiza “Mais obrigações e maior responsabilização das plataformas em linha”, o que se avisa irá ser concretizado no “ato legislativo sobre os serviços digitais (DSA)”, do qual já se tratou neste blog e em texto publicado por investigadores do NOVA Consumer Lab. Efetivamente, nessa Proposta legislativa apresentada pela Comissão, é preconizado que sejam principalmente as grandes plataformas a tratar da desinformação.

Quer isto dizer que quando a Carta afirma, no seu artigo 6.º, n.º 1 que “O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação” está “simplesmente” a declarar este enquadramento. E quando, o n.º 2 do mesmo artigo, informa: “Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora”, está a repetir a definição europeia que, infelizmente, é péssima e abre uma caixa de Pandora avassaladora. Face a uma definição destas, que inclui um “comprovadamente” a priori, urge perguntar onde e como se fará essa comprovação.

A Carta ainda vai colocando o assunto minimamente no âmbito do Estado, que apoiará a criação das tais “estruturas de verificação de factos”, contra as quais muitos em Portugal se insurgiram, dizendo que se trataria de censura.

A União Europeia, vai infinitamente mais longe, atribuindo esse poder às empresas que detêm as grandes plataformas.

Está, pois, paulatinamente a ser construído na União Europeia um sistema em que as grandes empresas tecnológicas, já detentoras de facto de desmesurado poder, passam a ser também detentoras de direito de poderes até agora reservados à esfera pública. Vão, ao que parece, ser juízes e algozes, decidir e executar. Estamos acostumados a que as decisões sejam tomadas pelo poder judicial e executadas pelo poder, lá está, executivo, em aplicação do que o poder legislativo aprovou. Poderemos passar a ter “plataformas” que serão “verificadoras de factos”, decidindo sobre a sua veracidade e divulgação e executando a decisão que tomarem sobre o assunto.

Se pensarmos que muitas dessas plataformas colocam ao alcance do consumidor o que pretendem que seja adquirido, e só isso, depois de terem (ab)usado da informação que sobre aquele detêm e que lhes permite traçar perfis extremamente precisos que o podem encaminhar para onde entenderem que vá, podemos ficar com dúvidas sobre se realmente “[u]ma rede densa de verificadores de factos, fortes e independentes, é um requisito essencial para um ecossistema digital saudável”.

Podemos, até, ficar com dúvidas sobre se, mais do que “censura”, não poderá estar em questão uma transferência efetiva e, também jurídica, de poderes soberanos para as denominadas “Big Tech”.

O Estado de Direito como o conhecemos, saído das revoluções liberais, assente na tripartição de poderes, regulando, decidindo e executando, parece estar em transformação profunda e acelerada, nesta nova era digital global.

A faturação da potência contratada viola o artigo 8.º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais?

Doutrina

Em post anterior, dedicado aos 25 anos da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (LSPE), notámos que, tendo como pano de fundo o princípio da boa-fé, aquele diploma impõe às entidades prestadoras dos serviços de interesse económico geral nele elencados uma proibição de cobrança de consumos mínimos e de quaisquer outras importâncias e/ou taxas que não tenham uma correspondência direta com um encargo em que aquelas efetivamente incorram, com exceção da contribuição audiovisual[1] (art. 8.º).

A lei faz depender a repercussão no cliente final de valores diversos dos especificamente respeitantes aos consumos realizados pelo mesmo de um critério de correspetividade estrita com encargos que a entidade realmente suporta com a efetiva prestação do serviço.

Posto isto, será que a cobrança dos encargos com a potência contratada na faturação do serviço de fornecimento de energia elétrica se conforma com o imposto pelo art. 8.º da LSPE?

Para respondemos à questão, importa retomar algumas considerações já tecidas aqui e aqui a propósito do movimento liberalizador tendente à criação do mercado europeu de eletricidade (anteriormente assente em empresas públicas monopolistas verticalmente integradas), superiormente retratado no e-book “Reflexões de Direito da Energia”, recentemente publicado pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) e da autoria de Filipe Matias Santos, que, aqui, seguimos de perto.

Na verdade, com a transposição para a ordem jurídica portuguesa dos princípios da Diretiva n.º 2003/54/CE e, posteriormente, da Diretiva n.º 2009/72/CE[2], instituiu-se e aprofundou-se a separação (unbundling) jurídica dos operadores das redes de transporte e de distribuição das demais atividades do setor elétrico (nomeadamente, a produção e a comercialização), o que importou o seu desdobramento em diferentes empresas (ainda que permanecendo concentradas no mesmo grupo empresarial) e a proibição de os operadores das redes comercializarem energia (atividade que apenas é permitida aos produtores e aos comercializadores).

A atividade de compra e venda de energia elétrica passou a ser exercida em regime de livre concorrência, embora sujeita a registo, por decisão da Direção-Geral de Energia e Geologia (arts. 45.º-1, 46.º e 47.º do Decreto-Lei n.º 172/2006), possibilitando-se aos clientes finais, destinatários dos serviços de fornecimento de eletricidade, procederem à escolha de um comercializadores em regime de mercado para com ele se relacionarem contratualmente.

Por sua vez, os comercializadores, visto que não podem proceder à entrega física da energia elétrica aos utentes com quem contratam o fornecimento, gozam do direito de livre acesso às infraestruturas de transporte e de distribuição (third-party access to networks) por força de contratos de uso das redes (art. 351.º do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC) e arts. 8.º e seguintes do Regulamento de Acesso às Redes e às Interligações – RARI).

Neste seguimento, porque as redes de transporte e de distribuição subsistiram como monopólios naturais, sendo as respetivas atividades exercidas mediante a atribuição de concessões de serviço público, colocou-se a necessidade de regular os proveitos permitidos (allowed revenues) dos operadores, os quais devem proporcionar às empresas concessionárias uma remuneração bastante (mas não desproporcional) para a recuperação do investimento na instalação, manutenção e atualização das infraestruturas que têm a seu cargo e o cumprimento, de modo eficiente, das obrigações de serviço público e padrões de qualidade a que se encontram vinculados, impedindo a subsidiação cruzada entre atividades.

É, assim, nesta base, que a ERSE procede à fixação de tarifas de acesso às redes, calculadas para cada uma das atividades reguladas e respeitantes ao uso de cada uma das redes (de transporte e de distribuição), à operação logística de mudança de comercializador e à gestão global do sistema, sendo que tais tarifas, por força do funcionamento do princípio da aditividade, são juridicamente repercutidas sobre os clientes finais nas faturas do serviço de eletricidade emitidas pelo comercializador.

Ora, com a faturação da potência contratada (em euros por mês), procede-se à cobrança dos encargos em que os operadores das redes incorrem com a colocação à disposição da potência no ponto de entrega, sendo a potência contratada uma das grandezas a determinar para efeitos de faturação das tarifas de acesso às redes (aplicáveis às entregas em Baixa Tensão Normal, i.e., com a potência contratada inferior ou igual a 41,4 kVA) aos comercializadores e por estes depois repercutidas junto dos seus clientes (arts. 47.º-2, 200.º-1-b) e 2 e 201.º-1 do RRC e 41.º-1-a) do Regulamento Tarifário do Setor Elétrico). Logo, uma mudança de escalão da potência contratada para escalão superior implica um incremento do preço da potência contratada e, por conseguinte, um aumento da tarifa de acesso às redes, isto porque, em tais circunstâncias, tornam-se necessários maiores investimentos nas redes elétricas. Além da tarifa de acesso às redes, o valor do preço da potência contratada inclui, também, uma margem de comercialização, a qual varia de comercializador para comercializador

Daí que, sem violar o disposto no art. 8.º da LSPE, porquanto se verifica uma correspondência direta com um encargo suportado pela entidade prestadora, a fatura do serviço de fornecimento de energia elétrica apresentada ao cliente final reflita, para além do preço da energia efetivamente consumida, o preço da potência contratada.


[1] Criada pela Lei n.º 30/2003, de 22 de agosto, a contribuição audiovisual destina-se a financiar o serviço público de radiodifusão e de televisão. Tem o valor mensal de € 2,85, sendo liquidada pelas empresas comercializadoras de eletricidade nas faturas respeitantes ao fornecimento daquele serviço (arts. 4.º-1 e 5.º-1 e 2 da Lei n.º 30/2003).

[2] Entretanto revogada pela Diretiva (UE) 2019/944, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2021 (art. 72.º)

25 anos da Lei dos Serviços Públicos Essenciais

Doutrina

Por Carlos Filipe Costa e Sara Fernandes Garcia

No verão de 1996, a Assembleia da República discutiu em conjunto e aprovou dois instrumentos legislativos estruturantes em matéria de Direito do Consumo: a Lei dos Serviços Públicos Essenciais (LSPE) − Lei n.º 23/96, de 26 de julho – e a Lei de Defesa do Consumidor (LDC) − Lei n.º 24/96, de 31 de julho. Os diplomas, que resistiram ao decurso do tempo, com alterações consideráveis pelo caminho, contam com 25 anos de vigência, feito histórico num ramo de Direito pautado por inevitáveis e aceleradas mutações, o que convida à reflexão (o balanço dos 25 anos da LDC pode ser encontrado aqui).

Nos termos do art. 9.º-8 da LDC, “incumbe ao Governo adotar medidas adequadas a assegurar o equilíbrio das relações jurídicas que tenham por objeto bens e serviços essenciais, designadamente água, energia elétrica, gás, telecomunicações e transportes públicos”. Em linha com este desiderato, a LSPE confere tutela juridicamente reforçada aos seus utilizadores por se reconhecer que estes serviços correspondem à satisfação das necessidades mais elementares, que assumem um caráter primordial, na vida corrente.

Com isto em mente, sob a égide do princípio norteador da boa-fé (art. 3.º), a LSPE procura acautelar a posição do utente, figura que não se confunde com a do consumidor. Com efeito, o conceito de utente abrange qualquer pessoa singular ou coletiva, independentemente do fim (profissional ou não profissional) a que se destinam os serviços (públicos essenciais) prestados pelo agente económico (v. art. 1.º-3 da LSPE e art. 2.º-1 da LDC). A proteção consubstancia-se através da imposição aos prestadores de deveres de informação e esclarecimento quanto às características, condições de prestação e preços do serviço (art. 4.º), de obediência a elevados padrões de qualidade na execução contratual (art. 7.º) e de emissão de faturação suficientemente detalhada sobre os valores cobrados (art. 9.º), mas também por via da sujeição da eventual suspensão do serviço a exigentes requisitos formais e procedimentais de que depende a sua licitude (art. 5.º), da proibição de cobrança de consumos mínimos e de quaisquer outras importâncias e/ou taxas que não tenham uma correspondência direta com um encargo em que a entidade prestadora do serviço efetivamente incorra (e.g. aluguer do contador), com exceção da contribuição para o audiovisual (art. 8.º), da consagração de curtos prazos de prescrição e caducidade do direito ao recebimento da contraprestação devida pelo utente (art. 10.º) ou da possibilidade de resolução de litígios através da arbitragem que, neste domínio, assume caráter potestativo, dependendo apenas de opção expressa do utente pessoa singular que seja consumidor (art. 15.º).

Ora, o âmbito objetivo de aplicação do regime aqui em apreço é definido de acordo com uma conceção dominante na sociedade sobre a essencialidade do serviço. Naturalmente, a definição do objeto do diploma (e sua extensão) é historicamente datada e mutável, de acordo com a evolução das necessidades humanas, sofrendo influência da evolução tecnológica.

Não obstante, o art. 1.º-2 da LSPE determina que o regime se aplica a um conjunto de serviços públicos essenciais nele listados. Ainda que, em face do elemento literal, se afigure discutível se estamos perante um elenco taxativo ou meramente exemplificativo, por imperativo de segurança jurídica, não parece de admitir a inclusão e sujeição a este quadro normativo de outros serviços, por via interpretativa.

Na sua versão primitiva, o art. 1.º-2 determinava que, para efeitos de aplicação do regime da LSPE, se encontravam abrangidos os seguintes serviços públicos essenciais: serviço de fornecimento de água [a)], serviço de fornecimento de energia elétrica [b)], serviço de fornecimento de gás [c)] e serviço de telefone [d)]. À época, no âmbito da discussão na generalidade da então Proposta de Lei n.º 17/VII, que decorreu em abril de 1996, a Ministra do Ambiente justificou esta opção: “começou por se atacar um conjunto de bens que nos parecem mais importantes e, através de um inquérito que foi elaborado e devidamente divulgado aos consumidores, estas foram, de facto, as áreas em que os consumidores se sentiam mais debilitados e mais impotentes em relação à máquina empresarial com que se defrontavam: o telefone, a água, a luz e o gás, que são bens absolutamente essenciais. A partir daqui pretendemos que o resultado desta área experimental, mas simultaneamente essencial, se alargue a outros tipos de consumo”.

Nesta versão inicial, o art.13.º-2 da LSPE previa a extensão das suas regras aos serviços de telecomunicações avançadas, bem como aos serviços postais, que deveria ocorrer no prazo de 120 dias, mediante decreto-lei e após audição das entidades representativas dos respetivos setores, o que não sucedeu no tempo previsto. Pelo contrário, entre 1996 e 2004, assistiu-se a uma discussão doutrinal e, sobretudo, jurisprudencial acerca da inclusão (ou não) do serviço de telefone móvel na previsão da alínea d) do n.º 2 do art. 1.º da LSPE[1]. Entre 2004 e 2008, no período compreendido entre a adoção da Lei das Comunicações Eletrónicas (LCE) e a entrada em vigor da primeira alteração à LSPE, promovida pela Lei n.º 12/2008, de 26 de fevereiro, verificou-se mesmo um incompreensível retrocesso na tutela da posição dos utentes de serviços públicos essenciais, com a exclusão do “serviço de telefone” do âmbito objetivo de aplicação da LSPE (art. 127.º-2 da LCE, na sua versão originária).

Esta despromoção dos serviços de telecomunicações da categoria de serviço público essencial refletiu-se, sobretudo, ao nível do prazo prescricional aplicável ao direito da entidade prestadora a exigir o pagamento do preço devido ao utente, em desfavor do direito do consumidor à proteção dos seus interesses económicos (art. 9.º da LDC). Com efeito, desde a entrada em vigor da LCE[2], a 11.02.2004 (art. 128.º-1 da LCE), até 26.05.2008 (art. 4.º da Lei n.º 12/2008), aplicaram-se as normas do Código Civil neste âmbito, concretamente o prazo prescricional de cinco anos previsto na alínea g) do art. 310.º. Ainda assim, nos termos do n.º 1 do art. 297.º do Código Civil e do art. 3.º da Lei n.º 12/2008, aos serviços prestados anteriormente à entrada em vigor da primeira alteração da LSPE, com prazo prescricional em curso, deveria aplicar-se o prazo, mais curto, de seis meses, contado desde o dia 26.05.2008 (e não retroativamente)[3].

Por conseguinte, só na sequência Lei n.º 12/2008 (com origem no Projeto de Lei 263/X/1), o âmbito objetivo de aplicação da LSPE seria significativamente ampliado, passando a abarcar o serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados [c)], os serviços postais [e)], o serviço de recolha e tratamento de águas residuais [f)], os serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos [g)] e, finalmente, o serviço de comunicações eletrónicas [d)], tal como definido pela LCE (incluindo, agora, os serviços de telecomunicações por telefone móvel, bem como os serviços de televisão por cabo e de internet, ao abrigo da alínea ff) do art. 3.º).

O diploma foi, entretanto, revisto pela Lei n.º 24/2008, de 2 de junho, pela Lei n.º 6/2011, de 10 de março, pela Lei n.º 44/2011, de 22 de junho, e, ainda, pela Lei n.º 10/2013, de 28 de janeiro. Porém, apenas em 2019, por via da Lei n.º 51/2019, de 29 de julho (com origem no Projeto de Lei n.º 1093/XIII/4.ª), se promoveu um novo alargamento do elenco de serviços públicos essenciais, passando a nele figurar os “serviços de transportes de passageiros” (alínea h) do n.º 2 do art. 1.º da LSPE).

Volvidos 25 anos desde a aprovação da LSPE, ainda que exaltemos os significativos passos (mais ou menos firmes) que já foram dados em prol do reforço da tutela material e processual dos direitos e interesses do utente e, em particular, do utente consumidor, entendemos que, na presente data, se deve equacionar eventual intervenção legislativa, com vista a introduzir as seguintes alterações[4]:

1) Adoção da fórmula “serviços de interesse económico geral” em detrimento de “serviços públicos essenciais”, em consonância com a designação vigente no Direito da União Europeia (v. arts. 14.º e 106.º-2 do TFUE e art. 36.º da CDFUE) e com a progressiva liberalização e privatização da maior parte dos serviços abrangidos pelo diploma;

2) Alargamento do âmbito objetivo do diploma aos “serviços mínimos bancários“ (de que se tratou aqui) e aos serviços de saúde prestados através do Serviço Nacional de Saúde, mas também por entidades privadas e do setor social, por se considerar que, tendencialmente, devem obedecer às mesmas regras que guiam os serviços de interesse económico geral − prestação de forma ininterrupta (continuidade), em benefício de todos os utentes e em todo o território nacional (universalidade) e com tarifas uniformes e qualidade semelhantes, sem ter em conta situações especiais nem o grau de rentabilidade económica de cada operação individual (igualdade), a que acrescem a transparência e o caráter economicamente acessível do serviço[5];

3) Clarificação da extensão da previsão dos “serviços de transportes de passageiros” constante do elenco do art. 1.º-2 da LSPE, a fim de dissipar quaisquer dúvidas quanto à sua aplicação, sem restrições, a todos os transportes coletivos de passageiros (terrestres, aéreos e marítimos), prestados por operadores públicos e privados;

4) Imposição de adoção de modelos únicos de apresentação da faturação e de nomenclaturas uniformes dos preços e tarifas a refletir nas faturas, ambos a definir por regulamento da entidade reguladora sectorialmente competente, com vista a tornar acessível aos utentes a compreensão da faturação periódica de cada um dos serviços previstos no elenco do art. 1.º-2 da LSPE;

5) Especificação do modo de comunicação a que deve obedecer o envio do pré-aviso de suspensão do fornecimento dos serviços regulados na LSPE (previsto nos n.ºs 2 e 3 do art. 5.º), impondo-se a adoção de uma das seguintes modalidades, em nome da verdade material e para os efeitos previstos no n.º 1 do art. 11.º: carta registada com aviso de receção ou carta registada para o domicílio convencionado, se o houver; mensagem escrita (SMS – Short Message Service), com certificado de comunicação eletrónica, para o número de telefone indicado pelo utente para comunicações da entidade prestadora; mensagem de correio eletrónico (e-mail), com prova de entrega (proof of delivery), para o endereço indicado pelo utente para comunicações da entidade prestadora.



[1] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29.06.2004; Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.11.2006.

[2] A LCE revogou o Decreto-Lei n.º 381-A/97, de 30 de dezembro, cujo art. 9.º, n.º 4, previa, em linha com o art. 10.º da LSPE, que “[o] direito a exigir o pagamento do preço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação”.

[3] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15.12.2009; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01.03.2012.

[4] As alterações propostas sob pontos 1), 4) e 5) já foram avançadas, em 2010, por Elionora Cardoso, Os Serviços Públicos Essenciais – a sua problemática no ordenamento jurídico português, Coimbra Editora, pp. 137 e 140-141.

[5] Conclusões do advogado‑geral Dámaso Ruiz‑Jarabo Colomer no Proc. C‑265/08, 54 e 55.

25 Anos da Lei de Defesa do Consumidor

Legislação

A Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de julho – LDC) completa esta semana 25 anos, tendo substituído a primeira LDC em Portugal (Lei n.º 29/81, de 22 de agosto).

Trata-se de uma lei essencialmente programática, uma lei-quadro do consumo e da defesa do consumidor em Portugal. A aplicação prática foi relativamente reduzida ao longo destes últimos 25 anos.

A Lei 24/96 foi retificada pela Declaração de Retificação n.º 16/96, de 13 de novembro (na qual foi acrescentada uma vírgula), e alterada pela Lei n.º 85/98, de 16 de dezembro (cooperativas), pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril (venda de bens de consumo), pelas Leis n.os 10/2013, de 28 de janeiro (consequências do não pagamento), 47/2014, de 28 de julho (transposição da Diretiva 2011/83/EU), e 63/2019, de 16 de agosto (arbitragem necessária), e pelo Decreto-Lei n.º 59/2021, de 14 de julho (linhas telefónicas de contacto).

Podemos identificar quatro fases diferentes no que respeita à relevância prática do diploma, as quais revelam também grandes oscilações.

Na primeira fase (de 1996 a 2003), destaca-se o facto de a LDC regular a matéria das garantias (arts. 4.º e 12.º), com uma aplicação prática significativa. No essencial, estava previsto que os bens beneficiavam de uma garantia legal de bom estado e de bom funcionamento de um ano (bens móveis) ou de cinco anos (bens imóveis), dispondo o consumidor de quatro direitos em caso de defeito (reparação, substituição, redução do preço, resolução do contrato).

Numa segunda fase (de 2003 a 2014), iniciada com o DL 67/2003, que regula a venda de bens de consumo, a matéria da garantia legal passou a ser tratada autonomamente. Com a eliminação das normas relativas a este tema, constantes até então dos arts. 4.º e 12.º, a LDC perdeu parte da sua relevância, tendo-se assistido a uma década de adormecimento do diploma.

A terceira fase (de 2014 a 2021) é uma fase em que a LDC volta a ganhar relevância prática. A Lei 47/2014 veio transpor para a LDC as normas da Diretiva 2011/83/UE, relativa aos direitos dos consumidores, que regulam os contratos de consumo em geral. As normas relativas aos contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento foram transpostas para o DL 24/2014, mas as normas gerais foram integradas, solução que aplaudimos, na LDC. Além da alteração profunda do art. 8.º (dever de informação), foram aditados os arts. 9.º-A (pagamentos adicionais), 9.º-B (entrega dos bens), 9.º-C (transferência do risco) e 9.º-D (serviços de promoção, informação ou contacto do consumidor). Ficou a faltar, na minha perspetiva, como já indicado aqui, a previsão de normas sancionatórias, nomeadamente contraordenacionais, para garantir um cumprimento efetivo do regime. A inclusão na LDC de matérias resultantes da transposição de diretivas europeias, a principal fonte do direito do consumo nos Estados-Membros da União Europeia, deu uma relevância acrescida à LDC.

Nesta terceira fase, destaca-se ainda a inclusão, no art. 14.º, pela Lei 63/2019, de uma norma que atribui ao consumidor o direito potestativo de iniciar a arbitragem num centro de arbitragem de consumo, caso o litígio tenha um valor inferior ou igual a € 5000. Esta norma tem uma relevância significativa em matéria de resolução de litígios de consumo. A opção de incluir a norma na LDC parece-me correta.

Estamos neste momento a iniciar uma quarta fase, em que prevejo um novo esvaziamento da LDC, por via da proliferação de outros diplomas, o que faz com que aquela perca centralidade. O primeiro sinal vem do DL 59/2021, já aqui analisado. O diploma aprova o regime aplicável à disponibilização e divulgação de linhas telefónicas para contacto do consumidor, revogando o art. 9.º-D da LDC. Também o Projeto de Decreto-Lei que regula os direitos do consumidor na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais, transpondo para o direito interno as Diretivas 2019/770 e 2019/771, respetivamente sobre compra e venda e fornecimento de conteúdos e serviços digitais, disponível aqui, prevê a revogação dos arts. 9.º-B e 9.º-C da LDC. Veremos também o que se prevê no que respeita à transposição da Diretiva 2019/2161, que implicará necessariamente a introdução de alterações ao art. 8.º da LDC.

No sentido do reforço do papel da LDC, refere-se aqui o Projeto de Lei 915/XIV/2, que deu esta semana entrada na Assembleia da República, da autoria da deputada não inscrita Cristina Rodrigues. Está em causa uma alteração à LDC, consagrando-se o direito à proteção ambiental e ao consumo sustentável. Este direito encontra-se desenvolvido no (novo e proposto) art. 8.º-A. Veremos se o diploma terá sequência. É interessante notar que, na discussão na generalidade da proposta de Lei n.º 17/VII, que deu origem à LDC, em abril de 1996, o PEV, através da deputada Heloísa Apolónia, colocou uma questão sobre a promoção do consumo ecológico no diploma então em discussão. A Ministra do Ambiente, Elisa Ferreira, respondeu que se tratava de uma matéria de educação de consumidores, não sendo a LDC a sede adequada para a regular. Vinte e cinco anos depois, com a ligação entre consumo e sustentabilidade na ordem do dia, todas as sedes serão certamente adequadas para o tratamento do tema. Num comentário geral, lamento que não tenha sido possível, até ao momento, aprovar uma LDC com um objeto mais amplo, incluindo as principais matérias de Direito do Consumo. Talvez não um Código do Consumo, mas uma LDC alargada, à semelhança da realidade espanhola, que centralize as normas de Direito do Consumo. Não desejo, portanto, à LDC mais 25 anos de vida, esperando que seja possível, a curto ou a médio prazo, a aprovação de um novo diploma, que seja o diploma de referência neste âmbito.

Há um direito a (ter) conta bancária? – A conta de serviços mínimos bancários

Doutrina

Manuel Januário da Costa Gomes, na sua obra Contratos Comerciais, levanta a questão colocada no título a propósito do Decreto-Lei n.º 27-C/2000, que criou o sistema de acesso aos serviços mínimos bancários (SMB), com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 19/2011, ou seja, num momento em que vigorava, ainda, um “regime de adesão voluntária” ao sistema pelas instituições de crédito.

Entretanto, com a terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 27-C/2000 operada pela Lei n.º 66/2015, foi imposta a obrigação de disponibilização de SMB a todas as instituições de crédito que disponibilizem ao público os serviços que integram as contas de pagamento com características básicas (basic bank accounts), assim denominadas ao nível dos instrumentos normativos de soft law e de hard law da União Europeia, de entre os quais se destaca a Recomendação da Comissão de 18 de julho de 2011 e a  Diretiva 2014/92/CE.

Neste novo contexto, reveste ainda maior acuidade a questão de saber se se revela ajustada a afirmação de um direito universal a (ter) conta bancária. E, em caso de resposta afirmativa, importa deslindar as implicações que o reconhecimento de tal posição jurídica assume na configuração tradicional da relação bancária.

Porém, antes de avançar com uma proposta de resposta às interrogações acima enunciadas, creio necessário desenvolver uma breve caracterização do regime jurídico dos SMB.

Apesar de não integrar o elenco taxativo de serviços públicos essenciais constante no art. 1.º-2 da LSPE, numa moderna sociedade europeia como a portuguesa, a prestação universal de serviços de pagamento constitui uma condição cada vez mais indispensável ao desenvolvimento de uma economia sem fronteiras internas e socialmente inclusiva e coesa, em que todos os cidadãos, independentemente da sua situação de vulnerabilidade (resultante, e.g., de uma situação financeira difícil ou de uma formação escolar rudimentar), da sua nacionalidade, do seu local de residência ou de qualquer outro dos fatores referidos no art. 21.º da CDFUE, participam plenamente na dinâmica do mercado interno e colhem os benefícios que dele advêm.

Nesta era de financeirização da economia e do cidadão superiormente retratada por Guido Comparato, a titularidade de uma conta bancária à ordem (e de um cartão de débito) constitui condição necessária ou, pelo menos, significativamente facilitadora da execução de operações de depósito, de transferência ou levantamento de fundos. Pense-se, em particular, no recebimento de retribuições laborais ou prestações sociais, no pagamento de impostos e de contribuições para a Segurança Social e no pagamento das contraprestações periódicas devidas pelo fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas.

Por conseguinte, afigurando-se incontornável o reconhecimento do estatuto de serviços de interesse económico geral a certos serviços bancários[1], nos dias de hoje, qualquer consumidor que tenha o direito de residir num Estado-Membro em virtude do direito da União Europeia ou nacional goza da prerrogativa de solicitar, junto de uma instituição de crédito à sua escolha, a abertura de uma conta de SMB (ou a conversão de uma conta de depósito à ordem de que já seja titular numa conta de SMB), ficando a instituição adstrita, salvo se se verificar fundamento legítimo de recusa[2], ao dever de, sem demora indevida e o mais tardar 10 dias úteis após a receção do pedido, celebrar contrato de depósito à ordem e, nesse seguimento, disponibilizar os seguintes serviços: manutenção, gestão, titularidade e encerramento da conta; disponibilização de um cartão de débito para movimentação da conta através dos caixas automáticos em Portugal e nos restantes Estados-Membros da União Europeia, de homebanking e dos balcões da instituição de crédito; execução de ordens de depósito e de levantamento de numerário e ordens de pagamentos de bens e serviços, nomeadamente na modalidade de débito direto; realização de transferências intrabancárias, interbancárias (através de caixas automáticos, sem limite de número de operações), via homebanking (com o limite de 24 transferências nacionais e no interior da União Europeia, por cada ano civil) e através de aplicações de pagamento operadas por terceiros (por exemplo, MBWay, com o limite de 5 transferências mensais e de valor igual ou inferior a € 30 por operação) – arts. 1.º-2-a), 2.º-1, 3.º-2, 4.º-1, 3 e 5, 4.º-A, 4.º-B e 4.º-C-1 do Decreto-Lei n.º 27-C/2000.

A fim de assegurar o acesso a estas contas de pagamento com características básicas ao maior número possível de consumidores, de acordo com o art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 27/C-2000, pelos serviços e operações acima elencados, não podem ser cobrados, pelas instituições de crédito, comissões, despesas ou outros encargos que, anualmente, e no seu conjunto, representem montante superior ao equivalente a 1% do valor do Indexante dos Apoios Sociais (cujo valor, em 2021, é de € 438,81).

Face ao exposto, temos que o sistema de acesso aos SMB obedece, quanto ao modelo formal adotado, a um figurino de hétero-regulação, porquanto as obrigações assumidas pelas instituições de crédito e toda a restante disciplina que rege as contas bancárias básicas radicam em fonte legal[3]. E, indo mais além, parece-me indiscutível que, no âmbito do sistema de que aqui trato, se encontra configurada uma restrição à liberdade de contratar, enquanto dimensão do princípio da liberdade contratual (art. 405.º do Código Civil), pois a instituição de crédito tem a obrigação (legal) de contratar com o consumidor, desde que este revista a qualidade de “interessado” nos termos do Decreto-Lei n.º 27-C/2000 (ser pessoa singular e ter o direito de residir num Estado-Membro em virtude do direito da União Europeia ou nacional – art. 1.º-2-g)), e em relação a ele não se verifique algum dos fundamentos taxativos, legalmente determinados, de recusa, impeditivos do reconhecimento do direito a conta de SMB. Mais concretizadamente, porque o cliente, por um ato livre de vontade e preenchidos aqueles requisitos, não carece da cooperação da instituição de crédito para a conclusão do contrato de depósito à ordem, entendo que, em bom rigor, o mesmo se encontra investido num direito potestativo, a que se opõe um estado de sujeição da contraparte, que tem de suportar inelutavelmente na sua esfera a consequência jurídica cominada (no caso, a abertura de conta de SMB domiciliada na instituição de crédito escolhida pelo consumidor), sem nada poder (nem dever) fazer para o evitar.

Ora, a compreensão que acabo de assumir no sentido da afirmação de um direito universal a (ter) conta bancária não pode deixar de espoletar uma discussão, ainda que breve, sobre o mérito do entendimento dominante na literatura e jurisprudência acerca da configuração da relação bancária.

Entre nós, é comum sustentar-se que a relação bancária tem fonte contratual, radicando num “contrato bancário geral” – o contrato de abertura de conta à ordem –, que reveste a natureza de contrato-quadro, pois não só constitui o negócio jurídico nuclear que assinala o início de relação complexa e dotada de vocação de perdurabilidade, como estabelece o quadro básico do relacionamento entre cliente e instituição de crédito numa multiplicidade de contratos concomitantes e futuros, projetando-se ao nível da conta-corrente bancária e do giro bancário, os dois elementos necessários do contrato de abertura de conta[4].

Penso, contudo, que a teoria ora descrita sucintamente não se assume como a mais adequada para caracterizar a relação bancária instituída ao abrigo do sistema de acesso aos SMB. Como vimos acima, a operação de abertura de conta de SMB não é conduzida sob a égide do princípio da liberdade de celebração contratual, nem reveste de caráter intuitu personae, visto que a instituição de crédito não pode recusar-se (salvo motivo legítimo) a contratar com qualquer interessado. Como tal, parece-me que, neste caso (e, talvez até, na generalidade dos casos, fora do universo dos SMB), a relação bancária encontra melhor respaldo na teoria da relação obrigacional legal, sem dever primário de prestação, defendida por Claus-Wilhelm Canaris[5], porquanto se funda no direito objetivo, sendo anterior à celebração de qualquer contrato bancário, não apenas no que tange aos deveres gerais de proteção (em particular, os deveres de informação), mas mesmo, em larga medida, em relação ao conjunto do programa obrigacional norteador da situação jurídica que liga cliente e instituição de crédito[6].

Por outras palavras, e em síntese, não deixando, naturalmente, de reconhecer a existência de contrato entre o cliente e a instituição de crédito, creio, ainda assim, que a disciplina da relação de prestação de SMB decorre imediatamente da lei.


[1] Neste sentido, já no longínquo ano de 2001, Rodrigo Gouveia, Os serviços de interesse geral em Portugal, Coimbra Editora, 2001, pp. 123-125.

[2] A saber: à data do pedido de abertura de conta de SMB (ou de conversão de depósito à ordem em conta de SMB), o cliente é titular de outra conta de depósito à ordem, junto de instituição de crédito estabelecida em território nacional (a menos que um dos contitulares da conta de SMB seja uma pessoa singular com mais de 65 anos ou dependente de terceiros, por apresentar um grau de invalidez permanente igual ou superior a 60 %); o cliente recusar a emissão da declaração de não titularidade de outra conta de depósito à ordem prevista no n.º 2 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 27-C/2000.

[3] José Simões Patrício, Serviços Mínimos Bancários, in “Direito dos Valores Mobiliários”, volume IV, Coimbra Editora, 2003, pp. 223-225.

[4] António Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 5.ª edição, 2013, Almedina, pp. 532-533 e 552-569.

[5] Claus-Wilhelm Canaris, Bankvertragsrecht, I, 3.ª edição, Walter de Gruyter, 1988, n.º 12 e ss.

[6] Manuel Carneiro da Frada, Deveres de informação e relação bancária (com vista para a intermediação financeira), in “Revista de Direito da Responsabilidade”, Ano 3, 2021, pp. 184-196.

A Odisseia da Troca das Prendas de Natal

Consumo em Ação

Por Carolina Silva e Leonor Guiomar

Hipótese: Teodoro recebeu duas prendas iguais no Natal, compradas na mesma loja. Os talões contêm a seguinte indicação: “trocas até ao dia 3 de janeiro”. Quando se dirigiu à loja para efetuar a troca, a funcionária informou Teodoro que este apenas poderia trocar o seu bem por outro de igual valor (e não por um de valor superior, como Teodoro pretendia, pagando a diferença de preço). A funcionária também informou Teodoro de que política da loja não admite a atribuição de vales. Teodoro pode fazer alguma coisa?

Resolução: No caso em apreço, somos confrontados com uma questão referente à interpretação da informação presente no talão entregue a Teodoro (T). Ora, uma vez que esse talão não tinha todas as informações posteriormente dadas pela funcionária da loja, cabe-nos interpretar o sentido da declaração negocial à luz do art. 236.º-1 do Código Civil (CC). Posto isto, o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, iria olhar para a indicação do talão e entender que é possível proceder à troca por outra ou outras coisas de valor igual ou diferente (pagando a respetiva diferença, no caso de o valor ser superior).

Outra questão é o facto de podermos estar perante uma prática desleal, o que nos leva à aplicação do regime das práticas comerciais desleais (Decreto-Lei n.º 57/2008).

Este diploma é aplicável “às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores” (art. 1.º-1). Cumpre apreciar se T é consumidor para efeitos do diploma.

Não parecem existir factos que obstem à consideração de T como consumidor, dado que se encontram preenchidos os elementos previstos do art. 3.º. Começando pelo elemento subjetivo, tem-se em conta a alínea a), concluindo-se que T é uma pessoa singular. É ainda nesta alínea que se evidencia a verificação do elemento teleológico, na medida em que T não pretendia utilizar a prenda para fins profissionais. Também a alínea b) parece estar devidamente preenchida, dado que a loja se enquadra abrangida na definição de profissional aí presente (elemento relacional). Por fim, temos a alínea d), que reflete o elemento objetivo, estando em causa uma prática comercial. Perante o exposto, concluímos, então, que T é considerado consumidor para efeitos do DL 57/2008.

Cumpre, agora, analisar se a prática levada a cabo pela loja pode ser considerada desleal. A prática não se inclui em nenhuma das situações enumeradas nos arts. 8.º e 12.º do diploma, pelo que temos de recorrer aos arts. 7.º, 9.º e 11.º, que se referem às práticas enganosas e agressivas, respetivamente.

Olhando para as características do caso concreto, encaixamos esta prática no art. 9.º-1, estando em causa uma prática que conduz ou é pelo menos suscetível de conduzir o consumidor a tomar uma decisão diferente daquela que teria tomado. Ora, em virtude da omissão de uma informação fundamental, nomeadamente, “a troca estar limitada a bens do mesmo valor”, T foi privado de efetuar a troca nos termos em que seria expectável que o pudesse fazer. Ademais, poderíamos reforçar esta ideia recorrendo à cláusula geral presente no art. 5.º.

A omissão realizada pela loja é proibida, não só pelo art. 4.º do diploma indicado, como também parece colidir com o art. 60.º da Constituição da República Portuguesa, que tutela o direito à informação, um dos direitos fundamentais dos consumidores.

Por estarmos perante uma prática comercial desleal, são aplicáveis sanções contraordenacionais (arts. 19.º e segs.), pode ser invocada a invalidade do contrato (art. 14.º) e o profissional incorre em responsabilidade civil (art. 15.º). Em suma, T pode exigir a troca por coisa(s) de valor diferente. Ao mesmo tempo, poderá ser aplicada ao profissional uma sanção contraordenacional relativa à prática comercial desleal.

As chamadas telefónicas com os prefixos 760 e 761 nos concursos publicitários de programas televisivos

Doutrina

Em post anterior, dedicado a uma primeira análise crítica do recém-adotado Decreto-Lei n.º 59/2021, relevou-se positivamente o estabelecimento de um “regime autónomo e mais robusto, que visa garantir, finalmente, uma aplicação prática efetiva” da obrigação de que as linhas telefónicas disponibilizadas pelos profissionais sejam gratuitas ou correspondam a uma gama de numeração geográfica ou móvel (com os prefixos “2” ou “9”), para contacto do consumidor, no âmbito de uma relação jurídica de consumo.

Sem prejuízo, a questão da necessidade de regulação do preço das chamadas telefónicas, encarada como medida de tutela da posição dos consumidores, também se coloca com particular acuidade no que tange às chamadas por aqueles realizadas para inscrição (e eventual seleção e participação) em concursos publicitários de programas televisivos que recorrem à utilização de números de telefone com custos acrescidos, como sejam as linhas telefónicas das gamas 760 e 761 do Plano Nacional de Numeração da ANACOM, as quais identificam serviços de tarifa única em que o preço máximo por chamada é de, respetivamente, € 0,60 (mais IVA) e € 1,00 (mais IVA).

Neste domínio, como explanaremos de seguida, por força de práticas comerciais desleais (enganosas e agressivas), consumidores particularmente vulneráveis em razão da idade (igual ou superior a 65 anos) ou de situação de carência económica vêm a adotar reiteradas decisões de transação (no caso, decisões de participação em concursos publicitários mediante realização de várias chamadas telefónicas) que os levam ao depauperamento das finanças pessoais e, até, à colocação em situação (de risco) de sobre-endividamento.

A comunicação comercial a concurso publicitário difundida por um operador de televisão enquadra-se no âmbito da figura da autopromoção, prevista no art. 2.º-1-c) da Lei n.º 27/2007, de 30 de julho, na medida em que constitui a promoção de um serviço oferecido pelo próprio operador, integrado em programa de entretenimento pelo mesmo emitido, com vista à atribuição de prémios aos telespectadores, mediante a realização, por este, de chamadas telefónicas pagas, sendo que a receita das chamadas reverte, em parte, para o titular do serviço de programas televisivo.

Neste encalço, por estar em causa a divulgação de serviços próprios do operador televisivo, que atua no âmbito da sua atividade comercial (portanto, um profissional), dirigida a pessoas singulares que, embora com um interesse económico subjacente, intervêm na prática comercial do profissional, mediante o pagamento de um preço (custo fixo da chamada telefónica), com fins que não se incluem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional (isto é, consumidores), deve concluir-se que a promoção dos referidos concursos publicitários, inseridos em programas de TV, está subordinada à disciplina normativa do Decreto-Lei n.º 57/2008[1].

Isto posto, conquanto se reconheça que os concursos em causa geram uma receita significativa para a salvaguarda do equilíbrio financeiro das estações televisivas que as promovem, não pode deixar-se de acompanhar o entendimento do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, organicamente integrado no Instituto do Turismo de Portugal, I.P., quando preconiza que, atendendo à regularidade dos concursos, aos montantes neles envolvidos e à “forte promoção e [a]o insistente e persistente apelo à participação dos telespectadores”, poder-se-á “justificar um eventual recurso à possibilidade conferida pelo n.º 3 do artigo 159.º do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, com a adoção de medidas convenientes à proteção dos consumidores e de medidas restritivas da exploração de concursos com as características mencionadas por parte dos canais de televisão”[2].

Na verdade, como resulta patente a partir do simples visionamento de qualquer dos programas de entretenimento de day-time dos operadores televisivos generalistas (em dias úteis e, em particular, ao fim-de-semana) e foi declarado, de forma assertiva e categórica, nas Deliberações 32/2016 (OUT-TV), 33/2016 (OUT-TV) e 34/2016 (OUT-TV) da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, as promoções de concursos publicitários no decurso de tais programas consubstanciam práticas comerciais desleais porque: a) por um lado, são suscetíveis de induzirem em erro o telespectador sobre as características do concurso, levando-o a adotar uma decisão de transação (no caso, decisão de participar no concurso e os termos da sua participação) que, de outro modo, não tomaria, caso conhecesse, cabalmente, as reais características daquele; b) e, por outro lado, exercem uma influência indevida sobre o telespectador – acentuada pelo facto de o público-alvo destes programas ser composto, maioritariamente, por pessoas com idade ou superior a 65 anos ou que enfrentam algum infortúnio na sua vida pessoal e/ou profissional ou dos membros do seu agregado familiar –, sendo aptas a limitar de forma significativa a capacidade de decisão do mesmo, conduzindo-o a tomar decisão de transação que, não fosse a pressão psicológica exercida pelos apelos verbais dos apresentadores e pelas mensagens gráficas persistentes, não adotariam.

Quanto à asserção produzida em a), que reúne os pressupostos de que depende a prática de uma ação enganosa, nos termos do disposto nos arts. 6.º-b) e 7.º-1-b) do Decreto-Lei n.º 57/2008, ainda que, após a celebração do “Acordo de Autorregulação em Matéria de Concursos com Participação Telefónica” entre os operadores RTP, SIC e TVI se tenha começado a verificar que os apelos verbais dos apresentadores e as mensagens gráficas apresentadas no decurso dos programas contemplam referência à real natureza do prémio (cartão de débito VISA Electron pré-carregado e não dinheiro), constata-se que, não raras vezes, a promoção não é clara relativamente às pessoas que se podem habilitar ao prémio (apenas os maiores de 18 anos) nem às concretas utilizações que lhe podem ser conferidas (o cartão apenas pode ser utilizado para efetuar pagamentos de compras através de terminais da rede VISA, não sendo possível a sua transferência para outras contas, nem o seu levantamento em numerário).

Ademais, é criada a convicção no telespectador de que pode efetuar um número ilimitado de chamadas para se habilitar a ganhar o prémio em jogo (recorrendo ao adágio orelhudo “quantas mais vezes ligar, mais hipótese tem de ganhar”), o que não corresponde à verdade, pois cada participante apenas pode efetuar até 10 ou 6 chamadas diárias por concurso e por número de telefone de origem (consoante o número de destino pertença à gama de numeração 760 ou 761, limitação automática que, contudo (ressalvam os regulamentos destes concursos[3]), por razões técnicas, o sistema informático pode não lograr operar, caso em que a chamada seguinte será considerada uma inscrição válida e será cobrada a tarifa única, sem que, pasme-se, possa ser exigida dos promotores qualquer indemnização ou compensação). E, bem assim, é prometido o imediato envio do cartão de débito para a casa do vencedor do concurso, o que também, de facto, pode não suceder, visto que, de acordo com os regulamentos destes concursos, a entrega do prémio poderá ter lugar até 90 dias a contar da data da realização do sorteio que apura o candidato contemplado.

Acresce, ainda, o facto de ser omitida qualquer referência à existência de um intervalo temporal contado desde a data de emissão do cartão para a utilização do saldo nele creditado, sob pena de caducidade do direito à utilização do saldo remanescente (se o houver).

E não se diga que o conhecimento de algumas das características dos concursos acima destacadas resulta assegurada pela mera remissão para o regulamento aplicável. Não obstante se terem operado progressos louváveis, ao nível da informação gráfica exibida em cada período de apelo (feito pelos apresentadores), após a conclusão do “Acordo de Autorregulação” acima referido[4], entendo que subsiste uma desproporção manifesta entre o destaque conferido ao número de telefone a ligar e ao valor do prémio em jogo e as demais características relevantes do concurso, a qual não é, de todo em todo, mitigada pela disponibilização do regulamento do concurso em sítio da internet ou em página do teletexto, plataformas cujo acesso e consulta requerem capacidades que os targets dominantes dos programas de entretenimento de day-time, em muitos casos, não dispõem.

Uma derradeira consideração acerca da asserção produzida em a) para notar que, ao contrário do que estabelece o “Acordo de Autorregulação”, os operadores de televisão recorrem a suportes gráficos de comunicação com função primordialmente apelativa à participação nos concursos, como é o caso da colocação de relógio em countdown no canto superior direito do ecrã, mormente na parte final dos programas.

Já no que respeita à afirmação sob alínea b) acima, que congrega os requisitos necessários à configuração de uma prática comercial agressiva, nos termos dos arts. 6.º-b) e 11.º-1 e 2-a) do Decreto-Lei n.º 57/2008, reveste meridiana clareza que, em todos os programas de entretenimento de day-time se pratica um apelo insistente, com recurso a uma linguagem persuasiva (empregue por apresentadores que gozam de elevada notoriedade e, mesmo, credibilidade junto dos telespectadores), à inscrição nos concursos publicitários, sugerindo-se facilidade na realização da chamada (“é o preço de um café”) e na obtenção do prémio, incitando-se à realização de mais do que uma chamada e alimentando-se a expectativa de o consumidor conseguir, por aquela via, fazer face a todos os seus compromissos financeiros e realizar os seus sonhos de vida. Seja em espaços exclusivamente dedicados ao efeito, seja no decurso de espaços de entrevistas a convidados ou de momentos musicais, os apelos verbais surgem acompanhados por elementos gráficos, que estimulam, igualmente, à realização de chamadas, os quais permanecem no ecrã desde alguns segundos até vários minutos.

Neste particular, creio que a norma autorreguladora gizada pelos operadores de televisão não satisfaz, minimamente, as exigências de proteção dos consumidores vulneráveis, ao prever que “apenas serão permitidos, no máximo, 5 (cinco) períodos de apelo pelos apresentadores, com a duração total máxima de 12 minutos, por hora de programa” (art. 10.º). A quantificação do tempo de duração máxima dos períodos de apelo revela-se manifestamente excessiva, tanto mais porque é utilizada, até ao limite estipulado, no final dos programas de entretenimento, coincidentes com períodos de confeção e toma de refeições (almoço ou jantar) ou de regresso a casa de trabalhadores (após jornada de trabalho) e imediatamente anteriores a espaços de informação, logo, previsivelmente, de maior audiência. No limite, como alerta a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, com a promoção persistente dos concursos nos programas de day-time, corre-se o risco de se desvirtuar a “linha editorial subjacente a um programa de entretenimento, comprometendo-se, deste modo, a identidade e integridade do mesmo”, a ponto de se inverter “toda a lógica do programa (…) anunciado, (…) transformando-o num conteúdo essencialmente promocional, onde o entretenimento e as variedades tendencialmente se convertem em mero pretexto para captar a atenção do espectador para a verdadeira mensagem que se quer passar: a da promoção do concurso e da persuasão à realização do maior número de chamadas telefónicas”, em contravenção com o disposto no art. 9.º-1-a) da Lei n.º 27/2007.

Por todo o exposto, merece o nosso aplauso a decisão de criação de um Grupo de Trabalho para a Revisão do Regime dos Concursos e Passatempos, vertida no Despacho n.º 1620/2021 do Secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor – cujas conclusões ainda não são conhecidas (embora já devessem ter sido apresentadas até ao dia 15 de abril de 2021) –, consequente à Recomendação n.º 7/B/2020 da Senhora Provedora de Justiça, na qual, a par da necessidade de reforço da proteção dos consumidores mais vulneráveis, também se suscitam sérias dúvidas quanto à conformidade dos regulamentos dos concursos com o Decreto-Lei n.º 422/89, mormente os seus arts. 159.º e ss., por estar em causa uma modalidade afim dos jogos de fortuna ou azar. Muito sucintamente, conclui-se naquela Recomendação que o uso de números de tarifa especial majorada, como sejam os números com prefixo 760 e 761, viola o disposto no art. 161.º-2 do Decreto-Lei n.º 422/89, que proíbe dispêndio para o jogador que não seja o do custo normal de serviço público de telecomunicações (cfr. arts. 3.º-jj) e 86.º e ss. da Lei n.º 5/2004), assim como se sustenta que a utilização de cartões de débito como prémio colide com o preceito do art. 159.º-1-in fine, isto porque, como já referido pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, “um cartão de débito não constitui uma coisa «com valor económico», mas um verdadeiro prémio em dinheiro, uma vez que o cartão de débito constitui uma forma de pagamento eletrónico que permite a dedução do valor de uma compra diretamente no cartão do titular e por representar um título indicativo de uma quantia monetária suscetível de ser movimentada a qualquer momento”.


[1] Neste sentido, o Considerando (82) da Diretiva 2010/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 10 de março de 2010, relativa à coordenação de certas disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros respeitantes à oferta de serviços de comunicação social audiovisual (Diretiva «Serviços de Comunicação Social Audiovisual»), que reza nos seguintes termos: “Para além das práticas reguladas pela presente diretiva, as práticas comerciais desleais, como as práticas enganosas e agressivas, que se verifiquem nos serviços de comunicação social audiovisual são reguladas pela Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno”, que foi transposta para a ordem jurídica nacional por via do Decreto-Lei n.º 57/2008.

[2] Pronúncia reproduzida na Deliberação 99/2015 (OUT-TV) do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (Concursos publicitários de participação telefónica nos serviços de programas televisivos generalistas RTP1, SIC e TVI)

[3] Ver, a título exemplificativo, os regulamentos dos concursos “Casa Feliz 2021 – 2.ª Edição” e “Camião da Sorte 2021”, promovidos pela SIC, e “Dois às 10 2021 – 2.ª Série” e “Somos Portugal – Junho/Julho 2021”, promovidos pela TVI.

[4] Previstos no art. 11.º do “Acordo de Autorregulação”, onde se prevê: a emissão de texto em oráculo – “O concurso publicitário x/x foi autorizado pela SGMAI. Prémio em [menção do prémio em espécie], não convertível em dinheiro. Antes de participar, consulte o regulamento em [sítio da internet] e no teletexto. Cada chamada tem o custo de € x + IVA. Idade mínima de participação: 18 anos. Limite máximo diário de x chamadas neste concurso, por número de telefone de origem. Participe no concurso de forma informada e responsável” –, o qual deve obrigatoriamente obedecer a um tamanho e um tipo de letra que torne possível a sua leitura pela generalidade dos espectadores, devendo a altura dos caracteres corresponder, no mínimo, a um terço da altura dos caracteres utilizados no oráculo para a divulgação do número de telefone usado para inscrição nos concursos; caso o oráculo seja divulgado em movimento (vulgo, ticker), deve o mesmo deslocar-se a uma velocidade que permita a sua leitura pela generalidade dos espectadores; deve ser divulgado, pelo menos 4 vezes por hora de programa, o sítio da internet e/ou a página de teletexto onde se encontra disponível o regulamento relativo ao concurso (observando-se, para tanto, as exigências formais de tamanho e tipo de letra e velocidade do oráculo anteriormente referidas); sempre que seja utilizado um grafismo para comunicação dos concursos, deve ser mencionada regularmente informação sobre a existência de regulamento aplicável ao concurso e a forma de acesso ao mesmo, bem como informação sobre valor e natureza do prémio (“em cartão”), sendo aplicáveis a tais grafismos os já referidos requisitos quanto ao tamanho e tipo de letra.