Escravatura moderna made in Portugal: não era mau que o que é nacional fosse mesmo bom

Doutrina

Muito se escreveu por ocasião da requisição civil do Zmar, cujo intuito era o de alojar temporariamente alguns trabalhadores do setor agrícola que não dispunham de condições de habitação suficientes à resolução da situação sanitária de Odemira.

O debate foi interessante, mas rápido, e terminou ainda mais depressa, sobretudo porque o que mais pareceu relevar discutir foram supremos conceitos jurídicos de propriedade. Arquivado o caso, arquivada a questão. Analisar o problema basal ficou para depois.

Até aqui, a exploração laboral de imigrantes, que está longe de ser uma novidade, não causou empatia de maior. Os produtos alimentares que afluem desta lógica exploratória são largamente procurados pelos consumidores portugueses, desde as framboesas às azeitonas, dos morangos às amêndoas. E isto só para falar da produção do Alentejo. O consumidor médio considerará, provavelmente, que consumir nacional é até uma atitude sensata, inquinado pela pedagogia viciada de que o que é nacional é bom. Bom para quem?

Estima-se que são as mãos de cerca de 28.000 trabalhadores provenientes, entre outros, do Senegal, Guiné-Conacri, Paquistão, Índia, Nepal, Bangladesh, Roménia, Moldávia, Brasil e Bulgária que as põem à obra nas nossas agriculturas. “Ninguém quer ser escravo na sua terra”[1] parece, pois, ser uma excelente súmula da arquitetura do sistema que perpetua a esquizofrenia entre a certeza dos direitos fundamentais inderrogáveis e a vida real.

Se a exploração laboral de imigrantes está longe de ser uma novidade, nem o mais ingénuo cidadão poderá supor que as habitações que lhes estão destinadas são lugares que cumprem os requisitos de um lar. Este problema estende-se muito para lá do que pode significar a proliferação do contágio de Covid-19. A violação de direitos humanos ainda é mais do que isso. Assim, não se compreende como possa ter sido levantado tanto alvoroço em torno da questão do Zmar, para depressa se deixar perecer a discussão que realmente importava.

A discussão que realmente importava trazer para a mesa, literalmente, era a de que há produtos que queremos consumir, mas não queremos produzir, a menos que alguém o faça por nós, de preferência a baixo custo. A discussão que realmente importava trazer para a mesa era a de que “há entre 80 a 100 pessoas a viverem «dentro de uma oficina»”, “outras 30 pessoas dentro de um apartamento, com homens e mulheres misturados, dispondo apenas de um chuveiro e de uma sanita” e “onde 55 pessoas vivem num T3, pagando no total 1.530 euros de renda por mês”[2].

Aproximam-se argumentos de inferioridade civilizacional, apregoando que mesmo sendo mal pagos em Portugal, mesmo vivendo sob condições indignas para os nossos padrões, a situação destes imigrantes é melhor do que a que tinham ou teriam nos seus países de origem. É bem provável que seja verdade. Mas se, enquanto comunidade, estabelecemos que há um mínimo de dignidade abaixo do qual não toleraremos descer, esse mínimo também tem de se estender a qualquer ser humano que ingresse em território nacional.

A violação de direitos humanos torna-se cada vez mais vizinha, não sendo só um exotismo bárbaro sobre o qual ouvimos falar. Olhar para o lado já não serve de nada, pois é exatamente ao lado onde agora reside o problema.


[1] https://sicnoticias.pt/pais/2021-05-05-Nao-ha-portugueses-quase-a-trabalhar-nesta-agricultura-ninguem-quer-ser-escravo-na-sua-terra-a51da714

[2] https://www.publico.pt/2017/01/18/sociedade/noticia/falta-de-maodeobra-no-alqueva-alimenta-novas-formas-de-escravatura-1758670

Uma análise empírica do Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de conflitos de consumo – Parte II

Doutrina

Prosseguindo a análise ao Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de consumo, iniciada em post anterior, julgamos que a redação das normas regentes da elaboração da sentença arbitral, plasmadas no artigo 15.º do Regulamento, impõem duas observações críticas.

Em primeiro lugar, à semelhança do que é imposto pelo n.º 4 do artigo 607.º do CPC, inexiste fundamento bastante para se considerar inexigível a declaração, na sentença arbitral, dos factos que se julgam não provados de entre aqueles que hajam sido alegados pelas partes, tendo em consideração o objeto do litígio, para além dos factos que se encontram em contradição com os julgados provados e dos prejudicados por estes e excluindo aqueles que são meramente conclusivos.

Em segundo lugar, atendendo à tendencial maior complexidade que os litígios de consumo submetidos à jurisdição arbitral vêm conhecendo, à qual não é, de todo, alheia a previsão de arbitragem necessária na Lei de Defesa do Consumidor entendemos razoável um aumento do prazo para prolação da sentença arbitral em mais 15 (quinze) dias, desta forma se promovendo um alinhamento com a solução prevista no n.º 1 do artigo 607.º do CPC, aplicável aos tribunais judiciais de 1.ª instância.

Por sua vez, a letra da regra consagrada no artigo 17.º do Regulamento, sob a epígrafe “Prazos processuais”, ao referir-se a “processos de reclamação”, alimenta dúvidas quanto à aplicação do prazo de conclusão de 90 (noventa) dias ao conjunto dos procedimentos de resolução alternativa de litígios de consumo (mediação, conciliação e arbitragem) ou a cada procedimento individualmente considerado. Com efeito, em face do disposto pelo n.º 5 do artigo 10.º da Lei RAL, dúvidas não devem subsistir de que o prazo de 90 dias se aplica a cada procedimento de RAL. O Regulamento do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo já o estabelece de forma inequívoca. Esta é a única solução que se conforma com a lógica de “multi-step dispute resolution” adotada nos centros de arbitragem de conflitos de consumo nacionais (surgindo a mediação como fase prévia, seguida da conciliação e da arbitragem) e que assegura a exigível proteção ao consumidor[1].

Uma derradeira e mais aturada consideração se impõe acerca de uma diferença relevante e que salta à vista na redação que toma a norma do n.º 3 do artigo 19.º do regulamento interno de cada um dos centros de arbitragem de conflitos de consumo. Se, por um lado, os regulamentos do CIAB – Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Consumo (Tribunal Arbitral de Consumo), do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP), do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo da Região de Coimbra (CACRC) e do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa (CACCL) preveem que, em caso de omissão, se aplica, subsidiariamente e “com as devidas adaptações”, o Código de Processo Civil, já os regulamentos do TRIAVE – Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Ave, Tâmega e Sousa, do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Algarve (CIMAAL) e do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo não estatuem o recurso às regras e princípios da lei processual civil “em tudo o que não estiver previsto” no Regulamento Harmonizado.

Nesta controvérsia sobre a aplicação do Código de Processo Civil à arbitragem de conflitos de consumo, posicionamo-nos a favor de uma aplicação, de último grau, da lei adjetiva comum, ainda que adaptada “à natureza marcadamente abreviada e informal do procedimento arbitral”, como dispõe, com particular acerto, a regra do n.º 2 do artigo 32.º do Regulamento do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros (CIMPAS).

Não se ignora que, como salienta Manuel Pereira Barrocas, “[o] Código de Processo Civil, tal como qualquer outra lei processual, nacional ou estrangeira, não foi pensado, elaborado e publicado para regular a arbitragem em geral e o processo arbitral em particular, sob pena de se transpor para a arbitragem a complexidade, quando não discussões doutrinarias e jurisprudenciais que não têm a ver com a arbitragem, desvirtuando e retirando as vantagens que lhe são próprias”. Afinal, “[a] jurisdição arbitral funda-se em juízos de equidade e na extrema simplificação e agilização dos procedimentos, recortando-se como uma forma de resolução de litígios em modo simplex, ao passo que a jurisdição estadual assenta no rigor do estrito cumprimento da lei processual e na absoluta salvaguarda de todas as garantias do pleno exercício das mais amplas faculdades processuais, de que não abre mão em circunstância alguma.”

Sem prejuízo do que antecede e, ainda, do disposto no n.º 3 do artigo 30.º da Lei da Arbitragem Voluntária, propugnamos, porém, que a certeza e da segurança jurídicas na aplicação do Direito reclamam que, na ausência de solução aplicável prevista na Lei RAL, na Lei da Mediação (aplicável ao procedimento de RAL de mediação) ou na LAV (aplicável ao procedimento de RAL de arbitragem), se imponha aos colaboradores das entidades de RAL responsáveis por cada um dos procedimentos a convocação e observância das regras e princípios postulados no Código de Processo Civil, ainda que despojados dos formalismos próprios e específicos de uma lei que rege o processo perante os tribunais estaduais.

A aplicação da lei processual civil reveste de particular interesse na verificação dos pressupostos processuais de que depende a regularidade da instância arbitral, seja os relativos ao próprio tribunal arbitral, e.g. competência em razão do valor (artigos 296.º e seguintes do CPC), seja os relativos às partes, e.g. personalidade e capacidade judiciárias (artigos 11.º e seguintes e 15.º e seguintes do CPC), seja, ainda, os relativos ao próprio objeto da demanda arbitral, e.g. aptidão da reclamação (artigo 186.º do CPC) e inexistência de litispendência e de caso julgado (artigos 577.º, alínea i), 580.º, 581.º e 582.º, todos do CPC), seguindo-se aqui de perto Sara Lopes Ferreira, em apresentação feita recentemente num webinar.

Mas não só. Também algumas disposições relativas à prática dos atos processuais, como o princípio da proibição da prática de atos inúteis (artigo 130.º do CPC), a alegação e prova de “justo impedimento” pela parte ou seu representante ou mandatário que obste à prática atempada do ato ou à presença na audiência arbitral, cuja marcação, por norma, não é antecedida de acordo prévio das partes, seja por contacto direto do tribunal, seja com a intermediação do secretariado do tribunal (artigos 139.º, n.º 4, 140.º, 151.º, n.ºs 2 e 3 e 603.º, n.º 1, todos do CPC), ou atinentes à instrução do processo, como a inexigibilidade de alegação e prova dos factos públicos e notórios (artigo 412.º do CPC), o critério de julgamento em caso de dúvida sobre a realidade de um facto (artigo 414.º do CPC), a prova por apresentação de coisas móveis ou imóveis (artigo 416.º do CPC), a prova por depoimento de parte e por declarações de parte, prova por inspeção e prova testemunhal (artigos 452.º e seguintes, artigo 466.º, artigos 490.º e seguintes e artigos 495.º e seguintes, todos do CPC, com as devidas adaptações), ou mesmo respeitantes à sequência dos atos a praticar na audiência de julgamento (artigo 604.º, n.º 3 do CPC) devem ser, a nosso ver, atendidas e respeitadas pelo árbitro na condução do processo arbitral.            

Por último, sem embargo do disposto no n.º 2 do artigo 10.º da Lei RAL, considerando que, paulatinamente, demandados e, sobretudo, demandantes vêm tomando consciência da importância que, amiúde, reveste a constituição de mandatário forense em prol da melhor tutela da sua posição jurídica no litígio, importa levar em consideração, no sentido do texto, que os advogados e os solicitadores trabalham quotidianamente com o Código de Processo Civil e têm a sua forma mentis moldada pela lei adjetiva comum.


[1] Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2017, p. 130.

Uma análise empírica do Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de conflitos de consumo – Parte I

Doutrina

Com a entrada em vigor da Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro (Lei RAL), que transpôs a Diretiva 2013/11/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, os regulamentos dos centros de arbitragem de conflitos de consumo harmonizaram-se entre si, apresentando sistematização e disciplina normativa idênticas, embora subsistam algumas dissemelhanças pontuais.

Neste contexto e com base na nossa experiência como árbitro em centros de arbitragem de conflitos de consumo, desenvolvemos, agora e em próximo texto, uma breve análise crítica de algumas disposições do Regulamento Harmonizado, tomando essencialmente por base o Regulamento do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Vale do Ave/Tribunal Arbitral.

Desde logo, a redação atual do n.º 2 do artigo 4.º do Regulamento Harmonizado, cuja epígrafe é “Competência material”, não acolhe plenamente a conceção estrita de consumidor – e, por essa via, de litígio de consumo – adotada na norma da alínea d) do artigo 3.º da Lei RAL, diploma que regula, em especial, os mecanismos de resolução extrajudicial de litígios de consumo. Assim, para efeitos da submissão de um conflito aos procedimentos de mediação, conciliação e arbitragem (artigo 3.º, alínea j) da Lei RAL), devia adotar-se o sentido jurídico-formal do conceito de consumidor, que se restringe às pessoas físicas, tal como imposto por um princípio de interpretação conforme ao Direito Europeu do Consumo, e deixar de tomar como referencial a noção ampla plasmada na Lei de Defesa do Consumidor – a Lei n.º 24/96, de 31 de julho.

Ainda a respeito do âmbito material de competência dos centros de arbitragem (e, em particular, da jurisdição do tribunal arbitral), a norma do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento Harmonizado – “[o] Centro não pode aceitar nem decidir litígios em que estejam indiciados delitos de natureza criminal ou que estejam excluídos do âmbito de aplicação da Lei RAL” – suscita-nos duas observações que vêm revestindo importância no (não) conhecimento e apreciação de relações jurídico-consumerísticas controvertidas por aquelas entidades de RAL (artigo 3.º, alínea b) da Lei RAL).

Por um lado, afigura-se-nos imperioso clarificar que a norma visa excluir a competência dos centros de arbitragem apenas no que à matéria penal diz respeito. O facto de o litígio configurado pelo reclamante apresentar elementos indiciadores da prática de qualquer delito criminal (e.g. furto de energia elétrica, em ações de simples apreciação negativa em que é demandado o operador da rede de distribuição, ou burla, em ações em que é demandado prestador de serviço de comunicações eletrónicas) não deve obstar à qualificação da demanda como “litígio de consumo”, se preenchidos os quatro elementos – subjetivo, objetivo, teleológico e relacional – a partir dos quais é estruturado o conceito técnico-jurídico de consumidor. Impõe-se, de modo diverso, a distinção (e separação, para efeitos jurídico-processuais) da questão de natureza jurídico-civil suscitada pelo demandante perante a entidade de RAL da eventual relevância e ressonância jurídico-criminal que a alegada conduta por aquele perpetrada pode assumir.

Por outro lado, a fim de se viabilizar a inclusão de litígios relacionados com os serviços de saúde, quando prestados por entidades privadas, na esfera de competência dos centros de arbitragem, a parte final do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento Harmonizado não devia conter remissão expressa para a delimitação negativa do conceito de “litígio de consumo” operada pelo n.º 2 do artigo 2.º da Lei RAL. Até porque, afora a solução normativa da sua alínea b), grande parte dos litígios abarcados pelas alíneas a) a c) do mesmo número, artigo e diploma legal revestem a natureza de relações jurídico-administrativas e, como tal, encontram-se, por natureza, excluídos da competência em razão da matéria do Centro.

Por sua vez, a tramitação do processo de arbitragem, disciplinada, em particular, pelo artigo 14.º do Regulamento Harmonizado, carece, a nosso ver, de uma regulação mais aturada, que promova e concretize plenamente os princípios do processo equitativo (artigo 12.º, n.º 1 da Lei RAL), nos seus corolários de igualdade e de defesa e contraditório.

Neste sentido, pugnamos pela eliminação da possibilidade de apresentação de contestação oral na própria audiência arbitral – para a qual as partes devem ser convocadas com uma antecedência mínima de 20 dias –, estabelecendo-se, em alternativa, que a parte reclamada pode apresentar contestação escrita até 10 dias da data marcada para a audiência. Desta forma, obstar-se-ia a que o reclamante, que surge, não raras vezes, desacompanhado de advogado ou solicitador a representá-lo em juízo (em virtude da diminuta utilidade económica do pedido formulado no processo arbitral, que fica aquém do previsível valor dos honorários devidos ao profissional forense, cuja contratação para assegurar patrocínio judiciário não é, além do mais, obrigatória – cf. artigo 10.º, n.º 2 da Lei RAL), só conheça a posição assumida pela reclamada, nos autos de arbitragem, naquela diligência.

Os mesmos princípios fundamentais do processo arbitral (artigo 30.º, n.º 1 da Lei da Arbitragem Voluntária – LAV) e, bem assim, o princípio da celeridade processual, que é timbre da arbitragem, levam-nos a defender que, por imposição regulamentar, a apresentação da contestação devia ser, de imediato, notificada à parte reclamante, a qual devia poder apresentar resposta ou réplica, por escrito, até à data da audiência ou oralmente na própria audiência (ditando para ata, se se sentir mais confortável com tal alternativa), caso a parte reclamada deduza defesa por exceção ou reconvenção, respetivamente. Desta forma, afastar-se-ia a necessidade de suspensão da audiência arbitral para o demandante gozar do necessário tempo de reflexão e de análise para se poder pronunciar sobre a matéria de defesa por exceção ou de reconvenção deduzida na contestação.

Idênticas preocupações de economia processual e de meios justificam que se imponha às partes a apresentação de toda a prova documental disponível (i.e., de que as partes já disponham) – e de que pretendam fazer uso – com a reclamação e a contestação, assim como fundamentam a previsão expressa da possibilidade de realização da audiência arbitral com recurso a meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente videoconferência, como já sucede com o Regulamento do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo. Ressalva-se, quanto a este último aspeto, que deve privilegiar-se, sempre que possível, a colaboração, para o efeito, de centro/serviço/núcleo de informação autárquica ao consumidor, julgado de paz, tribunal estadual ou outra instituição instalada em edifício público da área do domicílio do sujeito ou interveniente processual.

A fim de se superar a divergência de entendimentos quanto à admissibilidade da reconvenção (aplicando-se ou não, supletivamente, a norma do n.º 4 do artigo 33.º da LAV), sem prejuízo da unidirecionalidade dos litígios de consumo (cf. artigo 2.º, n.ºs 1 e 2, alínea d) da Lei RAL), cremos que o princípio da eficiência processual aponta no sentido de que a mesma deve ser aceite. Na verdade, a improcedência de pedido de declaração de inexistência de dívida (em ação de simples apreciação negativa), em arbitragem iniciada pelo consumidor, não se consubstancia em sentença condenatória que possa ser executada, de imediato, pelo profissional (cf. artigo 703.º, n.º 1, alínea a) do CPC), obrigando este último a propor nova ação (ou iniciar procedimento de injunção) para obtenção de título executivo. Por último, de acordo com a jurisprudência firmada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.11.2015, proferido no Processo n.º 538/13.0YRLSB.S1, Relator: Fernanda Isabel Pereira, e pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.06.2019, proferido no Processo n.º 1957/18.0YRLSB.C1, Relator: Arlindo Oliveira, entendemos que a norma do Regulamento Harmonizado relativa à responsabilidade pelas despesas com meios de prova requeridos em audiência arbitral devia conter uma remissão expressa para a solução normativa da segunda parte do n.º 5 do artigo 42.º da LAV – possibilidade de o árbitro decidir que alguma(s) das partes compense(m) a outra(s) pela totalidade ou parte dos custos e despesas razoáveis que esta(s) última(s) demonstre(m) ter suportado por causa da sua intervenção na arbitragem –, dissipando quaisquer dúvidas quanto à inaplicabilidade das normas do Código de Processo Civil e do Regulamento das Custas Processuais referentes a encargos com o processo de arbitragem, porque incompatíveis com a regulamentação própria dos litígios arbitrais.

Non-Fungible Tokens (NFT) – o que são estes cripto-ativos? Mais uma bolha?

Doutrina

Para quem tem acompanhado a evolução dos mercados financeiros, commodities e cripto durante 2021, este tem sido um ano cheio de episódios que desafiam conceções básicas que temos como garantidas. Em Janeiro (e depois em Março, embora menos comentado na comunicação social), a saga do r/Wallstreetbets a tentar provocar um short squeeze das ações da GameStop, AMC (entre outros) chocou o mundo quanto à possibilidade de grupos de investidores amadores se conseguirem “coordenar” em redes sociais. Em Fevereiro, após o Elon Musk ter adicionado a hastag #bitcoin na sua bio do Twitter, o anúncio de que a Tesla tinha comprado mais de mil milhões de doláres em Bitcoins e que passaria a aceitar pagamentos feito com esta criptomoeda, provocou mais uma subida vertiginosa do seu valor, quebrando recordes.

Este tipo de notícias atraiu os olhares de muitas pessoas para os mercados de cripto-ativos, procurando replicar as inúmeras histórias de pequenos amadores que viraram milionários – acabando por descobrir os Non-Fungible Tokens (NFT), através de notícias de leilões milionários de arte em NFT, como o que ocorreu com a venda de um NFT representando o popular vídeo do Nyan Cat. Mas afinal, o que são NFT?

Non-Fungible Tokens (NFT) ou em português, “Tokens” (fichas) não fungíveis, são um tipo de cripto-ativo, um token criptográfico, que, como o nome indica, representa algo único, não fungível. Distinguem-se assim da generalidade das tokens já conhecidas do público em geral, como as criptomoedas e cripto-ativos emitidos em ICOs com obrigações de crédito associados (por exemplo). Como estes cripto-ativos estão registados em Blockchain, a sua infungibilidade é assegurada – devido ao carácter descentralizado da Blockchain e do sistema de certificação peer-to-peer, nenhum NFT pode ser duplicado, nem falsificado (na Blockchain) – se alguém quiser um determinado NFT, tem de conseguir que o seu detentor lhe transmita o ativo.

Qual é a utilidade dos NFT? A sua infungibilidade e a forma como podem ser transmitidos utilizando diversas plataformas interoperáveis entre si, permite que estes possam atuar como uma espécie de “propriedade virtual” – as transações de NFT são autenticadas e registadas na Blockchain, permitindo o tracking da detenção de cada ativo singular. Desta forma, NFT podem ser utilizados para funções onde a escassez é necessária, seja para criar itens digitais exclusivos, colecionáveis, itens em jogos criptografados e “arte criptográfica”. 

A ideia de ter itens digitais que podem ser colecionados, que são escassos e alvo de grande cobiça já é antiga – desde que há videojogos online que permitem aos jogadores possuir e trocar itens virtuais, que isto se verifica em parte, com o surgimento de autênticos mercados secundários (geralmente não oficiais), em que certos itens são vendidos por grandes quantias monetárias. A questão é que ao contrário dos NFT, esses items virtuais, mesmo quando são excecionalmente raros, não são “verdadeiramente” únicos e exclusivos – mesmo quando existe apenas um, a empresa que opera o videojogo online, o prestador de serviço nesta relação, tem a capacidade de facilmente criar mais itens iguais – pode “editar” o número existente deste item, copiando o item supostamente único. Além de aumentar a quantidade, as próprias funções e características (incluindo a possibilidade de serem transmitidos entre contas de utilizadores) podem também ser alteradas da mesma forma. Assim, esta suposta ideia de escassez é “artificial”, baseada na relação de confiança entre o operador da plataforma e a comunidade de jogadores. Um simples update pode mudar tudo, sem que os utilizadores o possam impedir – sendo que os Termos de Utilização geralmente permitem isto. Com a utilização da tecnologia Blockchain, estas preocupações (que não impediram o surgimento de um mercado que vale milhões), não se aplicam.

A utilização inicial de NFT foi em jogos de cartas “cripto-colecionáveis”, mas a sua grande popularidade recente deveu-se à sua relação com a Arte, nomeadamente a Arte Digital ou Criptográfica. Vários artistas e personalidades, desde o produtor de música “Deadmau5”, o bilionário Mark Cuban, Justin Roiland da série Rick and Morty, até à atriz Lindsay Lohan, têm emitido e vendido NFT, que vão desde um clip de vídeo do LeBron James num jogo de baskteball, a quadros e desenhos, tweets[1] e músicas. A emissão e venda de NFT foi uma importante fonte de receitas para diversos artistas impedidos de realizar as suas atuações presenciais devido à pandemia da Covid-19. 

É importante referir que quando algum artista vende um NFT de uma música original da sua autoria, o comprador não adquire quaisquer direitos de autor (o “Copyright”) da música em si[2], mas um ativo único, exclusivo, não replicável que apenas “representa” a música[3] – é a autenticidade e exclusividade que atrai os colecionadores. Qualquer pessoa pode ser proprietária de uma cópia da Mona Lisa, mas existe apenas um original autêntico que se encontra no Louvre. 

Em termos de Direito de Consumo Europeu – enquanto a proposta de Regulamento de Mercados de Cripto-ativos (MiCA) (que já abordamos neste Blog) não é aprovada – o contrato realizado para a obtenção de um NFT trata-se de um contrato para o fornecimento de conteúdos digitais, sendo de destacar a aplicação dos seguintes diplomas (assumindo que estamos perante uma relação profissional-consumidor): 

-Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (93/6/CEE); 

-Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (2005/29/CE);

-Diretiva dos Direitos dos Consumidores (2011/83/UE);

-Diretiva dos Conteúdos e Serviços Digitais (UE 2019/770)[4];

Quanto à Diretiva de Bens de Consumo (UE) 2019/771, é de destacar que mesmo quando bens de consumo são vendidos acompanhados por um NFT que representa aquele bem físico – o fenómeno da tokenização de certos bens exclusivoscomo ténis da Nike –  esta não será aplicável à transmissão do NFT. Neste contrato misto, o fornecimento do NFT é uma prestação separada da venda do bem, dado que o token não está incorporado ou interligado com o bem físico, segundo as definições do nº 3 e 4 do artigo 2º, e o nº 4 do artigo 3º da Diretiva da Conteúdos Digitais e os nº 5-B e nº 10 do artigo 1º e o nº3 do artigo 3º da Diretiva de Bens de Consumo. 

No entanto, mesmo com aplicação das normas destes diplomas, a melhor forma de proteção dos consumidores neste caso é o seu conhecimento sobre este tipo de ativos e a moderação das suas expetativas – neste momento há muitas pessoas que estão a adquirir estes ativos apenas com o objetivo de aproveitar o potencial especulativo do seu valor. Todas as semanas há vendas que batem recordes e é fácil cair no entusiamo. 

Existem receios fundados que algumas destas vendas podem frustrar seriamente as expectativas dos seus detentores – é possível que exista ou se esteja a formar uma “bolha” e que estes ativos estejam sobrevalorizados – da mesma forma que existem alegações similares para outros tipos de cripto-ativos, e mesmo quanto aos mercados financeiros tradicionais. A possibilidade de uma inflação galopante se abater sobre o dólar também alimenta estes receios.

A verdade é que os NFT representam várias realidades muito diferentes entre si, sendo difícil de falar destes no seu todo. Por um lado, é muito provável que vários estejam sobrevalorizados e que uma bolha rebente – de forma similar à especulação dos colecionadores no mercado de bandas desenhadas nos anos 90 – e ou que continuem a ser bastante procurados, mantendo-se o interesse – de forma semelhante ao mercado de venda de arte, onde os colecionadores continuam bastante participativos em grandes leilões


[1] Dominic Cummings, ex-conselheiro do Primeiro-Ministro do Reino Unido Boris Johnson, ameaçou vender um NFT de documentos cruciais que demonstravam a incompetência e negligência do governo britânico na gestão da pandemia.

[2] Exceto no caso dessa transmissão estiver mesmo incluída nas cláusulas do contrato celebrado com o comprador do cripto-ativo. Neste caso a transmissão dos direitos de autor acontece devido a esta cláusula, não devido à transmissão do cripto-ativo, são prestações diferentes de um contrato misto. 

[3] Geralmente, devido à quantidade de memória exigida, a própria obra de arte digital que o token representa não se encontra armazenada na Blockchain, mas num website, geralmente de terceiros. O token funciona assim como um certificado, um registo de detenção. Devido a isto, surge frequentemente o problema de links mortos (dead links, due to link rot), isto é, o website onde estava alojada a obra foi apagado ou o link foi alterado. 

[4] O problema dos links mortos será particularmente relevante para a questão da conformidade do conteúdo digital com o contrato, de acordo com os artigos 7º e 8º da Diretiva dos Conteúdos e Serviços Digitais.

MB Way, “engenharia social” e operações fraudulentas

Doutrina

Por Maria Raquel Guimarães, Professora da Faculdade de Direito da Universidade do Porto

As recentes notícias sobre “burlas informáticas” e “cibercrime”, sobretudo associadas a vendas à distância através de plataformas electrónicas, como a OLX, e à aplicação móvel de pagamento MB Way, têm convocado a atenção dos meios de comunicação e criado grande perturbação entre os consumidores.

O MB Way é um instrumento de pagamento para efeitos do art. 2.º do Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica (RSP2) — aprovado pelo Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de Novembro, que transpôs para o direito nacional a Diretiva (UE) 2015/2366 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Novembro de 2015, relativa aos serviços de pagamento no mercado interno —, ainda que o seu utilizador possa não ter plena consciência dessa realidade e não adoptar os cuidados de segurança que asseguraria em relação a outros instrumentos de pagamento, materializados, por exemplo, num cartão de plástico, ou mesmo em relação a uma conta de banca electrónica acessível num computador.

A mobilização dos pagamentos implica um aumento dos riscos de fraude comparativamente com os pagamentos electrónicos “tradicionais”, pela utilização de redes wireless públicas, palavras-chave pouco seguras, descarregamento de potencial software “malicioso” (malware) através de aplicações pouco fiáveis, SMS, vídeos e mensagens partilhadas nas redes sociais, que o utilizador levianamente faz conviver com o acesso à sua conta bancária. Por outro lado, a utilização de aplicações desactualizadas ou mesmo que não permitem a realização de actualizações, em virtude da diminuta capacidade de armazenamento dos dispositivos móveis, abre caminho para vulnerabilidades e intromissões não autorizadas nos processos de autenticação e posterior captação de dados.

Nos casos noticiados, independentemente do efectivo preenchimento ou não de tipos criminais associados à utilização da informática, em termos de sofisticação os esquemas perpetrados são de uma simplicidade gritante e pressupõem uma dose considerável de candura ou de desatenção das vítimas. Não implicam qualquer conhecimento informático por parte dos burlões e são levados a cabo, nas modalidades mais reportadas, com recurso a um telefone. Se já sabíamos que em 91% dos casos o cibercrime começa com um email — e não com “ciber ataques” que explorem as fragilidades do sistema informático da vítima — nas hipóteses em causa é utilizado um método de “engenharia social” que procura tirar partido da tendência natural das pessoas para confiar nos outros, da tensão gerada por uma comunicação telefónica e do constrangimento provocado pela iliteracia tecnológica. Utilizando a expressão ancestral amplamente divulgada na língua portuguesa, estamos perante um “conto do vigário”.

Estes métodos de “engenharia social” têm evoluído rapidamente nos últimos tempos, sobretudo aproveitando a situação de confinamento provocada pela crise pandémica e uma maior propensão para “viver online”, tendo sido considerados como uma das mais importantes ameaças à segurança dos pagamentos no ano de 2020 pelo European Payments Council. Podem ser levados a cabo através de qualquer meio de telecomunicação, desde logo pelo telefone, como nos casos em apreço, correio electrónico, SMS ou redes sociais, com vista a obter as credenciais de acesso do utilizador a um serviço de pagamento (phishing) ou o acesso próprio ao serviço. A vítima é aliciada com compras fantasma, investimentos falsos, negócios com lucros fáceis, ou relações românticas. Em consequência, são efectuadas operações de pagamento fraudulentas, autorizadas ou não pela vítima.

Nas operações fraudulentas realizadas com recurso à aplicação de pagamento móvel MB Way estão em causa quer pagamentos autorizados, quer não autorizados, pelo utilizador do serviço móvel.

Esta aplicação móvel, que se anuncia como “o Multibanco no telemóvel”, permite, entre outras operações, “espelhar” um cartão de débito no telemóvel a fim de realizar pagamentos contactless em terminais de pagamento electrónico, transferir e receber fundos para/de outros dispositivos móveis, e gerar códigos — enviados por SMS — que, associados a um número de telefone móvel, permitem o levantamento de numerário directamente em caixas automáticas.

Os esquemas fraudulentos mais frequentes surgem em resposta a um anúncio de venda de um bem em segunda mão numa plataforma electrónica, visando enganar o vendedor (ou é o próprio burlão que se anuncia como vendedor de um bem na plataforma electrónica, visando enganar o comprador). Numa primeira modalidade de fraude, a vítima é instruída através de uma conversa telefónica para instalar a aplicação MB Way no seu telefone com recurso a uma caixa automática ou, sendo já utilizadora, para efectuar ou receber o pagamento devido, consoante o caso. Depois de inserir o seu cartão de débito e o seu código na caixa automática, é-lhe dito para inserir o número de telefone do falso comprador e o PIN indicado por este, recebendo ele no seu telefone o código de acesso à aplicação MB Way. Em alternativa, é inserido o número de telefone do utilizador (que o terceiro conhece porque este lhe foi facultado precisamente para acordarem o pagamento) e o código indicado pelo terceiro, e é pedido ao utilizador o código de verificação recebido por SMS. Em qualquer dos casos, o utilizador está a dar acesso ao terceiro à sua conta bancária, ainda que sem a consciência de o fazer, e não obstante as mensagens que são exibidas em janela durante o processo de adesão no sentido de nunca associar um número de telefone de um terceiro à aplicação e de não facultar o PIN de acesso ao serviço a outras pessoas.

Nestes casos, o risco das operações não autorizadas que venham a ser realizadas pelo terceiro, de levantamento de numerário ou de transferência de fundos, recairá sobre o utilizador que lhe facultou o acesso à sua conta, na medida em que tenha adoptado um comportamento contrário ao expressamente indicado — de forma adequada e eficaz — pelo prestador de serviços e, assim, tenha actuado com negligência grosseira, para os efeitos do art. 115.º, n.º 4, do RSP2.

A montante desta solução está, portanto, o cumprimento por parte do prestador do serviço de pagamento dos seus deveres de informação no sentido de facultar ao seu cliente a descrição das medidas que este deve adoptar para preservar a segurança do seu instrumento de pagamento. A não se considerarem cumpridos estes deveres de informação, e havendo sempre que apreciar a conduta do utilizador atendendo às particularidades do caso concreto, a este utilizador não poderia, em princípio, ser imputado um juízo de censura para além da negligência leve, com as consequências do n.º 1 do art. 115.º, do RSP2: suportar perdas até 50 euros.

O tempo dirá como os nossos julgadores apreciarão estas condutas, nomeadamente tendo em conta aquilo que é o comportamento do “homem médio”, colocado simultaneamente perante um “isco” camuflado por “engenharia social” e os alertas de fraude do prestador do serviço. Para o efeito seria útil conhecer-se os reais números da fraude e proceder-se a um tratamento sistemático da informação a ela relativa.

Uma segunda categoria de operações fraudulentas tem na sua base um esquema ainda mais simples de actuação: no momento de o utilizador receber um pagamento do terceiro via MB Way, para pagamento do preço de um bem vendido na sequência de um anúncio numa plataforma electrónica, é instruído, também telefonicamente, para “enviar dinheiro” ao falso comprador em vez de lhe “pedir dinheiro” (ou para aceitar um pedido de dinheiro em vez de um pagamento). Nestas hipóteses, as operações de pagamento fraudulentas são operações autorizadas pelo utilizador do instrumento de pagamento, realizadas por ele, devidamente autenticado, e através do seu dispositivo móvel. Estas operações fraudulentas não são abrangidas pelo disposto no RSP2 quanto a operações não autorizadas… porque são operações autorizadas. A fraude tem na sua base a iliteracia do utilizador — agravada pela pressão da “engenharia social” de que é vítima —, e terá que ser resolvido com base nas regras gerais do direito civil, nomeadamente do erro-vício, dolo, ou situação de necessidade.

Eventualmente o mercado incentivará o melhor esclarecimento, a maior diligência e literacia, também informática, dos utilizadores, motivado pelo aumento dos números de adesão a estes serviços, anunciados em Dezembro último, no site da aplicação MB Way, como correspondendo a 3 milhões de utilizadores, mas mais recentemente actualizados para 2,5 milhões. Em alternativa, caberá ao legislador acautelar estas operações fraudulentas, assegurando uma maior consciencialização dos consumidores relativamente aos riscos associados à mobilização dos pagamentos.

A obrigação de indemnizar decorrente do exercício da atividade de distribuição de energia elétrica e os casos de força maior

Doutrina

A atual configuração normativa do Sistema Elétrico Nacional (SEN) está assente, por um lado, numa sucessão de relações jurídicas, económica e juridicamente autonomizadas, que se estabelecem entre os vários sujeitos que operam no mercado da energia elétrica e integram a sua cadeia de valor (a qual compreende as etapas de produção, transporte, distribuição, comercialização e consumo), e, por outro lado, no princípio da separação (unbundling) entre as várias atividades do setor elétrico, nomeadamente as atividades de distribuição e de comercialização (artigos 339.º, n.º 1 e 350.º, n.ºs 1 e 2 do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC).

O comercializador e o operador da rede de distribuição de energia elétrica acham-se ligados por contrato de uso de redes (artigo 351.º do RRC e artigos 8.º e seguintes do Regulamento de Acesso às Redes e às Interligações – RARI), vínculo negocial por intermédio do qual o operador da rede se obriga a proporcionar ao comercializador o gozo das infraestruturas que tem a seu cargo para o fim de nelas fazer transitar a eletricidade e de nelas criar pontos de ligação (de receção e de entrega de eletricidade), e que se assume como um contrato a favor de terceiro, em que o terceiro beneficiário é o consumidor de eletricidade, com a nuance, face à configuração típica daquela estrutura contratual, de o promissário (no caso, o comercializador com quem o consumidor contratou o fornecimento de energia elétrica) responder (em termos semelhantes àqueles em que o comitente responde perante o comissário – artigo 500.º do Código Civil) pelo cumprimento das obrigações do promitente (no caso, o operador da rede de distribuição), como resulta do disposto pela norma do n.º 1 do artigo 10.º do Regulamento da Qualidade de Serviço dos Setores Elétrico e do Gás – RQS)[1].

Ora, como explica Pedro Falcão, “[p]or força deste contrato a favor de terceiro, scilicet, da cláusula a favor de terceiro consagrada no contrato de uso de redes «para efeitos de acesso às redes das instalações […] dos clientes do comercializador» (ponto 1 do Anexo I do Despacho n.º 18899/2010, publicado no Diário da República de 21 de dezembro de 2010), fica o operador da rede, promitente no âmbito deste contrato, devedor da respetiva prestação ao utente beneficiário, que terá direito a exigi-la nas devidas condições”, as quais se encontram previstas no artigo 5.º do RRC, ao postular que «[n]o exercício das suas atividades, os sujeitos intervenientes no Sistema Elétrico Nacional (…) devem observar as obrigações de serviço público estabelecidas na lei» (n.º 1), sendo uma dessas obrigações «[a] segurança, a regularidade e a qualidade do abastecimento» [n.º 2, alínea a)].

Sucede que, a par da responsabilidade civil obrigacional por factos ilícitos, o operador da rede de distribuição, porque tem a direção efetiva de instalação destinada à condução e entrega de energia elétrica, está sujeito a um outro título de imputação de danos – a responsabilidade pelo risco, independente de culpa, cujo fundamento radica no domínio e aproveitamento de uma fonte de risco, por força da hipótese típica do artigo 509.º do Código Civil –, salvo se demonstrar, como determinado pelo n.º 1 do artigo 11.º da LSPE, que, embora desenvolvendo uma atividade perigosa, sujeita, nomeadamente, aos deveres impostos pelas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de fevereiro, em face das circunstâncias do caso concreto e atendendo às suas capacidades, não lhe era exigível diferente atuação, verificando-se, assim, uma “causa de força maior” (cfr. artigo 509, n.º 2 do Código Civil).

Concretizando o que deve entender-se por “caso de força maior” para efeitos do cumprimento das obrigações de qualidade de serviço de natureza técnica aplicáveis ao SEN, dispõe o artigo 8.º do RQS, no seu n.º 3, que “[c]onsideram-se casos de força maior as circunstâncias de um evento natural ou de ação humana que, embora se pudesse prever, não poderia ser evitado, nem em si, nem nas consequências danos que provoca”, porquanto, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo e diploma, tais casos devem reunir “simultaneamente as condições de exterioridade, imprevisibilidade e irresistibilidade face às boas práticas ou às regras técnicas aplicáveis e obrigatórias”. Para efeitos de aplicação do regime regulamentarmente previsto para as interrupções acidentais por caso de força maior (cf. artigo 13.º, n.ºs 1, 2/b) e 3.º/f) do RQS), importa, ainda, atender às normas complementares estabelecidas pelo Manual de Procedimentos da Qualidade de Serviço dos Setores Elétrico e do Gás – Anexo II ao RQS –, particularmente o ponto 4. do Procedimento n.º 1 – Registo e Classificação das Interrupções no Setor Elétrico da sua Parte II.

Neste conspecto, vem-se consolidando uma doutrina jurisprudencial nos nossos tribunais superiores, que acompanhamos, segundo a qual as descargas elétricas atmosféricas (i.e., os raios produzidos pelas trovoadas) não devem ser consideradas uma circunstância de “força maior”[2]. De acordo com esta corrente, «(…) [u]m raio – um simples raio – pode não ser – não é – susceptível de ser dominado pelo homem, se esse homem for o simples consumidor de energia eléctrica, um dos autores. Mas já não pode aceitar-se que esse mesmo simples raio já não seja dominável por uma empresa como a ré, cujo objecto negocial é (…) a distribuição de energia. (…) O funcionamento e a utilização de uma rede de distribuição de energia eléctrica não pode localizar fora de si própria a existência normal de trovoadas e de raios. As trovoadas e os raios não são independentes do funcionamento e utilização da rede de distribuição. Podem ser – são – exteriores, mas não são independentes dessa utilização e funcionamento porque fenómenos naturais comuns e correntes com os quais a empresa que tem o negócio tem de contar em absoluto na montagem dele[3].

De igual modo, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem afastando a interação de cegonhas ou outras aves nas redes de condução e entrega de energia elétrica geridas e exploradas pelo operador da rede de distribuição como evento idóneo a preencher o conceito de “causa de força maior”, por se tratar de um fenómeno previsível até para o homem comum, suscetível de ser minimizado através da instalação de equipamentos dissuasores de pouso e de nidificação e de sinalizadores nas linhas de distribuição[4]. Em ambas as hipóteses ora destacadas, as doutas instâncias superiores entenderam que não se encontravam preenchidas as já enunciadas condições de imprevisibilidade e de irresistibilidade de que depende a classificação de uma interrupção “por força maior”, sendo as mesmas suscetíveis de serem reconduzidas, de modo diverso, à figura da interrupção “por causas próprias”, prevista na alínea h) do n.º 3 do artigo 13.º do RQS.


[1] Neste sentido, ver, entre outras e sem preocupações de exaustividade, a Sentença do TRIAVE – Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Ave, Tâmega e Sousa de 25 de julho de 2018, Processo n.º 1037/2018/FL (relator: Dr. Paulo Duarte).

[2] Corrente essa criada, nomeadamente, pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.11.2007, proferido no Processo n.º 06B2640, Relator: Pires da Rosa, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.04.2013, proferido no Processo n.º 6391/11.0TBBRG.G1, Relatora: Maria Rosa Tching, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.10.2013, proferido no Processo n.º 2211/10.1TJSB.C2, Relatora: Maria José Guerra, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.04.2018, proferido no Processo n.º 3702/16.6T8BRG.G1, Relator: Alcides Rodrigues e pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.01.2020, proferido no Processo n.º 1946/19.8YRLSB-6, Relatora: Maria de Deus Correia.

[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.11.2007, proferido no Processo n.º 06B2640, Relator: Pires da Rosa.

[4] Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2013, proferido no Processo n.º 3584/04.0TVLSB.L1.S1, Relatora: Maria Prazeres Pizarro Beleza, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16.01.2020, proferido no Processo n.º 1515/18.0T8EVR.E1, Relatora: Cristina Dá Mesquita.

Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica e Direito à Cobrança do Preço

Doutrina

O contrato de fornecimento de energia elétrica é um contrato misto, com elementos de compra e venda (art. 874.º do Código Civil) e de prestação de serviço (art. 1154.º do Código Civil) por terceiro, de execução duradoura, nos termos do qual o comercializador, nas palavras de Pedro Falcão, “única contraparte do utente no contrato”, se obriga à “venda da eletricidade e a promessa da prestação do serviço pelo terceiro operador da rede, consubstanciada na instalação e manutenção do contador, na entrega da eletricidade e na medição do consumo” (prestação de execução continuada), encontrando-se o utente adstrito à contraprestação, de execução periódica, consistente no pagamento do preço proporcional à energia elétrica pelo mesmo efetivamente consumida, fixado por unidade de medida (kWh), e reconduzível à figura da venda ad mensuram (art. 887.º do Código Civil).

No âmbito da execução do contrato, impende sobre o comercializador de energia elétrica o cumprimento do dever de informação ao utente (arts. 4.º da LSPE  e 3.º da Lei n.º 5/2019, de 11 de janeiro), sendo um dos seus corolários mais imediatos e mais relevantes, a obrigação de emissão de faturação detalhada, com periodicidade mensal, dotada dos elementos necessários a uma completa, clara e acessível compreensão dos valores faturados, na qual se discrimine, nomeadamente o montante referente aos bens fornecidos ou serviços prestados (arts. 9.º-4 da LSPE e 8.º-1 da Lei 5/2019).

Por força do disposto no art. 43.º-2 a 4 do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC), a faturação apresentada pelo comercializador ao utente tem por base a informação sobre os dados de consumo disponibilizada pelo operador da rede, obtida por este mediante leitura direta do equipamento de medição (art. 37.º-2 e 7-b) do RRC e ponto 29.1.2. do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental – GMLDD) – ou por estimativa de valores de consumo, nos intervalos entre leituras de ciclo, com recurso a método, previsto no GMLDD e escolhido pelo utente no momento da celebração do contrato, que aproxime o melhor possível os consumos faturados dos valores reais de consumo (arts. 39.º e 43.º-5 do RRC), na certeza, porém, que deve prevalecer, sempre que existente, a mais recente informação de consumos obtida por leitura direta do equipamento de medição, nesta se incluindo a que tenha sido comunicada pelo utente (arts. 37.º-1, 3 e 4 e 43.º-3 do RRC).

O primeiro dos pressupostos constitutivos do direito de crédito do comercializador ao pagamento do preço pelo utente consiste no facto de a quantidade de energia elétrica refletida na fatura ter sido registada pelo equipamento de medição instalado, em cada momento, no local de consumo do utente. É, portanto, com base nos dados de consumo obtidos mediante leitura do equipamento de medição afeto à instalação de consumo do utente que se deve aquilatar da correção da quantia peticionada a título de energia ativa consumida, desde que, por sua vez, esses dados tenham sido extraídos de equipamento de medição metrologicamente conforme – o segundo pressuposto constitutivo da posição jurídica ativa do comercializador.

Nos termos do art. 5.º-1 do Decreto-Lei n.º 45/2017, de 27 de abril, só podem ser disponibilizados no mercado e colocados em serviço os instrumentos de medição que satisfaçam os requisitos previstos no diploma e sejam objeto de uma avaliação de conformidade. Os instrumentos de medição que cumpram as exigências previstas no diploma gozam de uma presunção de conformidade.

O ponto 10.5 do Anexo I deste diploma estabelece que, “independentemente de poderem ou não ser lidos à distância, os instrumentos de medição destinados à medição de fornecimentos de serviços públicos devem estar equipados com um mostrador metrologicamente controlado que seja acessível ao consumidor sem a utilização de ferramentas. O valor indicado neste mostrador é o resultado que serve de base para determinar o preço da transação”.

Adicionalmente, importa atender ao disposto no art. 7.º-1 do Anexo à Portaria n.º 321/2019, de 19 de setembro, de acordo com o qual a “verificação periódica dos instrumentos de medição é anual, salvo no caso dos contadores de água, dos contadores de gás e instrumentos de conversão de volume e dos contadores de energia elétrica ativa, cuja periodicidade é a indicada no quadro n.º 1 constante do anexo ao presente Regulamento”, ou seja, 12 anos. Estão previstas normas para os contadores de energia elétrica ativa em utilização e instalados ao abrigo de regulamentos anteriores à portaria. Face a tudo quanto precede e nessa conformidade, forçoso é concluir que, como declarado, entre outras, na Sentença do TRIAVE, de 22 de outubro de 2018, Processo n.º 1601/2018/FL (relator: Dr. Paulo Duarte), “a prova da realização do fornecimento (ou, simetricamente, do consumo) de energia elétrica, e da correspondente quantidade real (a prova, pois, da realização e da real medida da prestação do fornecedor deste “serviço público essencial”), apenas pode fazer-se através de indicação constante de contador metrologicamente conforme, considerando quer os requisitos essenciais de colocação em serviço, quer as exigências de verificação periódica”.

Incumprimento dos prazos de entrega nas encomendas online

Doutrina

Imaginemos o seguinte cenário: saiu um novo livro da nossa série preferida e queremos lê-lo o mais rapidamente possível. Vamos de imediato à internet e, após várias pesquisas, concluímos que devemos encomendar através da página online da livraria Livros para todos os gostos. Ao lado do livro, aparece a opção: “Disponível para entrega. 2 a 5 dias úteis”.

Passado o 5.º dia útil, contactamos a livraria, que nos informa de que está com problemas com o fornecedor e que não sabe quando poderá proceder à entrega do livro. Remete ainda para um documento disponível no site, designado “Termos e Condições”, que tem uma cláusula 4.ª na qual a empresa se desresponsabiliza pelos prazos indicados nas suas ofertas.

O que fazer?

Deixemos desde já o alerta para a circunstância de o regime legal não ser especialmente protetor do consumidor nestes casos. Tal como não protege, na verdade, os concorrentes daquela livraria. Teríamos certamente optado pela livraria online do lado, que prometia entregar em 6 dias úteis, se soubéssemos que o prazo indicado pela livraria na qual encomendámos o livro não iria ser cumprido.

Comecemos pela parte mais fácil: os chamados “termos e condições”, que não são termos e condições, figuras jurídicas com um sentido próprio e bem diferente deste, mas cláusulas a incluir em contratos, normalmente escondidos nas páginas dos profissionais ou colocados em links pelos quais não se passa ou se passa rapidamente, não estão, em regra, incluídos no contrato, por força da aplicação das normas relativas à inserção das cláusulas contratuais gerais em contratos singulares. Veja-se, em especial, o art. 5.º do DL 446/85. Estando excluídas essas cláusulas do contrato, o profissional não pode invocar que os prazos de entrega são meramente indicativos.

Quanto aos prazos para entrega dos bens, aplica-se o art. 9º-B da Lei de Defesa do Consumidor.

O profissional “deve entregar os bens na data ou dentro do período especificado pelo consumidor” (n.º 1).

Se o profissional não entregar nesse prazo, o consumidor terá ainda, em regra, de dar um prazo adicional ao profissional antes de poder resolver o contrato (n.º 4). Só será possível a resolução imediata no caso de o profissional se recusar a entregar os bens, o prazo for essencial tendo em conta “todas as circunstâncias que rodearam a celebração do contrato” ou tiver havido acordo quanto à essencialidade do prazo (n.º 5).

O problema é que a resolução do contrato, imediata ou diferida, não é normalmente a solução pretendida pelo consumidor. No caso que estamos a analisar, o consumidor não quer a destruição dos efeitos do contrato. Aquilo que quer é o livro. E, já agora, quer também uma compensação por não ter recebido o livro.

Se é certo que o consumidor tem direito a indemnização, nos termos gerais, o dano não é facilmente identificável nestas situações. Num sistema que não admite os danos punitivos e é bastante restritivo na atribuição de danos não patrimoniais, compensa a prática de ser agressivo na indicação dos prazos de entrega, sabendo que se pode depois incumprir.

As dificuldades são exatamente as mesmas se aplicarmos o regime das práticas comerciais desleais (DL 57/2008), acrescendo o problema da prova dos pressupostos previstos no regime. Na prática, o direito a indemnização é limitado também neste diploma. Restam ao consumidor as opções já aqui (e aqui) referidas no blog do boicote e do buycott: opções de consumo conscientes, privilegiando-se quem cumpre.

A admissibilidade da venda de smartphones sem adaptador à luz do direito à informação

Doutrina

Antes da chegada dos smartphones, e numa altura em que o e-waste era um termo desconhecido para a maioria das pessoas, era comum que cada fabricante fosse responsável por, pelo menos, um carregador proprietário. De acordo com a avaliação de impacto inicial, elaborada pelo grupo de peritos da Comissão Europeia sobre equipamentos de rádio (E03587), também conhecido por RED expert group, em 2009, […] mais de 30 soluções proprietárias existiam no mercado”.

Numa perspetiva de sustentabilidade, e para mitigar o impacto ambiental causado pela falta de estandardização, a União Europeia decidiu agir.
O memorando de entendimento relativo à harmonização da capacidade de carregamento para telemóveis, de 5 de junho de 2009, foi um dos primeiros passos neste sentido, e permitiu iniciar o diálogo com as empresas de telemóveis no que concerne à adoção voluntária do micro-USB para efeitos de interoperabilidade e diminuição de lixo eletrónico. É por volta desta altura que começam a proliferar pelo mercado carregadores compostos por duas peças: um cabo micro-USB e um adaptador de corrente. Estes têm um impacto ambiental menor e conferem vantagens económicas para o consumidor pois, ao permitir trocar o cabo, a parte mais frágil e mais propícia a deixar de funcionar, o consumidor prolonga a vida do adaptador de corrente.
A União Europeia continuou os seus esforços no sentido de reduzir o e-waste e, para tal, apostou na padronização dos carregadores com a Diretiva 2014/53/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de abril de 2014 e com um novo Memorando de Entendimento emitido a 20 de março de 2018. Neste memorando, é adotado o USB-C como a nova solução comum para o carregamento de equipamentos eletrónicos, persistindo o caráter voluntário de adoção como no já referido memorando de 2009.
É neste contexto que temos de analisar a nova prática comercial de não incluir adaptadores de corrente juntamente com os telemóveis, procurando dar uma resposta à questão da admissibilidade desta prática.

Oferecendo uma resposta breve, podemos dizer que ao abrigo das regras de mercado livre, e desde que informe devidamente o consumidor, o profissional pode deixar de incluir o adaptador de corrente nas caixas de telemóvel, existindo já uma decisão neste sentido no Brasil[1]. O desequilíbrio na relação comercial em análise surge se o profissional não informar que alterou o conteúdo incluído na caixa do telemóvel, apresentando-o como se nenhuma alteração tivesse sido feita, ferindo as expectativas do consumidor.
O direito à informação está constitucionalmente garantido no art. 60.º-1 da Constituição da República Portuguesa, estando também previsto, em termos gerais, na alínea d) do art. 3.º da Lei de Defesa do Consumidor (LDC). A LDC concretiza este direito nos arts. 7.º e 8.º, relevando o último para efeitos de resolução do caso em questão, por tratar do direito à informação em particular. O art. 8.º-1-a) esclarece que “o fornecedor de bens ou prestador de serviços deve, tanto na fase de negociações como na fase de celebração de um contrato, informar o consumidor de forma clara, objetiva e adequada […] nomeadamente sobre […] as características principais dos bens ou serviços”. Este artigo necessita de alguma adaptação ao caso em análise se quisermos diferenciar os acessórios e o bem principal, em vez de uma análise conjunta do conteúdo da caixa. Não obstante, mesmo que não fosse possível situar o caso em estudo no art. 8.º-1-a), o n.º 1 não apresenta um conjunto fechado de situações para as quais o profissional tem o dever de informar o consumidor. Caso contrário, o consumidor ficaria desprotegido em várias situações. A utilização do termo “nomeadamente” aponta para esse sentido, pelo que é possível enquadrar o caso em análise no espírito da norma.
Como consequência da falta de informação sobre o conteúdo da caixa, o art. 8.º-5 estabelece que “o fornecedor de bens ou o prestador de serviços que viole o dever de informar responde pelos danos que causar ao consumidor”. Este número deve ser articulado com o n.º 4 do mesmo artigo, que esclarece que, quando se verificar falta de informação que comprometa a utilização adequada do bem, o consumidor tem o direito de resolução do contrato no prazo de sete dias úteis a contar da data de receção do bem. A essencialidade do adaptador é evidente por não ser possível carregar, ou carregar eficazmente o telemóvel, recorrendo apenas ao cabo que vem incluído na caixa. Deste modo, a utilização adequada do telemóvel fica comprometida se o profissional não informar que o adaptador, ao contrário do que costuma ser a prática reiterada deste mercado, não está incluído com o telemóvel.
Assim, por efeito da violação do dever de informação pelo profissional, o consumidor tem o direito de resolução do contrato no prazo de sete dias úteis a contar da data de receção do bem, bem como o direito a indemnização, nos termos gerais.


[1] Para aceder ao documento é necessário introduzir o número de processo 1019678-91.2020.8.26.0451 e o código 9463E02

Conceito de litígio de consumo e as pessoas coletivas de utilidade pública

Doutrina

Com vista a estabelecer os princípios e as regras a que deve obedecer o funcionamento das entidades de resolução alternativa de litígios de consumo, a Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro, que transpôs a Diretiva 2013/11/UE, no n.º 2 do seu artigo 2.º, procede, para aqueles efeitos, a uma delimitação negativa do conceito de “litígio de consumo”, dele excluindo, nomeadamente, sob alínea a), “[o]s serviços de interesse geral sem contrapartida económica, designadamente os que sejam prestados pelo Estado ou em seu nome, sem contrapartida remuneratória”.

Ora, a solução normativa da alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º é decalcada da regra consagrada na alínea c) do n.º 2 do artigo 2.º da Diretiva 2013/11/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, a qual exclui do seu âmbito de aplicação “os serviços de interesse geral sem caráter económico”, categoria essa prevista na Diretiva “Serviços”, cujo considerando (34) tem a seguinte redação: «De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a identificação de certas atividades, em particular de atividades que são publicamente financiadas ou prestadas por entidades públicas, como pertencentes à categoria «serviços» tem de ser efetuada caso a caso, à luz de todas as suas características, em particular quanto à forma como são prestadas, organizadas e financiadas no Estado-Membro em questão. O Tribunal de Justiça sustentou que a característica essencial da remuneração reside no facto de constituir uma contrapartida pelos serviços em questão e reconheceu que a característica da remuneração não está presente nas atividades que o Estado realize ou que se realizem em nome do Estado sem contrapartida económica no âmbito da sua missão nos domínios social, cultural, educativo e judiciário, tais como o ensino ministrado no âmbito do sistema educativo nacional, ou a gestão de regimes de segurança social que não participem em atividades económicas. O pagamento de taxas pelos destinatários, por exemplo, as propinas ou a inscrição pagas por estudantes como contributo para os encargos de funcionamento de um sistema, não constitui em si uma remuneração, porque o serviço continua a ser financiado por fundos públicos. Essas atividades não estão, por conseguinte, abrangidas pela definição de serviço do artigo 50.º do Tratado, pelo que não se incluem no âmbito de aplicação da presente diretiva.»

A partir do considerando que se acaba de transcrever, parece poder concluir-se que a categoria dos “serviços de interesse geral sem caráter económico”, igualmente excluída do âmbito de aplicação da Diretiva “Serviços” [artigo 2.º, n.º 2, alínea a)], visa contemplar um conjunto de atividades que, sendo serviços de facto, para efeitos do Direito da União, mormente o artigo 57.º do TFUE (consideram-se “serviços”, para efeitos do disposto nos Tratados, “as  prestações  realizadas  normalmente  mediante  remuneração”) – expressamente acolhido pelo 1) do artigo 4.º da Diretiva “Serviços” – devem considerar-se afastadas da noção jurídico-comunitária de “serviço”, por, em concreto, não revelarem “uma dimensão económica que seja principalmente atestada pela existência de remuneração ou contrapartida financeira, mas também – embora não necessariamente – pela finalidade de obter um lucro, ou/e de ser financiada principalmente por fundos privados”[1], independentemente da forma jurídica pública ou privada do prestador.

Sublinhe-se, ainda, que, em matéria de auxílios estatais e, em termos mais amplos, no contexto do direito da concorrência, a jurisprudência do Tribunal de Justiça vem afirmando um conceito de “empresa” que abrange “qualquer entidade que exerça uma atividade económica”, isto é, uma atividade consistente na “oferta de bens ou serviços num determinado mercado”, independentemente do estatuto jurídico ou do modo de financiamento do ente ou do facto de o serviço ser pago por aqueles que dele beneficiam. Mas certo é também que, por exemplo, no caso de ensino ministrado em certos estabelecimentos financiados, total ou principalmente, por fundos públicos, deve entender-se que o Estado “não pretende[u] envolver-se em atividades remuneradas, mas sim cumprir a sua missão nos domínios social, cultural e educativo para com a sua população”[2].

Isto posto, no caso particular das pessoas coletivas de utilidade pública (associações, fundações ou certas cooperativas), embora o estatuto de utilidade pública que lhes foi atribuído pressuponha, entre outros requisitos cumulativos, o desenvolvimento, sem fins lucrativos, de uma atividade de intervenção em favor da comunidade em áreas de relevo social e o não desenvolvimento, a título principal, de atividades económicas em concorrência com outras entidades que não possam beneficiar do estatuto de utilidade pública (cf. artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro, na sua redação atual, que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 391/2007, de 13 de dezembro), se se constatar, nomeadamente através das suas demonstrações financeiras, que a sua maior fonte de rendimentos consiste em prestações de serviços, nesse caso, ainda que a política de preços a que obedecem os serviços pelas mesmas prestados tenha em vista a promoção de um acesso generalizado pelos beneficiários associados (inclusive aqueles que aufiram baixos rendimentos), deve concluir-se que tais pessoas coletivas desenvolvem profissionalmente uma atividade económica com vista à obtenção de vantagens patrimoniais (o que não se confunde, necessariamente, com escopo lucrativo), não sendo, portanto, prestadoras de serviços não económicos de interesse geral.

Veja-se, a título exemplificativo, o caso da Fundação Inatel. Por intermédio do Decreto-Lei n.º 106/2008, de 25 de junho, foi concretizada a extinção do INATEL – Instituto Nacional para o Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores, I. P. (artigo 1.º), e instituída, pelo Estado Português, uma fundação privada de utilidade pública – a Fundação INATEL (artigos 2.º e 7.º) –, que sucedeu ao INATEL, I.P. em todos os seus direitos e obrigações, bem como na prossecução dos seus fins de serviço público (artigo 3.º) – nomeadamente, a promoção das melhores condições para a ocupação dos tempos livres e do lazer dos trabalhadores, no ativo e reformados, desenvolvendo e valorizando o turismo social, a criação e fruição cultural, a atividade física e desportiva, a inclusão e a solidariedade social (artigo 5.º) –, deixando a pessoa coletiva de integrar a administração central do Estado – e, mesmo, a Administração Pública (cf. artigo 2.º, n.º 4 do CPA de 2015) –, epassando a assumir natureza jurídica mais consentânea com as características e o tipo de atividades que prossegue (cf. Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 106/2008, de 25 de junho). Mas, por outro lado, mediante consulta das mais recentes demonstrações financeiras da Fundação INATEL, disponíveis online em http://www.inatel.pt/, verifica-se que a maior fonte de rendimentos da Fundação INATEL consiste nas “prestações de serviços” (cf. alínea a) do artigo 7.º dos Estatutos da Fundação INATEL, aprovados em anexo ao Decreto-Lei n.º 106/2008, de 25 de junho), que assumem um peso de cerca de 50 % no total de rendimentos auferidos, enquanto os “subsídios à exploração”, atribuídos, na sua esmagadora maioria, pelo IGFSS – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. e pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (cf. alíneas e) e f) do artigo 7.º dos Estatutos da Fundação INATEL), representam cerca de 25 % do universo de rendimentos.


[1] Conclusões do advogado-geral Michal Bobek apresentadas em 15 de novembro de 2018, no Processo C-393/17 (Openbaar Ministerie v Freddy Lucien Magdalena Kirschstein and Thierry Frans Adeline Kirschstein) do Tribunal de Justiça, em sede de pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Hof van beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso de Antuérpia, Bélgica), n.ºs 45 a 99, em especial n.ºs 64 e 74.

[2] Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 27 de junho de 2017, proferido no Processo C-74/16 (Congregación de Escuelas Pías Provincia Betania c. Ayuntamiento de Getafe), em sede de pedido de decisão prejudicial do Juzgado Contencioso-Administrativo n.º 4 de Madrid (Tribunal do Contencioso Administrativo, n.º 4 de Madrid, Espanha), n.ºs 41 a 51.