A Criptomoeda de Squid Game: uma gota no oceano?

Doutrina

Há uns dias surgiu uma nova fraude envolvendo criptomoedas. Os responsáveis por este esquema fraudulento ter-se-ão aproveitado do sucesso da série da Netflix, Squid Game, para criar e comercializar a SQUID, criptomoeda inspirada na série, tendo com isso retirado 2,9 milhões de euros aos investidores, através da estratégia de rug pull[1]. Esta criptomoeda terá sido criada a fim de ser utilizada num jogo online baseado na série, mas o que prejudicou os milhares de investidores foi não conseguirem vender o ativo, uma vez adquirido.

Estes esquemas fraudulentos são bastante comuns, e diversos são os fatores que contribuem para que tal aconteça. Por um lado, temos o fear of missing out, que suscita um comportamento impulsivo por parte dos investidores. Por outro lado, existe uma grande estratégia de marketing em torno de criptoativos com nomes atrativos, ou associados a séries, filmes, marcas ou outros produtos, com white papers muito duvidosos, sendo que, na maioria das vezes, os criadores do criptoativo não são os proprietários da propriedade intelectual à qual se referem, e limitam-se a emitir tokens sem qualquer plano de longo prazo, o que não justifica a criação e publicitação do ativo junto dos investidores e consumidores.

Além do exposto, a maioria dos criptoativos já emitidos e em circulação são parte de fraudes, através das quais os investidores, muitas vezes, adquirem ativos que não possuem qualquer valor, e noutras vezes, pagam e não recebem qualquer criptoativo.

Dado o exposto, concluímos que o grande problema em torno dos criptoativos, que impulsionam as fraudes, é o deslumbramento com esta tecnologia, pois há uma errada perceção de que os criptoativos têm um valor elevado, mas isto apenas se aplica a um número reduzido de casos, que despertaram uma grande atenção e interesse nos meios de comunicação social, fomentando a ideia de sucesso deste tipo de tecnologias, o que não é, nem de perto, a Big Picture.

Importa esclarecer o que são as criptomoedas, riscos inerentes e que regulação existe em Portugal neste âmbito. Ora, as criptomoedas consistem na representação digital de ativos, baseada na tecnologia blockchain. Estes criptoativos[2] têm como principal característica a descentralização, ou seja, não são emitidos por instituições como bancos centrais, instituições de crédito ou instituições de moeda eletrónica. Apesar da elevada segurança garantida nas transações, a criptomoeda comporta diversos riscos difíceis de colmatar, nomeadamente: elevada volatilidade, que se revela nas variações de preço imprevisíveis e abruptas; risco de financiamento ao terrorismo e branqueamento de capitais, uma vez que através do anonimato garantido pelo criptoativo, haverá uma ocultação da origem dos fundos investidos.

Apesar de não haver legislação portuguesa sobre o assunto, a estes criptoativos poderá ser aplicada a legislação relativa aos valores mobiliários. Para que tal aconteça, deverá ser feita uma análise casuística com vista à aferição da verificação dos requisitos cumulativos constantes do artigo 1.º do Código dos Valores Mobiliários (CVM). De acordo com o referido artigo 1.º do CVM este criptoativo tem de ser um “documento representativo de uma ou mais situações jurídicas de natureza privada e patrimonial” e, além disso, deve possuir algumas características dos valores mobiliários típicos[3]. Caso se conclua que o criptoativo reúne todas as condições para se qualificar como valor mobiliário, e este tenha sido emitido ou esteja a ser comercializado em Portugal, estará sujeito a diversas normas, das quais se destacam: em primeiro lugar, as normas relativas à emissão, representação e transmissão de valores mobiliários; em segundo lugar, os requisitos sobre a qualidade da informação, aspeto muito importante para os possíveis investidores; em terceiro lugar, o regime relativo ao abuso de mercado.

A União Europeia, verificando a existência de diversos projetos de decreto-lei por parte de alguns estados-membros, e por considerar que deveria haver uma unificação na regulação deste tipo de ativos,  apresentou, em 24 de setembro de 2020, a proposta de Regulamento do Pparlamento Europeu e do Conselho relativo aos mercados de criptoativos e que altera a Diretiva (UE) 2019/1937, assunto já abordado aqui no nosso blog. O objetivo primário desta proposta de regulação será fomentar e apoiar o desenvolvimento digital, garantindo alguma segurança jurídica e procurando mitigar o problema das fraudes, a grave assimetria de informação e outros problemas negativos, implementando normas menos exigentes do que as adotadas nos mercados mobiliários tradicionais. Note-se que não se pretende limitar nem erradicar esta tecnologia, mas sim estabelecer um quadro jurídico sólido que permita o desenvolvimento destes mercados na União Europeia, com o intuito de se retirar o máximo proveito possível, protegendo os consumidores e garantindo a estabilidade financeira. Esta proposta encontra-se ainda em fase de discussão, pelo que teremos de aguardar o desenrolar dos acontecimentos.

Refira-se ainda, a título de curiosidade, que em El Salvador foi introduzida a bitcoin como moeda oficial, tendo o Governo nacional informado que esta passaria a ser aceite como forma de pagamento, por parte de todos os agentes económicos, excluindo-se, aqui, qualquer outro criptoativo. Esta medida terá como objetivo regularizar a bitcoin, sem quaisquer restrições legais.

Se estiver interessado em investir em criptoativos, deverá conhecer os riscos inerentes, não realizar um investimento cuja perda potencial não possa suportar e estar atento às características dos esquemas fraudulentos.


[1] Verifica-se nos casos em que os criadores do criptoativo desviam os fundos dos investidores e abandonam o projeto sem deixar rastro.

[2] Nakavachara, Voraprapa and Potipiti, Tanapong and Lertmongkolnam, Thanawan, Should All Blockchain-Based Digital Assets be Classified Under the Same Asset Class? (August 18, 2019). Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3437279 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3437279

[3] Estas características referem-se à “vinculação do emitente à realização de condutas das quais resulte uma expectativa de retorno para o investidor” e prática de atos por parte do emitente ou entidade relacionada que proporcionem o aumento do valor do criptoativo.

As Criptomoedas – Um Fenómeno Monetário Emergente com Relevo para o Direito do Consumo?

Doutrina

Por José Engrácia Antunes

I. As criptomoedas (“cryptocurrencies”, “cryptomonnaies”, “Cryptowährungen”, “criptomonete”), também por vezes designadas moedas virtuais ou cibermoedas, podem definir-se com um tipo de moeda emergente em suporte digital cuja emissão, titularidade e transmissão assenta numa tecnologia de registo criptográfico e descentralizada de dados digitais (“blockchain”), que é aceite no âmbito de uma comunidade virtual e é suscetível de desempenhar as funções monetárias (meio de troca, unidade de conta, reserva de valor).

II. As criptomoedas representam a mais recente etapa da história monetária – uma história multimilenar, aliás, sempre renovada e em permanente devir. Após a exclusividade da moeda física (notas de papel e moedas metálicas) durante séculos a fio, a hegemonia da moeda bancária (“bank money” ou “b-money”) desde meados do séc. XX, a emergência da moeda eletrónica (“electronic money” ou “e-money”) em plena viragem para o séc. XXI, eis que, no espaço de apenas uma década, assistimos à génese ou embrião de um novo tipo ou espécie de moeda – a moeda virtual (“virtual money” ou “v-money”).

III. A origem histórica das criptomoedas está indissoluvelmente ligada ao estudo seminal e pioneiro do enigmático Satoshi Nakamoto, intitulado “Bitcoin: A Peer-to Peer Electronic Cash System”, publicado em 31 de dezembro de 2008, que concetualizou um novo tipo de moeda exclusivamente assente numa rede direta de participantes (“peer-to-peer”) baseada numa nova tecnologia descentralizada e criptográfica de registo, tratamento e armazenamento eletrónico de dados que permite assegurar um sistema de emissão e circulação de moeda e de pagamentos sem necessidade da intervenção de intermediários, mormente bancos (“blockchain”).

IV. O relevo económico desta nova espécie monetária é muito significativo, tendo as criptomoedas, no espaço de pouco mais de uma década, registado uma enorme difusão. À data em que escrevemos (1 de julho de 2021), a capitalização do mercado das criptomoedas era de aproximadamente 1 455 biliões de dólares, com mais de 5 400 tipos de criptomoedas em circulação e um volume diário de transações na ordem dos 89 biliões de dólares. A criptomoeda dominante é a “Bitcoin” (BTC), com cerca de 18,7 milhões de unidades em circulação, com valor unitário de 35 077 dólares e representando cerca de 45% do total do mercado: relembre-se que esta moeda, que atingiu a paridade com o dólar apenas dois anos após a sua primeira emissão (2011), chegou já a atingir no corrente ano de 2021 o valor astronómico de 63 523 dólares por “bitcoin”. Outras criptomoedas com difusão e capitalização de mercado relevantes são a Ether (18,27%), Tether (3,78%), Cardano (4.33%), Binancecoin (3,21%), Cardano (3,05%), Dogeoin (2,28%), XRP (2,21%), USCoin (1,75%) e Polkadot (1,07%), representando todos os demais milhares de moedas em circulação cerca de 17% do mercado.

V. Desde o seu aparecimento, as criptomoedas têm sido o mote de apaixonadas discussões, que alternam entre a fascinação confessa e a crítica feroz. Para os seus admiradores, elas representam a “alvorada” de uma nova era jurídico-financeira e tecnológica (Don Tapscott): enquanto moeda privada independente dos Estados e dos bancos centrais e comerciais, ela permite assegurar as funções monetárias diretamente pelas próprias partes das transações económicas (“peer-to-peer”) sem necessidade da intermediação de terceiros, com ganhos de eficiência, rapidez, segurança, polivalência e privacidade. Para os seus detratores, pelo contrário, as criptomoedas são sinónimo de risco e infortúnio (Paul Krugman), sendo-lhe apontados os perigos da volatilidade, inconvertibilidade, anomia regulatória, potencial uso ilícito e impacto sistémico.

VI. As criptomoedas são hoje, no essencial, um fenómeno que não foi ainda objeto de uma regulação própria no mundo do Direito. A extrema novidade das moedas virtuais, a sua matriz tecnológico-computacional (dando origem a uma espécie de criptês” exotérico para os quadros tradicionais dos juristas) e a controvérsia reinante em torno das suas vantagens e riscos tem conduzido a uma verdadeira encruzilhada regulatória ou “criptodilema” (Bert-Jaap Koops): se alguns defendem uma estratégia regulatória minimalista, assente num princípio de autonomia privada e de autorregulação, outros inversamente sustentam ser necessária a intervenção do legislador na matéria, subordinando as criptomoedas a um quadro legal de emissão, circulação e supervisão adequado.

VII. Qualquer que seja a estratégia regulatória que venha a vingar no futuro, afigura-se inequívoco a multiplicação, nos últimos anos, das intervenções de natureza legislativa, regulamentar e até jurisprudencial na matéria – dando origem a um mosaico regulatório assaz incipiente, fragmentário e inarticulado de “fontes” internacionais, europeias e nacionais.

VIII. Ao nível internacional ou comparado, assiste-se a uma profusão algo errática de entendimentos. Sirva de ilustração o caso dos Estados Unidos da América, onde a autoridade federal dos crimes financeiros (“Financial Crimes Enforcement Network” ou FinCen) qualificou as criptomoedas como um valor equivalente a moeda (“value”), a autoridade tributária (“Internal Revenue Service” ou IRS) como “propriedade” (“property”), e a autoridade de supervisão do mercado de capitais (“Securities Exchange Commission” ou SEC) como “valores mobiliários” (“securities”) sempre que tenham por função essencial o investimento e a captação de fundos.

IX. Ao nível da União Europeia, destacam-se as noções de moeda virtual contidas na Diretiva UE/2015/849, de 20 de maio (art. 3.º, 18], na versão dada pela Diretiva UE/2018/843, de 30 de maio),relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo, e na Diretiva UE/2019/713, de 17 de abril, relativa ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não numerário (art. 2.º, d]). A jurisprudência europeia também já equiparou os pagamentos realizados em “bitcoins” e em divisas tradicionais para efeitos fiscais (Acórdão do TJUE de 22-X-2015 [Skatteverket v. David Hedqvist]). Mais recentemente, merece especial destaque a proposta de um Regulamento Relativo aos Mercados de Criptoativos de 2020: entre os objetivos desta proposta, encontram-se a promoção da inovação tecnológica, a preservação da estabilidade financeira e a proteção dos investidores dos riscos, bem assim como a segurança jurídica relativamente aos emitentes e aos prestadores de serviços de criptoativos (Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo aos mercados de criptoativos e que altera a Diretiva (UE) 2019/1937, COM(2020) 593 final).

X. Enfim, ao nível de Portugal, são também escassas e de teor genericamente precaucionista as referências ao fenómeno das moedas virtuais. Entre elas, pode referir-se os arts. 2.º, ll), 112.º, 112.º-A e 169.º-A, ccc) da Lei nº 83/2017, de 18 de agosto, vulgarmente designada como Lei do Branqueamento de Capitais e Financiamento de Terrorismo (relativos à noção de ativo virtual e à supervisão das entidades prestadoras de serviços sobre moedas virtuais); os diversos comunicados da autoridade de supervisão do mercado bancário (v.g., “Esclarecimento do Banco de Portugal sobre Bitcoin” (2013), Carta Circular do BdP nº 011/2015/DPG, de 10 de março, etc.), da autoridade de supervisão do mercado financeiro (v.g., “Comunicado às Entidades Envolvidas no Lançamento de «Initial Coin Offerings» (ICOs) Relativo à Qualificação Jurídica dos Tokens” de 2018) e até da própria autoridade tributária (v.g., Processos nº 5717 e 14763, por despachos respetivamente de 27/12/2016 e 28/1/2019).

XI. Sublinhe-se, aliás, que, se o Direito tem avançado lentamente, a realidade económica das criptomoedas não parou, trazendo assim novos fatores a ser tidos em conta na sua equação jurídica. Exemplos disso são as criptomoedas estáveis – uma modalidade especial de moeda virtual que incorpora mecanismos de estabilidade destinados a mitigar o típico problema da volatilidade criptomonetária (“maxime”, a projetada Libra do Facebook) – e as criptomoedas públicas – uma espécie de versão virtual da moeda física tradicional, emitida e garantida pelas próprias autoridades monetárias oficiais (“maxime”, o “Digital Currency/ Electronic Payment” (DCEP) lançado pela República Popular da China em 2021, que constitui uma espécie de “yuan digital” destinado a substituir a prazo o “yuan” físico).

XII. Malgrado não tenham obtido uma consagração ou regulação expressa na Ordem Jurídica, as moedas virtuais são uma espécie monetária juridicamente relevante, colocando problemas aos mais variados ramos do Direito, desde o direito das obrigações e dos direitos reais ao direito comercial ou ao direito financeiro, passando pelo direito fiscal, direito penal ou direito internacional privado. Isso também é verdade para o Direito do Consumo – sendo várias a ilustrações desta relevância, aqui apresentadas sob forma interrogativa.

XIII. Será de qualificar como compra e venda o negócio de aquisição cujo preço seja saldado em criptomoedas? Suponha-se que um consumidor A encomendou no “site” da empresa B um livro, em contrapartida do pagamento de 0,0018 bitcoins ou 18 mBTC (o equivalente atual a 50 euros): será tal negócio de qualificar como uma compra e venda de consumo, considerando o pagamento criptomonetário como cumprimento da obrigação de pagamento de “preço” para efeitos dos arts. 550.º e 874.º do Código Civil, enquanto tal sujeito às disposições gerais da Lei de Defesa do Consumidor, da Lei da Venda de Bens de Consumo, e das demais leis especiais consumeristas?

XIV. É sabido que as criptomoedas possuem, a par das suas inegáveis vantagens (v.g., desintermediação, rapidez, segurança, universalidade, polivalência, privacidade), também assinaláveis riscos, entre as quais se destacam a sua volatilidade, instabilidade, anomia regulatória e potencial uso ilícito. Assim se compreende que as autoridades de supervisão europeias e portuguesa tenham vindo a emitir sucessivos alertas aos consumidores e usuários neste sentido (v.g., entre nós, “Esclarecimento do Banco de Portugal sobre Bitcoin” (2013), “Alerta aos Consu­midores para os Riscos de Utilização de Moedas Virtuais” (2014), “Banco de Portugal Reitera Alertas aos Consumidores sobre Riscos Associados aos Ativos Virtuais” (2021)). Serão suficientes as normas gerais do consumo para fazer face a estes riscos ou justifica-se a previsão de uma tutela específica dos consumidores neste novel domínio?

 XV. É sabido que as criptomoedas são dotadas de uma polivalência funcional, podendo desempenhar, a par das suas funções monetárias (meio de pagamento e reservas de valor), funções de investimento (“investment tokens”), de consumo (“utility tokens”) e híbridas (“hybrid tokens”). Os “utility tokens” constituem justamente são um tipo particular de criptomoeda que, desempenhando uma função nuclear de uso e consumo, confere ao titular direitos presentes ou futuros relativos aos produtos ou serviços da entidade emitente, v.g., direito de aquisição de determinado bem ou serviço lançado por esta, direito de acesso especial a comunidades, redes sociais, plataformas eletrónicas, motores de busca, bases de dados ou conteúdos virtuais, direito de utilização de aplicações, “software” ou tecno­logias digitais, etc. (v.g., “Filecoin”; “Status”, NFT). Devem as criptomoedas com funções de consumo (“utility tokens”) ser objeto da regulação por parte das leis do consumo?

XVI. É sabido que os juros são o custo de oportunidade do consumo presente em termos de consumo futuro, representando “o prémio de renúncia à liquidez” (J. Maynard Keynes). Quando alguém empresta dinheiro, está diferindo ou trocando o seu consumo no momento atual por um consumo futuro, sendo que, de acordo com uma regra de racionalidade económica, deverá existir uma relação positiva entre ambos, já que não é de esperar que um consumidor esteja disposto a adiar ou postergar as suas aquisições de bens ou serviços caso o valor do consumo futuro não seja superior ao valor do consumo atual. Deverão ou não as obrigações pecuniárias expressas em criptomoeda vencer juros?

XVIII. Eis apenas algumas das dúvidas às quais, mais tarde ou mais cedo, o jurista será chamado a responder.

Non-Fungible Tokens (NFT) – o que são estes cripto-ativos? Mais uma bolha?

Doutrina

Para quem tem acompanhado a evolução dos mercados financeiros, commodities e cripto durante 2021, este tem sido um ano cheio de episódios que desafiam conceções básicas que temos como garantidas. Em Janeiro (e depois em Março, embora menos comentado na comunicação social), a saga do r/Wallstreetbets a tentar provocar um short squeeze das ações da GameStop, AMC (entre outros) chocou o mundo quanto à possibilidade de grupos de investidores amadores se conseguirem “coordenar” em redes sociais. Em Fevereiro, após o Elon Musk ter adicionado a hastag #bitcoin na sua bio do Twitter, o anúncio de que a Tesla tinha comprado mais de mil milhões de doláres em Bitcoins e que passaria a aceitar pagamentos feito com esta criptomoeda, provocou mais uma subida vertiginosa do seu valor, quebrando recordes.

Este tipo de notícias atraiu os olhares de muitas pessoas para os mercados de cripto-ativos, procurando replicar as inúmeras histórias de pequenos amadores que viraram milionários – acabando por descobrir os Non-Fungible Tokens (NFT), através de notícias de leilões milionários de arte em NFT, como o que ocorreu com a venda de um NFT representando o popular vídeo do Nyan Cat. Mas afinal, o que são NFT?

Non-Fungible Tokens (NFT) ou em português, “Tokens” (fichas) não fungíveis, são um tipo de cripto-ativo, um token criptográfico, que, como o nome indica, representa algo único, não fungível. Distinguem-se assim da generalidade das tokens já conhecidas do público em geral, como as criptomoedas e cripto-ativos emitidos em ICOs com obrigações de crédito associados (por exemplo). Como estes cripto-ativos estão registados em Blockchain, a sua infungibilidade é assegurada – devido ao carácter descentralizado da Blockchain e do sistema de certificação peer-to-peer, nenhum NFT pode ser duplicado, nem falsificado (na Blockchain) – se alguém quiser um determinado NFT, tem de conseguir que o seu detentor lhe transmita o ativo.

Qual é a utilidade dos NFT? A sua infungibilidade e a forma como podem ser transmitidos utilizando diversas plataformas interoperáveis entre si, permite que estes possam atuar como uma espécie de “propriedade virtual” – as transações de NFT são autenticadas e registadas na Blockchain, permitindo o tracking da detenção de cada ativo singular. Desta forma, NFT podem ser utilizados para funções onde a escassez é necessária, seja para criar itens digitais exclusivos, colecionáveis, itens em jogos criptografados e “arte criptográfica”. 

A ideia de ter itens digitais que podem ser colecionados, que são escassos e alvo de grande cobiça já é antiga – desde que há videojogos online que permitem aos jogadores possuir e trocar itens virtuais, que isto se verifica em parte, com o surgimento de autênticos mercados secundários (geralmente não oficiais), em que certos itens são vendidos por grandes quantias monetárias. A questão é que ao contrário dos NFT, esses items virtuais, mesmo quando são excecionalmente raros, não são “verdadeiramente” únicos e exclusivos – mesmo quando existe apenas um, a empresa que opera o videojogo online, o prestador de serviço nesta relação, tem a capacidade de facilmente criar mais itens iguais – pode “editar” o número existente deste item, copiando o item supostamente único. Além de aumentar a quantidade, as próprias funções e características (incluindo a possibilidade de serem transmitidos entre contas de utilizadores) podem também ser alteradas da mesma forma. Assim, esta suposta ideia de escassez é “artificial”, baseada na relação de confiança entre o operador da plataforma e a comunidade de jogadores. Um simples update pode mudar tudo, sem que os utilizadores o possam impedir – sendo que os Termos de Utilização geralmente permitem isto. Com a utilização da tecnologia Blockchain, estas preocupações (que não impediram o surgimento de um mercado que vale milhões), não se aplicam.

A utilização inicial de NFT foi em jogos de cartas “cripto-colecionáveis”, mas a sua grande popularidade recente deveu-se à sua relação com a Arte, nomeadamente a Arte Digital ou Criptográfica. Vários artistas e personalidades, desde o produtor de música “Deadmau5”, o bilionário Mark Cuban, Justin Roiland da série Rick and Morty, até à atriz Lindsay Lohan, têm emitido e vendido NFT, que vão desde um clip de vídeo do LeBron James num jogo de baskteball, a quadros e desenhos, tweets[1] e músicas. A emissão e venda de NFT foi uma importante fonte de receitas para diversos artistas impedidos de realizar as suas atuações presenciais devido à pandemia da Covid-19. 

É importante referir que quando algum artista vende um NFT de uma música original da sua autoria, o comprador não adquire quaisquer direitos de autor (o “Copyright”) da música em si[2], mas um ativo único, exclusivo, não replicável que apenas “representa” a música[3] – é a autenticidade e exclusividade que atrai os colecionadores. Qualquer pessoa pode ser proprietária de uma cópia da Mona Lisa, mas existe apenas um original autêntico que se encontra no Louvre. 

Em termos de Direito de Consumo Europeu – enquanto a proposta de Regulamento de Mercados de Cripto-ativos (MiCA) (que já abordamos neste Blog) não é aprovada – o contrato realizado para a obtenção de um NFT trata-se de um contrato para o fornecimento de conteúdos digitais, sendo de destacar a aplicação dos seguintes diplomas (assumindo que estamos perante uma relação profissional-consumidor): 

-Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (93/6/CEE); 

-Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (2005/29/CE);

-Diretiva dos Direitos dos Consumidores (2011/83/UE);

-Diretiva dos Conteúdos e Serviços Digitais (UE 2019/770)[4];

Quanto à Diretiva de Bens de Consumo (UE) 2019/771, é de destacar que mesmo quando bens de consumo são vendidos acompanhados por um NFT que representa aquele bem físico – o fenómeno da tokenização de certos bens exclusivoscomo ténis da Nike –  esta não será aplicável à transmissão do NFT. Neste contrato misto, o fornecimento do NFT é uma prestação separada da venda do bem, dado que o token não está incorporado ou interligado com o bem físico, segundo as definições do nº 3 e 4 do artigo 2º, e o nº 4 do artigo 3º da Diretiva da Conteúdos Digitais e os nº 5-B e nº 10 do artigo 1º e o nº3 do artigo 3º da Diretiva de Bens de Consumo. 

No entanto, mesmo com aplicação das normas destes diplomas, a melhor forma de proteção dos consumidores neste caso é o seu conhecimento sobre este tipo de ativos e a moderação das suas expetativas – neste momento há muitas pessoas que estão a adquirir estes ativos apenas com o objetivo de aproveitar o potencial especulativo do seu valor. Todas as semanas há vendas que batem recordes e é fácil cair no entusiamo. 

Existem receios fundados que algumas destas vendas podem frustrar seriamente as expectativas dos seus detentores – é possível que exista ou se esteja a formar uma “bolha” e que estes ativos estejam sobrevalorizados – da mesma forma que existem alegações similares para outros tipos de cripto-ativos, e mesmo quanto aos mercados financeiros tradicionais. A possibilidade de uma inflação galopante se abater sobre o dólar também alimenta estes receios.

A verdade é que os NFT representam várias realidades muito diferentes entre si, sendo difícil de falar destes no seu todo. Por um lado, é muito provável que vários estejam sobrevalorizados e que uma bolha rebente – de forma similar à especulação dos colecionadores no mercado de bandas desenhadas nos anos 90 – e ou que continuem a ser bastante procurados, mantendo-se o interesse – de forma semelhante ao mercado de venda de arte, onde os colecionadores continuam bastante participativos em grandes leilões


[1] Dominic Cummings, ex-conselheiro do Primeiro-Ministro do Reino Unido Boris Johnson, ameaçou vender um NFT de documentos cruciais que demonstravam a incompetência e negligência do governo britânico na gestão da pandemia.

[2] Exceto no caso dessa transmissão estiver mesmo incluída nas cláusulas do contrato celebrado com o comprador do cripto-ativo. Neste caso a transmissão dos direitos de autor acontece devido a esta cláusula, não devido à transmissão do cripto-ativo, são prestações diferentes de um contrato misto. 

[3] Geralmente, devido à quantidade de memória exigida, a própria obra de arte digital que o token representa não se encontra armazenada na Blockchain, mas num website, geralmente de terceiros. O token funciona assim como um certificado, um registo de detenção. Devido a isto, surge frequentemente o problema de links mortos (dead links, due to link rot), isto é, o website onde estava alojada a obra foi apagado ou o link foi alterado. 

[4] O problema dos links mortos será particularmente relevante para a questão da conformidade do conteúdo digital com o contrato, de acordo com os artigos 7º e 8º da Diretiva dos Conteúdos e Serviços Digitais.