Escravatura moderna made in Portugal: não era mau que o que é nacional fosse mesmo bom

Doutrina

Muito se escreveu por ocasião da requisição civil do Zmar, cujo intuito era o de alojar temporariamente alguns trabalhadores do setor agrícola que não dispunham de condições de habitação suficientes à resolução da situação sanitária de Odemira.

O debate foi interessante, mas rápido, e terminou ainda mais depressa, sobretudo porque o que mais pareceu relevar discutir foram supremos conceitos jurídicos de propriedade. Arquivado o caso, arquivada a questão. Analisar o problema basal ficou para depois.

Até aqui, a exploração laboral de imigrantes, que está longe de ser uma novidade, não causou empatia de maior. Os produtos alimentares que afluem desta lógica exploratória são largamente procurados pelos consumidores portugueses, desde as framboesas às azeitonas, dos morangos às amêndoas. E isto só para falar da produção do Alentejo. O consumidor médio considerará, provavelmente, que consumir nacional é até uma atitude sensata, inquinado pela pedagogia viciada de que o que é nacional é bom. Bom para quem?

Estima-se que são as mãos de cerca de 28.000 trabalhadores provenientes, entre outros, do Senegal, Guiné-Conacri, Paquistão, Índia, Nepal, Bangladesh, Roménia, Moldávia, Brasil e Bulgária que as põem à obra nas nossas agriculturas. “Ninguém quer ser escravo na sua terra”[1] parece, pois, ser uma excelente súmula da arquitetura do sistema que perpetua a esquizofrenia entre a certeza dos direitos fundamentais inderrogáveis e a vida real.

Se a exploração laboral de imigrantes está longe de ser uma novidade, nem o mais ingénuo cidadão poderá supor que as habitações que lhes estão destinadas são lugares que cumprem os requisitos de um lar. Este problema estende-se muito para lá do que pode significar a proliferação do contágio de Covid-19. A violação de direitos humanos ainda é mais do que isso. Assim, não se compreende como possa ter sido levantado tanto alvoroço em torno da questão do Zmar, para depressa se deixar perecer a discussão que realmente importava.

A discussão que realmente importava trazer para a mesa, literalmente, era a de que há produtos que queremos consumir, mas não queremos produzir, a menos que alguém o faça por nós, de preferência a baixo custo. A discussão que realmente importava trazer para a mesa era a de que “há entre 80 a 100 pessoas a viverem «dentro de uma oficina»”, “outras 30 pessoas dentro de um apartamento, com homens e mulheres misturados, dispondo apenas de um chuveiro e de uma sanita” e “onde 55 pessoas vivem num T3, pagando no total 1.530 euros de renda por mês”[2].

Aproximam-se argumentos de inferioridade civilizacional, apregoando que mesmo sendo mal pagos em Portugal, mesmo vivendo sob condições indignas para os nossos padrões, a situação destes imigrantes é melhor do que a que tinham ou teriam nos seus países de origem. É bem provável que seja verdade. Mas se, enquanto comunidade, estabelecemos que há um mínimo de dignidade abaixo do qual não toleraremos descer, esse mínimo também tem de se estender a qualquer ser humano que ingresse em território nacional.

A violação de direitos humanos torna-se cada vez mais vizinha, não sendo só um exotismo bárbaro sobre o qual ouvimos falar. Olhar para o lado já não serve de nada, pois é exatamente ao lado onde agora reside o problema.


[1] https://sicnoticias.pt/pais/2021-05-05-Nao-ha-portugueses-quase-a-trabalhar-nesta-agricultura-ninguem-quer-ser-escravo-na-sua-terra-a51da714

[2] https://www.publico.pt/2017/01/18/sociedade/noticia/falta-de-maodeobra-no-alqueva-alimenta-novas-formas-de-escravatura-1758670

3 thoughts on “Escravatura moderna made in Portugal: não era mau que o que é nacional fosse mesmo bom

  1. O meu comentário referente a este tema e como não poderia deixar de ser, é LAMENTÁVEL, que estas e outras ocorrências ainda sejam vividas e experimentadas, em países da EU, e que os que direta ou indiretamente contribuam para estas situações não sejam duramente punidos, desde já, as instituições que supostamente deviam fiscalizar e acompanhar em loco todas as movimentações de pessoas e bens de modo a imprimir uma veracidade do sistema.

    No entanto o que observamos é que as leis existem tem regulação mas existem sempre nichos de fugas ou por desconhecimento das entidades que regulam ou por falta de fiscalização dessas mesmas instituições.

    Neste momento ainda se assiste no nosso país a uma exploração de pessoas por exemplo na área do trabalho doméstico que antes de ser regulada este ano, existiam trabalhadores desrespeitados, a trabalhar horas sem fim e sem qualquer vínculo laboral.

  2. Começamos a esquecer o que é uma sociedade democrática – um sistema baseado no método de tomada de decisão coletiva com igual influência dos participantes no resultado do processo ou em suas etapas essenciais. Fala também da responsabilidade de cada cidadão. Um imigrante que vive e trabalha em Portugal torna-se residente em Portugal de acordo com a lei. Assim, tem direitos e obrigações iguais aos demais residentes do país. Se o empregador imigrante não celebrar oficialmente um contrato com ele, não prescrever as condições e obrigações das duas partes no contrato, pelo que o trabalhador imigrante não tem direitos obrigatórios com outros residentes dos países, não têm condições de trabalho adequadas e condições de detenção, as normas sanitárias não são observadas, no final, os impostos não serão cobrados. Tal empregador desenvolve a lei.
    Assim, neste caso, existem alguns riscos associados ao incumprimento dos trabalhadores pelas suas obrigações, nomeadamente, produção de produtos, bens, serviços de má qualidade, que afeta a saúde e a vida de outros cidadãos. Portanto, a questão da verificação em relação aos imigrantes é certamente importante e importante não apenas para os imigrantes, mas para a sociedade como um todo.

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