Cláusulas contratuais gerais abusivas: a propósito do caso do casal que não pôde processar a Uber num tribunal judicial por ter subscrito o serviço da Uber Eats

Doutrina

Quando criamos uma conta ou consumimos diariamente os serviços fornecidos por grandes empresas, como o Google ou a Meta, dificilmente nos recordamos dos minuciosos detalhes e das vinculações a que estamos suscetíveis. A falta de uma leitura atenta e prévia permite que as cláusulas, muitas delas abusivas, surpreendam o consumidor e limitem o exercício dos seus direitos perante um litígio. É neste contexto que se iniciou, nos Estados Unidos da América, uma nova onda de conflitos nos contratos de adesão.

Segundo uma notícia publicada em Portugal, no dia 31 de março de 2022, um casal de Nova Jérsia, EUA, sofreu um acidente de viação após o seu motorista de Uber ter desrespeitado o sinal vermelho e ter colidido com outro veículo. Consequentemente, o casal sofreu inúmeros ferimentos e foi submetido a diversas cirurgias. No ano seguinte, tentaram processar a Uber pelo comportamento do motorista parceiro.

Para surpresa do casal, o tribunal declarou a sua própria incompetência para julgar o caso, sob fundamento da existência de uma convenção de arbitragem em vigor entre as partes, presente nos (incorretamente designados) “Termos e Condições” do serviço da Uber Eats, aceites uns meses antes do acidente pela filha de 8 anos do casal. A cláusula compromissória estabelece que qualquer litígio entre a empresa e os particulares deve ser resolvido por arbitragem. Segundo a notícia, a cláusula foi considerada válida pelo Tribunal Superior de Nova Jérsia.

Não é a primeira vez que este tipo de práticas é notícia. Por exemplo, em outubro de 2023, um homem foi impedido de propor uma ação judicial contra um restaurante ligado à Disney, pois havia subscrito a Disney+ em 2019 (pelo período de um mês, sem contrapartida financeira) e, nas respetivas cláusulas, estava igualmente prevista uma cláusula arbitral.

Apesar de as grandes empresas terem obtido sucesso nas decisões judiciais proferidas nos Estados Unidos da América, em Portugal (e, em geral, na União Europeia) a solução seria, muito provavelmente, diferente.

Destaco dois diplomas legais para o tratamento deste tema:

Começamos pelo regime das cláusulas contratuais gerais, consagrado no Decreto Lei n.º 446/85, que transpõe a Diretiva 93/13/CEE. As cláusulas impostas por uma das partes (predisponente), sem possibilidade de negociação pela outra (aderente), estão sujeitas a um exigente dever de comunicação. Com efeito, o art. 5.º-2 do DL 446/85 estabelece as exigências mínimas para uma cláusula ser considerada comunicada: deve ser apresentada ao aderente “de modo adequado”, de forma a tornar possível “o seu conhecimento completo e efetivo por quem use de comum diligência”. A cláusula compromissória surge, neste caso, no momento da criação de uma conta na plataforma da Uber Eats, no meio de um extenso documento, o que leva a que um contraente que corresponda ao padrão normal, que usa de comum diligência, não a leia, ou, pelo menos, não a leia atentamente, tomando conhecimento completo e efetivo do seu conteúdo. Assim, nos termos do art. 8.º-a), a cláusula não integra o contrato e não tem nenhum efeito.

É ainda possível recorrer ao art. 8º-c), que exclui do contrato “as cláusulas que, pelo contexto em que surjam, (…) passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real”. Parece evidente que a cláusula arbitral, se aplicada a qualquer relação da empresa com o consumidor, não tendo qualquer ligação ao contrato celebrado (serviços associados à Uber Eats ou à Disney+), será surpreendente para este. A sua inclusão (formal) no contrato pressuporia uma comunicação autónoma e devidamente realçada, o que, como sabemos, não sucede na adesão a serviços como estes. Um consumidor médio não está à espera que surja num contrato relativo a serviços digitais uma cláusula arbitral relativa a relações físicas e presenciais, contratuais ou extracontratuais, com outras empresas do grupo.

Do ponto de vista material, a cláusula dificilmente passaria igualmente o crivo da boa-fé, consagrado no art. 15.º do DL 446/85, em especial porque estão em causa serviços diferentes, resultantes de relações contratuais diversas, ainda que eventualmente entre as mesmas partes. No entanto, numa relação de consumo, a resposta é mais direta (e, por isso, clara) por via da aplicação da Lei n.º 144/2015, que regula a resolução alternativa de litígios de consumo, incluindo a arbitragem. O art. 13.º determina que, num contrato de consumo, quando é acordado entre as partes um meio de resolução alternativa de lítigios, o consumidor não fica vinculado ao mesmo e pode sempre submeter o litígio a um tribunal judicial.

Em síntese, de um ponto de vista prático, os consumidores, no seu dia a dia, muitas vezes aceitam cláusulas contratuais sem plena consciência da sua complexidade, ficando, assim, mais vulneráveis e limitados face às empresas e outros profissionais. Neste contexto, torna-se essencial a aplicação rigorosa das normas de Direito do Consumo, não só para combater cláusulas abusivas, mas também para assegurar a proteção dos consumidores, garantindo que possam exercer os seus direitos sem restrições.

E-Curso – Regime Contratual das Plataformas Digitais (online)

Eventos

Datas e horário  22, 23, 24, 28 e 29 de abril | 17h às 20h

Coordenadores  Jorge Morais Carvalho e Joana Campos Carvalho (NOVA School of Law)

Apresentação  As plataformas digitais são cada vez mais utilizadas para a contratação. Este curso visa analisar de forma aprofundada os vários contratos ligados às plataformas: (i) contrato entre o fornecedor de bens e serviços e a plataforma; (ii) contrato entre o fornecedor e o utilizador/consumidor; (ii) contrato entre o fornecedor e o utilizador. A produção legislativa e jurisprudencial tem sido intensa nos últimos anos em tornos destas matérias quer a nível europeu quer a nível nacional, embora em Portugal apenas em áreas específicas como o TVDE e o alojamento local.

Programa

22 de abril

I – Introdução. Conceitos de plataforma digital e de mercado em linha | Joana Campos Carvalho

II – Contrato entre a plataforma e o consumidor | Jorge Morais Carvalho

23 de abril

III – Contrato entre a plataforma e o fornecedor | Joana Campos Carvalho

IV – Contrato entre o fornecedor e o consumidor | Jorge Morais Carvalho

24 de abril

V – Enquadramento legislativo europeu | Joana Campos Carvalho

VI – Pesquisas e reviews | Jorge Morais Carvalho

28 de abril

VII – Regulamento P2B | Joana Campos Carvalho

VIII – Transporte em veículo descaracterizado | Jorge Morais Carvalho

29 de abril

IX – Alojamento local | Jorge Morais Carvalho

X – Lei-Modelo do European Law Institute sobre plataformas digitais | Joana Campos Carvalho

Propina  € 250

Alumni NOVA Direito € 175

Alunos NOVA Direito  € 100

Mais informações

Informações e inscrições: jurisnova@novalaw.unl.pt