O Fenómeno “Black Friday”

Doutrina

A última sexta-feira de novembro tornou-se conhecida como “Black Friday”, um dia estrategicamente situado antes da época natalícia, em que os consumidores são bombardeados com e-mails, mensagens e alertas de várias lojas, anunciando horários de início, percentagens de desconto e uma enorme variedade de produtos disponíveis a preços reduzidos.

Se na ponta do iceberg os consumidores podem ver oportunidades de poupar algum dinheiro na compra dos presentes de Natal para a sua família e amigos, ou mesmo para os próprios; na parte inferior desse iceberg podemos ter vários problemas que nem sempre são evidentes como práticas comerciais desleais, erros na apresentação de preços, marketing direto agressivo, problemas de sustentabilidade e direitos humanos.

Infelizmente, com o aquecimento global e descongelamento dos glaciares, a subida dos níveis do mar pode gerar o desgelo acelerado da parte submersa dos icebergs, o que, por sua vez, pode provocar o colapso de grandes massas de gelo superficiais, afetando os ecossistemas marinhos e contribuindo para impactos potencialmente devastadores para as zonas costeiras e para a fauna local. Paralelamente, na nossa metáfora podemos interpretar a subida dos níveis do mar como o aumento da consciencialização sobre os problemas reais que, muitas vezes, permanecem ocultos, quer por estarem submersos, quer por a nossa atenção ser repetitivamente desviada para montras e e-mails promocionais. Assim, versemo-nos sobre questões importantes que podem e devem, eventualmente, “vir à tona”.

Uma das principais questões que surgem no contexto da Black Friday são as práticas comerciais desleais, que podem comprometer os direitos dos consumidores e prejudicar a sua confiança nas ofertas. De acordo com o Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, que regula as referidas práticas comerciais, um exemplo comum é a falsa redução de preços, em que os profissionais aumentam artificialmente o preço de um produto antes da Black Friday para, depois, oferecer um “desconto” que, na realidade, é fictício e não representa uma verdadeira vantagem comercial para os consumidores.

Outra prática frequente é a falsa urgência, em que os profissionais criam uma sensação de escassez, como por exemplo, anunciando que as promoções são válidas apenas por um período reduzido, ou que as quantidades de um determinado produto são limitadas, mesmo que isso não corresponda verdade. Essa tática leva os consumidores a tomarem decisões de compra apressadas, sem a oportunidade de avaliar adequadamente os produtos ou compará-los com outras ofertas disponíveis no mercado.

Estes tipos de comportamento são considerados desleais, nomeadamente, por explorarem a pressão emocional e a falta de tempo dos consumidores para avaliarem concientemente as ofertas comerciais que lhes são apresentadas, ao invés de proporcionar uma experiência de compra justa e transparente.

Durante a Black Friday, uma prática recorrente é o marketing direto agressivo, que leva os consumidores a serem incessantemente bombardeados com ofertas, seja por e-mail, mensagens de texto ou notificações nas redes sociais. A pressão constante para aproveitar os descontos pode comprometer o direito do consumidor de tomar decisões bem-informadas, violando assim o princípio da boa-fé contratual.

Ainda no mesmo contexto, surge também uma preocupação crescente com as questões de sustentabilidade e direitos humanos. Muitos profissionais, ao promoverem grandes descontos, não garantem que os produtos oferecidos sejam fabricados de forma ética e sustentável, podendo até envolver condições de trabalho precárias em países em desenvolvimento. O artigo 8.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor) tem como objetivo garantir aos consumidores o direito de informação acerca das características principais dos bens que lhes são apresentados, incluindo a sua origem, para que estes mesmos consumidores possam tomar uma decisão de compra mais informada, com a devida consciência dos impactos ambientais e sociais negativos que podem estar na origem da produção de certos produtos.

Além disso, a Diretiva (UE) 2024/825 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de fevereiro de 2024, respeitante à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e melhor informação, incentiva práticas de consumo que respeitem o meio ambiente e os direitos dos trabalhadores. Os profissionais devem ser transparentes quanto à origem dos seus produtos e às condições de fabrico, sendo reforçada a necessidade de durabilidade dos produtos. São ainda proibidas alegações ambientais sobre o desempenho futuro dos produtos, a menos que estejam acompanhadas de compromissos claros, objetivos, publicamente acessíveis e verificáveis, assim como publicidade que sugira benefícios para os consumidores que são manifestamente irrelevantes.

Por fim, e antes que chegue a “Cyber Monday”, é importante refletirmos sobre as consequências destas práticas comerciais, que, embora possam ser vantajosas num primeiro momento, muitas vezes escondem problemas significativos que afetam tanto os consumidores, quanto o nosso meio ambiente. Dessa forma, é fundamental que os consumidores se tornem mais conscientes e críticos das ofertas que recebem, questionando a transparência dos profissionais e prioritizando decisões mais esclarecidas.

Como disse o filósofo Henry David Thoreau, em 1854 no seu livro Walden, “um homem é rico na proporção do número de coisas que pode permitir-se deixar de lado”, pois ao adotar uma abordagem mais simples e consciente, podemos concentrar-nos no que realmente importa, evitando a armadilha do consumo excessivo e das falsas promessas que, frequentemente, encobrem a verdadeira natureza de muitas ofertas comerciais.

Crianças-consumidoras também «votam com o dinheiro» dos pais

Doutrina

O Comentário Geral n.º 26 à Convenção sobre os Direitos da Criança, recentemente publicado pelo Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, introduz uma perspetiva inovadora em relação ao direito da criança a um ambiente seguro e sustentável. Esta abordagem, ao entrelaçar o conceito de consumo com os direitos ambientais, impõe ao Estado e às entidades privadas a responsabilidade de protegerem as crianças[1], não apenas como beneficiárias passivas do consumo, mas como agentes com um papel próprio nas decisões e práticas de consumo que afetam o ambiente e a sua qualidade de vida futura.

A expressão «votar com o dinheiro» é frequentemente utilizada para ilustrar o poder dos consumidores na direção do mercado. No simples ato de optar, escolhendo comprar determinado bem ou contratar determinado serviço, o consumidor não está apenas a adquirir algo para sua satisfação pessoal, mas também a demonstrar as suas preferências em relação a valores como a qualidade, a ética e a sustentabilidade. Ocorre também, por vezes, estar apenas a transmitir qualquer outra mensagem nada relacionada com estes valores (como, por exemplo, que prefere bege a bordeaux), embora, nesse caso, em princípio, já não se deva assumir que se trata de uma motivação política. Neste sentido, algumas decisões de compra tornam-se uma forma de expressão política, onde os consumidores «votam» nas práticas que consideram mais alinhadas com os seus princípios. O conceito tem vindo a ser cada vez mais relevante, à medida que o consumo consciente e responsável ganha terreno, com os consumidores a optarem por empresas e bens que se destacam pela sua responsabilidade social e ambiental.

Este fenómeno, embora habitualmente reconhecido no contexto dos adultos, também pode ser aplicado às crianças, cuja influência nas decisões de compra do agregado familiar é crescente. De forma indireta, as crianças «votam» com o dinheiro dos pais, ao pressioná-los a adquirir bens específicos, como brinquedos e alimentos. Em boa verdade, esta parece ser a sua única remota hipótese de «votar» antes dos 18 anos de idade, pelo menos em Portugal.

Este poder de influência das crianças pode ter um impacto significativo nos padrões de consumo familiar, moldando não apenas os hábitos de compra, mas também a orientação para práticas mais sustentáveis. O Comentário Geral n.º 26 sublinha precisamente este ponto, ao destacar a importância de capacitar as crianças para se tornarem consumidoras informadas e responsáveis, capazes de influenciar, com as suas escolhas, um futuro mais sustentável e alinhado com os princípios da justiça social e ambiental.

O Comentário reconhece que a criança tem influência direta nos padrões de consumo do agregado familiar, muitas vezes determinando, ainda que de forma indireta, as escolhas dos cuidadores e do mercado. Esta influência, quando exercida num contexto informado e sustentável, pode moldar práticas de consumo orientadas para a sustentabilidade. O Comentário alerta, assim, para a importância de assegurar o direito da criança a receber «informações ambientais exatas e fiáveis» (parágrafo 33), fundamental para o seu desenvolvimento como consumidora consciente, internalizando práticas de consumo sustentável.

O direito ao consumo informado e sustentável articula-se aqui com o direito à educação, definido como essencial para a aquisição de competências que capacitem a criança a tomar decisões informadas e ambientalmente responsáveis. O parágrafo 53 do Comentário estabelece que a educação deve proporcionar às crianças «competências necessárias para enfrentar os desafios ambientais esperados nas suas vidas», promovendo a reflexão crítica sobre o consumo, a resolução de problemas ambientais e a adoção de estilos de vida que respeitem a sustentabilidade. Esta visão remete-nos para o conceito de «evolução das capacidades» da criança, reconhecido na Convenção, sublinhando a importância de ajustar as estratégias educativas e normativas à maturidade progressiva das crianças enquanto sujeitos de direitos. Ao promover a sua capacitação no consumo, o Comité estabelece uma ligação entre a formação do consumidor consciente e a proteção do ambiente, criando uma base para o exercício de um consumo informado que respeita as capacidades evolutivas da criança, enquanto princípio habilitador do processo de aquisição gradual de competências, compreensão e autonomia[2].

Um dos aspetos mais relevantes do Comentário no âmbito do consumo prende-se com a regulação da publicidade direcionada às crianças. O parágrafo 81, ao abordar o conceito de greenwashing, destaca a necessidade de as normas de publicidade e comercialização serem aplicadas de forma a prevenir práticas que possam induzir em erro as crianças, apresentando bens ou práticas empresariais como sustentáveis quando, na realidade, não o são. Este ponto convoca desafios jurídicos significativos, pois revela que, para proteger a criança enquanto consumidora, é indispensável o desenvolvimento de um quadro regulatório robusto, que imponha às empresas obrigações concretas de transparência. A prevenção do greenwashing é, assim, um imperativo para evitar a manipulação do consumidor infantil, que, devido à sua vulnerabilidade e capacidade cognitiva em formação, é especialmente suscetível a práticas comerciais enganosas.

Neste sentido, o Comentário opera uma transformação no modo como o direito do consumo pode e deve enquadrar o papel da criança: não apenas como destinatária de bens e serviços, mas como cidadã de direitos e responsabilidades no seio de um sistema que deve promover o consumo sustentável e a proteção do ambiente. Esta nova abordagem impõe ao direito do consumo a obrigação de não só proteger a criança contra práticas comerciais desleais, mas também de assegurar que a informação e as práticas comerciais estejam alinhadas com os princípios de transparência e sustentabilidade. A criança é, assim, promovida a um papel ativo no direito do consumo, alinhando o seu estatuto jurídico com a exigência crescente de um consumo responsável e ecologicamente consciente, (também) na defesa do seu superior interesse.


[1] Nos termos do artigo 1.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, “criança é todo o ser humano menor de dezoito anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”. Nos termos do artigo 122.º do Código Civil, “é menor quem não tiver ainda completado dezoito anos de idade”.

[2] Comentário Geral n.º 7 (2005), parágrafo 17; e Comentário Geral n.º 20 (2016), parágrafos 18 e 20.

The EU Deforestation Regulation Through the Consumer Lens

Doutrina

On 21st March, the first day of spring, we celebrate the International Day of Forests. This is an important occasion to be reminded of the role that forests play on our planet. Forests are unique ecosystems that help preserve natural biodiversity while acting at the same time as carbon sinks. However, over the last decades forest loss and degradation have progressed at unprecedented rates, mainly because of human- induced activities. In this context, agricultural practices such as rearing of livestock and crop cultivation are often singled out as one of the main culprits of forest conversion into commercially exploited land.

Concerned by the negative environmental consequences of forest loss and degradation in terms of biodiversity preservation and climate change, some countries that are large consumers of products associated with deforestation passed – or are considering introducing – legislative measures to halt it. This is the case of the European Union (EU), which is the very first jurisdiction in the world that laid down an ad hoc legal framework addressing deforestation driven by agricultural expansion.

Regulation (EU) 2023/1115 – also known as EUDR (i.e., EU Deforestation Regulation) – represents the reference legal text on the subject matter. The latter provides for a complex set of mandatory due diligence requirements for producers and traders of specific commodities and derived products that are mostly associated with deforestation. Currently, the EUDR targets largely traded food and feed products such as meat, coffee, cocoa (including chocolate), soy, palm oil as well as other common goods such as wood and rubber.

Businesses affected by the EUDR requirements are currently working to implement their due diligence systems by the end of the year when the regulation becomes applicable. Such systems are meant to guarantee that no product contributing to deforestation is placed on the EU market or exported from the EU to other countries.

Overall, the implementation process of the EUDR has been quite complex for concerned companies,  warranting the adoption by the European Commission of an extensive guidance document in the form of Frequently Asked Questions. Likewise, various trading partners of the EU have repeatedly raised concerns over EUDR impact on international trade during its negotiations and even more now that the EU should classify them based on the deforestation risk they present.

Yet, even though the EUDR is often portrayed as an instrument through which sustainable consumption practices can be promoted, consumers deserve little or no attention in the current text of the regulation. If one searches for the word ‘consumers’ within the EUDR, it will be immediately evident that such references are scant, marginal (as they mostly feature in the recitals of the regulation), and never employed by the EU legislator to ensure the high level of consumer protection pursued by the EU Treaties.

Against this background, one might wonder whether, ultimately, the EUDR will have any implications for European consumers.

In my view, this question should be responded affirmatively although a distinction needs to be made between economic and legal implications.

EUDR economic implications for consumers are obvious. Most likely, the costs of the investments needed to set up and operate the due diligence systems required by the EUDR will be eventually passed onto consumers. Besides, the EUDR may also have the (unintended) effect of restricting consumer choice in case, faced with difficulties in ensuring the sourcing of deforestation-free products, companies decide to suspend or even stop supplies.

Conversely, EUDR legal implications for consumers are less obvious. This is because they become apparent only if one considers the interplay of EUDR provisions with other EU legal acts. The joint reading of the EUDR alongside Regulation (EU) No 1169/2011 on the provision of food information to consumers and Directive 2005/29/EC, which regulates unfair commercial practices in a B2C context  (‘UCPD’), represents one of the most interesting examples to showcase this.

Indeed, companies that are subject to the EUDR and comply with its requirements, at some point, might wish to capitalize the investments made in due diligence and communicate their efforts to consumers. Therefore, the question that here arises is whether a claim like ‘deforestation-free’ or with a similar meaning (e.g., ‘no deforestation’, ’zero deforestation’, etc.) can be made on EUDR-compliant products to appeal to the most environmentally conscious consumers.

In principle, for food products like coffee, cocoa, meat, and palm oil, Regulation (EU) No 1169/2011 already provides an answer to that question by setting out that ‘food information shall not be misleading, particularly […] by suggesting that the food possesses special characteristics when in fact all similar foods possess such characteristics  […]’ (Article 7, par. 1, lett. c)). In other words, since all food products targeted by the EUDR will have to comply with its requirements when placed on the EU market with no exceptions, all of them will be deforestation-free. Therefore, no company will be able to communicate, in a B2C context, that it complies with EUDR requirements as a distinctive feature of its products, as opposed to the products sold by its competitors, because, otherwise, such information might mislead consumers.

For goods other than food products, a similar principle has been recently introduced within the UCPD regime through the adoption of Directive (EU) 2024/825. The latter, together with the European Commission’s Proposal for a Green Claims Directive, constitutes a key legal instrument to strengthen consumers protection against greenwashing in the EU. More precisely, the latest UCPD amendment has broadened the list of B2C marketing practices that are prohibited in all circumstances by including the situation in which a trader presents ‘requirements imposed by law on all products within the relevant category as a distinctive feature of its offer’. Owing to the mandatory nature of EUDR requirements for all the commodities and derived products identified by the regulation, this provision significantly limits the possibility for businesses to make deforestation-free marketing claims.

Then, if such claims will not be allowed on commodities and products targeted by the EUDR, will companies have any chance to communicate their commitments and achievements in the fight against forest loss and degradation?

Once again, it is not the EUDR to give us the answer we look for, but the UCPD as amended by Directive (EU) 2024/825. The latter provides for an outright ban on the display of ‘sustainability labels’ on consumer goods, unless such labels are granted and regulated by public or private independent certification schemes, whereas the notion of ‘sustainability label’ encompasses labels, logos and other graphic forms that allude to the environmental and/or social characteristics of a product. Therefore, for what matters here, labels awarded by certification schemes that focus on the responsible forest management might well qualify as ‘sustainability labels’ under EU law. At present, such labels seem to be one of the few legitimate ways that companies have at their disposal to inform consumers about their corporate efforts in the fight against deforestation.

In conclusion, B2C communication has certainly not been given sufficient attention during the elaboration and the implementation of the EUDR. This is quite striking if one considers that, on the other hand, the regulation provides for the naming and shaming of companies infringing its requirements at EU level, which may cause them considerable reputational damages including among consumers.   However, looking ahead, at some point the EU legislator should take stock of the experience gained with the application of the EUDR and consider if deforestation-related claims may warrant any specific regulation or guidance to ensure consumers are adequately protected and businesses operate on a level playing field in the EU market.

O consumidor na nova era da sustentabilidade das embalagens alimentares

Doutrina

A transição para sistemas alimentares mais sustentáveis, que a União Europeia (UE) tem impulsionado desde a adoção do Pacto Ecológico Europeu e da Estratégia do Prado ao Prato, abrange não só os alimentos mas também todos os outros inputs funcionais e necessários à sua produção, distribuição e consumo.

Nestes moldes, o legislador europeu tem progressivamente vindo a reconhecer o impacto negativo que o food packaging e os seus resíduos têm no ambiente e a consequente necessidade de eliminar ou minimizar esse impacto. Este processo legislativo começou nomeadamente com a adoção da Diretiva (UE) 2019/604 – transposta em Portugal através do Decreto-Lei n.º 78/2021 – que impôs restrições de uso de determinados produtos de plástico de utilização única, incluindo recipientes para alimentos e bebidas e copos feitos de poliestireno expandido.

A Comissão Europeia deu seguimento a esta legislação específica publicando, em novembro do ano passado, uma Proposta de regulamento relativo a embalagens e resíduos de embalagens, que se encontra atualmente em fase de discussão a nível europeu. A proposta visa reformar profundamente o quadro jurídico em vigor que regulamenta o fabrico das embalagens, bem como a gestão dos seus resíduos, partindo do pressuposto de que esse quadro é obsoleto (data, de facto, de 1994) e inadequado para garantir a sustentabilidade ambiental do packaging.

Para este efeito, a proposta em causa estabelece um amplo leque de requisitos de sustentabilidade para as embalagens, muitos dos quais têm relevância direta para as embalagens alimentares, como por exemplo:

– Taxas progressivas de incorporação de material reciclado nas garrafas de plástico de utilização única;

– Restrições de uso de determinados formatos (por exemplo, as saquetas de açúcar ou sal que são tipicamente disponibilizadas nos estabelecimentos do canal horeca);

– A obrigação de que as cápsulas de cafés e as saquetas de chá sejam compostáveis.

A proposta de lei europeia coloca também ênfase na necessidade de que as embalagens alimentares sejam reutilizáveis, ou seja, possam desempenhar a mesma função para que foram concebidas múltiplas vezes. Neste sentido, a proposta estabelece metas obrigatórias progressivas de reutilização, em especial para as empresas do setor das bebidas alcoólicas e não alcoólicas.   

Esta nova legislação, portanto, abre uma nova era para as embalagens alimentares: a era da sustentabilidade.

Neste contexto, os consumidores são chamados a desempenhar um papel fundamental, pois são os atores que permitem que, depois da sua utilização, as embalagens alimentares sejam:

– Separadas, recolhidas e encaminhadas para serem subsequentemente tratadas e valorizadas (por exemplo, como material reciclado) da forma mais apropriada; ou

– Reutilizadas quando forem concebidas para esta finalidade.

Posto isso, é essencial que o advento de soluções de food packaging mais sustentáveis seja acompanhado por hábitos de consumo igualmente mais sustentáveis. Algo que só se pode alcançar capacitando os consumidores através de campanhas de sensibilização e da disponibilização da relevante informação ambiental diretamente nas embalagens.

De facto, a rotulagem constitui uma ferramenta particularmente eficaz para ajudar o consumidor a adotar o comportamento mais correto do ponto de vista ambiental na gestão doméstica dos resíduos das embalagens. Para esta matéria específica, a proposta da Comissão Europeia atualmente em discussão pretende assegurar maior harmonização no mercado comunitário, garantindo desta forma o mesmo nível de proteção do ambiente e dos interesses dos consumidores em toda a UE.

Efetivamente, nos últimos anos, vários países europeus introduziram disposições nacionais para a rotulagem ambiental das embalagens.  É o caso de França, onde desde 2022, conforme o artigo L541-9-3 do Code de l’environnement, as embalagens recicláveis devem ostentar um ícone especifico (o logo ‘Triman’) e menções funcionais à sua triagem pós-consumo. Mais recentemente, Itália seguiu o mesmo caminho (Decreto Legislativo 3 settembre 2020 n. 116), enquanto, em Portugal, a rotulagem ambiental das embalagens é atualmente regulamentada através de um sistema voluntário, que tem já bastante expressão no segmento food.

Portanto, neste momento, coexistem no mercado comunitário vários sistemas de rotulagem ambiental das embalagens. Desta forma, a mesma embalagem comercializada em diversos mercados internacionais poderá vir a ostentar, em simultâneo, pictogramas e/ou instruções diferentes para a sua triagem depois da utilização. Aliás, a legislação portuguesa – designadamente o artigo 28.º, n.º. 2, do Decreto-Lei n.º 157-D/2017 (UNILEX) – permite expressamente tal coexistência no mercado nacional no caso das embalagens rotuladas em conformidade com a legislação de outros Estados-membros da UE. No entanto, se não se esclarecer de forma inequívoca que um determinado ícone e/ou menções se referem a um mercado específico, existe o risco concreto de que o consumidor não elimine os resíduos da embalagem como deve fazer.

Que, a nível europeu, o objetivo último seja a definição de um quadro jurídico mais harmonizado para a rotulagem ambiental das embalagens não se infere apenas da proposta legislativa atualmente em discussão.

Em fevereiro deste ano, a Comissão Europeia abriu um procedimento de infração contra a França. Segundo o executivo comunitário, para além de não ter sido previamente notificada em conformidade com a Diretiva (UE) 2015/1535, a legislação francesa em matéria de rotulagem ambiental das embalagens integra uma violação do princípio da livre circulação das mercadorias, exigindo-se tal marcação também no caso das embalagens fabricadas noutros países da UE. Além disso, questiona-se a proporcionalidade da normativa francesa pois, devendo utilizar-se mais material no fabrico das embalagens para efeito das informações ambientais que têm de figurar no rótulo, vai consequentemente aumentar a quantidade de resíduos dessas embalagens.

O novo sistema de rotulagem ambiental europeu para as embalagens (alimentares e não) e para os respetivos ecopontos deverá aplicar-se a partir de 2028. Resta-nos ver, no entanto, se esta medida será suficiente para sensibilizar os consumidores a efetuar a triagem dos resíduos das embalagens na sua própria casa tal como indicado na rotulagem. As disposições legais e os esforços da indústria alimentar que visam tornar as embalagens mais sustentáveis serão frustrados caso os padrões de consumo não evoluam no mesmo sentido.

Direito do Cliente a Copos de Água Gratuitos

Doutrina

Os clientes de empreendimentos turísticos, estabelecimentos de alojamento local e estabelecimentos de restauração e bebidas têm direito, desde 2021, a exigir a disponibilização gratuita de copos de água da torneira.

Este direito encontra-se previsto no art. 25.º-A-5 do DL 152-D/2017, na redação dada pela Lei 52/2021. Na versão do DL 102-D/2020, que aditou o art. 25.º-A, já se previa a disponibilização de água, mas admitia-se que esta tivesse custos, ainda que necessariamente inferiores ao da água embalada.

O regime pode ser incluído no âmbito do Direito do Consumo, tendo como objetivo claro a promoção de práticas sustentáveis e uma melhor gestão de resíduos.

O art. 25.º-A estabelece que, “nos estabelecimentos do setor HORECA, é obrigatório manter à disposição dos clientes um recipiente com água da torneira e copos não descartáveis higienizados para consumo no local, de forma gratuita”.

Vejamos a quem se aplica o diploma.

O direito é conferido a “clientes”. O regime não se aplica, portanto, apenas a consumidores. Qualquer cliente, seja ou não consumidor, tem direito à água. Exige-se, no entanto, que a pessoa seja cliente do estabelecimento. Isto significa que o direito pode apenas ser exercido por alguém que tenha, naquele momento, celebrado um contrato com o estabelecimento em causa. Se, por exemplo, alguém entrar num café e quiser apenas beber um copo de água, a norma não se aplica.

O direito pode ser exercido nos estabelecimentos do setor HORECA, o que inclui, nos termos do art. 3.º-1-iii), os empreendimentos turísticos, os estabelecimentos de alojamento local e os estabelecimentos de restauração e bebidas.

Os empreendimentos turísticos podem ser estabelecimentos hoteleiros (hotéis, aparthotéis, pousadas e hotéis rurais), aldeamentos turísticos, apartamentos turísticos, conjuntos turísticos (resorts), empreendimentos de turismo de habitação, empreendimentos de turismo no espaço rural [casas de campo (que podem ser turismo de aldeia) e agroturismo] e parques de campismo e de caravanismo (arts. 4.º e 11.º a 19.º do DL 39/2008).

Os estabelecimentos de alojamento local podem ser moradias, apartamentos, quartos ou estabelecimentos de hospedagem, incluindo hostéis (art. 3.º do DL 128/2014).

Nos termos do art. 2.º do RJACSR (Regime jurídico de acesso e exercício de atividades de comércio, serviços e restauração), considera-se estabelecimento de bebidas “o estabelecimento de serviços destinado a prestar, mediante remuneração, serviços de bebidas e cafetaria no próprio estabelecimento ou fora dele” e estabelecimento de restauração “o estabelecimento destinado a prestar, mediante remuneração, serviços de alimentação e de bebidas no próprio estabelecimento ou fora dele, não se considerando contudo estabelecimentos de restauração ou de bebidas as cantinas, os refeitórios e os bares de entidades públicas, de empresas, de estabelecimentos de ensino e de associações sem fins lucrativos, destinados a fornecer serviços de alimentação e de bebidas exclusivamente ao respetivo pessoal, alunos e associados, e seus acompanhantes, e que publicitem este condicionamento”.

Inclui-se no âmbito do regime qualquer tipo de restaurante, incluindo os que funcionam apenas em sistema de take away, cafés, pastelarias, bares ou discotecas, entre outros estabelecimentos.

A obrigação, de fonte legal, mas que pressupõe, como referimos, a existência de um contrato entre as partes, consiste em disponibilizar um recipiente com água da torneira e copos não descartáveis higienizados para consumo no local.

Podemos identificar aqui vários elementos.

A água tem de ser da torneira. O estabelecimento pode disponibilizar gratuitamente água embalada aos clientes, no exercício da sua autonomia privada, mas não pode deixar de, em simultâneo, disponibilizar a água da torneira, nos termos do regime em análise. Por razões de promoção da sustentabilidade, o cliente pode preferir a água da torneira. Naturalmente, não deve ser disponibilizada água que não seja adequada ao consumo humano. Se, em determinado momento, a água da torneira não estiver em condições de ser bebida, deixa de ser exigida a sua disponibilização. O estabelecimento deve, no entanto, fazer todos os esforços para normalizar a situação o mais rapidamente possível.

Os copos têm de ser não descartáveis e estar higienizados. Assim, o estabelecimento não pode cumprir a obrigação disponibilizando copos descartáveis, nomeadamente de utilização única, tendo de garantir o serviço de lavagem regular de copos.

O sistema deve permitir o consumo no local, não bastando que o consumidor tenha acesso à água com vista ao seu consumo fora do estabelecimento. O cliente pode beber mais do que um copo de água, mas terá de utilizar o mesmo copo. É a solução mais adequada ao objetivo de promover práticas mais sustentáveis.

Pode colocar-se igualmente a questão de saber o que significa “disponibilizar” a água, ou seja, se o estabelecimento tem de ter a água (numa garrafa) ou a própria torneira e os copos em local visível e de livre acesso pelo cliente para se servir ou se basta oferecer a possibilidade de, a pedido, fornecer a água e o copo. Em estabelecimentos de restauração e bebidas com balcão e recolha dos produtos pelo cliente antes de sentar ou de consumir, será uma boa prática permitir ao cliente que se sirva livremente. Nos estabelecimentos em que os produtos são servidos diretamente na mesa (por exemplo, a maioria dos restaurantes), deve entender-se que é suficiente trazer a água e os copos quando o cliente faz o pedido. Nestes casos, deve assinalar-se que o estabelecimento, se for pedida água, deve trazer água da torneira e não uma garrafa de água. Deve, no mínimo, perguntar ao cliente o que este prefere.

Tem-se tornado comum, em especial em restaurantes, fornecer a água em recipientes de vidro do próprio estabelecimento, dando a entender, ou dizendo-o diretamente, que se trata de água da torneira com algum tratamento, nomeadamente filtragem. Esta prática pode ser problemática, na medida em que pode confundir o cliente no que diz respeito ao direito em análise neste texto. O estabelecimento tem sempre de garantir a disponibilização gratuita de água da torneira, independentemente de fornecer água filtrada a troco de um preço.

O regime não prevê um dever de informação ao cliente, por parte do estabelecimento, o que pode ser problemático. Sem informação, o exercício do direito torna-se menos provável. Como se deixou escrito ao longo do texto, exige-se do estabelecimento, no mínimo, o esclarecimento, num pedido concreto de água por um cliente, da existência da opção prevista no diploma em análise.

Não ajuda ao esclarecimento dos consumidores uma frase que consta do relevantíssimo Guia preparado recentemente pela Direção-Geral do Consumidor e pela AHRESP com “Regras e Boas Práticas na Restauração”. Na p. 12, a propósito de “Copos de água”, pode ler-se que, “caso a disponibilização do copo de água da torneira implique um serviço por parte do estabelecimento, já poderá haver lugar a cobrança, desde que tal conste da lista de preços”. A única interpretação compatível com a lei parece ser a de que se alude aqui a serviços como a filtragem da água, mas tal prática não afasta, como já se deixou dito, a obrigatoriedade de fornecer também, a título gratuito, água da torneira (ainda que não-filtrada).

O direito previsto no regime encontra-se, tal como todos os direitos, limitado pelos princípios gerais do ordenamento jurídico, nomeadamente a boa-fé ou o fim económico e social. Haverá abuso do direito se, entre outras práticas, por exemplo, o cliente pretender beber um número excessivo de copos de água, utilizar mais do que um copo por pessoa num determinado momento ou utilizar a água para uma finalidade que não seja a de beber.

Kits de reparação self-service: sustentabilidade e (des)proteção do consumidor

Doutrina

No último trimestre de 2021 foi publicado o Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, que veio transpor para a Ordem Jurídica Portuguesa a Diretiva (EU) 770/2021 e a Diretiva (UE) 2019/771 do Parlamento Europeu e do Conselho, relativas a contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais e contratos de compra e venda de bens, respetivamente.

Além do seu propósito de modernizar a legislação de Direito do Consumo e fazer refletir a realidade digital que atualmente faz parte da nossa vida, estas novas normas procuram também promover a sustentabilidade, como aliás é percetível em prorrogativas como a do artigo 21.º do referido Decreto-Lei, que prevê o dever de o produtor disponibilizar peças sobresselentes durante um prazo de 10 anos após a colocação da última unidade do bem em mercado, procurando prolongar a vida dos bens e evitando a sua substituição desnecessária.

É inegável que todo o processo de industrialização, assim como a adoção das novas tecnologias de produção em massa, tem impulsionado o desenvolvimento económico e sido absolutamente fundamentais para a melhoria da qualidade de vida de todos os que temos a sorte de poder aproveitar os resultados desta produção de bens.

Não obstante, é inevitável reconhecer que esses avanços têm tido um impacto significativo no meio ambiente, em particular para a nossa análise, nos resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos. O Parlamento Europeu divulgou que se reciclam menos de 40% dos resíduos deste tipo de equipamentos, evidenciando um atraso notório na reciclagem em relação à produção.

Nesse sentido, tornou-se essencial implementar medidas que prevejam e promovam a sustentabilidade em todos os setores da economia, incluindo no setor dos equipamentos elétricos e eletrónicos. Este processo implica não só a busca por processos de produção mais eficientes e ecologicamente responsáveis, como também a redução do desperdício através da adoção de práticas que visem a reparação de bens de forma a conservá-los durante mais tempo, evitar a sua substituição desnecessária e, consequentemente, conservar o nosso planeta para as futuras gerações.

A interseção entre a industrialização e a sustentabilidade é fundamental para garantir um equilíbrio entre o progresso económico e a preservação ambiental.

Neste contexto, as empresas começam a pôr em prática a venda de kits de reparação em self-service, que consistem na venda ou aluguer de ferramentas e de peças específicas para que os consumidores possam, com a ajuda das instruções, também disponibilizadas, reparar os seus equipamentos eletrónicos em casa.

A Apple e a Samsung já disponibilizam estes kits de reparação em vários países da Europa, incluindo Espanha, pelo que se pode esperar que possa ser uma realidade em breve no nosso país.

Em primeiro lugar, importa distinguir esta realidade quando aplicada durante o período de responsabilidade do profissional (anteriormente conhecido como “garantia”) – três anos – ou num período posterior. Isto ocorre porque, do ponto de vista do comportamento do consumidor, a sua disponibilidade para aderir a este processo de reparação self-service pode variar consoante se encontre dentro ou fora do período de responsabilidade do profissional, no limite, mostrando mais ou menos resistência a estas novas soluções.

Durante os primeiros três anos, os consumidores podem sempre solicitar ao profissional a reparação dos seus equipamentos eletrónicos, pelo que não deverão tender a optar por adquirir, durante esse período, um kit de reparação self-service e correr o risco de abrir o equipamento e não conseguir reparar ou cometer algum erro e danificar ainda mais o seu equipamento eletrónico.

Esse risco existe porque, embora a garantia associada aos kit de reparação self-service seja sempre adicional em relação à garantia legal originária durante o período de responsabilidade do profissional, as empresas que venderam os bens podem não querer assumir a responsabilidade por erros que os consumidores possam cometer durante a reparação self-service, se não estiverem diretamente relacionadas com aspetos sob o controlo desses profissionais, por exemplo, defeitos nas ferramentas ou instruções deficientes ou insuficientes. Note-se que embora os kits de reparação self-service possuam uma garantia própria, esta deverá apenas incluir a sua conformidade e não o ato ou as consequências da reparação em si.

Os kits de reparação self-service serão, assim, uma solução mais atrativa para a fase da vida dos equipamentos eletrónicos após o término do período de responsabilidade do profissional. Isto ocorre porque, a partir desse momento, as reparações dos equipamentos já correm por conta dos consumidores e são frequentemente dispendiosas, levando muitas vezes os consumidores a pensar em “comprar um novo” em vez de reparar.

Agora, caso os kits de reparação self-service sejam vendidos por valores razoáveis, podem representar uma excelente alternativa, tanto para os consumidores, como para as empresas que valorizam a manutenção de clientela e os valores de sustentabilidade.

Em suma, tudo evidencia que Portugal pode em breve estar no radar destas empresas multinacionais de tecnologia e é positivo considerar estas opções de reparação para não só otimizar a vida nos nossos equipamentos eletrónicos, como também fomentar a consciencialização ecológica e sustentável que deve pautar os nossos comportamentos enquanto consumidores atentos e cautelosos.

Lei n.º 28/2023 – Mais uma peça no combate à obsolescência programada

Legislação

No passado dia 4 de julho, foi publicada no Diário da República a Lei n.º 28/2023, que procedeu à nona e mais recente alteração da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor),

Esta lei veda a renovação forçada de serviços ou equipamentos cuja vida útil não tenha expirado.

Com efeito, o artigo 9.º, que tem como epígrafe “Direito à proteção dos interesses económicos”, tem agora no seu n.º 7 a seguinte redação: “É vedada ao fornecedor de bens ou ao prestador de serviços a adoção de quaisquer técnicas que visem reduzir deliberadamente a duração de vida útil de um bem de consumo a fim de estimular ou aumentar a substituição de bens ou a renovação da prestação de serviços que inclua um bem de consumo”.

Alterou-se a redação de 2021, resultante do DL n.º 109-G/2021, de 10 de Dezembro. A norma era semelhante e tinha como fim não se estimular ou aumentar a substituição de bens. Agora a prestação de serviços é expressamente contemplada, ficando o consumidor ainda mais protegido contra as práticas de obsolescência programada. Note-se que as expressões fornecedor e prestador de serviços eram já utilizadas no n.º 6 do mesmo artigo[1].

Como já referido neste Blog, o Novo Plano de Ação para a Economia Circular, a propósito do Pacto Ecológico Europeu[2] que visa transformar a UE numa economia com impacto neutro no clima, prevê o combate à obsolescência precoce como estratégia da UE no domínio da transição ecológica, domínio considerado prioritário na Nova Agenda do Consumidor[3]. O Pacto Ecológico Europeu pretende que a Europa seja o primeiro continente neutro do ponto de vista carbónico em 2050, o que passa por tecnologias mais ecológicas, que evitam compras recorrentes e desnecessárias.

Também a obsolescência programada é acutelada pelo Direito, designadamente pelo indicado DL de 2021 que transpôs parcialmente a Diretiva (UE) 2019/2161. Também a Diretiva (UE) 2019/770,  no artigo 8.º-1-b), relativo aos requisitos objetivos de conformidade, se refere a “funcionalidade, compatibilidade, acessibilidade, continuidade e segurança, que são habituais em conteúdos ou serviços digitais do mesmo tipo e que o consumidor possa razoavelmente esperar”, ainda que seja uma abordagem muito tímida[4] ao tema da obsolescência programada. Veja-se igualmente o considerando 32 da Diretiva (UE) 2019/771, onde se refere que “assegurar uma maior durabilidade dos bens é importante para se alcançarem padrões de consumo mais sustentáveis e uma economia circular”, devendo ser assegurada uma “durabilidade que é normal para bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar dada a natureza dos bens, incluindo a eventual necessidade de manutenção razoável dos bens”. A durabilidade é avaliada para efeitos de conformidade. Dado que vivemos numa sociedade altamente consumista, a UE reconhece que a transformação ecológica é indissociável da transformação digital[5], apostando assim no combate à obsolescência, quer precoce, quer programada.


[1] “É vedado ao fornecedor ou prestador de serviços fazer depender o fornecimento de um bem ou a prestação de um serviço da aquisição ou da prestação de um outro ou outros”.

[2] Pacto Ecológico Europeu [COM(2019) 640 final de 11 de dezembro de 2019].

[3] A Agenda abrange cinco domínios prioritários: (1) Transição ecológica; (2) Transformação digital; (3) Reparação e aplicação dos direitos dos consumidores; (4) Necessidades específicas de determinados grupos de consumidores; e (5) Cooperação internacional.

[4] Jorge Morais Carvalho, “Venda de Bens de Consumo e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais – As Diretivas 2019/771 e 2019/770 e o seu Impacto no Direito Português”, in Revista Electrónica de Direito, n.º 3, 2019, p. 76.

[5] Construir o futuro digital da Europa [COM(2020) 67 final de 19 de fevereiro de 2020].

Green Claims Directive Proposal: hello from the other side

Doutrina, Legislação

No passado dia 22 de março, foi divulgada a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa à fundamentação e comunicação de alegações ambientais explícitas (Green Claims Directive). Esta Proposta surge no seguimento da Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera as Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/UE no que diz respeito à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e de melhor informação, visando adensar o regime legal e complementar as propostas de alteração à Diretiva relativa às práticas comerciais desleais. Além da Green Claims Directive, também no passado dia 22 de março foi divulgada a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho sobre as regras comuns para a promoção da reparação de bens e que propõe alterar o Regulamento n.º 2017/2394 e as Diretivas 2019/771 e 2020/1828.

 O mote da sustentabilidade no consumo já tinha sido dado em 2019, um ano mais longínquo do que há 4 anos atrás, com o Pacto Ecológico Europeu. A perspetiva de que o consumidor é também ele uma parte ativa na causa ambiental conheceu oficialmente a luz do dia há já quase meia década. Muitos anos depois, no final de 2020, com a Nova Agenda do Consumidor, a intenção de combate ao greenwashing ficou mais clara, sobretudo após ser detetada a proliferação do fenómeno. Greenwashing, para todos os efeitos, será a prática que consiste em maquilhar uma empresa ou um bem, apresentando-a/o como benigna/o ambientalmente (sustentável, portanto), sendo que essas características não têm correspondência de facto, visando atrair mais consumidores, sobretudo os interessados nessas características. Este é sem dúvida o momento para a discussão destas matérias, com uma União Europeia cada vez mais comprometida com o direito do consumo e suas ligações extraprivatísticas, mais uma vez se verificando o empenho da UE em regular para o seu tempo e no sentido das causas dos europeus.

A Proposta que esta semana veio a público representa uma tentativa de legislar o fenómeno do greenwashing, que já vem sendo bem conhecido como prática habitual junto dos consumidores. O setor empresarial foi expedito no ajustamento às intenções de consumo mais sustentável por parte dos consumidores nos últimos anos, prezando por alegações ambientais ou de sustentabilidade social mesmo quando (i) tais referências eram esvaziadas de conteúdo; (ii) tais referências eram absolutamente falsas; (iii) tais referências, sendo verdadeiras, dissimulavam práticas não sustentáveis.

Um estudo da Comissão que analisou 150 alegações ambientais, em vários produtos, verificou que 53,3% dessas alegações eram vagas, enganosas ou infundadas, 40% não tinham qualquer fundamento factual e 50% da rotulagem verde não era objeto de verificação (ou, sendo, era fraca). Os próprios consumidores apresentam desconfiança em relação a estas alegações ambientais, em geral. Se, por um lado, esse ceticismo é demonstrativo da maior atenção dos consumidores em relação à atuação do profissional, por outro prejudica claramente a sua disponibilidade de escuta de alegações fidedignas, fazendo com que o consumidor, muitas vezes, ao duvidar da alegação, fique paradoxalmente desinformado.

Neste sentido, a Proposta de Diretiva relativa à capacitação dos consumidores para a transição ecológica já apresentara, em 2022, algumas medidas legislativas tendentes à superação do greenwashing. Especificamente no que ao diploma das práticas comerciais desleais diz respeito, são de destacar as seguintes propostas de alteração:

(i) Alargamento da lista das ações consideradas enganosas, estabelecidas no artigo 6.º, n.º 1 da Diretiva 2005/29/CE, visando incluir os conceitos de “impacto ambiental ou social”, “durabilidade” e “reparabilidade”;

(ii) Alteração do artigo 6.º, n.º 2 da mesma Diretiva, no sentido de se poder considerar enganosa, no seu contexto factual, a apresentação de uma alegação ambiental que não assente em compromissos e metas claras, objetivas e verificáveis, nem um sistema de controlo independente;

(iii) Aditamento de novas práticas comerciais que devem ser consideradas desleais em qualquer circunstância (artigo 5.º, n.º 5 da Diretiva e Anexo I), nomeadamente:

– Exibição de um rótulo de sustentabilidade que não se baseia num sistema de certificação ou que se baseia num sistema de certificação que não foi criado por autoridades públicas;

– Fazer uma alegação ambiental genérica para a qual o profissional não consegue demonstrar um desempenho ambiental reconhecido e relevante para a alegação;

– Fazer uma alegação ambiental sobre o bem na sua totalidade quando se refere apenas a uma determinada parte desse bem;

– Apresentar como característica distintiva do bem requisitos impostos por lei a todos os bens no mercado da União.

Na mais recente Proposta (Green Claims Directive), é reforçada a intenção de prevenção de manobras de greenwashing, regulando a forma como as empresas fundamentam e comunicam as suas alegações sustentáveis. No artigo 3.º, é proposto o estabelecimento de requisitos específicos quanto aos contornos de fundamentação das alegações ambientais que o profissional faça. Com particular interesse para o consumidor, no artigo 5.º são propostos os moldes de comunicação das alegações ambientais, nomeadamente, entre muitos outros, a inclusão da informação acerca de como o consumidor deve utilizar o bem de forma a obter o desempenho ambiental esperado e alegado (n.º 3). Estes moldes de comunicação são bastante alargados, provavelmente demasiado. Por outro lado, a Proposta vem também procurar regular as alegações ambientais comparativas, estabelecendo igualmente a forma como estas devem ser comunicadas ao consumidor. Além disso, como não poderia deixar de ser, a Proposta vem apresentar os requisitos que devem ser respeitados para que o profissional possa utilizar um determinado sistema de certificação ambiental. Muito interessante notar que um desses requisitos se prende com a existência de um sistema de reclamações e de resolução de litígios para questões relacionadas com a rotulagem/certificação. Não é menos interessante que a Proposta pareça sugerir que se encete o caminho para a diminuição da proliferação de sistemas de certificação, o que se compreende, considerando os já 230 rótulos disponíveis na UE.

Todas estas propostas são passíveis de contribuir para a promoção de consumidores mais informados e para o desincentivo à implementação de práticas de greenwashing pelo setor empresarial, como é evidente. No entanto, não é tão claro que o resultado da implementação de todas estas propostas venha a refletir-se em consumidores melhor informados, sobretudo se atentarmos na imensa quantidade de informação que deve ser comunicada ao consumidor (também) neste potencial diploma legislativo. Além disso, importa precisar que o caminho atual não se basta com uma estratégia de regulação a estrear do fenómeno. Na verdade, agora, importa justamente também implementar estratégias que devolvam a confiança e a certeza aos consumidores.

Era uma vez a Shein na Web Summit

Doutrina

No segundo dia da Web Summit 2022, em Lisboa, Donald Tang, vice-presidente executivo da chinesa Shein, subiu ao palco. Muito disse sobre o modelo de negócio, as revoluções na indústria da moda e a devoção ao consumidor. Sobre violação de direitos humanos nas cadeias de abastecimento, exploração laboral, contrafação e outros que tais, nem uma palavra. Mas, também, sem moderador, quem é que ia lembrar-se realmente de perguntar?

Tang soube onde colocar a tónica. Entre “a escolha de colocar o cliente no centro é a nossa estrela do Norte” e “estamos sempre a ouvir o consumidor”, foi possível perceber que a Shein aposta na produção de até 200 unidades de cada peça, apenas avançando para maiores volumes se a intenção de compra for clara – isto é, se se notar uma tendência de consumo[1].

Ao nível da sustentabilidade a ideia não parece mal pensada: menos produção, menos recursos, menos desperdício em vão. Um desaproveitamento de “apenas 2%”, nas palavras do americano. Há aplausos que precisam de ser dados. O problema começa quando Tang afirma, quase orgulhoso, que entre o design do bem e a respetiva confeção passam no máximo 14 dias, podendo até passar menos[2]. Uma coisa é certa – a Shein ouve mesmo o consumidor. Pudesse o trabalhador ter a mesma sorte.

Obrigatoriedade de produção de 500 peças por dia por funcionário, 2 a 4 cêntimos de pagamento por unidade, 12 a 18 horas de trabalho diário, 1 dia de descanso por mês é quanto vale, no fim de contas, uma empresa avaliada em biliões de dólares[3].

Depois de tantas benesses, Tang afirmou ainda que a gigante se prepara para integrar o mercado em segunda mão, acompanhando as mais recentes tendências de consumo circular. Um intencional “queremos revolucionar a moda tradicional através da tecnologia, tornando-a acessível e inclusiva” conquistou, certamente, a assistência. Mas só quando Tang deixou cair um ponderado “se querem tornar o mundo mais sustentável, venham trabalhar connosco” é que a plateia de ativistas se revoltou. Ou talvez não, que não estava lá nenhum.

Para todos os que assistiam, Donald Tang esclareceu, de uma vez por todas, que o nome da marca não se pronuncia “Shine”, antes “She-in”. Em qualquer dos casos, ficou mais do que evidente que She is definitely In trouble.


[1] Observador, “Vice-presidente da Shein («diz-se She In»): ‘Se querem tornar o mundo mais sustentável, venham trabalhar connosco’”, 2.11.2022, disponível em https://observador.pt/2022/11/02/vice-presidente-da-shein-diz-se-she-in-se-querem-tornar-o-mundo-mais-sustentavel-venham-trabalhar-connosco/. Renascença, “Empresa chinesa de ‘fast fashion’ lança plataforma para venda em segunda mão”, 2.11.2022, disponível em https://rr.sapo.pt/noticia/economia/2022/11/02/empresa-chinesa-de-fast-fashion-lanca-plataforma-para-venda-em-segunda-mao/306291/.

[2] Jornal de Negócios, “Shein demora 10 a 14 dias entre design e fabrico de cada peça”, 2.11.2022, disponível em https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/web-summit/detalhe/e-o-primeiro-dia-oficial-da-web-summit-no-palco-principal-fala-se-da-alexa-da-amazon.

[3] David Hachfeld e Timo Kollbrunner, “Toiling Away for Shein Looking Behind the Shiny Façade of the Chinese «Ultra-Fast Fashion» Giant”, 11.2021, disponível em https://stories.publiceye.ch/en/shein/. Channel 4, Untold: Inside the Shein Machine (documentário), 17.10.2022. Madeline A. James, “Child Labor in Your Closet: Efficacy of Disclosure Legislation and a New Way Forward to Fight Child Labor in Fast Fashion Supply Chains”, in The Journal of Gender, Race & Justice, vol. 25, n.º 1, 2022, disponível em https://jgrj.law.uiowa.edu/online-edition/volume-25-issue/child-labor-in-your-closet-efficacy-of-disclosure-legislation-and-a-new-way-forward-to-fight-child-labor-in-fast-fashion-supply-chains/.

Alegações Ambientais e o Ecobranqueamento: a defesa dos direitos dos consumidores no âmbito da transição verde

Legislação

Existe atualmente um crescente impacto da comunicação comercial com recurso a alegações ambientais que visam influenciar as decisões de compra do consumidor. Tornou-se banal depararmo-nos com referências à sustentabilidade ou reciclabilidade de um produto. Proliferaram os selos, logos e certificações. A utilização de expressões como “Green” ou “Eco” foram banalizadas e alegações ambientais genéricas e vagas são muitas vezes uma prática no mercado.

A 30 de março de 2022 foi publicada pela Comissão Europeia, a Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera as Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/UE, no que diz respeito à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e de melhor informação.

Na preparação da Proposta, foram consultados mais de 12.000 consumidores, empresas, autoridades nacionais dos Estados-Membros e especialistas na área do consumo e Direito do Consumo, tendo a mesma revelado que o receio do ecobranqueamento tem impedido os consumidores de participar mais ativamente na transição verde. A questão da fiabilidade da informação surgiu como a principal questão para o consumidor.

A viabilidade da reparação dos produtos foi identificada como passível de permitir aos consumidores uma escolha de produtos mais sustentáveis e, por sua vez, uma melhor informação sobre a durabilidade dos mesmos foi identificada como a melhor opção para capacitar os consumidores na transição ecológica, permitindo assim uma economia circular.

É de grande importância e de se sublinhar a crescente atenção dada pela Comissão Europeia à temática das alegações ambientais. A Proposta visa, entre outros objetivos, a proteção dos consumidores no âmbito de práticas comercias desleais que induzam o consumidor em erro quanto às suas escolhas de consumo sustentável, reforçando o princípio do direito à informação.

É uma das iniciativas previstas na Nova Agenda do Consumidor e no Plano de Ação para a Economia Circular e dá seguimento ao Pacto Ecológico Europeu, mais conhecido como o Green Deal.

Mais precisamente, a Proposta visa, entre outros, impedir as práticas de ecobranqueamento, de obsolescência precoce e de utilização de rótulos, selos e certificações não fiáveis.

São adicionadas dez práticas comerciais ao elenco constante no anexo I da Diretiva 2005/29/CE que devem ser consideradas desleais em quaisquer circunstâncias, sendo três delas sobre o tema das alegações ambientais.

O foco recai igualmente sobre as informações pré-contratuais, sendo alterada a Diretiva 2011/83/EU. A Proposta introduz os conceitos de durabilidade e reparabilidade dos produtos, temas relacionados com a obsolescência programada/precoce, sendo curiosamente introduzida uma pontuação de reparabilidade. O consumidor é assim capacitado para uma participação mais ativa na economia circular.

No que dirá respeito à durabilidade, passa a ser necessária a prestação de informação sobre a existência e a duração da garantia comercial de durabilidade dos produtos, sempre que o produtor disponibilize essa informação. Notamos que estas alterações são estendidas à celebração de contratos à distância e de contratos celebrados fora do estabelecimento comercial.

Trata-se portanto de uma Proposta com o objetivo claro de contribuição para o bem-estar dos consumidores europeus e para a economia da UE.

No âmbito nacional assinala-se igualmente um crescente foco nas temáticas trazidas pela transição verde.

A Direção-Geral do Consumidor (DGC) é a entidade pública em Portugal que tem por missão a definição e execução da política de defesa do consumidor, sendo responsável pelo acompanhamento e fiscalização da publicidade em Portugal e se tem movimentado numa ótica de sensibilização e informação tanto junto dos profissionais como dos consumidores.

Em Outubro de 2021, foi lançado pela DGC e pela Auto Regulação Publicitária, um guia explicativo, que visa orientar os profissionais para práticas transparentes e capacitar o consumidor para escolhas mais conscientes tendo em conta as implicações ecológicas dos seus hábitos de consumo.

São exemplificadas boas e más práticas, sendo claro que qualquer alegação ambiental deverá ser “verdadeira, precisa e capaz de ser comprovada através de provas científicas”, que por sua vez deverão estar disponibilizadas ao consumidor de forma imediata e junto da alegação em causa, devendo a linguagem ser acessível e clara.

É assim que aguardamos com expectativa as negociações e emendas do Parlamento Europeu e do Conselho, a publicação da Diretiva e a sua posterior transposição, sendo certo que todo o trabalho efetuado a nível Europeu e em Portugal permitirá uma maior capacitação do consumidor para um consumo sustentável, circular e consciente das suas implicações ecológicas.

“Sustainable development is development that meets the needs of the present without compromising the ability of future generations to meet their own needs.” Gro Harlem Brundtland, Líder internacional em desenvolvimento sustentável.