A última sexta-feira de novembro tornou-se conhecida como “Black Friday”, um dia estrategicamente situado antes da época natalícia, em que os consumidores são bombardeados com e-mails, mensagens e alertas de várias lojas, anunciando horários de início, percentagens de desconto e uma enorme variedade de produtos disponíveis a preços reduzidos.
Se na ponta do iceberg os consumidores podem ver oportunidades de poupar algum dinheiro na compra dos presentes de Natal para a sua família e amigos, ou mesmo para os próprios; na parte inferior desse iceberg podemos ter vários problemas que nem sempre são evidentes como práticas comerciais desleais, erros na apresentação de preços, marketing direto agressivo, problemas de sustentabilidade e direitos humanos.
Infelizmente, com o aquecimento global e descongelamento dos glaciares, a subida dos níveis do mar pode gerar o desgelo acelerado da parte submersa dos icebergs, o que, por sua vez, pode provocar o colapso de grandes massas de gelo superficiais, afetando os ecossistemas marinhos e contribuindo para impactos potencialmente devastadores para as zonas costeiras e para a fauna local. Paralelamente, na nossa metáfora podemos interpretar a subida dos níveis do mar como o aumento da consciencialização sobre os problemas reais que, muitas vezes, permanecem ocultos, quer por estarem submersos, quer por a nossa atenção ser repetitivamente desviada para montras e e-mails promocionais. Assim, versemo-nos sobre questões importantes que podem e devem, eventualmente, “vir à tona”.
Uma das principais questões que surgem no contexto da Black Friday são as práticas comerciais desleais, que podem comprometer os direitos dos consumidores e prejudicar a sua confiança nas ofertas. De acordo com o Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, que regula as referidas práticas comerciais, um exemplo comum é a falsa redução de preços, em que os profissionais aumentam artificialmente o preço de um produto antes da Black Friday para, depois, oferecer um “desconto” que, na realidade, é fictício e não representa uma verdadeira vantagem comercial para os consumidores.
Outra prática frequente é a falsa urgência, em que os profissionais criam uma sensação de escassez, como por exemplo, anunciando que as promoções são válidas apenas por um período reduzido, ou que as quantidades de um determinado produto são limitadas, mesmo que isso não corresponda verdade. Essa tática leva os consumidores a tomarem decisões de compra apressadas, sem a oportunidade de avaliar adequadamente os produtos ou compará-los com outras ofertas disponíveis no mercado.
Estes tipos de comportamento são considerados desleais, nomeadamente, por explorarem a pressão emocional e a falta de tempo dos consumidores para avaliarem concientemente as ofertas comerciais que lhes são apresentadas, ao invés de proporcionar uma experiência de compra justa e transparente.
Durante a Black Friday, uma prática recorrente é o marketing direto agressivo, que leva os consumidores a serem incessantemente bombardeados com ofertas, seja por e-mail, mensagens de texto ou notificações nas redes sociais. A pressão constante para aproveitar os descontos pode comprometer o direito do consumidor de tomar decisões bem-informadas, violando assim o princípio da boa-fé contratual.
Ainda no mesmo contexto, surge também uma preocupação crescente com as questões de sustentabilidade e direitos humanos. Muitos profissionais, ao promoverem grandes descontos, não garantem que os produtos oferecidos sejam fabricados de forma ética e sustentável, podendo até envolver condições de trabalho precárias em países em desenvolvimento. O artigo 8.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor) tem como objetivo garantir aos consumidores o direito de informação acerca das características principais dos bens que lhes são apresentados, incluindo a sua origem, para que estes mesmos consumidores possam tomar uma decisão de compra mais informada, com a devida consciência dos impactos ambientais e sociais negativos que podem estar na origem da produção de certos produtos.
Além disso, a Diretiva (UE) 2024/825 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de fevereiro de 2024, respeitante à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e melhor informação, incentiva práticas de consumo que respeitem o meio ambiente e os direitos dos trabalhadores. Os profissionais devem ser transparentes quanto à origem dos seus produtos e às condições de fabrico, sendo reforçada a necessidade de durabilidade dos produtos. São ainda proibidas alegações ambientais sobre o desempenho futuro dos produtos, a menos que estejam acompanhadas de compromissos claros, objetivos, publicamente acessíveis e verificáveis, assim como publicidade que sugira benefícios para os consumidores que são manifestamente irrelevantes.
Por fim, e antes que chegue a “Cyber Monday”, é importante refletirmos sobre as consequências destas práticas comerciais, que, embora possam ser vantajosas num primeiro momento, muitas vezes escondem problemas significativos que afetam tanto os consumidores, quanto o nosso meio ambiente. Dessa forma, é fundamental que os consumidores se tornem mais conscientes e críticos das ofertas que recebem, questionando a transparência dos profissionais e prioritizando decisões mais esclarecidas.
Como disse o filósofo Henry David Thoreau, em 1854 no seu livro Walden, “um homem é rico na proporção do número de coisas que pode permitir-se deixar de lado”, pois ao adotar uma abordagem mais simples e consciente, podemos concentrar-nos no que realmente importa, evitando a armadilha do consumo excessivo e das falsas promessas que, frequentemente, encobrem a verdadeira natureza de muitas ofertas comerciais.