Chamadas não consentidas. Anedotas e realidade normativa
Gostaria de começar uma sequência de reflexões no blog do NOVA Consumer Lab com uma experiência pessoal, embora não seja exatamente fruto de uma viagem como a de Jorge Morais Carvalho. Não sei quantas vezes isto aconteceu convosco nos últimos meses (contem a experiência nos comentários, talvez sejamos muitos):
A qualquer hora do dia, um número de telefone identificado liga. Às vezes, o meu próprio telemóvel adiciona uma etiqueta de «suspeito de spam» acompanhada de um sinal de STOP; outras vezes, não. Ocasionalmente, o número parece telemóvel e outras parece fixo. O horário em que recebi chamadas vai das 9 da manhã à meia noite. As mais incómodas são as que ocorrem na hora da sesta, porque interrompem o descanso; mas não são menos desagradáveis as que ocorrem durante o horário de trabalho (a primeira impressão é que nos ligam por algo urgente, especialmente quando realmente se espera receber alguma chamada) ou as que ocorrem à noite (será que aconteceu alguma coisa à minha família ou a um amigo?).
Tenho o hábito de atender essas chamadas, apesar do aviso de spam, para surpresa dos meus amigos e familiares. As respostas que recebo são as seguintes:
(1) silêncio e desligamento da chamada em menos de 10 segundos;
(2) voz robótica a dizer «o seu trabalho é muito importante para nós» / «foi selecionado para uma oferta de emprego»;
(3) pessoa humana que me cumprimenta em nome de uma empresa de call center para me fazer uma oferta de mudança de empresa.
Se tenho o telefone em silêncio e vejo uma chamada perdida desses números, retorno a chamada, para maior surpresa dos meus amigos e familiares; e… o meu telefone indica que «o número marcado não existe», para meu espanto e, espero, dos leitores deste blog: como é que não existe se tenho uma chamada perdida dele!
Em Espanha, de acordo com dados do Instituto Nacional de Cibersegurança (INCIBE), desde a entrada em vigor do plano anti-fraudes em março de 2025, as operadoras de telefonia bloquearam cerca de 48 milhões de chamadas fraudulentas. Em Portugal, a ANACOM recebeu em 2025 70 reclamações por este tipo de práticas, mais do dobro do que em 2024 (cerca de 30). A nível mundial, no primeiro trimestre de 2025, foram detetadas 12,5 mil milhões de chamadas suspeitas de serem spam (137 milhões de chamadas por dia).
Estas chamadas pretendem explorar as vulnerabilidades da população, especialmente dos grupos mais vulneráveis. A frase que acabou de ler não é uma redundância: perante determinadas ferramentas de IA, todos somos vulneráveis, uma vez que a vulnerabilidade digital está relacionada com a fonte (IA, tratamento massivo de dados, perfilagem, padrões obscuros); e esta vulnerabilidade digital afeta ainda mais os grupos vulneráveis clássicos (menores, migrantes, idosos…). No caso das chamadas fraudulentas, o grupo mais exposto são os idosos. Precisamente, em junho de 2024, numa operação conjunta das forças de segurança espanholas e portuguesas, foram detidas 54 pessoas responsáveis por roubar pelo menos 84 vítimas através de táticas de vishing e engenharia social.
Tanto Espanha como Portugal propuseram alterações à Lei dos Serviços de Atendimento ao Cliente e à Lei das Comunicações Eletrónicas, respetivamente, com o objetivo de facilitar a identificação e o bloqueio deste tipo de chamadas.
Estas iniciativas pretendem, e devem ser saudadas, eliminar esta prática e os danos que ela causa. No entanto, por um lado, trata-se, por enquanto, de meras propostas de alteração; por outro, não contemplam medidas reativas para as situações em que a referida prática já ocorreu. É importante lembrar que estas não são apenas um meio eficaz para a prática de fraudes, mas que a repetição dessa prática em todos os tipos de população e a qualquer hora do dia gera um estado de inquietação latente dificilmente compatível com uma vida saudável.
O direito à saúde psicológica dos consumidores. Visão comparada Espanha – Portugal
O direito à saúde dos consumidores é reconhecido a nível constitucional tanto em Espanha como em Portugal:
– O artigo 60.º, n.º 1, da Constituição portuguesa estabelece que «Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à proteção da saúde, da segurança e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos».
– O artigo 51.1 da Constituição espanhola estabelece que os poderes públicos devem garantir a defesa dos consumidores e utilizadores, protegendo, através de procedimentos eficazes, a segurança, a saúde e os legítimos interesses económicos dos mesmos.
O desenvolvimento do direito à saúde dos consumidores na regulamentação do consumo centrou-se na proteção da saúde física. Assim se pode observar nos artigos 3.º, alínea b), 5.º e 10.º, alínea a), da Lei de defesa do consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 , de Julho); e nos artigos 8.1.a, 11, 14, 15 e outros do Texto Reunido da Lei Geral para a Defesa dos Consumidores e Utilizadores (Real Decreto Legislativo 1/2007, de 16 de novembro). Tanto a regulamentação portuguesa como a espanhola utilizam sempre a dupla «saúde e segurança». O caso da regulamentação portuguesa é ainda mais claro, uma vez que fala de «saúde e segurança física» e não apenas de «saúde», como a norma espanhola.
A vertente psicológica do direito à saúde dos consumidores é pouco explorada. Em 2023, o Parlamento Europeu publicou um relatório em que sublinha a necessidade de proteger tanto a saúde física como a saúde mental (p. 3, alínea C). Este relatório salienta igualmente que «a tecnologia digital pode trazer benefícios importantes ao ligar zonas remotas e proporcionar meios acessíveis e económicos de apoio psicológico, mas que, ao mesmo tempo, a omnipresença dos smartphones e das tecnologias digitais, como as aplicações móveis e as redes sociais, representa um risco para a saúde mental e o isolamento social». No entanto, o texto centra-se fundamentalmente nas consequências do uso excessivo das tecnologias digitais, especialmente na população jovem e infantil. Embora seja verdade que as chamadas falsas não seriam possíveis sem o uso das tecnologias digitais atuais, não estamos a falar exatamente da mesma coisa. De qualquer forma, a proteção e a promoção da saúde mental são uma preocupação da Comissão Europeia, como demonstram os documentos emitidos desde 2023 sobre uma abordagem integral da saúde mental na UE. É de salientar, no entanto, que esses documentos não fazem referência explícita à saúde mental dos consumidores.
Não consegui encontrar decisões judiciais em Espanha ou Portugal, nem no Tribunal de Justiça da UE, que tratem da vertente psicológica do direito à saúde dos consumidores. No entanto, é importante lembrar que «saúde» é o «estado do indivíduo em que as funções orgânicas, físicas e mentais decorrem com normalidade». Neste termo, o Dicionário da Língua Portuguesa é mais preciso do que o Dicionário da Real Academia da Língua Espanhola, que define «saúde» como o «estado em que o ser orgânico exerce normalmente todas as suas funções», mas sem fazer referência expressa às funções orgânicas, físicas e mentais. Nesse sentido, parece razoável e coerente com a crescente preocupação da UE com a promoção e o cuidado da saúde mental preencher uma lacuna importante na aplicação da nossa regulamentação de consumo: os consumidores têm direito à saúde e à segurança, não apenas física, mas também mental.
Fora do âmbito do direito do consumo, os danos psicológicos são reconhecidos como danos não patrimoniais, tanto em Portugal como em Espanha. Em Portugal, o artigo 70.º do Código Civil estabelece que «a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral», o que é posteriormente complementado pelos critérios de compensação de danos não patrimoniais (art. 464.º) e de cálculo da indemnização (art. 564.º). Um critério semelhante é seguido em Espanha, neste caso apoiado nos artigos 1902.º e 1103.º a 1107.º do Código Civil. Os danos psicológicos são geralmente considerados como uma categoria específica de danos morais; no entanto, considero oportuno salientar o seguinte:
– Os danos morais visam compensar o sofrimento (pretium doloris, de acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Espanha de 31 de maio de 2000), mas esse sofrimento não tem necessariamente de estar associado a uma doença psicológica (acórdão do Supremo Tribunal de Espanha de 16 de junho de 2016). Tanto é assim que o Tribunal de Justiça da UE reconheceu em várias sentenças que o medo da utilização indevida de dados pessoais após o incumprimento do RGPD constitui um dano moral indemnizável no âmbito do artigo 82.º do RGPD.
– Os danos psicológicos estão associados a uma doença psicológica, normalmente derivada de alguma circunstância traumática ou de um sofrimento. São, deste ponto de vista, danos relativos à saúde.
Para efeitos práticos, o importante é que existe uma prática consolidada de compensar o sofrimento (esteja ou não associado a uma doença psicológica) como dano moral. No entanto, para efeitos do objetivo destas reflexões, penso que é importante salientar que, neste momento, a via fundamental de proteção dos danos à saúde psicológica dos consumidores (questão que faz parte da proteção do seu direito à saúde) não se encontra nas normas de consumo, mas nas normas gerais do direito civil sobre indemnização por danos não patrimoniais.
Ações coletivas em defesa do direito à saúde psicológica dos consumidores?
Esta falta de critérios claros na regulamentação e, naturalmente, ainda mais na jurisprudência, deixa desprotegida metade do conteúdo do direito à saúde dos consumidores, se lembrarmos que, de acordo com o Parlamento Europeu, a saúde física e a saúde mental devem ser tratadas de forma igualitária.
Acrescentemos a tudo isso uma última questão: e a saúde pública psicológica?
Utilizo, emprestadas, as palavras de Ana Rita Fontes Pinto na sua dissertação “A responsabilidade civil pela perturbação psicológica (emotional distress) causada pelos meios de comunicação social”:
«O abalo psicológico que os meios de comunicação social podem provocar no ser humano é inquestionável, tomemos como exemplo a pandemia. Quanta ansiedade e stress foram causados à população pela imensidão de notícias minuto a minuto com atualizações sobre as mortes, internamentos, números de infetados?»
A reflexão, muito oportuna, sobre um dano coletivo à saúde psicológica refere-se à atuação dos meios de comunicação social durante a pandemia. Sem pretender equiparar o stress causado pelos meios de comunicação e redes sociais nos meses mais críticos (nem muito menos entrar na sua ponderação com o dever de informação e a liberdade de expressão), cabe questionar se 137 milhões de chamadas falsas por dia podem estar a causar danos coletivos à saúde psicológica dos consumidores.
Se chegarmos à conclusão de que sim (eu acredito que sim), talvez a ação coletiva contra as empresas responsáveis por essa abundância de chamadas falsas por danos psicológicos coletivos possa ser uma forma de defesa dos consumidores. Para saber mais sobre a ação coletiva, consulte o post de Leonor Gambôa Machado, publicado na semana passada.