Que política para o Direito de Consumo Europeu no futuro? O novo foco na competitividade europeia

Doutrina

Embora estejamos já no fim do primeiro trimestre de 2025, mantém-se especialmente urgente realizar uma reflexão sobre o que podemos esperar do resto do ano, e que espectativas devemos ter do futuro, em termos de política europeia e, em especial, que política é vamos ter para a proteção dos consumidores e o Direito Europeu do Consumo.

2024 foi um ano de fim de ciclo[1], com as eleições europeias em junho, novo Parlamento Europeu em julho, a tomada de posse da nova Comissão Europeia Von der Leyen 2.0 em dezembro, eleições presidenciais americanas em novembro e nova Administração Trump em janeiro.2025 marca o início de um novo ciclo[2], bastante desafiante, cheio de incertezas e de desafios.

Esta reflexão foca-se em dois temas nucleares, que serão abordados em dois textos neste blog: a) o novo foco na competitividade europeia pela Comissão Europeia; b) expectativas para a proposta do Digital Fairness Act, considerando os resultados do Digital Fairness Fitness Check.

Mudanças no Ar – o novo foco na competitividade europeia

Em setembro, foi publicado o relatório “The future of European competitiveness”, preparado pelo anterior presidente do BCE (“salvador do Euro”) e ex-primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, “encomendado” pela Comissão em 2023. O “Relatório Draghi”, como ficou conhecido, analisa a atual situação macroeconómica europeia, diagnosticando vários fatores e sintomas para a perda da competitividade e declínio face aos Estados Unidos e a China, propondo ainda uma série de recomendações estratégicas que visam inverter este processo e relançar a União Europeia enquanto bloco económico.

O relatório é extenso, divido em duas partes: a parte A, com análise inicial e estudo macroeconómico, com 69 páginas, enquanto a parte B, com 328 páginas, contém uma análise aprofundada setorial com recomendações de medidas e reformas. As recomendações visam essencialmente um maior aprofundamento das competências (e mesmo alguma federalização) da União Europeia. O relatório foca-se na necessidade de eliminar barreiras no mercado único, simplificar a carga regulatória sobre as empresas, “desbloquear” o movimento de capitais no espaço europeu, promover a consolidação de alguns grupos económicos europeus em certos sectores e a reindustrialização (mantendo um plano conjunto para descarbonização e transição climática), apostando na inovação tecnológica (destaque para a IA) e assegurando a segurança e soberania europeia.

As reações ao relatório foram diversas, entre a recetividade do diagnóstico geral e a controvérsia quanto a certas medidas, como a emissão de mais dívida comum europeia (oposta imediatamente pelos Países Baixos e Alemanha). Várias das reformas propostas dividiram assim Estado Membros e partidos europeus. Quanto à política em Direito do Consumo, várias das medidas foram elogiadas (especialmente em matéria de energia), enquanto outras levaram a críticas[3]. A BEUC manifestou preocupação quanto ao possível “relaxar” das normas de direito da concorrência para permitir a consolidação de certos mercados, como o das telecomunicações. Muitas vezes o direito do consumo, a regulação de segurança de produtos e a regulação digital são apontados como sendo excessivas, como um entrave ao crescimento das empresas (críticas semelhantes são também formuladas quanto ao modelo social europeu, em política fiscal ou laboral).

Surge assim a questão: até que ponto é que podemos assegurar o bem-estar dos consumidores sem sacrificar também a competitividade económica? Será possível compatibilizar ambos?

As instituições europeias, encabeçadas pela nova Comissão Europeia parecem pensar que sim. Muitas das principais recomendações do relatório foram integradas nos compromissos políticos dos comissários no seu escrutínio pelo Parlamento Europeu. Os primeiros resultados estão a começar a surgir.

No final de janeiro a Comissão publicou assim o seu primeiro grande documento programático, o “EU Compass to regain competitiveness and secure sustainable prosperity” (Bússola da Competitividade). A Comissão assume assim uma estratégia de investimentos em sectores estratégicos, na inovação, descarbonização, e uma aposta na simplificação e coordenação das normas aplicáveis.

Competitividade e Proteção de Consumidores

Quanto a medidas e políticas para o direito do consumo, ainda vamos ter de esperar um pouco mais, já que segundo o programa da Comissão para 2025 (“work programme 2025” e anexos), a “2030 Consumer Agenda” (que vai incluir “action plan for consumers in the Single Market”) só deverá ser publicada no último trimestre de 2025, sendo que deverá ser aberta uma consulta pública para este no segundo trimestre.

Ainda assim, a Comissão publicou já a comunicação “A comprehensive EU toolbox for safe and sustainable e-commerce” (acompanhado de um Q&A), em que delineia as suas prioridades e iniciativas para o comércio eletrónico, uma das áreas fundamentais com importância crescente.

É assumido que o mercado interno da UE é o mercado com as normas que mais protegem os consumidores e asseguram a segurança dos produtos no mundo, mas que estas normas e standards são frequentemente desrespeitadas e violadas no domínio do comércio eletrónico, em especial nas grandes plataformas online. Entre estas destacam-se as plataformas chinesas Temu[4] e Shein, as quais estão a ser alvo de investigações e ações judiciais, em especial para se perceber como estas plataformas têm permitido que uma “avalanche” de produtos de baixo preço, baixa qualidade, contrafeitos e perigosos para seres humanos (em especial crianças), inundem o mercado europeu. Além de representarem uma ameaça à segurança e bem-estar dos consumidores (e dos óbvios problemas no âmbito de sustentabilidade dos produtos e possíveis violações de direitos humanos no seu fabrico), a Comissão Europeia também realça os prejuízos que vendedores europeus sofrem com esta concorrência desleal, por terem de respeitar as normas e standards europeus.

Segundo esta comunicação, a solução não é diminuir a carga regulatória que consequentemente reduz a proteção dos consumidores, mas sim assegurar que as normas são devidamente cumpridas, impedindo a entrada de produtos desconformes e responsabilizando as plataformas. Desta forma, a comunicação propõe: a) uma reforma aduaneira, com um reforço dos controlos, fim da isenção de direitos para as encomendas cujo valor seja inferior a 150 euros e novas taxas sobre produtos importados para a UE através do comércio eletrónico, b) promover o enforcement dos novos diplomas para responsabilizar as plataformas online, como o Digital Services Act e o Digital Markets Act, o novo Regulamento de Segurança dos Produtos, o Regulamento de Cooperação entre Autoridades no domínio do Consumo, c) utilizar novas ferramentas digitais para a supervisão e para melhorar a cooperação, d) adotar um plano de ação para os diplomas em proteção ambiental, d) capacitar os consumidores e e) reforçar a cooperação internacional.

Esta primeira comunicação da Comissão constitui um primeiro sinal da sua política em Direito do Consumo, em conjunto com os já referidos compromissos políticos dos comissários, em especial da Vice-Presidente Henna Virkkunen e de Michael McGrath, Comissário para Democracia, Justiça, Estado de Direito e Proteção dos Consumidores, e os seus planos para uma proposta de um Digital Fairness Act baseado nas conclusões do Digital Fairness Fitness Check. Parece que a política em Direito Europeu do Consumo não será (muito) alterada no sentido de reduzir a proteção dos consumidores europeus. Embora haja um push quanto ao quadro regulatório digital, parece que a Comissão pretende continuar a complementar e aprofundar (talvez mais timidamente) o Direito do Consumo (em especial online) e em reforçar o seu enforcement.[5]

Quando a questão da competitividade europeia é levantada quanto à proteção dos consumidores, a abordagem (que também já tinha sido apontada no relatório do Digital Fairness Fitness Check) aparenta não passar necessariamente pela “desregulação”, mas pela “simplificação” do ordenamento jurídico, para melhorar a sua consistência (interna e externa) de forma a reduzir os custos de compliance para os agentes económicos, sem reduzir os direitos dos consumidores.

Porém, é necessário realçar que estes pressupostos podem mudar drasticamente.

Considerando apenas os sinais que vêm de dentro da Comissão, parece que outras matérias (como obrigações ambientais, de sustainable finance, corporate due dilligence) não vão ter tanta “sorte”, existindo um verdadeiro “push” para desregular. O work programme 2025 prevê vários diplomas de “simplificação” até ao final deste ano, incluindo no domínio “digital”, enquanto vários procedimentos legislativos anteriores foram “cancelados”, com a Comissão a retirar as suas propostas. Entre estes, é inevitável referir a proposta de diretiva relativa à responsabilidade civil em matéria de inteligência artificial (AI Liability Directive).

Brussels Effect vs Trump Effect

Finalmente, é necessário referir o “elefant in the room” subjacente à afirmação de que 2025 é o início de um novo ciclo “bastante desafiante, cheio de incertezas e desafios”: a nova administração Trump e as suas políticas comerciais e regulatórias.

Sem entrar em pormenores e análises geopolíticas, é necessário apontar que esta administração mudou substancialmente, radicalmente, a postura americana para a proteção dos consumidores – e que esta mudança também terá impacto nos consumidores europeus. Desde os planos de desmantelamento do Consumer Financial Protection Bureau, aos discursos do Vice Presidente JD Vance na campanha eleitoral e agora no AI Summit 2025 em Paris, tornou-se explícito e completamente incontornável com o memorando Defending American Companies and Innovators From Overseas Extortion and Unfair Fines and Penalties – The White House.

Neste memorando, a Administração Trump afirma que, se governos ou entidades reguladoras de outros Estados e blocos económicos aplicarem coimas, sanções, taxas ou outros tipos de penalizações discriminatórias, desproporcionadas ou destinadas a transferir fundos ou propriedade intelectual significativos sobre empresas americanas, a Administração irá aplicar tarifas e outras medidas retaliatórias em resposta.

Neste momento, estamos perante um confronto direto entre o “Brussels Effect” e o “Trump Effect”, e ainda não é clara qual vai ser a resposta europeia[6]. Por exemplo, será que as investigações em curso sobre X (antigo Twitter) por violações do Digital Services Act irão continuar? Não nos podemos esquecer de que, a nível nacional, as entidades reguladoras têm de ser independentes, enquanto, a nível europeu, a Comissão é um ator político.

Conclusões

2025 constitui o início de um novo ciclo, num número quase infindável de matérias e facetas.

Ainda não é inteiramente claro como vai ser a política europeia de Direito de Consumo este ano e no resto do mandato 2024-2029, mas já temos algumas pistas. A nova Comissão Europeia tem sido muito influenciada pelo Relatório Draghi e pela necessidade de desbloquear a competitividade europeia, com a redução/simplificação da carga regulatória. Até ao final do ano deverá ser publicado a 2030 Consumer Agenda, que, incluindo um “action plan for consumers in the Single Market”, deverá assim incluir mais indicações e planos para a proposta do Digital Fairness Act, que provavelmente ficará para 2026[7]. Em alternativa (mas muito menos provável) poderá ser parte do pacote legislativo “Digital”, embora o objetivo deste seja a simplificação da legislação digital.

Quanto à aplicabilidade extraterritorial dos diplomas europeus em regulação digital às Big Tech europeias, desde o Regulamento Geral de Proteção de Dados, o Digital Services Act, o Digital Markets Act e o AI Act, subsistem ainda dúvidas sobre como a União Europeia irá reagir:  o Brussels Effect irá vingar ou estas empresas escaparão impunes?

Fontes

Relatório Draghi The Draghi report on EU competitiveness

Digital Fairness Act Digital fairness – fitness check on EU consumer law

Briefings ao PE dos membros do conselho europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2025/700896/IPOL_BRI(2025)700896_EN.pdf

Competitive compass EU Compass to regain competitiveness

Commission announces actions for safe and sustainable e-commerce imports Safe and sustainable e-commerce imports

Questions and answers on the E-commerce Communication Q&A on the E-commerce Communication

Commission work programme 2025 – European Commission

Defending American Companies and Innovators From Overseas Extortion and Unfair Fines and Penalties – The White House


[1] É necessário referir que ainda ficaram pendentes para 2025 alguns procedimentos legislativos que não ficaram concluídos no último ciclo, nomeadamente a Diretiva Green Claims, a nova Diretiva de Resolução Alternativa de Litígios, nova Diretiva dos Direitos dos Passageiros Aéreos  e, em segurança de produtos, o novo Regulamento de Segurança de Brinquedos.

[2] Foram aprovados em 2024 os seguintes diplomas: a Diretiva de capacitação dos consumidores para a transição ecológica, a nova Diretiva de Responsabilidade do Produtor, a Diretiva do Direito à Reparação, o Regulamento de descontinuação da plataforma europeia de resolução de litígios em linha (ODR), o Regulamento dos requisitos de conceção ecológica dos produtos sustentáveis, e claro, o Regulamento de Inteligência Artificial.

[3] Outras ONG, na área da proteção do ambiente, também apontaram críticas a certas propostas sobre industrialização.

[4] A investigação sobre a Temu partiu da queixa promovida por um consórcio liderado pela BEUC, na ação “Taming Temu”.

[5] Por exemplo, podemos dar destaque aos resultados do último sweep realizado pela Comissão e as autoridades nacionais, que detetaram que quase metade dos vendedores de bens em segunda mão não cumprem com as suas obrigações à luz do Direito do Consumo, publicados no início de março. Nearly half of second-hand online traders fail to correctly inform consumers of their return rights

[6] A BEUC já apelou a que a União Europeia não se deixe intimidar, que continue firme na defesa dos consumidores europeus.

[7] Segundo declarações recentes do Comissário McGrath, deverá haver uma consulta pública e a proposta será apresentada a meio de 2026 (no evento: The Future of Transatlantic Digital Collaboration with EU Commissioner Michael McGrath | CSIS Events transcrição das declarações: The Future of Transatlantic Digital Collaboration with EU Commissioner Michael McGrath