Novo consumo: revenge spending ou um consumo mais consciente?

Doutrina

O mês de agosto está quase chegando ao fim e, paralelamente, em Portugal estamos quase a completar os 6 meses de vivência no processo de confinamento-desconfinamento-“re”confinamento já típicos da pandemia de COVID-19. Nos últimos meses, o NOVA Consumer Lab tem investido grande parte do seu tempo na análise das mudanças inerentes ao “novo normal” da realidade global, atentos aos fatos que afetam o Direito e também a estrutura do consumo. E é com base nessa realidade que hoje nos debruçamos sobre as últimas novidades da análise comportamental dos consumidores.

Há muitos anos que a antropologia e a economia dedicam-se a questionar a forma como se desenvolve o consumo, analisando suas variantes ao longo do tempo e a conscientização ou não da sociedade. Em tempos de pandemia, quarentena e COVID-19, as ciências pareciam se contradizer para entender o futuro da influência desse “novo normal” sobre o comportamento das pessoas. O que seria consumido durante a quarentena? Como consumir? E o que se esperar da economia após meses de reclusão social e isolamento?

As tendências temerárias previam um cenário catastrófico, que em muito se concretizou, e a as curvas de análise econômica pareciam passear por todo alfabeto (L, U, V e por aí vai), indicando quedas acentuadas no consumo mundial. Alguns otimistas e simpatizantes da ideia de um consumo mais consciente chegaram a vislumbrar nos período de quarentena e do pós-pandemia uma chance para a racionalização, ou até mesmo controle no consumo social. No entanto, logo fomos (re)apresentados à noção do revenge spending.

O termo revenge spending, que em português significa “consumo por vingança”, foi cunhado na década de 80 na China, relacionando-se ao comportamento pós revolução cultural e ao crescimento vertiginoso do consumo no país após a reabertura dos mercados, como uma definição para o consumo massivo e repentino depois de um período de longa privação das atividades de comprar e de ir às lojas. Em última análise, estudiosos enxergaram o termo, inclusive, como uma tendência econômica.

A lenta e mundial reabertura das lojas físicas após a quarentena trouxe o fenômeno à tona, demonstrando que, além dos recordes de crescimento no consumo pela via digital, o retalho ainda mantinha um espaço especial tanto no gosto como nos bolsos dos consumidores. Uma espécie de consumo em resposta ao período de demanda reprimida levou, no sul da China, uma butique da marca francesa Hermès a vender o equivalente a US$ 2,7 milhões no primeiro dia de reabertura, em abril, como um de seus recordes históricos de [1].

O mesmo movimento também foi revelado em diferentes boutiques de marca de renome em países como Holanda, Suíça e França.

Já em Portugal, a reabertura dos centros comerciais no início de junho deste ano também deu provas do fenômeno quando as redes sociais foram pulverizadas com as imagens das longas filas do Braga Parque para que as pessoas pudessem entrar na loja da rede Primark[2], em contraposição ao imediatamente anterior período de ruas vazias e isolamento.

Ademais, os dados divulgados pelo último relatório da SIBS Analytics[3] demonstrou ainda a recomposição dos gastos dos portugueses após completos 100 dias da pandemia, onde declara que “volvidos 100 dias desde a declaração de estado de emergência e do início reconhecido da crise sanitária em Portugal, observamos três grandes fases no comportamento de consumo dos portugueses: “Preparação” (antes do início das restrições à mobilidade), “Confinamento” (redução abrupta e significativa do consumo) e “Retorno gradual” (progressiva recuperação dos níveis de transações)”. Interessante notar que, de acordo com estes dados, que consideram apenas os números de operações em canais SIBS, o valor médio de transação realizada pelos portugueses no período pós-pandemia (1 a 25 junho) é inclusive superior em € 3,2 ao que era anteriormente, no período normal de consumo (média de janeiro e fevereiro), quando fixava-se na faixa de € 42,6.

Evidentemente, as pesquisas a longo prazo sobre consumo e economia demonstram que mesmo com esta “vingança de consumo”, é pouco provável que se compensem as vendas perdidas e a crise gerada em toda economia global que, segundo os mesmos dados acima citados, apontam para os valores de € 8 mil milhões de quebra acumulada em transações. A dinâmica futura entre mercado e consumidores não dependerá somente da demanda reprimida, nem mesmo do fenômeno da vingança pós quarentena ou da boa colocação do mundo digital, mas de toda uma rede de estímulos oferecidos tanto pelas lojas físicas, quanto virtuais, para que o consumo possa voltar a se estabelecer dentro do “novo normal”. Seguiremos atentos ao que o futuro nos reserva.

 

[1] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/13/loja-da-hermes-na-china-fatura-us-27-milhoes-em-1-dia-pos-quarentena.htm

[2] https://diariodistrito.pt/praias-desertas-e-primark-com-filas-de-perder-de-vista/

[3] https://www.sibsanalytics.com/wp-content/uploads/2020/06/20200629_Report-100-dias-COVID-19_SIBS_Analytics.pdf

Comissão Europeia, viagens organizadas e vouchers

Legislação

Há cerca de uma semana, chamamos aqui a atenção para a circunstância de o regime do art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020, de 23 de abril, contrariar a Diretiva (UE) 2015/2302, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos.

Ora, hoje, a Comissão Europeia decidiu iniciar um processo por infração contra 10 Estados-Membros, incluindo Portugal (os outros são República Checa, Chipre, Grécia, França, Itália, Croácia, Lituânia, Polónia e Eslováquia), por violação, precisamente, do artigo 12.º-4 da Directiva (UE) 2015/2302.

Aí se refere que “a Comissão tem deixado constantemente claro que os direitos dos consumidores permanecem válidos no atual contexto sem precedentes e que as medidas nacionais de apoio à indústria não devem baixá-los”. Os Estados-Membros não estão, portanto, autorizados a prever medidas, ainda que temporárias e excecionais, que contrariem o previsto na Diretiva, nomeadamente baixando o nível de proteção dos consumidores.

Segundo a Comissão, nos 10 países referidos, são aplicáveis regras nacionais específicas sobre viagens organizadas que permitem aos organizadores de viagens organizadas emitir vales de viagem, em vez de reembolso em dinheiro, para viagens canceladas, ou adiar o reembolso muito além do período de 14 dias, tal como estabelecido na Diretiva.

Do ponto de vista formal, a Comissão enviou cartas de notificação para cumprir aos países referidos. Estes têm agora dois meses para responder à Comissão e tomar as medidas necessárias para colmatar as lacunas identificadas.

Portugal terá, portanto, como referimos no dia 24 de junho neste espaço, de revogar o regime do art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020.

Note-se que, enquanto não for revogada, a norma é aplicável. As Diretivas não são diretamente aplicáveis, pelo que é este o regime português no atual contexto. O direito europeu prevê apenas, nestes casos, a possibilidade de responsabilização dos Estados-Membros.

O novo normal – a low touch economy pós-Covid-19

Doutrina

Há algum tempo que viemos escrevendo sobre todas as alterações que acompanham o período pós-COVID-19 e é chegada a hora de responder o que é o novo normal de uma economia que preza pelo distanciamento. A Low Touch Economy, ou “economia do pouco contato”, é o termo utilizado para um novo conceito em que os mercados lidam com a baixa interação social, com rígidas regras de higiene, medidas de segurança e saúde. Tendência ao longo dos últimos anos, diante da globalização e digitalização do mercado, a pandemia do novo coronavírus parece ter vindo para sedimentar uma nova realidade.

A adaptação necessária às regras de distanciamento e pouco contato chegaram com força mesmo após o desconfinamento, demonstrando a impossibilidade de retomada dos padrões anteriores de mercado. Além do reforço nos investimentos de higiene e limpeza, as empresas agora se viram forçadas a reorganizar sua estrutura de atendimento à distância e também o setor das entregas.

Para agravar a situação, o distanciamento social também conduziu à limitação de acesso aos clientes nos espaços físicos comerciais e redução dos horários de funcionamento de boa parte dos estabelecimentos. A alternância entre lockdowns e reaberturas mantém inúmeras incertezas de como serão os próximos meses de reestabelecimento da economia de consumo.

No entanto, ao que nos parece, tal como no estudo divulgado pela Board Of Innovation [1], empresa voltada à estratégia de inovação, o problema dessa economia consiste justamente no círculo vicioso de disrupção em que regras, cada vez mais austeras, para a higiene e saúde social são acompanhadas do sentimento de insegurança dos clientes, enquanto trazem também novos custos de adaptação. Bastaria pensarmos no caso das áreas de hotelaria e turismo, que segundo o estudo citado, seria um dos setores mais afetados, tendo uma queda de pelo menos 40% de fluxo de capitais.

A facilidade das compras pela internet, então, tornou-se uma das únicas opções para a sobrevivência de inúmeros profissionais que, de portas fechadas, poderiam ver ruir os seus negócios. A realidade da Low Touch Economy veio para sedimentar a estruturação e planejamento dos negócios focados em inovação e no mundo digital. A SIBS Analytics [2] divulgou um estudo que demonstra que a frequência de consumo no e-commerce, relativos à semana de 1 a 7 de junho, quando se iniciou a terceira fase de desconfinamento português, atingiu os valores mais altos desde março deste ano. Um aumento de 7% em relação à semana anterior, que levou as compras online a ultrapassarem os valores pré-pandemia, ultrapassando ainda as médias de transações online relativas a janeiro e fevereiro.

O que será do futuro, mais uma vez, permanece incerto a todos. Não restam dúvidas, entretanto, de os caminhos do consumo agora terem um “novo normal” distante do anterior e cada vez mais digital.

[1] The Winners of the Low Touch Economy, Strategy Report by Board of Inovation, 2020.

[2] O impacto do Coronavírus nos hábitos de consumo dos Portugueses, SIBS Analytics, 09.junho.2020.

Mais um pouco sobre viagens organizadas, cancelamentos e reembolsos

Legislação

Já aqui falamos de viagens organizadas por duas vezes nos últimos meses, a primeira a propósito do Decreto-Lei n.º 17/2020, de 23 de abril, que estabelece, em traços gerais, que o cancelamento de viagens organizadas marcadas para o período entre 13 de março de 2020 e 30 de setembro de 2020 não permite ao viajante a resolução imediata do contrato e o consequente direito ao reembolso, que só poderá ser efetivado no início do ano de 2022, e a segunda sobre a resposta europeia, embora nesse contexto nos tenhamos centrado essencialmente no transporte aéreo.

Imaginemos agora o seguinte exemplo: em 2019, o consumidor celebra um contrato de viagem organizada, a realizar em junho de 2020, que inclui o transporte aéreo e um cruzeiro, pagando de imediato. Nos termos do contrato, o consumidor pode cancelar a reserva até ao final de março de 2020, pagando um valor (penalização) correspondente a 10% do preço da viagem. Sem que a viagem tenha sido entretanto cancelada, o consumidor, na última semana de março, procede ao seu cancelamento.

Aplicar-se-á neste caso o Decreto-Lei n.º 17/2020, podendo a agência de viagens adiar o reembolso até 2022?

A resposta deve ser em sentido negativo. Com efeito, o regime aplica-se às viagens “que não sejam efetuadas ou que sejam canceladas por facto imputável ao surto da pandemia da doença Covid-19”. Ora, neste caso, a viagem foi cancelada ao abrigo da cláusula contratual que permite ao consumidor desvincular-se do contrato, sem indicação de motivo, dentro de um determinado prazo. Essa cláusula contratual visa precisamente dar segurança ao consumidor no momento da celebração do contrato, salvaguardando a posição da agência de viagens, que pode reter 10% do valor da viagem se este direito for exercido. Neste caso, o valor pago deve, portanto, ser restituído de imediato, depois de deduzidos os 10% da penalização.

Se a resposta fosse em sentido positivo, aplicando-se o Decreto-Lei n.º 17/2020 a este caso, considerar-se-ia o surto da pandemia como causa da cessação do contrato e o viajante poderia optar entre a emissão de um vale ou o reagendamento da viagem (art. 3.º-1). O reagendamento da viagem é impossível do ponto de vista lógico, uma vez que o consumidor já tinha cancelado a reserva antes do cancelamento da viagem. Quanto ao vale, este deve ser “de igual valor ao pagamento efetuado pelo viajante” [art. 3.º-1-a)]. Não pode, portanto, ter valor inferior. No exemplo que estamos a analisar, se a agência de viagens quiser impor a atribuição de um vale, prática que como já vimos não respeita o regime legal, não poderá nesse caso deduzir ao valor creditado os 10% da penalização. Seria ter o melhor dos dois Mundos, considerando simultaneamente que a causa da cessação do contrato é o arrependimento do consumidor (cancelamento da reserva) e o cancelamento da própria viagem.

Uma ultima nota para referir que este regime do art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020 é excecional e temporário, limitando neste período o direito do consumidor à resolução do “contrato de viagem antes do início da mesma sem pagar qualquer taxa de [resolução], caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excecionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afetem consideravelmente a realização da mesma ou o transporte dos passageiros para o destino”, previsto no art. 25.º-4 do Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de março (regime jurídicos das viagens organizadas). O n.º 5 estabelece que a resolução “do contrato de viagem nos termos do número anterior confere ao viajante o direito ao reembolso integral dos pagamentos efetuados, sem direito a indemnização adicional, sendo a agência de viagens e turismo
organizadora responsável por esse reembolso”.

O problema é que estes preceitos transpõem o art. 12.º-2 da Diretiva (UE) 2015/2302, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa às viagens organizadas e aos serviços de viagem conexos, não podendo os Estados-Membros manter ou introduzir no direito nacional disposições divergentes (art. 4.º). Ora, é precisamente isso que o legislador português faz no art. 3.º-1 do Decreto-Lei n.º 17/2020, que viola, assim, o direito europeu, devendo ser eliminado.

A este propósito, a Vice-Presidente da Comissão Europeia, Margrethe Vestager, referiu no mês passado que “os consumidores têm direito ao reembolso em dinheiro. E, ponto final”.

Quebra de rendimentos e serviços públicos essenciais

Legislação

Há pouco menos de um mês, publicamos aqui um texto sobre a Lei n.º 18/2020, de 29 de maio, que alterou o art. 4.º da Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, passando a prever-se no n.º 2 que a proibição de suspensão do fornecimento dos serviços de fornecimento de água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas se aplica “quando motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %, ou por infeção por Covid-19”. Nos termos do n.º 3, estes factos também permitem ao consumidor, no que respeita a serviços de comunicações eletrónicas, a cessação unilateral do contrato, sem lugar a compensação ao fornecedor, ou a sua suspensão temporária.

Se a situação de desemprego ou a infeção por Covid-19 são fáceis de demonstrar, a demonstração da quebra de rendimentos pode ser mais complexa. Remeteu-se, então, esta questão para “portaria a aprovar,
no prazo de 15 dias, pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das comunicações, do ambiente, da energia e da administração local” (art. 4.º-6).

Não foram 15 dias, mas foi hoje publicada a Portaria n.º 149/2020, de 22 de junho, que define e regulamenta os termos em que é efetuada a demonstração da quebra de rendimentos.

O art. 3.º-1 estabelece que a quebra de rendimentos “é calculada pela comparação entre a soma dos rendimentos dos membros do agregado familiar no mês em que ocorre a causa determinante da alteração de rendimentos e os rendimentos auferidos pelos mesmos membros do agregado no mês anterior”.

Não se define “causa determinante”, o que pode gerar dúvidas interpretativas. Poderá ser, no caso de trabalhadores dependentes, a colocação em regime de layoff e, no caso de trabalhadores independentes, a perda de um ou mais clientes. Em geral, poderá ser muito complexo perceber qual a “causa determinante”, no caso de se verificar uma concorrência de causas. É igualmente difícil conseguir delimitar esta análise por períodos mensais. Imaginemos um trabalhador independente que não recebeu nada nos dois meses anteriores e que perde entretanto todos os seus clientes. Não terá tido uma perda de rendimentos em comparação com o mês anterior, mas a sua situação caberá certamente no espírito do regime.

O art. 3.º-2 elenca os rendimentos relevantes para a aplicação deste regime, incluindo os de trabalho dependente, os de trabalho independente, os de pensões, os de prestações sociais recebidas de forma regular e os de outros rendimentos recebidos de forma regular ou periódica.

No que respeita aos comprovativos, a regra geral prevista no art. 2.º-1 é a da suficiência da declaração sob compromisso de honra, por parte do utente, que ateste quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20%. Os prestadores de serviços públicos essenciais poderão, em momento posterior, solicitar ao utente que comprove a alteração de rendimentos através do documento previsto no art. 3.º-3 (recibos de vencimento ou declaração da entidade patronal, no caso de rendimentos de trabalho dependente, ou documentos emitidos pelas entidades pagadoras ou outros documentos que evidenciem o recebimento, nos restantes casos).

Covid-19, espetáculos artísticos e festivais de verão

Legislação

No dia 29 de maio de 2020, caracterizado por uma atividade legiferante particularmente intensa, o legislador voltou à temática dos espetáculos culturais e artísticos, alterando algumas das medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença Covid-19 que haviam sido estabelecidas pelo Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, que em boa hora foi comentado no nosso blog.

A Lei n.º 19/2020, de 29 de maio, além de alterar algumas das medidas excecionais e temporárias introduzidas por aquele diploma, vem regular de forma especial (além de excecional) os festivais (de verão) e espetáculos de natureza análoga.

Comecemos a nossa análise pelas alterações introduzidas.

Quanto ao âmbito temporal de aplicação, estende-se a aplicação do regime aos espetáculos reagendados ou cancelados cuja realização estivesse prevista até dia 30 de setembro deste ano (2.º-1), eliminando-se a referência ao final do estado de emergência que constava da versão original.

Note-se que este regime excecional se aplica aos eventos que não possam ser realizados na data e hora previstas (1.º-1 do DL n.º 10-I/2020, de 26 de março). O novo n.º 2 do art. 2.º vem  auxiliar a interpretação daquele preceito, considerando-se que um evento não pode realizar-se quando seja proibido/interdito por lei ou quando as restrições que são colocadas pelas autoridades de saúde pública para a sua realização o “desvirtuem” ou tornem “economicamente inviável”. Estes dois conceitos indeterminados concedem ampla margem aos promotores de espetáculos para invocar a aplicação deste regime, sabendo que este lhes é favorável. De facto, o essencial deste regime excecional, que constava já do diploma original, é prever que aos espetáculos não realizados neste período não se aplica art. 9.º-1-a) do Decreto-Lei n.º 23/2014, pelo que o portador do bilhete não pode exigir de imediato a restituição da importância correspondente ao preço dos bilhetes, salvo se o evento for cancelado.

A alteração mais relevante ficou reservada para o artigo 4.º. No seu n.º 1, onde antes se referia apenas o dever de reagendamento dos espetáculos, sempre que tal fosse possível, passou a constar também uma limitação temporal para esse reagendamento. Assim, se a nova data para a realização do evento não for marcada até 30 de setembro, tal adiamento valerá e será tratado como um cancelamento, para todos os efeitos. Mantém-se o limite de 1 ano para a realização do evento adiado (n.º 2).

Não pode deixar de notar-se uma inversão legislativa, ainda que tímida, reduzindo o âmbito da prevalência do reagendamento sobre o cancelamento e limitando o período de incerteza a que os consumidores poderiam ficar submetidos.

Assim, no caso dos eventos adiados sem marcação de nova data até 30 de setembro, os portadores de bilhete terão direito ao reembolso do valor dos mesmos, a realizar no prazo máximo de 60 dias úteis a contar dessa data, nos termos do art. 5.º-3 do diploma (não alterado).

Vejamos, por fim, os aditamentos mais relevantes.

Primeiro, atenta a provisoriedade de qualquer medida adotada neste momento, compromete-se o Governo a anunciar com uma periodicidade mínima mensal a manutenção, levantamento ou adequação das restrições à realização de espetáculos ao vivo.

Por fim, estabelece-se um regime especial para os festivais e eventos e natureza análoga, proibindo-se a sua realização até 30 de setembro de 2020 (art. 5.º-A-1). Salvaguarda-se a possibilidade de o Governo, mediante recomendação da Direção-Geral da Saúde (DGS), prorrogar ou antecipar o fim da proibição, nos termos do n.º 3 do mesmo preceito.

Excecionalmente, estes eventos poderão realizar-se, desde que cumpridas as regras de lotação máxima definidas pela DGS e mediante a marcação de lugares (n.º 2).

Não podendo ser realizados os festivais, têm os portadores de bilhetes direito à emissão de um vale de valor igual ao pago no momento da celebração do contrato, válido até 31 de dezembro de 2021, que pode ser utilizado para adquirir bilhetes para a nova data do mesmo espetáculo ou para outro espetáculo do mesmo produtor. Não utilizando o vale, o seu portador terá 14 dias para pedir o reembolso do valor correspondente.

Covid-19 e venda de bens de consumo

Legislação

A propósito do Decreto-Lei n.º 24-A/2020, de 29 de maio, que aditou o artigo 18.º-A ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020

Os nossos leitores já teriam certamente estranhado a circunstância de, em quase dois meses de legislação em torno da Covid-19, ainda não ter sido aprovada qualquer norma sobre venda de bens de consumo.

Aí está ela, no contexto da décima terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março.

O novo artigo 18.º-A, que tem como epígrafe “prorrogação dos prazos para exercício de direitos do consumidor”, estabelece que “os prazos para o exercício de direitos previstos no artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, na sua redação atual, cujo término se tenha verificado entre os dias 18 de março de 2020 e 31 de maio de 2020, são prorrogados até 30 de junho de 2020”.

Esta medida reforça de forma clara os direitos dos consumidores, tendo como objetivo dar resposta à impossibilidade ou dificuldade de contacto com o profissional durante o período da crise pandémica, quer pelo eventual encerramento de estabelecimentos comerciais quer pela necessidade de confinamento do consumidor.

O artigo 5.º-A-1 do Decreto-Lei n.º 67/2003 estabelece prazos (i) para a denúncia da falta de conformidade (dois meses ou um ano a contar da deteção da falta de conformidade, consoante se trate de um bem móvel ou imóvel, respetivamente) e (ii) para a caducidade da ação (dois ou três anos a contar da data da denúncia, consoante se trate de um bem móvel ou imóvel, respetivamente).

A prorrogação prevista no artigo 18.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 implica que, se o prazo para a denúncia, por exemplo, tiver terminado no dia 19 de abril (por ter sido detetada a falta de conformidade no bem móvel no dia 19 de fevereiro), a denúncia ainda poderá ser feita até ao dia 30 de junho. Do mesmo modo, se o prazo para propor a ação terminasse no dia 19 de abril (por a denúncia ter sido feita nesse mesmo dia em 2018), prolonga-se até ao dia 30 de junho.

E se o período da garantia legal de conformidade, que não é prorrogado por este novo regime, terminar entre os dias 18 de março e 31 de maio sem que o consumidor tenha feito a denúncia? Nos termos do artigo 5.º-A-1 do Decreto-Lei n.º 67/2003, os direitos do consumidor caducariam nessa data, não sendo possível a denúncia em momento posterior. No entanto, deve fazer-se uma interpretação do artigo 18.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 tendo em conta a sua teleologia, permitindo que a denúncia da falta de conformidade seja feita após o termo final do prazo da garantia legal de conformidade, no limite até ao dia 30 de junho.

Salienta-se aqui um problema levantado pelo novo art. 18.º-A. Ao prever-se a prorrogação dos prazos que terminavam entre os dias 18 de março e 31 de maio até ao dia 30 de junho, os prazos que terminavam  depois (entre os dias 1 de junho e 29 de junho) vão terminar efetivamente na data prevista, ou seja mais cedo do que aqueles.

Recorrendo a um exemplo, imaginemos que o consumidor A detetou a falta de conformidade no dia 20 de janeiro, o consumidor B no dia 31 de março e o consumidor C no dia 1 de abril. Os consumidores A e B poderão cumprir o ónus de denúncia até ao dia 30 de junho, enquanto o consumidor C, apesar de ter detetado a falta de conformidade mais tarde, apenas o poderá fazer até ao dia 1 de junho.

Mais sobre Covid-19 e serviços públicos essenciais

Legislação

A propósito da Lei n.º 18/2020, de 29 de maio.

Quem nos acompanha com regularidade lembra-se seguramente do texto que publicamos há pouco menos de um mês sobre o art. 4.º da Lei n.º 7/2020 e o impacto da Covid-19 nos contratos relativos a serviços públicos essenciais.

O legislador volta agora ao tema, alterando o art. 4.º da Lei n.º 7/2020, o que vem resolver alguns problemas, mas criar outros.

As duas principais novidades introduzidas agora pela Lei n.º 18/2020 consistem (i) no alargamento do prazo relativo à proibição de suspensão do fornecimento dos serviços públicos essenciais abrangidos (água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas) e (ii) na limitação da proteção aos utentes, quer em função da sua natureza quer em função da situação em que se encontram.

Quanto ao prazo, a proibição de suspensão alarga-se agora até ao dia 30 de setembro. Ultrapassa-se, assim, a dúvida interpretativa suscitada pelo art. 4.º-1 da Lei n.º 7/2020, que consistia em saber se a proibição de suspensão se aplicava até ao dia 2 de junho (prazo de um mês a contar do termo final do estado de emergência) ou 30 de junho (mês subsequente ao do termo final do estado de emergência).

No que respeita à limitação da proteção dos utentes, por um lado, é necessário ter em conta que, no que concerne à prestação dos serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural, a regra se aplicava, na versão originária do diploma, independentemente da verificação de qualquer pressuposto. Ora, na versão atual, “a proibição de suspensão (…) aplica-se quando motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %, ou por infeção por Covid-19”. Equipara-se, por baixo, ou seja, com um nível menor de proteção, os quatro serviços públicos essenciais abrangidos por este regime, uma vez que já era esta a regra para os serviços de comunicações eletrónicas.

Por outro lado, na versão originária do diploma, no que respeita à prestação dos serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural, o regime protegia qualquer utente (incluindo empresas) e não apenas a consumidores. Atualmente, com a inclusão de pressupostos que remetem para “desemprego”, “agregado familiar” ou “infeção”, teremos de estar necessariamente perante pessoas singulares, o que aponta para a restrição da proteção a utentes/consumidores.

Esta restrição entra em vigor no dia 1 de junho de 2020 (art. 3.º-2), o que significa que teremos uma redução do nível de proteção dos utentes, que poderá ser mais ou menos significativa em função da interpretação do prazo da proibição de suspensão previsto na versão originária do art. 4.º-1.

Lembramos, contudo, que, nos termos dos Regulamentos 255-A/2020 e 356-A/2020, da ERSE, não podem ser interrompidos os serviços de fornecimento de energia elétrica e de gás natural a qualquer utente/consumidor, independentemente da existência de um fundamento, até 30 de junho de 2020.

O diploma prolonga igualmente até 30 de setembro de 2020 o prazo dentro do qual o utente/consumidor de serviços de comunicações eletrónicas (em situação de desemprego ou com uma quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 % face aos rendimentos do mês anterior) se pode desvincular do contrato, mesmo que se encontre dentro do período de fidelização. Atribui-se igualmente ao utente/consumidor o direito à suspensão temporária do contrato.

Primeiros textos sobre as relações de consumo em tempos de Covid-19

Recensão

Hoje dedicamo-nos aos primeiros textos escritos a propósito da influência da epidemia SARS-CoV-2 e da infeção epidemiológica por Covid-19 no direito português do consumo.

Uma das características fundamentais dos textos escritos em tempos de crise pandémica é a sua inevitável desatualização, dada a incrível profusão de diplomas legislativos. A título de exemplo, refere-se o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, que já conta com 11 alterações, o que corresponde a uma média superior a uma alteração por semana.

No dia 9 de abril de 2020, publicamos no Observatório Almedina o texto “Direito do Consumo em Tempos de Pandemia – O Efeito das Crises no Nível de Proteção dos Consumidores“, no qual, além da breve análise de alguns diplomas legais até então aprovados, chamamos a atenção para duas tendências dos momentos de crise: (i) desproteger os consumidores para aliviar os profissionais de alguns custos e assim garantir a sua subsistência; (ii) acentuar a proteção de grupos de pessoas particularmente desprotegidas pelas dificuldades económicas em que se encontram. Os diplomas entretanto aprovados confirmam estas tendências.

Ainda sobre a realidade portuguesa, destacamos o texto de Nuno Manuel Pinto Oliveira “Covid-19, Contratos de Crédito, Contratos de Arrendamiento y Contratos de Viajes del Sector Turístico en Portugal“, publicado no Vol. VII, n.º 2 (2020), da Revista de Derecho Civil. Neste número são ainda publicados textos sobre o impacto da crise nos direitos alemão, austríaco, espanhol, francês, italiano, inglês, romeno, suíço, colombiano e mexicano. É ainda apresentado um quadro comparativo relativo a algumas medidas relativas a contratos de crédito.

Depois de uma breve introdução, em que salienta que o regime da alteração de circunstâncias foi considerado insuficiente, por se aplicar indistintamente a todos os contratos e por invocar conceitos indeterminados, cuja concretização causa incerteza jurídica, o autor analisa sucessivamente as medidas temporárias aprovadas em matéria de crédito ao consumo, arrendamento e viagens organizadas e reservas em alojamentos turísticos e estabelecimentos de alojamento local.

O autor conclui que existem indícios preocupantes de incoerência nos regimes jurídicos aprovados, chamando a atenção para a dificuldade que consumidores e empresas poderão ter para cumprir os contratos de crédito em outubro de 2020, reembolsando o capital e os juros agravados.

Sobre o crédito ao consumo em tempos de Covid-19 também já se pronunciou Miguel Pestana de Vasconcelos, na Revista de Direito Comercial, com um texto que tem como título “Contratos de Crédito Bancário e Covid-19. O Regime da Moratória Decorrente do Dec.-Lei n.º 10-J/2020” (pp. 1107-1134).

Salienta o autor que o regime constante do Decreto-Lei n.º 10-J/2020 é “muito complexo, mas gera diversas dúvidas – o que em grande parte, mas não só, se explica pela urgência com que foi elaborado -, quanto a seu âmbito de aplicação, em termos objetivos, ou seja, quanto aos créditos, de articulação com os regimes gerais de direito bancário, no âmbito da insolvência e recuperação, assim como no da responsabilidade bancária”.

Covid-19 e a cobrança de equipamentos de proteção individual em estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde

Legislação

Muitos dos leitores já terão tido a oportunidade de se dirigir a um estabelecimento privado, social ou cooperativo de prestação de cuidados de saúde e sido informados sobre o aumento do preço da consulta, por motivos relacionados com a aquisição de equipamentos de proteção individual, utilizados no âmbito da epidemia SARS-CoV-2 e da infeção epidemiológica por Covid-19.

O crescente número de pedidos de informação suscitou, inclusive, a necessidade de a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) emitir o Alerta de Supervisão n.º 3/2020. Assim, assevera a ERS que é permitida a inclusão no preço de tais equipamentos, desde que haja a previsão desses custos numa tabela de preços disponível ao público. Decorrerá tal entendimento da já conhecida necessidade de o utente ter, na sua esfera, os necessários elementos a uma tomada de decisão esclarecida no momento da contratação, dos quais o montante a pagar é, naturalmente, um ponto fundamental no processo decisório.

Resta esclarecer, no entanto, qual o raciocínio jurídico a aplicar às consultas anteriormente agendadas, cujo preço estava já previamente acordado. Isto é, deverá a situação ímpar dos tempos em que vivemos justificar a alteração unilateral do preço? Ou deverá, em alternativa, ser honrado o contrato anteriormente celebrado e abster-se o profissional da cobrança do montante adicional, onerando a sua própria posição contratual?

Fica também por ilustrar qual o limite de aumento que uma tal cobrança poderá implicar. É sabido que a estas entidades prestadoras de cuidados de saúde é permitido o estabelecimento do preço. Contudo, não deixará de preocupar que uma determinada prestação de serviço que, numa situação normal, implicaria, por exemplo, o pagamento de 10 euros, permita agora a cobrança de um valor total de 25 euros, à ordem do cumprimento de aquisição de equipamentos de proteção individual.

Aproximam-se tempos curiosos. E de muita substância para o direito do consumo.