Covid-19, transporte aéreo e outras viagens

Legislação

Já aqui trouxemos há algumas semanas as novidades legislativas nacionais em matéria de viagens organizadas e reservas em empreendimentos turísticos e estabelecimentos de alojamento local, tendo então previsto que teríamos novidades em breve em matéria de transporte aéreo. É este o tema a que hoje nos dedicamos, embora, como verão, indo um pouco além, a outras viagens, incluindo as organizadas.

Em matéria de cancelamento de voos, vigora o Regulamento (CE) n.º 261/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de fevereiro de 2004, que estabelece regras comuns para a indemnização e a assistência aos passageiros dos transportes aéreos em caso de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável dos voos.

No dia 18 de março de 2020, foi emitida uma Comunicação pela Comissão Europeia com orientações interpretativas relativas aos direitos dos passageiros no contexto da pandemia.

Neste documento, defende-se que o cancelamento resultante de medidas restritivas adotadas a nível nacional se ficou a dever a circunstâncias extraordinárias, para efeito do art. 5.º-3 do Regulamento 261/2004, o que determina que a transportadora aérea não é obrigada a pagar uma indemnização aos passageiros.

Não fica, naturalmente, afastado o direito ao reembolso do valor total pago, previsto nos arts. 5.º-1-a) e 8.º-1-a) do Regulamento, o qual deve ser feito no prazo máximo de sete dias, “em numerário, através de transferência bancária eletrónica, de ordens de pagamento bancário, de cheques bancários ou, com o acordo escrito do passageiro, através de vales de viagem e/ou outros serviços”.

O passageiro não tem, portanto, de aceitar qualquer solução que passe pelo reagendamento da viagem ou pela atribuição de um vale para utilização em momento posterior. Em alterativa ao reembolso do preço, o passageiro pode também exigir o reencaminhamento. O direito a assistência (art. 9.º do Regulamento) também se mantém.

Esta orientação é, no essencial, mantida pela Comissão Europeia na Recomendação, de 13 de maio de 2020, sobre vouchers oferecidos aos passageiros e viajantes como alternativa ao reembolso para viagens e serviços de transporte cancelados no contexto da pandemia da Covid-19, integrada no contexto da Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões, de 13 de maio de 2020, sobre turismo e transporte em 2020 e mais além.

A Recomendação aplica-se, não apenas às viagens aéreas, mas também ao transporte ferroviário, marítimo e rodoviário e às viagens organizadas.

A aceitação de vouchers por parte dos clientes, em alternativa ao reembolso, é fortemente incentivada por esta Recomendação. Com efeito, no ponto 21 pode ler-se que “as organizações de consumidores e de passageiros nacionais e europeias devem incentivar viajantes e passageiros a aceitar, em alternativa ao reembolso em dinheiro, vouchers que apresentem as caraterísticas e beneficiem da proteção em caso de insolvência descritas nesta recomendação”.

Recomenda a Comissão, no ponto 2, que os vouchers tenham as caraterísticas indicadas nos pontos 3 a 12 e estejam cobertos por uma proteção em caso de insolvência “que seja suficientemente efetiva e robusta”.

No que respeita às caraterísticas dos vouchers, estes devem ter um período de validade mínima de doze meses, findo o qual, em caso de não utilização, o cliente deve ser automaticamente reembolsado no prazo de catorze dias. O cliente deve ser reembolsado do valor total do voucher ou do valor remanescente no caso de o ter utilizado parcialmente. Se o voucher tiver um período de validade superior aos doze meses, o cliente deve ter a possibilidade de solicitar o reembolso no máximo após doze meses.

O voucher deve poder ser utilizado para a reserva de viagens em data posterior ao seu período de validade. Deve igualmente poder ser utilizado junto do profissional para o pagamento de qualquer viagem que este comercialize, sugerindo-se aos profissionais que estendam esta possibilidade a viagens comercializadas por outros profissionais do mesmo grupo empresarial. No caso de a viagem ter sido contratada através de agência de viagens ou outro intermediário, nomeadamente plataforma digital, os vouchers devem poder ser utilizados para reservas através dessa agência de viagens ou intermediário.

Os profissionais devem ainda assegurar que os vouchers permitem aos clientes realizar a viagem inicialmente marcada (mesmo trajeto, mesmos serviços), independentemente do preço que a viagem tenha no momento da nova reserva. Esta possibilidade pode ficar sujeita, naturalmente, à disponibilidade de lugares.

O voucher deve poder ser transferido, sem custos, para qualquer outra pessoa (exceto, no caso das viagens organizadas, os custos que possam ser exigíveis por algum dos prestadores dos serviços incluídos no pacote).

Recomenda-se, ainda, que, “para tornar os vouchers mais atraentes”, os profissionais ponderem a atribuição de vouchers com um valor superior ao valor pago, exemplificando-se com a atribuição de um valor monetário adicional ou com a inclusão de outros serviços.

Por fim, recomenda-se que os vouchers indiquem o período de validade e os direitos conferidos ao cliente e sejam emitidos num suporte duradouro, sendo remetidos ou entregues, por exemplo, em papel ou através de mensagem de correio eletrónico.

Trata-se de (meras) recomendações, mas parece-nos que, na prática, estas recomendações vão servir de referência nesta matéria ao longo dos próximos meses.

Covid-19 e saldos – Lei n.º 20-E/2020

Legislação

O Decreto-Lei n.º 20-E/2020, de 12 de maio, vem, na senda de outros diplomas aprovados nos últimos meses, estabelecer um regime excecional e temporário motivado pela crise pandémica em curso, neste caso em matéria de venda em saldos.

A problemática da comercialização de bens ou serviços com redução de preço encontra-se no limiar entre o direito do consumo e o direito da concorrência: por um lado, o objetivo é assegurar o conhecimento dos preços pelo consumidor, garantindo que existe uma diferença efetiva entre o preço praticado antes e depois da promoção; por outro lado, pretende defender-se o funcionamento regular dos mercados.

A matéria encontra-se regulada pelo Decreto-Lei n.º 70/2007.

O art. 3.º contém uma enumeração taxativa das práticas comerciais com redução de preços: saldos, promoções e liquidação. Os profissionais apenas podem publicitar uma redução de preços se esta consistir numa destas práticas (art. 3.º-3) e não podem utilizar uma expressão que não corresponda à prática utilizada (art. 3.º-4).

Note-se que, uma vez que o preço dos bens ou serviços pode ser livremente fixado, um profissional pode, em qualquer momento, fazer um desconto no valor da contraprestação. Ao contrário do que se poderia supor da letra da lei (“só são permitidas as práticas comerciais com redução de preço nas modalidades referidas no número anterior”), não está em causa a permissão da prática, mas o seu anúncio ao público em geral.

Assim, se um bem custa € 20 num estabelecimento comercial e, na semana seguinte, o comerciante o coloca à venda por € 10, sem fazer qualquer publicidade ao desconto, trata-se de uma redução do preço, que é válida e não tem de respeitar o regime do diploma em análise (com exceção das poucas normas que não dependem da existência de uma redução de preço, como os arts. 7.º-2 e 9.º). O que não é permitido é anunciar que é conferido um desconto e não cumprir as determinações da lei.

Se o conceito de promoção é bastante amplo, abrangendo qualquer redução de preços, independentemente da duração e do período do ano, o conceito de saldos é mais limitado.

Com efeito, o Decreto-Lei n.º 10/2015 alterou significativamente a teleologia subjacente aos saldos, tendo estes deixado de ter como caraterística a circunstância de se realizarem em fim de estação, em datas predefinidas pela lei (28 de dezembro e 28 de fevereiro e entre 15 de julho e 15 de setembro), podendo realizar-se em quaisquer períodos do ano, desde que não ultrapassassem, no total, quatro meses por ano. O Decreto-Lei n.º 109/2019 foi ainda mais longe, alargando ligeiramente a duração máxima da comercialização em saldos, que corresponde agora a 124 dias por ano (art. 10.º-1). Os saldos caraterizam-se atualmente apenas pelo seu objetivo: escoamento acelerado de bens ou serviços [art. 3.º-1-a)].

É precisamente com o objetivo de ajudar os profissionais a escoar produtos que o art. 3.º do Decreto-Lei n.º 20-E/2020 estabelece que “a venda em saldos que se realize durante os meses de maio e junho de 2020 não releva para efeitos de contabilização do limite máximo de venda em saldos de 124 dias por ano, previsto no n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, na sua redação atual”.

Pode ler-se no preâmbulo do diploma que se torna “imperioso atender a que os estabelecimentos comerciais que se mantiveram encerrados ou cuja atividade foi suspensa se viram privados da possibilidade de escoar os respetivos produtos, diretamente ou através dos serviços prestados, acumulando agora existências nos respetivos inventários, que se revela essencial escoar, não apenas para permitir um esvaziamento e renovação dos produtos, como também para dinamizar a respetiva atividade económica”. Acrecenta-se ainda no preâmbulo que importa “introduzir soluções que permitam aos estabelecimentos comerciais escoar as respetivas existências, o que passa, nomeadamente, pela modificação provisória do regime das práticas comerciais com redução de preço, criando oportunidades de venda ou de prestação de serviços para os operadores económicos e novas oportunidades de compra de bens e serviços para os consumidores”.

É interessante que a lei reconheça que o anúncio de “saldos” é especialmente eficaz (provavelmente no subconsciente do consumidor) para a comercialização de bens e serviços, tendo um efeito mais significativo na decisão de contratar do consumidor do que o anúncio de “promoções”, que sempre estaria acessível aos profissionais nos termos do Decreto-Lei n.º 70/2007, sem necessidade de qualquer alteração da lei.

É bem mais duvidosa a afirmação de que a simples permissão do anúncio de comercialização de bens e serviços em saldos crie “novas oportunidades” para os consumidores. As oportunidades já estão nos bens não comercializados anteriormente, vindo a lei permitir apenas que a redução do preço seja anunciada de uma forma mais eficiente para o profissional.

O art. 4.º do Decreto-Lei n.º 20-E/2020 vem ainda estabelecer que “o operador económico que pretenda vender em saldos durante os meses de maio e junho de 2020 está dispensado de emitir, para este período, a declaração, prevista no n.º 5 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 70/2007, de 26 de março, na sua redação atual, dirigida à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica”. Flexibiliza-se, portanto, ainda um pouco mais o anúncio de uma operação de saldos durante o período indicado.

É interessante notar que, em Espanha, a mensagem que se pretende passar é diferente no que respeita a promoções feitas em estabelecimentos comerciais físicos. Vejamos a disposição adicional segunda da Orden SND/399/2020, de 9 de mayo, para la flexibilización de determinadas restricciones de ámbito nacional, establecidas tras la declaración del estado de alarma en aplicación de la fase 1 del Plan para la transición hacia una nueva normalidad: “Os estabelecimentos não podem anunciar ou adotar práticas comerciais que possam ter como efeito a aglomeração de pessoas dentro do estabelecimento comercial ou na sua vizinhança. Esta restrição não afeta as vendas com desconto ou as vendas em oferta ou promoção realizada através do site”.

Proíbe-se, portanto, em Espanha, durante este período, o anúncio de promoções ou saldos nos estabelecimentos comerciais. Sobrepõe-se, assim, o objetivo de evitar aglomerações ao objetivo de garantir o escoamento de existências por parte dos profissionais.

Covid-19 e serviços públicos essenciais – Lei n.º 7/2020

Legislação

A Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, veio estabelecer regimes excecionais e temporários de resposta à epidemia SARS-CoV-2, tendo como objeto, entre outros, a “não interrupção de serviços essenciais” [art. 1.º-c)].

Esta matéria encontra-se tratada no art. 4.º, que regula a “garantia de acesso aos serviços essenciais”, protegendo os utentes de alguns serviços públicos essenciais.

Com efeito, o n.º 1 determina que, “durante o estado de emergência e no mês subsequente”, os serviços de fornecimento de água, de energia elétrica e de gás natural não podem ser suspensos por falta de pagamento pelo utente das respetivas faturas. Esta regra aplica-se a qualquer utente, independentemente de este ser consumidor ou profissional, pessoa singular ou coletiva.

No que respeita aos serviços de comunicações eletrónicas, é necessário ter em conta igualmente o n.º 2 do art. 4.º, que foi retificado pela Declaração de Retificação n.º 18/2020, de 30 de abril. Neste caso, ao contrário do que sucede com os serviços anteriormente referidos, a proibição de suspensão do fornecimento está dependente da verificação de determinado facto, o que significa que terá de ser fundamentada pelo utente. São três os factos previstos na lei, bastando que se verifique um deles: desemprego; quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %; infeção por Covid-19.

Esta diferença de tratamento revela de forma clara uma hierarquização dos serviços públicos essenciais em função do seu caráter essencial, colocando-se as comunicações eletrónicas atrás da água, da energia elétrica e do gás natural. Parece-nos, contudo, estranho que assim seja em plena pandemia, uma vez que, entre outros aspetos, muitos trabalhadores estão a exercer a sua atividade à distância a partir de casa, os estudantes estão a ter aulas à distância a partir de casa e aconselha-se quem está doente a não se deslocar às urgências, telefonando em alternativa para a linha SNS 24. Todas estas atividades pressupõem o acesso a serviços de comunicações eletrónicas.

No caso de existirem valores em dívida relativos aos serviços públicos essenciais a que este regime se aplica (água, energia elétrica, gás natural e comunicações eletrónicas), o art. 4.º-4 impõe aos prestadores de serviços o dever de elaborar um plano de pagamentos em conjunto com o utente. O utente encontra-se, assim, adicionalmente protegido, não tendo de pagar, de imediato e na totalidade, os valores da dívida acumulada durante este período de crise, devidos a partir do dia 20 de março de 2020 (v. art. 12.º-1).

O plano de pagamentos é definido por acordo entre o prestador de serviço e o cliente, iniciando-se apenas o respetivo cumprimento no segundo mês posterior ao termo final do estado de emergência. Fica por saber a consequência no caso de não ser possível a obtenção de um acordo entre as partes. Não sendo aprovada, entretanto, nenhuma outra norma sobre a matéria, a decisão terá de ser tomada, em última análise, por um tribunal, não podendo o prestador de serviço impor ao utente um plano de pagamentos com o qual este não esteja de acordo.

O art. 4.º-3 contém uma norma muito relevante no que respeita à proteção do utente do serviço de comunicações electrónicas, uma vez que lhe permite, em determinados casos, desvincular-se do contrato celebrado, mesmo durante o período de fidelização, sem ter de indemnizar o prestador do serviço.

A norma aplica-se “durante a vigência da presente lei”. Não definindo a lei um termo final para a sua vigência, julgamos que esta expressão se refere ao período indicado no art. 4.º-1, ou seja, “durante o estado de emergência e no mês subsequente”.

Se o consumidor (e não, portanto, qualquer utente) se encontrar (i) em situação de desemprego ou, em alternativa, (ii) com uma quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 % face aos rendimentos do mês anterior, pode denunciar o contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas sem ter de compensar o prestador de serviço pelo incumprimento da cláusula de fidelização.

Este regime protege efetivamente os utentes de alguns serviços públicos essenciais, em especial aqueles que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade na sequência da crise pandémica em curso.

Covid-19 e o cancelamento de viagens e reservas – Decreto-Lei n.º 17/2020

Legislação

Foi hoje publicado no Diário da República o Decreto-Lei n.º 17/2020, de 23 de abril, que estabelece medidas excecionais e temporárias relativas ao setor do turismo, no âmbito da pandemia da doença Covid-19.

Trata-se de um conjunto de medidas que já era esperado, em linha com as medidas que já tinham sido tomadas em matéria de viagens de finalistas (art. 11.º do Decreto-Lei n.º 10 -A/2020, de 13 de março), que também constituem, em regra, viagens organizadas, e de espetáculos de natureza artística (Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março).

No essencial, o cancelamento de viagens organizadas ou de reservas em empreendimentos turísticos ou estabelecimentos de alojamento local (marcadas para o período entre 13 de março de 2020 e 30 de setembro de 2020) não permite ao viajante a resolução imediata do contrato e o consequente direito ao reembolso, que só poderá ser efetivado no início do ano de 2022.

Excetuam-se os viajantes que se encontrem em situação de desemprego, que podem pedir o reembolso da totalidade do valor despendido até ao dia 30 de setembro de 2020 (arts. 3.º-6 e 4.º-8).

Salvo esta situação, os clientes têm (apenas) o direito de optar (i) pela emissão de um vale, transmissível, de igual valor ao pagamento efetuado e válido até 31 de dezembro de 2021 ou (ii) pelo reagendamento da viagem até 31 de dezembro de 2021.

Caso o vale não seja utilizado ou o reagendamento não seja efetuado até ao dia 31 de dezembro de 2021, o cliente terá, então, direito ao reembolso, o qual deve ser efetuado no prazo de 14 dias.

Ao contrário do que resultaria da aplicação das regras gerais (v. art. 795.º-1 do Código Civil) e de outras normas especiais aplicáveis ao setor, o cliente terá de esperar até ao ano de 2022 para obter o reembolso.

No que respeita ao cancelamento de reservas em empreendimentos turísticos e estabelecimentos de alojamento local, o art. 4.º contém algumas normas adicionais.

Assim, este regime não é aplicável às reservas reembolsáveis, devendo aplicar-se nesse caso as regras de cancelamento dos empreendimentos turísticos e estabelecimentos de alojamento local (ou, dizemos nós, se for o caso, das plataformas em linha).

O art. 4.º-5 estabelece, por sua vez que “o reagendamento só pode ser efetuado diretamente com o empreendimento turístico e estabelecimento de alojamento local”. Não pode, portanto, ser efetuado através da plataforma em linha. E o direito à emissão de um vale? Numa interpretação a contrario sensu, parece que este direito pode ser exercido perante a plataforma em linha. Julgamos, no entanto, que esta possibilidade dependerá da relação contratual existente entre o cliente e a plataforma, não podendo ser dada uma resposta em abstrato.

Como se pode ler no preâmbulo, “este regime procura encontrar um equilíbrio entre a sustentabilidade financeira dos operadores económicos e os direitos dos consumidores que, não obstante o contexto atual, não podem ser suprimidos ou eliminados”. Os direitos não podem ser suprimidos ou eliminados, mas são reduzidos, inclusivamente em relação ao regime geral, com o objetivo de garantir a sustentabilidade dos setores económicos em causa.

São apenas especialmente protegidos os consumidores mais vulneráveis, neste caso os que se encontram em situação de desemprego.

Este regime ainda não abrange as viagens aéreas, mas prevemos que em breve seja adotada legislação idêntica neste domínio.

Covid-19 e os espetáculos artísticos – Decreto-Lei n.º 10-I/2020

Legislação

Os contornos e o alcance da crise que estamos a atravessar são ainda desconhecidos, mas temos assistido nas últimas semanas a um grande número de intervenções legislativas que visam regular as relações de consumo.

Um dos primeiro diplomas aprovados neste domínio diz respeito a espetáculos de natureza artística não realizados devido à crise pandémica em curso.

Nos termos do art. 9.º-1-a) do Decreto-Lei n.º 23/2014, de 14 de fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 90/2019, de 5 de julho, “o promotor do espetáculo constitui-se na obrigação de restituir aos espectadores a importância correspondente ao preço dos bilhetes” no caso de “não realização do espetáculo no local, data e hora marcados”. Esta obrigação de restituir constitui-se independentemente da razão pela qual o espetáculo não se realizou, correndo, assim, o risco por conta do promotor. É o que resulta de forma clara, numa interpretação a contrario sensu, do n.º 2 do mesmo preceito, que determina que o promotor não tem de restituir a importância correspondente ao preço dos bilhetes em caso de interrupção do espetáculo se esta resultar de “motivo de força maior verificado após o início do espetáculo”.

Se não existisse esta norma especial, aplicar-se-ia o regime resultante do Código Civil. No caso de um espetáculo, o prazo encontra-se estipulado pelas partes (integrado no contrato, em regra, na sequência da sua inclusão na proposta contratual emitida pelo promotor, a qual é depois objeto de aceitação por parte do consumidor), sendo um elemento essencial do contrato. Não podendo o promotor cumprir a sua obrigação por motivo que não lhe é imputável, teremos uma situação de impossibilidade objetiva, que determina a extinção da obrigação (art. 790.º do Código Civil). Sendo o contrato sinalagmático, fica neste caso o consumidor “desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua restituição nos termos prescritos para o enriquecimento sem causa” (art. 795.º-1 do Código Civil). Da remissão para o regime do enriquecimento sem causa poderá eventualmente resultar que o promotor não tenha de proceder à restituição por inteiro. No entanto, sendo liberado de uma dúvida, verifica-se um não-empobrecimento (poupança) do promotor do espetáculo com as despesas relativas a este. O promotor teria, assim, sempre, se se aplicasse o regime geral do Código Civil, de restituir um valor próximo daquele que foi pago pelo consumidor.

Ora, o Decreto-Lei n.º 10-I/2020, de 26 de março, alterado pela Lei n.º 7/2020, de 10 de abril, veio estabelecer medidas excecionais e temporárias de resposta à pandemia da doença Covid-19 no âmbito cultural e artístico, em especial quanto aos espetáculos não realizados.

Nos termos do art. 2.º-1. o diploma aplica-se aos “espetáculos não realizados entre os dias 28 de fevereiro de 2020 e até 90 dias úteis após o término do estado de emergência”. No momento da publicação deste texto, ainda não terminou o estado de emergência, pelo que não é possível perceber ao certo a que período se aplica o regime excecional.

Aos espetáculos não realizados neste período não se aplica, assim, o art. 9.º-1-a) do Decreto-Lei n.º 23/2014, pelo que o portador do bilhete não pode exigir de imediato a restituição da importância correspondente ao preço dos bilhetes.

A regra geral prevista no art. 4.º-1 do Decreto-Lei n.º 10-I/2020 é a do reagendamento do espetáculo. Pode ler-se no preâmbulo que, “em primeiro lugar, os espetáculos não realizados devem, sempre que possível, ser reagendados, devendo todos os agentes culturais envolvidos na realização do espetáculo intentar todos os esforços para a sua concretização, segundo as regras da boa fé”.

O espetáculo terá de ocorrer no prazo máximo de um ano após a data inicialmente prevista (art. 4.º-2), admitindo-se a mudança do local, da data (naturalmente, sendo esta mudança o pressuposto do regime) e da hora (n.º 3).

Quanto ao local, a alteração “fica limitada à cidade, área metropolitana ou a um raio de 50 km relativamente à localização inicialmente prevista” (n.º 4). Apesar de não ser claro o sentido da alternativa introduzida neste preceito, parece-nos que a interpretação mais adequada, tendo em conta a letra do preceito e sem discriminar em função de o espetáculo estar marcado ou não para uma cidade, consiste em fazer prevalecer o critério da distância, não podendo o espetáculo ser marcado para um local a mais de 50 km do local inicialmente previsto.

Não pode ser aumentado o preço nem cobrado qualquer valor ao consumidor relativo à substituição do bilhete (n.os 7 e 8).

O promotor só deve cancelar o espetáculo se não for possível o reagendamento do espetáculo, devendo restituir integralmente o preço a quem for portador de bilhete (art. 5.º).

O art. 6.º coloca a hipótese de substituição do espetáculo, mas o efeito desta norma é muito reduzido, uma vez que não se trata de um direito potestativo do portador do bilhete, mas de uma solução que pode ser obtida por acordo entre as partes. Assim, se o portador do bilhete pedir a substituição por outro espetáculo, “os agentes podem proceder à substituição do bilhete” (itálico nosso), não estando, portanto, vinculados a fazê-lo. Ora, por acordo, além desta, qualquer outra solução é admissível.