A Melhor Bolacha do Mundo

Consumo em Ação

Por Inês Alves, Joana Sousa e Mariana Soeiro

Hipótese: Belmira foi a um estabelecimento comercial e pediuuma bolacha que estava anunciada como sendo “a melhor bolacha do Mundo”. Não gostou e agora pretende saber se pode fazer alguma coisa. O que lhe diria?

Resolução: Este caso remete-nos para a matéria das práticas comerciais desleais, regulada pela Diretiva 2005/29/CE, transposta para o ordenamento jurídico português pelo Decreto-Lei n.º 57/2008.

Nos termos do art. 1.º-1, o diploma é “aplicável às práticas comerciais desleais das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante ou após uma transação comercial relativa a um bem ou serviço”. Nesta lógica, cumpre aferir se Belmira se afigura como uma consumidora, na aceção da noção presente no art. 3.º-a).

Os elementos inerentes ao conceito de consumidor (subjetivo, objetivo, teleológico e relacional estão todos verificados, uma vez que Belmira é uma pessoa singular, a quem foi fornecido um bem de consumo – “a melhor bolacha do Mundo” – para uso imediato e não profissional, tendo este bem sido facultado por um estabelecimento comercial, no âmbito da sua atividade profissional. Belmira é, portanto, consumidora na aceção do DL 57/2008.

A questão que se prende com o anúncio da bolacha é relativa à existência ou não de uma prática comercial desleal. Cumpre referir, a priori, que a prática comercial em causa não está presente em nenhuma das listas dos arts. 8.º e 12.º do DL, pelo que devemos analisar a cláusula geral do art. 5.º-1, que define prática comercial deslealcomo a prática “desconforme à diligência profissional, que distorça ou seja suscetível de distorcer de maneira substancial o comportamento económico do consumidor seu destinatário ou que afete este relativamente a certo bem ou serviço”. Daqui se retiram quatro requisitos: relação jurídica de consumo, prática comercial, prática desconforme com a diligência profissional e prática capaz ou suscetível de distorcer o comportamento económico do consumidor.

Como já constatámos acima, Belmira é consumidora, pelo que o primeiro critério está verificado. Seguidamente, da leitura do art. 3.º-d) conclui-se que o segundo requisito se verifica, porquanto houve uma ação com relação direta com o bem, isto é, um tipo determinado de bolachas foram anunciadas como as melhores do Mundo, constituindo uma prática comercial.

A verificação do terceiro requisito abre espaço a discussão: agiu o profissional de acordo com a diligência profissional?

Para resolvermos esta questão, urge que se analise a declaração negocial à luz da existência de dolus bonus, consagrado na Diretiva 2005/29/CE e no art. 253.º do Código Civil.

Não obstante a sua previsão nestes diplomas, há quem entenda que o instituto do dolus bonus não se aplica no Direito do Consumo[1] por se afigurar como uma contradição em relação ao princípio da lealdade e ao direito à informação, presentes na legislação especial de proteção dos consumidores e no art. 60.º da Constituição da República Portuguesa. A permissão de práticas que consistem em “fazer afirmações exageradas ou afirmações que não são destinadas a ser interpretadas literalmente” (art. 5.º-3 da Diretiva 2005/29/CE) ou em “sugestões ou artifícios usuais”, bem como a “dissimulação do erro” (art. 253.º-2 do Código Civil), seria, para quem defende esta posição, incompatível com os já referidos princípios aplicáveis a contratos de consumo, pelo que não deveria ser admitida. Em virtude disto, aquando da transposição da Diretiva 2005/29/CE para o ordenamento jurídico português, o referido instituto foi deliberadamente omitido, não constando do DL 57/2008.

Todavia, e apesar das críticas, a Diretiva em apreço é de harmonização máxima, pelo que não permite uma diminuição ou um aumento da proteção do consumidor, a não ser na medida em que essa possibilidade esteja expressamente prevista o que, pela análise do considerando 12, não se verifica. Por conseguinte, consideramos que, mediante uma interpretação do direito nacional conforme o direito europeu, devemos admitir o dolus bonus nos termos da legislação europeia.

O art. 5.º-3 da Diretiva prevê que “a prática publicitária comum e legítima que consiste em fazer afirmações exageradas ou afirmações que não são destinadas a ser interpretadas literalmente” seja permitida. Ora, in casu, é exatamente isto que se sucede: num primeiro ponto, importa realçar o pendor subjetivo da afirmação “melhor bolacha do Mundo”, visto que essa classificação depende de aceções “subjetivas e insuscetíveis de uma verificação objetiva, por padrões científicos ou comprováveis”[2]; em segundo lugar, a leitura do caso revela a ausência de qualquer certificado que comprove a afirmação; por fim, um consumidor médio, utilizando-se como marco de referência o consumidor “normalmente informado e razoavelmente atento e advertido” (considerando 18 da Diretiva 2005/29/CE), compreende que este anúncio contém uma expressão exagerada e desprovida de seriedade, como sucede com a Confeitaria “O Melhor Bolo de Chocolate do Mundo”, que é hoje uma marca registada, já espalhada pelo mundo, ou com os anúncios da Red Bull (“Red Bull dá-te Asas”), pelo que este anúncio, apesar de poder influenciar o comportamento de Belmira, não prejudica a sua aptidão para tomar uma decisão esclarecida.

Pelo exposto, podemos concluir que a declaração negocial estava isenta da intenção de enganar, constatando-se que o estabelecimento comercial agiu com diligência profissional, de acordo com a expectativa razoável de competência e cuidado de um profissional, baseada no princípio da boa-fé. Belmira não poderá exigir nada do estabelecimento comercial, uma vez que não estamos perante uma prática comercial desleal.


[1] Relativamente à noção presente no CC, Carlos Ferreira de Almeida considera-a uma permissão de “certas práticas de ludíbrio” e de “omissão de informação”, que deve ser inadmissível em contratos de consumo: Carlos Ferreira de Almeida, “Invalidades em Contratos de Consumo”, in De Legibus Revista de Direito, n.º 0, 2020, pp. 17 a 38, pp. 22 a 23.

[2] Jorge Pegado Liz, “Práticas Comerciais Proibidas”, in Estudos do Instituto de Direito do Consumo, Vol. IV, 2014, pp. 79 a 141, p. 107.

Personal Data as Counter-performance and Consumer Protection. An Unfair Commercial Practices Italian Decision

Jurisprudência

By Donato Maria Matera

On March 30th, 2021, with the decision n. 2631, the Italian Consiglio di Stato ended a dispute concerning an unfair commercial practices case where Facebook was involved.

The most important part of this decision deals with a misleading commercial practice: in particular, the question was if the Facebook’s advertisement that the social service is «for free» can be considered as a misleading behaviour, since consumers are actually «paying» it with their personal data.

Hence, the core issue is the possibility to consider personal data as a counter-performance, or, if one prefers, as a payment method, other than money. The answer to this question has very relevant practical consequences: in fact, if personal data are a counter-performance to a service, this economic operation can be considered as an actual contract and, if the parties are consumers and traders, consumer law can be applicable.

During the trial, the Facebook defence argued that personal data are an extra commercium good and data protection is a fundamental right, so they cannot be sold, traded or reduced to an economic interest. In this sense, as personal data cannot be a counter-performance, the operation where Facebook provides consumers with a digital service is for free and consumer law cannot be applied neither can be configured an unfair commercial practice.

This position seems to be in continuity with a European Data Protection Supervisor Opinion (n. 4/2017), provided with regard to the European Commission proposal for a Directive on certain aspects concerning contracts for the supply of digital content (COM(2015) 634 final). On this occasion the EDPS underlined that personal data are related to a fundamental right and they cannot be considered as a commodity and it defined as «dangerous» the possibility to let people «pay» with their personal data.

The Italian decision goes to a different direction. The judges affirm that Facebook actually capitalizes users’ personal data and make a profit from them. In addition, once a user provides his personal data and successively decides to remove them by a deselecting operation, this causes the loss of some services originally available. According to the Italian judges this circumstance clearly shows how Facebook social services are not for free, but they are a counter-performance to the provision of personal data, for commercial purposes. At the same time is it also clear that, due to their particular legal regime, these data cannot be considered as an actual commodity.

These argumentations lead the Court to consider applicable consumer law and, in particular the one on unfair commercial practices (Directive 2005/29/CE; in Italy this Directive has been transposed in the legislative decree 2005/206, articles 18 and following). In this regard, the judges clarify that there is no contrast between consumer and privacy law (as regulated by the Reg. UE 2016/679), but they provide consumers with a «multilevel» protection, being compatible with each other. This interaction, as many authors had already highlighted, contributes to increase the standard of consumer protection, since it allows to extend the application of certain business-to-consumer remedies to cases where processing of personal data is involved.

In light of these considerations, the Consiglio di Stato claims that a misleading commercial practice was adopted: Facebook represented his service as free, while actually it was not. In fact, as a consequence of this conduct, consumers were unaware that personal data they provided at the time of subscription were used for commercial and remunerational purposes. This circumstance, according to the Italian Court, is likely to materially distort their economic behaviour, falling within the scope of Directive 2005/29/CE.

For these reasons the judges confirm the penalties stated by the Italian independent market Authority (AGCM) to the social networks company, in relation to this practice. This case represents another step in the debate focused on considering personal data as consideration, especially in consumer contracts.  It has become clear that nowadays many business models are based on personal data, and a «data market» exists, as scholars observe. In this context, it would be fundamental the application of consumer law principles and rules to these cases, in order to provide consumers (the weak part) with an actual protection. The first step to be made in order to reach such achievement is the qualification of these operations as contracts where personal data are to be considered the counter-performance.

Cursos e investimentos em mercados financeiros – Sinto-me enganado: e agora?

Doutrina

Talvez por força da pandemia, do desemprego, ou até da maior quantidade de tempo livre para a maioria das pessoas, nos últimos meses temos estado muito mais online.   

Por sua vez, aumentou o tempo passado nas redes sociais, onde alguns sortudos ostentam a sua vida luxuosa, que, segundo dizem, teve origem no sucesso no investimento em mercados financeiros. Confrontados com este estilo de vida à distância de um ecrã, muitos jovens viram-se aliciados com a ideia de começar a investir em mercados financeiros.

Foi assim que surgiu, entre muitos outros, um curso sobre criptomoedas, desenvolvido pela empresa de um conhecido youtuber, que tem gerado grande polémica nas últimas semanas, depois de o seu conteúdo ter sido exposto publicamente. Alguns dos alunos têm vindo a manifestar o seu descontentamento perante uma formação que tinha sido publicitada como “bastante completa e feita por especialistas, sendo o melhor curso do mercado” e que não correspondeu às expectativas. 

A questão que aqui me proponho resolver é, precisamente, a de saber quais os direitos que assistem a estes consumidores, tendo já sido abordada a dimensão penal deste problema neste blog.

Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, regula a matéria das práticas comerciais desleais comerciais das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante, ou após uma transação comercial relativa a um bem ou serviço (art. 1.º).

Quanto à sua aplicabilidade ao caso concreto, os destinatários do curso preenchem o conceito de consumidor previsto no art. 3.º-a), também não havendo dúvidas de que a empresa que o promoveu preenche o conceito de profissional, descrito no art. 3.º-b. ). Com efeito, o youtuberexerce profissionalmente esta atividade.  

Também o elemento objetivo está preenchido, na medida em que a ação levada a cabo se insere no conceito de prática comercial do art. 3.º-d). 

Sendo aplicável este diploma, estabelece o art. 4.º que são proibidas as práticas comerciais desleais, concretizando-se este conceito nos arts. 5.º (práticas comerciais desleais em geral) e 6.º (práticas comerciais desleais em especial). 

O art. 6.º-b) remete para o art. 7.º, que nos indica quais são as ações suscetíveis de constituir uma prática enganosa, subcategoria de prática comercial desleal.

Ora, estatui o art. 7.º-1 que as práticas comerciais enganosas são aquelas que induzam ou sejam suscetíveis de induzir em erro o consumidor sobre um dos elementos descritos nas alíneas seguintes. Em especial, foquemo-nos na alínea b), que se refere às principais características do bem ou serviço, tais como as suas vantagens, ou os resultados que podem ser esperados da sua utilização. 

Neste caso, algumas das queixas recebidas a propósito do curso referiam-se ao facto de uma parte do seu conteúdo corresponder a uma cópia de informações que podem ser encontradas em sitespúblicos, não parecendo que o mesmo tenha sido feito por profissionais, como havia sido publicitado. A este propósito, relembre-se ainda o art. 22.º do Código da Publicidade,que impõe que aos cursos sem reconhecimento oficial seja feita essa menção expressa.

Não tendo tal sucedido, e parecendo haver informações sobre as vantagens do serviço que são falsas ou, mesmo que factualmente corretas, suscetíveis de conduzir o consumidor a tomar uma decisão de transação que não teria tomado de outro modo, considero que temos uma prática comercial desleal, à luz dos arts. 6.º e 7.º-1-b) do referido Decreto-Lei. 

Assim, estes contratos são anuláveis a pedido do consumidor, ao abrigo do art. 14.º, que remete para o art. 287.º do Código Civil. Quer isto dizer que o consumidor terá direito à reposição da situação anterior à celebração do contrato, produzindo a anulação do negócio efeitos retroativos, nos termos do art. 289.º do Código Civil. 

Concluindo, o investimento em mercados financeiros é aliciante e a procura por formação capaz de tornar qualquer cidadão num investidor de sucesso é cada vez maior, tornando-se urgente uma maior regulamentação e formação da população em geral quanto a este tema, que tem tanto de fascinante quanto de perigoso. 

O Adpocalypse do YouTube e o Recurso ao Patreon como Prática Comercial Desleal

Doutrina

O YouTube é uma plataforma online que permite a publicação e a visualização de conteúdos digitais em formato de vídeo. A plataforma funciona como um intermediário entre o criador de conteúdos e o utilizador, possibilitando-lhe a subscrição gratuita de canais geridos pelos criadores de conteúdos.

Esta plataforma baseia a sua atividade comercial na apresentação de anúncios publicitários antes, durante e após a visualização de qualquer vídeo publicado no seu servidor. Como mecanismo de incentivo à criação de conteúdos, o YouTube instituiu um mecanismo de remuneração aos criadores de conteúdos digitais, baseado num algoritmo que gera um valor baseado no tráfego gerado por esse mesmo conteúdo, utilizando critérios como o número de visualizações, número de minutos visualizados por utilizador individual, número de subscrições do canal, origem geográfica das visualizações, número de cliques em anúncios publicitários, entre outros.

Este sistema de remuneração, associado à grande popularidade da plataforma, permitiu uma verdadeira profissionalização destes criadores de conteúdos digitais, na medida em que muitos obtêm a sua única ou principal fonte de receita através da remuneração auferida pelos seus canais, o que leva, inúmeras vezes, inclusive à constituição de pessoas coletivas e marcas registadas, empregando trabalhadores precisamente para o desenvolvimento destes conteúdos digitais com vista à obtenção de lucro.

Em 2017, no seguimento da publicação, por parte de alguns dos principais criadores, de vídeos cujo conteúdo foi designado controverso, muitos agentes publicitários boicotaram a plataforma, retirando milhões de euros destinados à publicação de anúncios publicitários, naquilo que ficou vulgarmente conhecido como o “Adpocalypse”.

Este fenómeno, com graves consequências nas receitas da plataforma, levou a uma alteração das políticas de remuneração aplicadas pelo YouTube aos criadores de conteúdos, incluindo a implementação de critérios de elegibilidade para a monetização dos conteúdos publicados, o que se traduziu numa total exclusão remuneratória dos canais que não sejam considerados “family-friendly” ou “ad-friendly”, com o objetivo de voltar a atrair os grandes agentes publicitários que cortaram relações comerciais com a plataforma.

Face à elevada ou total perda de rendimento, muitos destes criadores de conteúdos reagiram com a criação e venda de merchandising associado ao seu canal e ainda com o recurso a plataformas externas ao YouTube, como é exemplo o Patreon, que permite a assinatura de uma subscrição mensal paga com acesso exclusivo a ofertas e a conteúdos adicionais publicados por esses mesmos criadores de conteúdos.

Toda esta conjuntura originou a frequente inclusão de mensagens, seja de forma escrita ou no próprio conteúdo dos vídeos, que revelam que a continuidade e subsistência do canal no YouTube não é possível sem o apoio dos utilizadores, sendo depois sugerida ou mesmo expressamente solicitada a assinatura de uma subscrição paga através da plataforma Patreon e/ou a compra do merchandising associado à marca e canal do criador de conteúdos.

Em virtude do caráter profissional destes criadores e canais de YouTube, é necessário analisar o conteúdo destas comunicações comerciais incluídas nos vídeos sob o prisma do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março[1], que estabelece o regime aplicável às práticas comerciais desleais (RPCD) das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante ou após uma transação comercial relativa a um bem ou serviço, e cuja alínea g) do seu artigo 12.º determina ser considerada agressiva, em qualquer circunstância, a prática comercial em que se informe explicitamente o consumidor de que a sua recusa em comprar o bem ou contratar a prestação do serviço põe em perigo o emprego ou a subsistência do profissional.

Nestes termos, não sendo desleal a mera referência ou até mesmo o simples incentivo à subscrição do serviço pago na plataforma Patreon, o facto de ser expressamente comunicado aos utilizadores do YouTube que a continuidade e subsistência do canal dependem da subscrição paga na plataforma Patreon ou da compra de merchandising implica, não importa em que circunstâncias, que essa comunicação seja considerada desleal e, consequentemente, que os contratos celebrados nessa sequência sejam anuláveis a pedido do consumidor pelo prazo de um ano, nos termos do artigo 287.º do Código Civil, conforme dispõe o artigo 14.º do RPCD.

Importa ainda referir que, não obstante ser admissível a publicidade a esses produtos, atendendo que um número significativo de canais tem como público alvo utilizadores menores de idade, é também, de acordo com a alínea e) do artigo 12.º, considerada desleal em qualquer circunstância a prática comercial em que se exerça uma exortação direta às crianças no sentido de comprarem ou convencerem os pais ou outros adultos a comprar-lhes os bens ou serviços anunciados, aplicando-se igualmente a estes casos o regime da anulabilidade anteriormente exposto.

As plataformas YouTube e Patreon não poderão, em princípio, ser responsabilizadas, na medida em que o Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de janeiro[2], na redação vigente, estabelece no seu artigo 16.º, n.º 1, que o prestador intermediário do serviço de armazenagem em servidor[3] só é responsável pela informação que armazena se tiver conhecimento de atividade ou informação cuja ilicitude for manifesta e não retirar ou impossibilitar logo o acesso a essa informação. Acresce que estas obrigações surgem apenas quando a plataforma tem conhecimento da existência da ilicitude e, nos termos do artigo 12.º, estas plataformas não estão sujeitas a uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que transmitem ou armazenam ou de investigação de eventuais ilícitos praticados no seu âmbito, problemática que já foi discutida neste blog.

Deste modo, verificando-se que a atuação de ambas as plataformas no armazenamento e transmissão dos conteúdos reveste um caráter puramente técnico, automático e de natureza passiva, ou seja, que não assume qualquer interferência no conteúdo, modo de apresentação, disponibilidade e organização dos conteúdos publicados, apenas poderão ser responsabilizados os criadores de conteúdos.

Do ponto de vista contraordenacional, os criadores de conteúdos digitais ficam sujeitos à aplicação de coimas pela prática das referidas infrações que, à data, são puníveis no montante de 250€ a 3740,98€ se o infrator for pessoa singular, e de 3000€ a 44891,81€ se o infrator for pessoa coletiva.

Após a entrada em vigor do novo Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro[4], as mencionadas práticas comerciais desleais passam a constituir contraordenação económica grave nos termos do 88.º do DL, que procede à alteração do artigo 21.º do RPCD, puníveis com coima de 650€ a 1500€ se o infrator for pessoa singular e, se o infrator for pessoa coletiva, punível de acordo com os critérios gerais definidos pela alínea b) do artigo 18.º do RJCE, consoante se trate de micro, pequena, média ou grande empresa, cuja classificação é definida pelo artigo 19.º.

Ora, tendo em conta que a esmagadora maioria dos criadores de conteúdos do YouTube são pessoas singulares ou microempresas[5], sujeitos a coimas máximas de, respetivamente, 1500€ e 3000€, e que o lucro gerado por esses canais pode ascender a várias dezenas de milhares de euros ou, em não raros casos, às centenas de milhar ou mesmo aos milhões de euros por ano, facilmente concluímos que os montantes máximos previstos para estas infrações são manifestamente insuficientes para dissuadir a ocorrência destas práticas comerciais desleais, revelando-se, paradoxalmente, menos eficaz contra os canais que possuem maiores audiências e, consequentemente, um maior potencial para ferir e colocar em causa os interesses económicos e direitos do consumidor.

Deste modo, urge uma alteração aos montantes máximos das coimas previstas pelo RJCE, até porque, conforme já referido neste blog, estes limites não vão ao encontro do previsto na Diretiva (UE) 2019/2161, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019, que altera, entre outras, a Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais, nomeadamente, que “os Estados-Membros asseguram que [… as] sanções contemplam a possibilidade de aplicar coimas por meio de procedimentos administrativos ou de intentar uma ação judicial para a aplicação de coimas, ou ambas, sendo o montante máximo dessas coimas de, pelo menos, 4% do volume de negócios anual do profissional no(s) Estado(s)-Membro(s) em causa”[6].

 

[1] Alterado pelo Decreto-Lei n.º 205/2015, de 23 de setembro.

[2] Transpõe para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2000/31/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno.

[3] Definido pelo artigo 4.º, n.º 5, como os que prestam serviços técnicos para o acesso, disponibilização e utilização de informações ou serviços em linha independentes da geração da própria informação ou serviço.

[4] Nos termos do seu artigo 183.º, o regime entra em vigor 180 dias após a sua publicação.

[5] Nos termos do artigo 19.º, n.º 1, al. a) do RJCE, as pessoas coletivas são classificadas como microempresa quando empreguem menos de 10 trabalhadores.

[6] Sobre este tema, cf. Eduardo Freitas, “Os Sistemas de Avaliações Online: Proteção do Consumidor nos Mercados de Comércio Eletrónico, in Anuário do NOVA Consumer Lab, Ano 1 – 2019, pp. 187-190.

O início do(s) Caso(s) TikTok? – Cláusulas Contratuais Gerais, Bens Virtuais e Copyright

Doutrina

A Organização Europeia do Consumidor BEUC apresentou uma queixa à Comissão Europeia e à rede de autoridades de defesa do consumidor contra o TikTok, na passada terça-feira, dia 16 de Fevereiro, por várias violações de Direito do Consumo, nomeadamente quanto a cláusulas contratuais abusivas e práticas comerciais desleais. Para além da BEUC, em mais 15 Estados[1], associações de defesa dos direitos dos consumidores também apresentaram queixas às autoridades e entidades reguladoras, de forma coordenada, contra o TikTok – e não, Portugal (ainda?) não se encontra nesta lista.

O TikTok, da chinesa ByteDance, começou em 2016 como uma app que procurava inovar no modelo do Vinee do Musical.ly e tornar-se numa rede social de partilha de vídeos curtos dos utilizadores, em diferentes temáticas e interesses, com enfâse na reprodução de músicas atuais e áudio de cenas de filmes e séries populares – adquirindo para este propósito licenças junto dos right holders. Com a aquisição do Musical.ly no final de 2017 e a fusão de ambas as apps em Agosto de 2018, o TikTok conseguiu sair da bolha do mercado chinês e penetrar no mercado americano (e, por conseguinte, mundial), convertendo-se rapidamente numa das mais populares plataformas em todo o mundo, entre as várias faixas etárias – com uma estimativa de mais de 1,1 mil milhões de utilizadores mensais.

Com a extraordinária popularidade, também vieram controvérsias – desde de a app ser banida na India; executive orders do ex-presidente dos Estados Unidos para bloquear a app devido a receios de espionagem e partilha de dados pessoais com o Governo Chinês, procurando assim forçar a sua venda a uma multinacional americana; ser forçada a bloquear todos os utilizadores italianos e realizar um controlo apertado da sua idade, para a sua readmissão (devido à morte de uma menor de 13 anos); e claro, alegações relativas a invasão de privacidade e tratamento ilícito dos dados dos utilizadores, incluindo a utilização de tecnologia de reconhecimento facial, por autoridades de proteção de dados europeias.

Estas novas queixas da BEUC e das associações de proteção de consumidores vêm abrir um novo capítulo, uma nova frente de combate aos abusos do TikTok (e outras multinacionais que utilizem as mesmas técnicas), centrando as queixas no Direito do Consumo, nomeadamente quanto a práticas comerciais desleais, cláusulas contratuais gerais abusivas e falta de transparência no tratamento de dados pessoais e publicidade.

As práticas sob escrutínio incluem:

  • Publicidade oculta e enganosa, seja colocada pelo TikTok, seja pela utilização de funcionalidades que permitem que marcas usem influencers para campanhas de marketing agressivas junto dos seus fãs – especialmente direcionada a crianças e outras pessoas vulneráveis;
  • Falta de transparência nas obrigações de informação aos titulares de dados pessoais, possível ausência de base de licitude do tratamento, reutilização de dados para finalidades incompatíveis, (…) diversas possíveis violações do Regulamento Geral de Proteção de Dados.

Em paralelo com a abertura deste tema, é de destacar também o recém publicado relatório do Parlamento Europeu sobre a necessidade de “atualizar” a Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (93/13/CEE), para os serviços digitais. Este relatório aborda, entre vários temas, as cláusulas predatórias sobre o copyright do user-generated content, como a referida acima do TikTok.

É possível que estas queixas das associações de defesa dos consumidores se convertam no futuro em processos judiciais, sejam movidos pelas entidades reguladores ou como ações coletivas de indeminização dos consumidores – e que, quem sabe, cheguem ao Tribunal de Justiça, de forma a conseguir uma atualização jurisprudencial, uniforme na União Europeia, da aplicabilidade das Diretivas sobre Cláusulas Contratuais Abusivas e Práticas Comerciais Desleais a este tipo de práticas e modelos de negócio.

 

[1] Os Estados em questão: Bélgica, Chipre, República Checa, Dinamarca, França, Alemanha, Grécia, Itália, Países Baixos, Noruega, Eslováquia, Eslovênia, Suécia, Espanha e Suíça.

[2] No contexto de redes socias, este modelo de negócio aparenta ser inspirado no sistema de awards do Reddit, em que os utilizadores premeiam as publicações que gostam mais, dando-lhes maior visibilidade e notoriedade a terceiros, pelo algoritmo.