Citação na arbitragem (de consumo)

Jurisprudência

O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) proferiu no passado dia 27 de outubro uma decisão muito interessante no que respeita à citação no processo arbitral.

No essencial, está em causa uma ação de anulação de uma sentença do Centro de Arbitragem do Setor Automóvel (CASA), proposta pela empresa, com o fundamento de não ter sido citada de forma adequada ao exercício do seu direito de defesa.

Com efeito, a empresa foi citada por mensagem de correio eletrónico simples, conforme está previsto no Regulamento do CASA (art. 56.º, n.ºs 5 e 6), entidade à qual a empresa tinha previamente aderido plenamente, vinculando-se, portanto, a nesse sede resolver os litígios emergentes dos contratos a celebrar com os seus clientes.

É importante notar que a empresa não teve qualquer intervenção no processo arbitral. Se tivesse participado, o problema não se colocaria, uma vez que se teria de considerar sanado qualquer vício relativo à chamada da parte ao processo.

O TRL decide anular a decisão, com o fundamento de que “viola o princípio constitucional da proibição de indefesa, consagrado no art. 20.º da Constituição, a citação que não ofereça as garantias mínimas de segurança e fiabilidade e/ou que torne impossível ou excessivamente difícil a ilisão da presunção de recebimento da citação. É o caso de uma citação feita por correio eletrónico simples provido de assinatura eletrónica simples, no âmbito de processo do CC, dirigida a uma sociedade comercial que vende veículos automóveis”.

Com todo o respeito, em especial tendo em conta a fundamentação aprofundada, e reconhecendo que se trata de uma questão complexa, não acompanho a decisão do tribunal.

Assim, os poderes do tribunal arbitral tinham neste caso como fonte uma convenção de arbitragem, formada na sequência de adesão plena da empresa e posterior aceitação por parte do consumidor [1]. Através da adesão plena, a empresa compromete-se a resolver os litígios de consumo posteriores através de arbitragem, se o consumidor iniciar o processo no CASA. Ao comprometer-se neste sentido, a empresa aceita a jurisdição do CASA e o seu Regulamento. Ora, o Regulamento prevê a citação, entre outras possibilidades, por meio de uma mensagem de correio eletrónico e a empresa, no documento de adesão plena, forneceu um endereço de correio eletrónico. Assim, não acompanho a afirmação constante do acórdão de que “não está demonstrada a existência de acordo entre as partes para a definição de endereço eletrónico para comunicações entre si”. Note-se que esta afirmação parece decisiva para a decisão do tribunal. Se considerasse que existia esse acordo, então parece que a citação poderia ser por via de mensagem de correio eletrónico.

Acresce que o e-mail é um meio perfeitamente apto, rápido e eficaz, de tornar conhecidos factos, com vantagens claras em relação a outros meios, como a carta, que demora mais tempo a ser entregue. Num processo que se pretende informal e célere, é essencial que, no respeito dos princípios fundamentais do processo civil, se utilizem os meios mais eficazes para a obtenção em tempo de uma decisão justa. Reconhece-se que a prova do envio de um e-mail é mais complexa, nomeadamente se for através de correio eletrónico simples. Aliás, o TRL parece admitir que a citação possa ser feita por correio eletrónico, se lhe for aposta assinatura eletrónica qualificada. Nota-se, contudo, que a assinatura eletrónica qualificada nada garante em relação ao destinatário do e-mail, pelo que não parece resolver o problema.

Em suma, havendo acordo, ainda que tácito, quanto ao meio de citação, a citação por mensagem de correio eletrónico, em conformidade com esse acordo, deve considerar-se que respeita os princípios fundamentais do processo civil.

A minha conclusão seria diferente se, da não intervenção da parte regularmente citada no processo, resultasse algum efeito cominatório. Ora, nos termos do art. 35.º da Lei da Arbitragem Voluntária, a não-contestação não pode ser considerada, “em si mesma, como uma aceitação das alegações do demandante”. Assim se justifica que, no caso em análise, o tribunal arbitral tenha julgado a ação apenas parcialmente procedente.

Três notas finais.

Em primeiro lugar, consideramos que o centro de arbitragem poderia, neste caso, ter tentado contactar a empresa por outras vias, nomeadamente pelo telefone. O telefone é um meio muito eficaz de contacto, que permite falar diretamente com a pessoa em causa e perceber se recebeu ou não a comunicação. Tem o mesmo problema do correio eletrónico no que respeita à prova, mas parece-me mais importante para o exercício efetivo do direito de defesa o conhecimento real do processo do que a tentativa de encontrar formas de o ficcionar. A ausência destes contactos adicionais não gera, contudo, na minha opinião, a invalidade da decisão.

Em segundo lugar, se estivesse em causa uma situação de arbitragem necessária (v. art. 14.º da Lei de Defesa do Consumidor), o raciocínio teria de ser diferente. Ainda assim, parece-me que a citação poderia ser feita por correio eletrónico, mas sempre acompanhada de outros meios auxiliares, como o telefone, tentando garantir a participação efetiva da parte no processo. No caso de não obter resposta por nenhuma outra via, parece-me que terá de ser enviada uma carta registada para a sede da empresa, sendo suficiente, neste caso, para se considerar citada, a prova da recusa da receção da carta. A citação edital, figura criticável, por ser meramente ficcional e não garantir minimamente o conhecimento real da existência do processo, não tem nem deve ter lugar no processo arbitral (tal como não deveria ter lugar no processo judicial).

Em terceiro lugar, extravasando o tema deste texto, é interessante notar como os objetivos da arbitragem de consumo são desvirtuados no momento em que a questão passa para os tribunais judiciais. Como consequência natural da anulação da sentença arbitral, o TRL determina que as custas devem ser suportadas pelo requerido, ou seja, pelo consumidor. Assim, o consumidor optou por um meio de resolução alternativa de litígios de consumo, o qual deve ser gratuito ou, no máximo, estar sujeito ao pagamento de uma taxa de valor reduzido (v. art. 10.º, n.º 3, da Lei n.º 144/2015). Em outubro de 2020, mais de dois anos e meio depois de ter iniciado a ação no centro de arbitragem, o processo volta ao início e o consumidor já incorreu em despesas certamente superiores à taxa de valor reduzido para que remete a lei (a qual, realce-se, se impõe por força da Diretiva 2013/11/UE).

 

[1] Sobre a natureza jurídica da adesão plena e a qualificação da situação em causa como convenção de arbitragem, v. Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, Coimbra, 2017, pp. 177 e segs..

Energia elétrica, prescrição e acesso ao contador

Jurisprudência

Dedicamo-nos hoje à análise de uma interessante decisão do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa (CACCL), proferida no dia 22 de janeiro de 2020.

Estava em causa, no essencial, a eventual prescrição (ou caducidade) do direito do fornecedor de energia elétrica à diferença entre o valor estimado (e cobrado) e o valor real correspondente ao consumo efetivo entre 29/11/2013 e 9/10/2019.

Apesar de a empresa ter enviado cerca de 20 cartas à consumidora e estarem registadas 12 deslocações ao local, nunca foi facilitado o acesso ao contador, que se encontra dentro da residência. Por a situação ser imputável à consumidora, o tribunal arbitral considera que não se verifica a prescrição do direito da empresa, nos termos do art. 10.º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96).

O art. 10.º-2 estabelece que, “se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento”.

Não se prevê neste regime, pelo menos expressamente, a situação de a contagem do consumo real ser impedida pelo consumidor e a sua interação com o regime da prescrição.

O art. 67.º-5 do Decreto-Lei n.º 194/2009 contém uma regra especial aplicável ao contrato de prestação de serviços de fornecimento de água: “o prazo de caducidade das dívidas relativas aos consumos reais não começa a correr enquanto não puder ser realizada a leitura por parte da entidade gestora por motivos imputáveis ao utilizador” (itálico nosso). Esta regra deve ser estendida, por analogia, aos restantes serviços públicos essenciais, nomeadamente a eletricidade, que está em causa no processo em análise, que implicam leituras de contador para aferição dos consumos reais, podendo sempre recorrer-se, adicionalmente, à figura do abuso do direito, que pode limitar, estando verificados os pressupostos para a sua aplicação, o direito do utente a invocar a caducidade.

Concorda-se, portanto, com a solução dada na sentença, em especial tendo em conta que o comportamento da consumidora é particularmente censurável. É preciso não esquecer, contudo, que também cabe à empresa evitar que estas situações de incumprimento se prolonguem, não devendo arrastar o problema ao longo de tanto tempo, com vista à prevenção do endividamento excessivo dos consumidores.

Do ponto de vista processual, a decisão suscita algumas dúvidas.

Com efeito, o tribunal arbitral condena a consumidora ao pagamento do valor devido, apesar de não ser referida na sentença a dedução de qualquer pedido por parte da empresa. A ação é proposta pela consumidora, pelo que esta apenas deverá poder ser condenada se houver um pedido reconvencional.

Outra questão interessante consiste em parecer ter existido um acordo entre as partes, embora posterior ao momento em que a decisão é proferida. Pode ler-se que, “proferida a decisão e ouvida a consumidora quanto às forma do pagamento da quantia não prescrita e em dívida, esta, manifestou dificuldade em pagar o valor em dívida de uma só vez, tendo-se proposto e foi aceite pela requerida reclamada, que o pagamento seja efetuado em 15 prestações mensais e sucessivas”.

A existência de um acordo posterior à decisão, mediado pelo julgador e referido na sentença constitui um interessante exemplo da informalidade que marca a resolução alternativa de litígios de consumo, conseguindo obter-se uma solução mais adequada aos interesses das partes.

Na minha opinião, a decisão deveria, no entanto, pelo menos em parte, ser homologatória do acordo obtido (e não condenatória, como se deixou, aliás, já escrito).

A arbitragem de conflitos de consumo em revista

Recensão

Por António Pedro Pinto Monteiro

O Direito do Consumo e a Arbitragem têm sido – desde há muito – duas fórmulas de uma mesma equação com resultados muito positivos ao nível da resolução de conflitos. A alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 63/2019, de 16 de agosto (nos termos da qual os conflitos de consumo de reduzido valor económico passaram a estar sujeitos, por opção do consumidor, à arbitragem necessária ou mediação), é mais um passo nesta caminhada conjunta e bem revelador da importância do tema.

Ciente desta ligação, foi recentemente publicado o n.º 13 da Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação (RIAC), da Associação Portuguesa de Arbitragem, com um dossier especial nesta temática. Nele são analisados, por vários autores, diversas questões atinentes ao tema das arbitragens de conflitos de consumo:

  • “Reflexão sobre a Arbitragem e a Mediação de Consumo na Lei de Defesa do Consumidor – A Lei n.º 63/2019, de 16 de Agosto”, de Jorge Morais Carvalho e João Pedro Pinto-Ferreira;
  • “Arbitragem institucionalizada de litígios de Direito do Consumo: apontamentos ao âmbito de aplicação da Lei n.º 144/2015, de 08 de Setembro (Mecanismos de Resolução Extrajudicial de Litígios de Consumo)”, de Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde e Inês Sítima Craveiro;
  • “Da constitucionalidade da arbitragem necessária: o caso da arbitragem no Direito do Consumo”, de Artur Flamínio da Silva e Daniela Mirante;
  • “Viagens organizadas e resolução alternativa de litígios”, de Sandra Passinhas;
  • “Arbitragem de conflitos de consumo”, de João Carlos Pires Trindade; e
  • “El Arbitraje en Línea en Conflictos de Consumo en Brasil”, de João Pedro Leite Barros.

Ao longo das cerca de 170 páginas dedicadas especificamente ao tema (ao qual se soma uma recensão de Mariana França Gouveia ao Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, da autoria de Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho), o n.º 13 da RIAC pretende chamar a atenção para a importância, cada vez mais notória, da arbitragem de conflitos de consumo.

O referido número foi recentemente publicado pela editora Almedina, estando disponível em: https://www.almedina.net/revista-internacional-de-arbitragem-e-concilia-o-ano-xiii-2020-1593204754.html.

Sobre a importância da publicação das decisões dos centros de arbitragem de consumo

Doutrina

Por Joana Campos Carvalho e Jorge Morais Carvalho

 

A publicação da Portaria n.º 165/2020, de 7 de julho, voltou a recordar-me da necessidade absoluta e urgente de as decisões dos centros de arbitragem de consumo serem publicadas e, assim, estarem disponíveis a quem as queira ler.

A Portaria referida trata de arbitragem, mas noutro domínio (matéria administrativa e tributária). O art. 5.º determina que a publicação de cada decisão arbitral é acompanhada, entre outros elementos, do “texto da decisão, com conteúdo pesquisável, expurgado de todos os elementos suscetíveis de identificar as pessoas a que diz respeito”.

É precisamente esta a regra que defendemos para a arbitragem (institucionalizada) de consumo, seguindo de perto o que já escrevemos sobre o tema [1].

No que diz respeito à publicitação das sentenças, o art. 30.º-6 da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV) estabelece que o dever de sigilo previsto no art. 30.º-5 “não impede a publicação de sentenças e outras decisões do tribunal arbitral, expurgadas de elementos de identificação das partes, salvo se qualquer destas a isso se opuser”.

No caso das decisões arbitrais de consumo, a publicação assume uma relevância particular, tendo em conta também a necessidade de controlo da aplicação das regras de proteção do consumidor, especialmente imposta pelo art. 14.º-1 da Lei 144/2015 [2].

O princípio da publicidade, na vertente da publicação das sentenças, cumpre alguns propósitos adicionais [3].

O direito tem o poder de mudar a sociedade. As normas jurídicas conformam a atuação das pessoas e, quando uma norma jurídica é alterada, o comportamento das pessoas adapta-se a essa alteração. No nosso sistema jurídico, a maior parte das normas jurídicas é criada por via legislativa. Contudo, a interpretação por parte dos tribunais é muitas vezes fundamental para a compreensão cabal de determinada norma jurídica. A publicidade, neste caso das decisões finais dos tribunais, assume, portanto, relevância para o cabal conhecimento do direito pela sociedade.

Associada a esta ideia, o princípio da publicidade contribui, também, para assegurar a certeza jurídica e a uniformidade jurídica.

Por um lado, o princípio da certeza jurídica, isto é “o conhecimento prévio daquilo com que cada um pode contar, para, com base em expectativas firmes governar a sua vida e orientar a sua conduta” [4], apenas pode ser alcançado se o Direito for conhecido por todas as pessoas. Assim, a publicidade e o acesso às decisões judiciais, na medida em que estas são, também, fonte de Direito, é fundamental para garantir que as pessoas conhecem o Direito e sabem, portanto, com o que contar, conformando a sua conduta.

Por outro lado, é fundamental também que os próprios julgadores conheçam e tenham acesso às decisões dos colegas para garantir a uniformidade das decisões. Com isto não se pretende, de forma alguma, afirmar que, em Portugal, os juízes e os árbitros estão vinculados ao que os colegas decidiram em casos anteriores, já que o nosso sistema jurídico não é baseado na regra do precedente. Contudo, é importante que quem julga tenha disponível toda a informação para garantir uma boa decisão, que pode, naturalmente, implicar uma discordância da jurisprudência anterior, mas neste caso esclarecida e ponderada.

Por último, importa ainda referir a importância do princípio da publicidade no avanço da ciência. Para fazer avançar qualquer ciência é habitualmente necessário o conhecimento profundo da matéria em estudo. São necessários dados que permitam ao cientista perceber o objeto da sua análise e, posteriormente, construir raciocínios sobre esse conhecimento. Nessa medida, a publicidade do processo e das decisões judiciais contribui para o avanço da ciência, seja jurídica, sociológica, antropológica, etc., porque permite o acesso a dados de estudo.

No âmbito do direito do consumo, são raros os casos que chegam aos tribunais judiciais, em grande medida tendo em conta o baixo valor da maior parte dos litígios. Nessa medida, os tribunais arbitrais dos centros de arbitragem de consumo são a principal sede de aplicação prática da legislação de consumo. Revela-se, pois, de primordial relevância a publicação das suas decisões.

Assim, se na arbitragem comercial faz todo o sentido que o art. 30.º-5 da LAV seja interpretado no sentido de o tribunal dever solicitar autorização a ambas as partes antes da publicação da decisão [5], na arbitragem de consumo tal interpretação não será a mais adequada. Tendo em conta a importância da publicação das decisões arbitrais acima explicitada, essa publicação deve ser a regra nos centros de arbitragem de consumo.

As partes podem opor-se à publicação, nos termos do art. 30.º-5 da LAV, mas a iniciativa terá de ser sua, e fundamentada, não cabendo ao tribunal pedir-lhes autorização. Se a decisão for expurgada de qualquer elemento de identificação das partes e estas não puderem ser identificadas de outra forma, não há qualquer razão para que a decisão não seja publicada, pelo que as partes não têm o direito de oposição à publicação.

 

[1] Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2017, pp. 138 a 140

[2] Marte Knigge e Charlotte Pavillon, “The Legality Requirement of the ADR Directive: Just Another Paper Tiger?”, in EuCML, n.º 4, 2016, p. 1631.

[3] Szonja Navratil, “Publicity in the Administration of Justice and the Disclosure of Court Decisions”, 2009, pp. 9 a 11.

[4] João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2002, pp. 56 e 57.

[5] António Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem, Almedina, 2015, p. 308.

“Box de televisão, Serviços Públicos Essenciais e Arbitragem” – Comentário ao Ac. TRC, 24-09-2019, rel. Fernando Monteiro

Jurisprudência

Consultar acórdão

Sumário

“1. A Lei dos Serviços Públicos Essenciais ( Lei nº 23/96 de 26/7 ) é aplicável à relação que se estabelece entre a concessionária do serviço de comunicações electrónicas e o utilizador de tais serviços.

2. A box é um elemento imprescindível para o serviço de televisão prestado pela concessionária, fazendo parte da rede de transmissão do seu sinal.

3. O litígio entre a concessionária e o utente, relativo a dano provocado pela box na televisão, é um litígio de consumo no âmbito de um serviço público essencial, podendo ser sujeito a arbitragem necessária, ao abrigo do disposto no artigo 15º da Lei nº 23/96 de 26/7.”

 

Comentário

Resumidamente, o caso em análise respeita a um televisor que avariou (deixou de dar imagem e som) por haver sofrido uma descarga elétrica a partir da box. Esta box foi fornecida e instalada no âmbito de um contrato de telecomunicações entre o requerente (proprietário da televisão) e a requerida (empresa de telecomunicações).

O litígio foi inicialmente submetido e solucionado pelo tribunal arbitral constituído no âmbito do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Distrito de Coimbra, tendo a requerida proposto ação de anulação da decisão arbitral com base na arguição de incompetência do tribunal.

A questão a decidir pelo TRC era saber se o litígio em causa se inseria ou não na prestação de um serviço público essencial. No caso de a resposta ser afirmativa, o tribunal arbitral seria competente para decidir, sem necessidade de existir uma convenção arbitral, por via do artigo 15.º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96, de 26 de julho).

Nos termos desta disposição, os litígios de consumo que surjam no âmbito de contratos relativos a serviços públicos essenciais são obrigatoriamente solucionados por tribunal arbitral, se essa for a opção expressa do utente (arbitragem necessária).

Adiante-se que o TRC considerou, sem margem para dúvidas, ser aplicável o mencionado regime, confirmando a decisão que o tribunal arbitral havia emitido quanto à sua própria competência.

Ora, o contrato celebrado entre o requerente e a requerida insere-se no serviço público de comunicações eletrónicas (art. 1.º-2, al. d) da LSPE), como ambas as partes o reconhecem.

No âmbito deste tipo de contratos, é prestado um serviço “que consiste total ou principalmente no envio de sinais através de redes de comunicações eletrónicas, incluindo os serviços de telecomunicações (serviços de telefone fixo, telefone móvel, internet fixa, internet móvel e televisão por subscrição) e os serviços de transmissão em redes utilizadas para a radiodifusão”, contra remuneração paga pelo utente.

A questão é saber se a avaria da TV provocada pela box instalada pela empresa concessionária pode ser relacionada com aquele serviço, o que é recusado por esta.

Apelando ao espírito do sistema legal de especial proteção do utente-consumidor e levando em consideração a imprescindibilidade da box para a transmissão do sinal para o televisor, o TRC concluiu que o litígio relativo à avaria da televisão é um litígio de consumo no âmbito de um serviço público essencial, sujeito a arbitragem necessária, ao abrigo do disposto no artigo 15º da lei 23/96.

Em consequência, considerou o tribunal arbitral competente e a ação de anulação da decisão arbitral improcedente.