Shein: Loja Online ou Jogo de Vício?

Doutrina

A recente “ofensiva” da União Europeia contra a Shein não é apenas uma questão de descontos falsos ou devoluções difíceis. É, acima de tudo, um alerta sobre como o design digital (invisível, mas omnipresente) se tornou uma ferramenta poderosa para manipular decisões de consumo. O que está em causa não é apenas o que a Shein vende, mas como o vende, através de uma arquitetura digital pensada para contornar a racionalidade do consumidor e explorar as suas vulnerabilidades cognitivas.

A investigação coordenada pela Comissão Europeia e pela Consumer Protection Cooperation Network (CPC Network) identificou práticas como descontos fictícios, contagens decrescentes artificiais e outras manipulações. Estas estratégias não são novas, mas a sua eficácia foi amplificada pela interface digital da Shein, que utiliza elementos de design para induzir decisões rápidas e impulsivas. Este fenómeno, conhecido como dark patterns ou padrões obscuros, representa uma forma emergente de manipulação através do design digital. Embora a sua qualificação jurídica deva ser feita caso a caso, estas estratégias podem, em certas circunstâncias, constituir práticas comerciais desleais.

A Shein transformou a experiência de compra online numa espécie de jogo, em que os consumidores são incentivados a participar em desafios, acumular pontos e desbloquear recompensas. Esta ludificação do consumo cria um ambiente onde a compra deixa de ser uma decisão racional e passa a ser uma resposta condicionada a estímulos cuidadosamente desenhados. A autonomia do consumidor é assim progressivamente substituída por comportamentos automatizados que beneficiam exclusivamente a plataforma.

Outro aspeto preocupante é a opacidade da Shein em relação às suas responsabilidades legais. A empresa dificulta o acesso a informações de contacto e não esclarece adequadamente a relação entre a plataforma e os vendedores terceiros. Esta fragmentação da informação impede que os consumidores compreendam plenamente os seus direitos e a quem devem recorrer em caso de problemas, criando um ambiente propício à impunidade e à violação sistemática das normas de proteção do consumidor.

A Comissão Europeia e a CPC Network notificaram a 26 de maio de 2025 a Shein, informando de que um conjunto de práticas na sua plataforma viola várias diretivas comunitárias, incluindo a Diretiva das Práticas Comerciais Desleais, a Diretiva dos Direitos dos Consumidores e a Diretiva de Indicação de Preços. Não se trata apenas de “descontos” que nunca existiram ou de prazos de oferta que se renovam sempre que o utilizador muda de página, é antes um padrão sistémico de engenharia do consumo, em que cada elemento do design digital é pensado minuciosamente.

Ao apresentar reduções de preço sobre valores fictícios, a Shein apela ao sentimento de urgência e oportunidade imediata, técnicas de pressão comercial que a UE classifica como “pressure selling”. Estas contagens decrescentes artificiais e mensagens de “última chance” criam um ambiente de compra marcado pela ansiedade, em que o tempo percebido pelo consumidor difere do tempo real, conduzindo-o a decisões precipitadas guiadas por impulsos.

Mas a manipulação vai mais longe do que simples conteúdos visuais. A Shein transformou a experiência de compra num jogo contínuo de recompensas, com níveis de fidelidade que prometem descontos progressivos, sistemas de pontos que só se revelam após algum investimento. Cada clique, cada visita e cada euro gasto contribuem para desbloquear “prémios” que mantêm o utilizador conectado e emocionalmente investido, reduzindo drasticamente a sua capacidade de decisão consciente.

Para já, a Shein tem um mês para responder às conclusões da CPC e propor medidas corretivas, sob pena de ver as autoridades nacionais impor multas proporcionais ao volume de negócios anual nos Estados‑Membros envolvidos.

O desafio colocado pela Shein é, no fundo, um espelho do futuro do comércio digital, um ecossistema em que a inovação tecnológica pode tanto emancipar como subjugar o consumidor. Proteger estes direitos num mundo em que cada interface, cada algoritmo e cada notificação push é desenhado para captar atenção e provocar emoções, obriga-nos a repensar não só as leis, mas sobretudo a forma como encaramos o processo de compra online.

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