Quando não queremos que alguém saiba algo de nossa vida, não raro ouvimos aquele ditado popular: “se quer guardar bem um segredo, não o conte”. Correto? Não mais. No cenário tecnológico do século XXI, a ideia de comunicação direta de pensamentos e informações entre um indivíduo e uma Inteligência Artificial (IA) está se tornando possível, como foi demonstrada a transparência cerebral no World Economic Forum em Davos deste ano, o que expõe questões essenciais para debate sobre a proteção da mente humana e inaugura um novo domínio jurídico: os neurodireitos.
De fato, não se trata de telepatia. Outrossim, refere-se ao desenvolvimento de neurotecnologias, as quais têm muito a contribuir com usos clínicos e com a promoção da saúde da população de modo geral. Segundo a UNESCO, elas têm potencial para oferecimento de tratamentos e melhorias nas opções preventivas e terapêuticas para aqueles que sofrem de doenças neurológicas e mentais, bem como auxiliar os que não conseguem se comunicar ao traduzir a atividade cerebral em texto, voz ou imagens.
Mas as neurotecnologias vão além da área clínica. Nos últimos tempos, uma miríade de novos produtos com essas funcionalidades foi patenteada ou lançada no mercado de consumo, a exemplo dos novos Airpods da Apple (que são equipados com eletrodos aptos a medir a atividade cerebral), do Neuralink de Musk (uma interface direta entre computador e cérebro já em fase de testes em humanos que transmite sinais neuronais para dispositivos eletrônicos) e, mais recentemente, o sistema de IA da Meta, que promete decodificar o desdobramento de representações visuais no cérebro com uma resolução sem precedentes, como se pode perceber das imagens abaixo:
Fonte: Meta, 2023.
Tradicionalmente, a mente humana é considerada um santuário interno que permanece resistente à manipulação externa, diferenciando-se da natureza mais modulável e coercível do corpo tangível. Mas essa ideia de que é o último refúgio da autonomia pessoal e do autogoverno e, em última instância, de liberdade, tem sofrido e sofrerá modificações em função justamente de neurotecnologias, dados relativos à atividade cerebral e IA, pois, com isso, poderá ser possível manipular ou influenciar indevidamente os pensamentos, as ideias, as emoções e tudo o que não é expresso, mas é processado internamente no tecido nervoso[1].
Existe um reconhecimento crescente de que dispositivos neurais não clínicos e não invasivos geram volumes substanciais de “Big Data Cerebral” que, combinado com outros tipos de dados, tornam o indivíduo completamente transparente perante quem utiliza essas tecnologias, o que gera importantes considerações científicas, éticas, de direitos humanos e regulatórias[2]. Como se viu, fornecedores estão trabalhando ativamente na criação de produtos e aplicativos que coletam e tratam dados neuronais para uma ampla gama de finalidades. Uma delas que é progressivamente aprimorada é a capacidade sem precedentes, tanto em termos de escopo quanto de precisão, de efetivamente “ler” a mente[3].
E isso pode ter diversas consequências negativas aos consumidores. Assim será, por exemplo, nos casos de utilização de dados neuronais para fins e marketing, tornando o sujeito ainda mais transparente, inclusive em seus gatilhos mentais, para fins de direcionamento de práticas comerciais e potencialmente tornando as dark patterns ainda mais efetivas; ou mesmo manipulando comportamentos ao adaptar produtos e serviços para explorar vulnerabilidades cognitivas ou emocionais, intensificando determinados tipos de emoções para que o sujeito se mantenha mais tempo na fruição de serviços digitais. Ainda, os dados neuronais podem revelar informações altamente pessoais e íntimas, como desejos, crenças e pensamentos, os quais se tem o direito de manter privados. A partir desses dados também se poderá barrar acessos a oportunidades – de consumo e outras, como o mercado de trabalho – a partir da seleção e favorecimento de pessoas com certos tipos de atividades cerebrais, o que pode resultar em discriminações contra aqueles com diversidade neurológica.
Com esses exemplos, vê-se que o potencial para uso indevido ou implementação inadequada suscita preocupações quanto à invasão nas esferas mais privadas das pessoas. Isso apresenta um espectro de riscos, incluindo neuromodulação, neurodiscriminação, homogeneização da identidade, manipulação, controle do comportamento social[4], além de poder infligir dano físico ou psicológico[5]. Nesse sentido, juridicamente, existe um debate em curso, especialmente nos países da América Latina, sobre a questão de se os dados neurais realmente constituem uma entidade inovadora que merece proteção sob estruturas distintas de direitos humanos.
Embora interpretações e aplicações adaptativas de direitos e leis já existentes possam ser cruciais, a paisagem em constante evolução exige a consideração de novos neurodireitos como direitos humanos, seja em favor da ampliação do atual quadro de direitos humanos para abranger direitos explicitamente adaptados ou mesmo totalmente novos que sejam aptos a proteger o domínio do cérebro e da mente de um indivíduo – os neurodireitos.
A questão de saber se os neurodireitos se qualificam como direitos humanos não é, contudo, isenta de críticas. Os direitos humanos são garantias legais essenciais, abstratas e universais. Esses direitos abordam aspectos vitais como vida, liberdade, igualdade e acesso a recursos básicos. Embora a lista tenha se expandido ao longo das últimas sete décadas, esse crescimento tem sido cauteloso devido a preocupações com a inflação e, consequentemente, a sua desvalorização. Isso porque são instrumentos poderosos que podem remodelar cenários legais e impactar inúmeras vidas e a economia, de modo que expandir o leque de direitos reconhecidos poderia levar à diluição de sua importância e eficácia. O temor é que, ao transformar cada interesse significativo ou preocupação válida em uma questão de direitos humanos, a natureza excepcional, o caráter exigível e a prioridade categórica dos direitos humanos possam ser comprometidos[6].
Dada a urgência da temática, porém, parece-nos que considerar neurodireitos como um novo desdobramento de direitos humanos é a abordagem mais adequada, haja vista que os direitos humanos desempenham um papel central na formatação de mandatos legislativos, diretrizes éticas e convenções sociais predominantes em escala global. Consequentemente, eles fornecem uma estrutura normativa de cunho também internacional e abrangente na qual a proteção de dados neuronais deve encontrar seu espaço, informando práticas de coleta e tratamento, bem como de governança para o ciclo de vida de tais dados. Portanto, adotar um approach baseado em direitos humanos pode servir como um guia orientador para aprimorar a compreensão, informar políticas públicas, nortear as atividades privadas e moldar regulamentações nesse domínio[7].
Como a sociedade lidará com a perspectiva de interfaces cérebro-computador capazes de decifrar pensamentos e transferir informações diretamente para sistemas de IA ainda é um capítulo a ser escrito. Na seara internacional, a discussão continua em aberto no que diz respeito à proteção de dados neuronais e o bem-estar mental[8].
De todo modo, o objetivo é proteger os indivíduos contra possíveis invasões no que toca à privacidade, a autonomia e a integridade mental, do mesmo modo que a liberdade cognitiva, a identidade pessoal, o livre arbítrio, a igualdade de acessos a melhoramentos cognitivos e a proteção contra discriminações (Iberdrola, s.d). Através do reconhecimento deliberado dos neurodireitos, pretende-se garantir que tanto os dados cerebrais das pessoas quanto o processamento desses dados sejam regidos por considerações éticas e de direitos humanos[9].
À medida que a “telepatia tecnológica” se torna uma possibilidade cada vez mais palpável, a proteção dos neurodireitos torna-se uma prioridade crucial. Garantir que os avanços tecnológicos sejam aplicados com responsabilidade e respeito pelos valores éticos e legais é essencial para moldar um futuro em que a mente humana volte a ser preservada como um santuário intocável. A urgência desse assunto fica evidente devido ao surgimento de técnicas inovadoras de mineração de dados, tecnologias amplamente difundidas e ao avanço da IA generativa, todos os quais instigam uma reflexão profunda sobre a necessidade de atualizações legais para proteger o valor informativo da “mente digital”[10], preocupação esta também em nível internacional (como a OCDE).
Dessa maneira, a proteção dos neurodireitos não é apenas um desafio jurídico relevante a todos, mas uma questão fundamental para a preservação da dignidade e liberdade individual no século XXI. Assim como o Chile e o México, o Brasil está se movendo em direção à fundamentalidade dos neurodireitos. A Proposta de Emenda à Constituição n. 29 de 2023 pretende alterar a Constituição Federal Brasileira para incluir, no rol dos direitos fundamentais, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica, incluindo no art. 5º o inciso LXXX: “o desenvolvimento científico e tecnológico assegurará a integridade mental e a transparência algorítmica, nos termos da lei”.
Para resolver essas questões complexas, os legisladores e juristas precisam se adaptar às mudanças tecnológicas rápidas e, ao mesmo tempo, garantir que os direitos humanos fundamentais sejam protegidos em uma visão transdisciplinar do problema envolvendo também eticistas, neurocientistas e desenvolvedores de inovações tecnológicas. Ainda, também será necessária a cooperação internacional entre blocos e países para o estabelecimento de um framework jurídico e de governança de dados neuronais, dada ainda a natureza transnacional das atividades das grandes plataformas e gatekeepers. Isso requererá a definição de padrões éticos e legais que abordem os desafios específicos trazidos pela interseção entre a IA e a mente humana, tendo a regulamentação cuidadosa como essencial para garantir que as novidades tecnológicas sejam usadas em benefício da sociedade e das pessoas… e não em seu detrimento.
[1] Ienca, M., et al. (2022). Towards a Governance Framework for Brain Data. Neuroethics, 15(20), 14 p.
[2] Susser, D., & Cabrera, L. Y. (2023). Brain Data in Context: Are New Rights the Way to Mental and Brain Privacy? AJOB Neuroscience, 1-12.
[3] Paz, A. W. (2022). Is Your Neural Data Part of Your Mind? Exploring the Conceptual Basis of Mental Privacy. Minds and Machines, 32, 395-415.
[4] Pintarelli, C. (2022). A proteção jurídica da mente. Revista de Direito da Saúde Comparado, 1(1), 104-119.
[5] Ienca, M., & Andorno, R. (2017). Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology. Life Sciences, Society and Policy, 13, 5. 1-27.
[6] Bublitz, J. C. (2022). Novel Neurorights: From Nonsense to Substance. Neuroethics, 15(1), 7.
[7] Kellmeyer, P. (2022). ‘Neurorights’: A Human Rights–Based Approach for Governing Neurotechnologies. In S. Voeneky, P. Kellmeyer, O. Mueller, & W. Burgard (Eds.), The Cambridge Handbook of Responsible Artificial Intelligence: Interdisciplinary Perspectives. pp. 412-426. Cambridge: Cambridge University Press.
[8] Ligthart, S. et al. (2023). Minding Rights: Mapping Ethical and Legal Foundations of ‘Neurorights’. Cambridge Quarterly of Healthcare Ethics, 1–21.
[9] Ienca, M., et al. (2022). Towards a Governance Framework for Brain Data. Neuroethics, 15(20), 14 p.
[10] Ienca, M., & Malgieri, G. (2023). Mental data protection and the GDPR. Journal of Law and the Biosciences, 1-19.