O Comentário Geral n.º 26 à Convenção sobre os Direitos da Criança, recentemente publicado pelo Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, introduz uma perspetiva inovadora em relação ao direito da criança a um ambiente seguro e sustentável. Esta abordagem, ao entrelaçar o conceito de consumo com os direitos ambientais, impõe ao Estado e às entidades privadas a responsabilidade de protegerem as crianças[1], não apenas como beneficiárias passivas do consumo, mas como agentes com um papel próprio nas decisões e práticas de consumo que afetam o ambiente e a sua qualidade de vida futura.
A expressão «votar com o dinheiro» é frequentemente utilizada para ilustrar o poder dos consumidores na direção do mercado. No simples ato de optar, escolhendo comprar determinado bem ou contratar determinado serviço, o consumidor não está apenas a adquirir algo para sua satisfação pessoal, mas também a demonstrar as suas preferências em relação a valores como a qualidade, a ética e a sustentabilidade. Ocorre também, por vezes, estar apenas a transmitir qualquer outra mensagem nada relacionada com estes valores (como, por exemplo, que prefere bege a bordeaux), embora, nesse caso, em princípio, já não se deva assumir que se trata de uma motivação política. Neste sentido, algumas decisões de compra tornam-se uma forma de expressão política, onde os consumidores «votam» nas práticas que consideram mais alinhadas com os seus princípios. O conceito tem vindo a ser cada vez mais relevante, à medida que o consumo consciente e responsável ganha terreno, com os consumidores a optarem por empresas e bens que se destacam pela sua responsabilidade social e ambiental.
Este fenómeno, embora habitualmente reconhecido no contexto dos adultos, também pode ser aplicado às crianças, cuja influência nas decisões de compra do agregado familiar é crescente. De forma indireta, as crianças «votam» com o dinheiro dos pais, ao pressioná-los a adquirir bens específicos, como brinquedos e alimentos. Em boa verdade, esta parece ser a sua única remota hipótese de «votar» antes dos 18 anos de idade, pelo menos em Portugal.
Este poder de influência das crianças pode ter um impacto significativo nos padrões de consumo familiar, moldando não apenas os hábitos de compra, mas também a orientação para práticas mais sustentáveis. O Comentário Geral n.º 26 sublinha precisamente este ponto, ao destacar a importância de capacitar as crianças para se tornarem consumidoras informadas e responsáveis, capazes de influenciar, com as suas escolhas, um futuro mais sustentável e alinhado com os princípios da justiça social e ambiental.
O Comentário reconhece que a criança tem influência direta nos padrões de consumo do agregado familiar, muitas vezes determinando, ainda que de forma indireta, as escolhas dos cuidadores e do mercado. Esta influência, quando exercida num contexto informado e sustentável, pode moldar práticas de consumo orientadas para a sustentabilidade. O Comentário alerta, assim, para a importância de assegurar o direito da criança a receber «informações ambientais exatas e fiáveis» (parágrafo 33), fundamental para o seu desenvolvimento como consumidora consciente, internalizando práticas de consumo sustentável.
O direito ao consumo informado e sustentável articula-se aqui com o direito à educação, definido como essencial para a aquisição de competências que capacitem a criança a tomar decisões informadas e ambientalmente responsáveis. O parágrafo 53 do Comentário estabelece que a educação deve proporcionar às crianças «competências necessárias para enfrentar os desafios ambientais esperados nas suas vidas», promovendo a reflexão crítica sobre o consumo, a resolução de problemas ambientais e a adoção de estilos de vida que respeitem a sustentabilidade. Esta visão remete-nos para o conceito de «evolução das capacidades» da criança, reconhecido na Convenção, sublinhando a importância de ajustar as estratégias educativas e normativas à maturidade progressiva das crianças enquanto sujeitos de direitos. Ao promover a sua capacitação no consumo, o Comité estabelece uma ligação entre a formação do consumidor consciente e a proteção do ambiente, criando uma base para o exercício de um consumo informado que respeita as capacidades evolutivas da criança, enquanto princípio habilitador do processo de aquisição gradual de competências, compreensão e autonomia[2].
Um dos aspetos mais relevantes do Comentário no âmbito do consumo prende-se com a regulação da publicidade direcionada às crianças. O parágrafo 81, ao abordar o conceito de greenwashing, destaca a necessidade de as normas de publicidade e comercialização serem aplicadas de forma a prevenir práticas que possam induzir em erro as crianças, apresentando bens ou práticas empresariais como sustentáveis quando, na realidade, não o são. Este ponto convoca desafios jurídicos significativos, pois revela que, para proteger a criança enquanto consumidora, é indispensável o desenvolvimento de um quadro regulatório robusto, que imponha às empresas obrigações concretas de transparência. A prevenção do greenwashing é, assim, um imperativo para evitar a manipulação do consumidor infantil, que, devido à sua vulnerabilidade e capacidade cognitiva em formação, é especialmente suscetível a práticas comerciais enganosas.
Neste sentido, o Comentário opera uma transformação no modo como o direito do consumo pode e deve enquadrar o papel da criança: não apenas como destinatária de bens e serviços, mas como cidadã de direitos e responsabilidades no seio de um sistema que deve promover o consumo sustentável e a proteção do ambiente. Esta nova abordagem impõe ao direito do consumo a obrigação de não só proteger a criança contra práticas comerciais desleais, mas também de assegurar que a informação e as práticas comerciais estejam alinhadas com os princípios de transparência e sustentabilidade. A criança é, assim, promovida a um papel ativo no direito do consumo, alinhando o seu estatuto jurídico com a exigência crescente de um consumo responsável e ecologicamente consciente, (também) na defesa do seu superior interesse.
[1] Nos termos do artigo 1.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, “criança é todo o ser humano menor de dezoito anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”. Nos termos do artigo 122.º do Código Civil, “é menor quem não tiver ainda completado dezoito anos de idade”.
[2] Comentário Geral n.º 7 (2005), parágrafo 17; e Comentário Geral n.º 20 (2016), parágrafos 18 e 20.