A iliteracia financeira enquanto vulnerabilidade dos consumidores

Doutrina

Nas últimas semanas, tem tido destaque o tema da iliteracia financeira explorada como oportunidade de negócio, em termos que podem não ser os mais favoráveis para o consumidor.

A prática de comercialização de cursos sobre a monetarização dos mercados financeiros, à semelhança da comercialização de dicas de investimento, com promessas de um enriquecimento rápido, tem-se vindo a verificar há já algum tempo, afetando em grande escala as camadas mais jovens.

No fundo, um dos elementos-chave destes modelos de negócio está nas fortes técnicas de persuasão empregues na divulgação de cursos ou mesmo dicas de investimento, que levam muitas vezes os jovens a acreditar que, ao pagarem o respetivo preço, terão uma espécie de acesso automático ao estilo de vida luxuoso, despreocupado e livre de responsabilidades que os influenciadores digitais responsáveis pela divulgação dos materiais ilustram nas suas redes.

Por um lado, quanto ao comportamento dos influenciadores digitais em geral, é certo que por vezes a publicidade desenvolvida através das redes sociais desrespeita em larga escala os princípios resultantes do Código da Publicidade.

Neste contexto, cabe relembrar que tais princípios serão de aplicar também no universo digital, devendo assim, a título de exemplo, toda a mensagem publicitária ser devidamente identificada enquanto tal, obrigação que decorre do princípio da identificabilidade.

Por outro lado, no âmbito das estratégias de divulgação utilizadas em sede das plataformas digitais frequentadas por utilizadores de todas as idades, importa mencionar o princípio da veracidade, conforme disposto no art. 10.º do Código da Publicidade, que impõe como regra que a publicidade respeite a verdade, não deformando os factos.

Por outro lado, a propósito da publicidade especificamente feita a cursos, dispõe ainda o Código da Publicidade, no seu art. 22.º, que a mensagem publicitária deve indicar a natureza dos cursos, bem como a expressão “sem reconhecimento oficial” sempre que este não tenha sido atribuído pelas entidades oficiais competentes.

Numa perspetiva de direito criminal, será pertinente referir os crimes de burla, burla qualificada e usura. Nesse sentido, cabe relembrar que, para que determinada conduta seja qualificável enquanto crime, é necessário que o agente cometa um facto típico, ilícito, culposo e punível.

De acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 663/98, de 25 de novembro de 1998, proferido no processo n.º 235/98, e relatado pelo Cons. Sousa e Brito, “a burla, a extorsão e a usura, caracterizam-se por o prejuízo ser causado pela própria vítima através da provocação ou exploração ilícitas pelo agente de um vício da vontade: o erro na burla, a coação na extorsão, a situação de necessidade na usura. (…) São necessárias circunstâncias adicionais que tornam socialmente tão grave a culpa do incumprimento que se torna necessária a intervenção do direito penal.”

Nomeadamente, no que ao crime de burla diz respeito (cf. art 217.º do Código Penal), trata-se de um crime semipúblico, pelo que o procedimento criminal depende de queixa. Ademais, em relação à conduta típica, são três os elementos a considerar: a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; que tal enriquecimento seja obtido por meio de erro ou engano sobre factos astuciosamente provocados pelo agente; e que tais factos provocados pelo agente determinem outrem à prática de atos que lhe causem, a si ou a terceiro, um prejuízo patrimonial. No fundo, para que o tipo de crime se preencha, será necessário que haja um nexo de causalidade forte entre o prejuízo patrimonial do ofendido e o enriquecimento do agente.

Por outro lado, provando-se que o agente pratica o crime de burla como modo de vida (não tendo para tal que se dedicar de forma exclusiva à prática do ato em questão, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 16/06/2015 e relatado por Inácio Monteiro), ou mesmo que o agente, aquando da prática do ilícito, se aproveitou de situação de especial vulnerabilidade da vítima, nomeadamente em razão de idade, poderemos estar em face de um crime de burla qualificada, no âmbito do qual a moldura penal pode ir até aos oito anos. Neste caso, estamos perante um crime público, que como tal poderá ser investigado e submetido a julgamento pelo Ministério Público, mesmo sem ou contra a vontade do ofendido.

Ademais, cabe relembrar que o Código Penal prevê ainda o tipo de crime de usura, no seu art. 226.º, de acordo com o qual é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de necessidade, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor, ou relação de dependência deste, prometa, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstancias do caso, manifestamente desproporcionada com a contraprestação. Neste caso, a intervenção do direito de ultima ratio deriva da necessidade de prevenção da exploração económica de um sujeito que se encontra numa situação de especial vulnerabilidade, sendo levado a acreditar pelo agente da prática do crime que será o negócio usurário que o levará a ultrapassar o seu estado de fragilidade.

Em suma, dúvidas não restam quanto ao facto de a iliteracia financeira ser uma questão bastante séria e capaz de influenciar em larga escala as decisões de contratar dos consumidores, especialmente nos casos em que estes não estão munidos de todas as informações necessárias para uma escolha informada.

Os consumidores na versão originária da Constituição de 1976 e a primeira revisão constitucional

Doutrina

A Constituição da República Portuguesa contém, na sua versão atual, sete referências a consumidores, uma no art. 52.º-3, quatro no art. 60.º, que tem exatamente por epígrafe “Direitos dos consumidores”, uma na alínea i) do art. 81.º e a última no art. 99.º-e). As referências a consumo são quatro, uma no já referido art. 60.º e as outras três no art. 104.º-4, que trata de impostos e, em especial, dos impostos sobre o consumo.

No entanto, deve assinalar-se que a problemática da proteção e dos direitos dos consumidores foi objeto de alterações muito significativas desde o texto originário que entrou em vigor no dia 25 de Abril de 1976. Impõe-se, assim, uma análise cuidada desta evolução.

No texto originário, apenas existia uma referência expressa a consumidor, na alínea m) do art. 81.º, a qual inseria a proteção do “consumidor, designadamente através do apoio à criação de cooperativas e de associações de consumidores”, entre as incumbências prioritárias do Estado. A proteção do consumidor surgia assim apenas como um dos aspetos que o Estado deveria ter preferencialmente em conta ao nível da organização económico-social do país, a par, por exemplo, do desenvolvimento das relações económicas com todos os povos ou da realização da reforma agrária. Outra incumbência prioritária do Estado, prevista na alínea g) do mesmo artigo, consistia em “eliminar e impedir a formação de monopólios privados, através de nacionalizações ou de outras formas, bem como reprimir os abusos do poder económico e todas as práticas lesivas do interesse geral”. Embora se trate de uma questão eminentemente de concorrência entre empresas, o interesse dos consumidores também está indiretamente presente no espírito desta disposição. Como se pode observar, a proteção dos consumidores não era diretamente assegurada pelo texto constitucional, muito menos se vislumbrando a existência de direitos especial ou exclusivamente afetos a estes.

Tal como a última norma referida, outros preceitos do diploma tratavam já de problemáticas que, indiretamente (ou não exclusivamente), tinham alguma relação com a proteção dos consumidores. Assim, pode assinalar-se a relevância de vários preceitos: o art. 13.º consagrava o princípio da igualdade e ainda hoje mantém, no essencial, o seu conteúdo; o art. 34.º-1 estabelecia, e ainda estabelece, que “o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”, norma a que se apela em matéria de publicidade; o art. 35.º regulava – e ainda regula, embora com alterações significativas – a utilização da informática, questão fulcral no que respeita à proteção de dados pessoais; o art. 46.º, regulando, em geral, a liberdade de associação, também se aplicava e ainda aplica às associações de consumidores; o art. 49.º tinha por epígrafe “Direito de petição e ação popular”, embora ainda não se fizesse referência direta aos direitos dos consumidores, como acontece hoje no art. 52.º; o art. 65.º incumbia e ainda incumbe o Estado de “estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar”; o art. 84.º estabelecia que “o Estado deve fomentar a criação e a atividade de cooperativas, designadamente de […] consumo”; o art. 109.º era bastante relevante no que concerne à proteção dos consumidores, uma vez que atribuía ao Estado um papel na formação e no controlo dos preços (n.º 1) e proibia a publicidade dolosa (n.º 2); por fim, o art. 110.º-2 incumbia o Estado de “disciplinar e vigiar a qualidade e os preços das mercadorias importadas e exportadas”.

Assim, pode concluir-se que o texto originário da nossa lei fundamental, embora não incluísse os consumidores entre os sujeitos merecedores de uma proteção especial efetiva como parte com menor poder negocial no mercado, tinha claras preocupações sociais, que se refletiram num documento com capacidade suficiente para que as necessidades que se vieram a sentir pudessem ser materializadas em legislação ordinária. Com efeito, a primeira lei de proteção dos consumidores (Lei n.º 29/81, de 22 de agosto) foi publicada ainda antes da primeira revisão constitucional.

A Lei Constitucional n.º 1/82 aprovou a primeira revisão da Constituição, tendo introduzido expressamente na lei fundamental alguns direitos dos consumidores. A proteção dos consumidores deixou de constituir um mero objetivo que deveria ser prosseguido pelo Estado na medida do possível entre outros aspetos da política económica, passando mesmo a estar previstos alguns direitos que teriam de ser assegurados pelo Estado independentemente da política económica seguida. A principal alteração pode ser encontrada no art. 90.º da Lei Constitucional n.º 1/82, que aditou um novo art. 110.º, estruturalmente próximo do atual art. 60.º. Deve notar-se, no entanto, que este preceito estava ainda inserido na parte da Constituição que se ocupava da organização económica e não na que regulava os direitos fundamentais.

Também a alínea m) do artigo 81.º, que passou a constituir a alínea j), sofreu uma alteração, simbolicamente relevante, referindo-se simplesmente à proteção do consumidor como incumbência prioritária do Estado. Retirou-se, assim, a expressão “designadamente através do apoio à criação de cooperativas e de associações de consumidores”, que parecia indiciar serem estas as principais preocupações que o Estado deveria ter nesta matéria.

Para além destes aspetos, claramente os mais relevantes, a revisão de 1982 procedeu à alteração dos arts. 35.º (que trata da utilização da informática), 49.º (que passou a art. 52.º e mudou de epígrafe para “Direito de petição e de ação popular”), 84.º e 109.º. No art. 84.º abandonou-se a referência expressa às cooperativas de consumo e o art. 109.º foi aprofundado, passando a estabelecer que “o Estado intervém na racionalização dos circuitos de distribuição e na formação e no controlo dos preços, a fim de combater atividades especulativas, evitar práticas comerciais restritivas e os seus reflexos sobre os preços, e adequar a evolução dos preços dos bens essenciais aos objetivos da política económica e social”. A alínea g) do art. 81.º não viu a sua redação ser alterada, mas passou a constituir a alínea e).

O Adpocalypse do YouTube e o Recurso ao Patreon como Prática Comercial Desleal

Doutrina

O YouTube é uma plataforma online que permite a publicação e a visualização de conteúdos digitais em formato de vídeo. A plataforma funciona como um intermediário entre o criador de conteúdos e o utilizador, possibilitando-lhe a subscrição gratuita de canais geridos pelos criadores de conteúdos.

Esta plataforma baseia a sua atividade comercial na apresentação de anúncios publicitários antes, durante e após a visualização de qualquer vídeo publicado no seu servidor. Como mecanismo de incentivo à criação de conteúdos, o YouTube instituiu um mecanismo de remuneração aos criadores de conteúdos digitais, baseado num algoritmo que gera um valor baseado no tráfego gerado por esse mesmo conteúdo, utilizando critérios como o número de visualizações, número de minutos visualizados por utilizador individual, número de subscrições do canal, origem geográfica das visualizações, número de cliques em anúncios publicitários, entre outros.

Este sistema de remuneração, associado à grande popularidade da plataforma, permitiu uma verdadeira profissionalização destes criadores de conteúdos digitais, na medida em que muitos obtêm a sua única ou principal fonte de receita através da remuneração auferida pelos seus canais, o que leva, inúmeras vezes, inclusive à constituição de pessoas coletivas e marcas registadas, empregando trabalhadores precisamente para o desenvolvimento destes conteúdos digitais com vista à obtenção de lucro.

Em 2017, no seguimento da publicação, por parte de alguns dos principais criadores, de vídeos cujo conteúdo foi designado controverso, muitos agentes publicitários boicotaram a plataforma, retirando milhões de euros destinados à publicação de anúncios publicitários, naquilo que ficou vulgarmente conhecido como o “Adpocalypse”.

Este fenómeno, com graves consequências nas receitas da plataforma, levou a uma alteração das políticas de remuneração aplicadas pelo YouTube aos criadores de conteúdos, incluindo a implementação de critérios de elegibilidade para a monetização dos conteúdos publicados, o que se traduziu numa total exclusão remuneratória dos canais que não sejam considerados “family-friendly” ou “ad-friendly”, com o objetivo de voltar a atrair os grandes agentes publicitários que cortaram relações comerciais com a plataforma.

Face à elevada ou total perda de rendimento, muitos destes criadores de conteúdos reagiram com a criação e venda de merchandising associado ao seu canal e ainda com o recurso a plataformas externas ao YouTube, como é exemplo o Patreon, que permite a assinatura de uma subscrição mensal paga com acesso exclusivo a ofertas e a conteúdos adicionais publicados por esses mesmos criadores de conteúdos.

Toda esta conjuntura originou a frequente inclusão de mensagens, seja de forma escrita ou no próprio conteúdo dos vídeos, que revelam que a continuidade e subsistência do canal no YouTube não é possível sem o apoio dos utilizadores, sendo depois sugerida ou mesmo expressamente solicitada a assinatura de uma subscrição paga através da plataforma Patreon e/ou a compra do merchandising associado à marca e canal do criador de conteúdos.

Em virtude do caráter profissional destes criadores e canais de YouTube, é necessário analisar o conteúdo destas comunicações comerciais incluídas nos vídeos sob o prisma do Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março[1], que estabelece o regime aplicável às práticas comerciais desleais (RPCD) das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante ou após uma transação comercial relativa a um bem ou serviço, e cuja alínea g) do seu artigo 12.º determina ser considerada agressiva, em qualquer circunstância, a prática comercial em que se informe explicitamente o consumidor de que a sua recusa em comprar o bem ou contratar a prestação do serviço põe em perigo o emprego ou a subsistência do profissional.

Nestes termos, não sendo desleal a mera referência ou até mesmo o simples incentivo à subscrição do serviço pago na plataforma Patreon, o facto de ser expressamente comunicado aos utilizadores do YouTube que a continuidade e subsistência do canal dependem da subscrição paga na plataforma Patreon ou da compra de merchandising implica, não importa em que circunstâncias, que essa comunicação seja considerada desleal e, consequentemente, que os contratos celebrados nessa sequência sejam anuláveis a pedido do consumidor pelo prazo de um ano, nos termos do artigo 287.º do Código Civil, conforme dispõe o artigo 14.º do RPCD.

Importa ainda referir que, não obstante ser admissível a publicidade a esses produtos, atendendo que um número significativo de canais tem como público alvo utilizadores menores de idade, é também, de acordo com a alínea e) do artigo 12.º, considerada desleal em qualquer circunstância a prática comercial em que se exerça uma exortação direta às crianças no sentido de comprarem ou convencerem os pais ou outros adultos a comprar-lhes os bens ou serviços anunciados, aplicando-se igualmente a estes casos o regime da anulabilidade anteriormente exposto.

As plataformas YouTube e Patreon não poderão, em princípio, ser responsabilizadas, na medida em que o Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de janeiro[2], na redação vigente, estabelece no seu artigo 16.º, n.º 1, que o prestador intermediário do serviço de armazenagem em servidor[3] só é responsável pela informação que armazena se tiver conhecimento de atividade ou informação cuja ilicitude for manifesta e não retirar ou impossibilitar logo o acesso a essa informação. Acresce que estas obrigações surgem apenas quando a plataforma tem conhecimento da existência da ilicitude e, nos termos do artigo 12.º, estas plataformas não estão sujeitas a uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que transmitem ou armazenam ou de investigação de eventuais ilícitos praticados no seu âmbito, problemática que já foi discutida neste blog.

Deste modo, verificando-se que a atuação de ambas as plataformas no armazenamento e transmissão dos conteúdos reveste um caráter puramente técnico, automático e de natureza passiva, ou seja, que não assume qualquer interferência no conteúdo, modo de apresentação, disponibilidade e organização dos conteúdos publicados, apenas poderão ser responsabilizados os criadores de conteúdos.

Do ponto de vista contraordenacional, os criadores de conteúdos digitais ficam sujeitos à aplicação de coimas pela prática das referidas infrações que, à data, são puníveis no montante de 250€ a 3740,98€ se o infrator for pessoa singular, e de 3000€ a 44891,81€ se o infrator for pessoa coletiva.

Após a entrada em vigor do novo Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro[4], as mencionadas práticas comerciais desleais passam a constituir contraordenação económica grave nos termos do 88.º do DL, que procede à alteração do artigo 21.º do RPCD, puníveis com coima de 650€ a 1500€ se o infrator for pessoa singular e, se o infrator for pessoa coletiva, punível de acordo com os critérios gerais definidos pela alínea b) do artigo 18.º do RJCE, consoante se trate de micro, pequena, média ou grande empresa, cuja classificação é definida pelo artigo 19.º.

Ora, tendo em conta que a esmagadora maioria dos criadores de conteúdos do YouTube são pessoas singulares ou microempresas[5], sujeitos a coimas máximas de, respetivamente, 1500€ e 3000€, e que o lucro gerado por esses canais pode ascender a várias dezenas de milhares de euros ou, em não raros casos, às centenas de milhar ou mesmo aos milhões de euros por ano, facilmente concluímos que os montantes máximos previstos para estas infrações são manifestamente insuficientes para dissuadir a ocorrência destas práticas comerciais desleais, revelando-se, paradoxalmente, menos eficaz contra os canais que possuem maiores audiências e, consequentemente, um maior potencial para ferir e colocar em causa os interesses económicos e direitos do consumidor.

Deste modo, urge uma alteração aos montantes máximos das coimas previstas pelo RJCE, até porque, conforme já referido neste blog, estes limites não vão ao encontro do previsto na Diretiva (UE) 2019/2161, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de novembro de 2019, que altera, entre outras, a Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais, nomeadamente, que “os Estados-Membros asseguram que [… as] sanções contemplam a possibilidade de aplicar coimas por meio de procedimentos administrativos ou de intentar uma ação judicial para a aplicação de coimas, ou ambas, sendo o montante máximo dessas coimas de, pelo menos, 4% do volume de negócios anual do profissional no(s) Estado(s)-Membro(s) em causa”[6].

 

[1] Alterado pelo Decreto-Lei n.º 205/2015, de 23 de setembro.

[2] Transpõe para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 2000/31/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2000, relativa a certos aspetos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio eletrónico, no mercado interno.

[3] Definido pelo artigo 4.º, n.º 5, como os que prestam serviços técnicos para o acesso, disponibilização e utilização de informações ou serviços em linha independentes da geração da própria informação ou serviço.

[4] Nos termos do seu artigo 183.º, o regime entra em vigor 180 dias após a sua publicação.

[5] Nos termos do artigo 19.º, n.º 1, al. a) do RJCE, as pessoas coletivas são classificadas como microempresa quando empreguem menos de 10 trabalhadores.

[6] Sobre este tema, cf. Eduardo Freitas, “Os Sistemas de Avaliações Online: Proteção do Consumidor nos Mercados de Comércio Eletrónico, in Anuário do NOVA Consumer Lab, Ano 1 – 2019, pp. 187-190.

O início do(s) Caso(s) TikTok? – Cláusulas Contratuais Gerais, Bens Virtuais e Copyright

Doutrina

A Organização Europeia do Consumidor BEUC apresentou uma queixa à Comissão Europeia e à rede de autoridades de defesa do consumidor contra o TikTok, na passada terça-feira, dia 16 de Fevereiro, por várias violações de Direito do Consumo, nomeadamente quanto a cláusulas contratuais abusivas e práticas comerciais desleais. Para além da BEUC, em mais 15 Estados[1], associações de defesa dos direitos dos consumidores também apresentaram queixas às autoridades e entidades reguladoras, de forma coordenada, contra o TikTok – e não, Portugal (ainda?) não se encontra nesta lista.

O TikTok, da chinesa ByteDance, começou em 2016 como uma app que procurava inovar no modelo do Vinee do Musical.ly e tornar-se numa rede social de partilha de vídeos curtos dos utilizadores, em diferentes temáticas e interesses, com enfâse na reprodução de músicas atuais e áudio de cenas de filmes e séries populares – adquirindo para este propósito licenças junto dos right holders. Com a aquisição do Musical.ly no final de 2017 e a fusão de ambas as apps em Agosto de 2018, o TikTok conseguiu sair da bolha do mercado chinês e penetrar no mercado americano (e, por conseguinte, mundial), convertendo-se rapidamente numa das mais populares plataformas em todo o mundo, entre as várias faixas etárias – com uma estimativa de mais de 1,1 mil milhões de utilizadores mensais.

Com a extraordinária popularidade, também vieram controvérsias – desde de a app ser banida na India; executive orders do ex-presidente dos Estados Unidos para bloquear a app devido a receios de espionagem e partilha de dados pessoais com o Governo Chinês, procurando assim forçar a sua venda a uma multinacional americana; ser forçada a bloquear todos os utilizadores italianos e realizar um controlo apertado da sua idade, para a sua readmissão (devido à morte de uma menor de 13 anos); e claro, alegações relativas a invasão de privacidade e tratamento ilícito dos dados dos utilizadores, incluindo a utilização de tecnologia de reconhecimento facial, por autoridades de proteção de dados europeias.

Estas novas queixas da BEUC e das associações de proteção de consumidores vêm abrir um novo capítulo, uma nova frente de combate aos abusos do TikTok (e outras multinacionais que utilizem as mesmas técnicas), centrando as queixas no Direito do Consumo, nomeadamente quanto a práticas comerciais desleais, cláusulas contratuais gerais abusivas e falta de transparência no tratamento de dados pessoais e publicidade.

As práticas sob escrutínio incluem:

  • Publicidade oculta e enganosa, seja colocada pelo TikTok, seja pela utilização de funcionalidades que permitem que marcas usem influencers para campanhas de marketing agressivas junto dos seus fãs – especialmente direcionada a crianças e outras pessoas vulneráveis;
  • Falta de transparência nas obrigações de informação aos titulares de dados pessoais, possível ausência de base de licitude do tratamento, reutilização de dados para finalidades incompatíveis, (…) diversas possíveis violações do Regulamento Geral de Proteção de Dados.

Em paralelo com a abertura deste tema, é de destacar também o recém publicado relatório do Parlamento Europeu sobre a necessidade de “atualizar” a Diretiva das Cláusulas Contratuais Abusivas (93/13/CEE), para os serviços digitais. Este relatório aborda, entre vários temas, as cláusulas predatórias sobre o copyright do user-generated content, como a referida acima do TikTok.

É possível que estas queixas das associações de defesa dos consumidores se convertam no futuro em processos judiciais, sejam movidos pelas entidades reguladores ou como ações coletivas de indeminização dos consumidores – e que, quem sabe, cheguem ao Tribunal de Justiça, de forma a conseguir uma atualização jurisprudencial, uniforme na União Europeia, da aplicabilidade das Diretivas sobre Cláusulas Contratuais Abusivas e Práticas Comerciais Desleais a este tipo de práticas e modelos de negócio.

 

[1] Os Estados em questão: Bélgica, Chipre, República Checa, Dinamarca, França, Alemanha, Grécia, Itália, Países Baixos, Noruega, Eslováquia, Eslovênia, Suécia, Espanha e Suíça.

[2] No contexto de redes socias, este modelo de negócio aparenta ser inspirado no sistema de awards do Reddit, em que os utilizadores premeiam as publicações que gostam mais, dando-lhes maior visibilidade e notoriedade a terceiros, pelo algoritmo.

Chocolate: Exploração de Cacau?

Doutrina

Álvaro de Campos foi bem perentório no poema Tabacaria: “olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates”. Se ele soubesse como é que têm sido feitos.

A International Rights Advocates moveu, pela primeira vez num tribunal dos Estados Unidos, uma ação em Washington DC contra as gigantes do cacau: Nestlé, Cargill, Barry Callebaut, Mars, Olam, Hershey e Mondelēz encontram-se entre os réus. Em causa está uma acusação por sujeição a trabalho escravo de oito (então) crianças originárias do Mali, por terem sido forçadas a trabalhar nas plantações de cacau da Costa do Marfim sem remuneração, sem documentos legais e sem conhecimento do lugar onde se encontravam efetivamente.

Consumidores assíduos de pelo menos uma destas marcas de chocolate poderão deslocar-se ao frigorífico e verificar que, no rótulo, existem as indicações “placer responsable” e “cocoa plan: mejora la vida de los agricultores y la calidad de sus productos”.

Isto não se inventa. Em 2001, em resultado do Protocolo Harkin-Engel, as empresas haviam prometido eliminar gradualmente o trabalho infantil até 2005. Parece que o novo prazo é agora 2025.

Questionadas sobre o problema, as empresas citadas que se dignaram a fazer um comentário sobre o processo convocaram as suas políticas de tolerância zero face à violação de direitos humanos nas suas cadeias de abastecimento. Vinte e quatro anos para tomar medidas efetivas para combater o problema não é uma política de tolerância zero, é uma política de tolerância escandalosamente inadmissível.

Entre as principais alegações do processo encontra-se o velho problema da terceirização: as empresas citadas não são proprietárias das fazendas do cacau em discussão. De seguida vão afirmar que nem sequer tinham um vínculo com o trabalhador.

Olhem o que vos digo: isto só lá vai com o direito do consumo. Que bom é ser consumidor, o maior juiz de todos os tempos.

The Game did not Stop

Doutrina

Fevereiro abriu com o que parecia ser uma corrida à prata, que se seguiu ao rally das ações da empresa de jogos GameStop no final de janeiro. Dentro da realidade psicadélica que globalmente se vive, procurando com êxito ainda incerto combater a pandemia de Covid-19, poderia fazer sentido.

O descontrolo que grassa por todo o lado, chegou (de novo) aos mercados financeiros provocando, também ali, uma enorme volatilidade. Tristemente habituados aos gráficos, dos infetados, hospitalizados, mortos e recuperados, já não nos fere a vista uma linha que sobe a pique, sem razão aparente, e rapidamente intuímos que significa que o que estávamos habituados a que fosse, deixou de ser. É temporário, não se sabe é por quanto tempo e com que efeitos.

No final de janeiro assistimos a uma aparente vitória de pequenos investidores sobre grandes fundos, abordada neste blog aqui. A notícia da vertiginosa subida das ações de uma empresa de jogos, a GameStop, originada em dicas e conselhos num fórum online, do Reddit, foi título em várias publicações, principalmente por ter causado uma semana de excecional volatilidade e grandes perdas para os que habitualmente ganhavam, as grandes empresas e os grandes fundos.

Enquanto esse frenesim ocorria, iniciava-se a corrida à prata, diziam uns que impulsionada pelo Reddit, como é noticiado aqui e outros que não, antes pelo contrário, como é noticiado aqui e aqui.

A corrida à prata poderia fazer sentido por várias razões.

A primeira é uma razão clássica, os metais são um refúgio quando os mercados ficam estranhos. Têm existência física pouco perecível e valor intrínseco. A segunda seria a razão agora em curso, a do fenómeno Reddit ou de quem dele se esteja a aproveitar, que consiste em alardear que os grandes fundos podem ser prejudicados se o preço subir, por terem apostado na descida, tratando de diligenciar para que suba. A terceira, mais prosaica, poderia ter a ver com a natureza humana. Depois do jogo e do entretenimento, os metais preciosos e, para os menos abonados, especificamente a prata, é sinal de riqueza. Quem sabe se a escolha da próxima ascensão vertiginosa não poderia ter também algo a ver com os básicos da psicologia humana.

Como tanto do que acontece na Bolsa, faria sentido, aconteceu, mas durou quatro dias, atingindo o pico durante o dia 2 de fevereiro, estando a prata, ao que parece, a voltar a valores anteriores ao sprint.

Quanto à GameStop, já não parece estar a correr nada bem. No gráfico a um ano, percebe-se melhor o fenómeno extraordinário que aconteceu. Em início de fevereiro de 2020, a ação valia 3.95 USD, iniciou uma pequena subida em agosto e fechou o ano de 2020 nos 18.84 USD. Em 20 de janeiro de 2021, iniciou uma subida vertiginosa, atingindo no dia 27 de janeiro, quarta-feira, os 347.5 USD. Baixou na quinta (193,6) e fechou com nova subida acentuada na sexta (325). Esta semana desce a pique, tendo fechado ontem a 90 USD e andando hoje por aí.

O mercado, se for livre, assenta na lei da oferta e da procura. Se a procura aumenta, o preço sobe, se a procura diminui o preço baixa. Havendo equilíbrio, o preço é estável. Aumentando muitíssimo a procura, sem ajustamento da oferta, o preço dispara para valores que podem ser completamente desajustados ao valor real daquilo que é transacionado. Quando acontece nas Bolsas de Valores, chamam-lhe bolha.

Desde há muito que existem Bolsas, mercados em que se comercializam mercadorias, ações e outros ativos financeiros. Desde há muito que existem bolhas, que por vezes assumiram a denominação de manias, como aconteceu com a Tulip Mania, que ocorreu entre novembro de 1636 e maio de 1637, em Amesterdão[1] e que muitos consideram a primeira da história.

Na Bolsa, as bolhas rebentam. O efeito é o de se voltar, com fortes perdas para alguns, a uma situação mais perto da normalidade.

Vamos ver no que isto dá.

Para já, registe-se a situação atual da GameStop – “Power to the players”, no mercado de Nova York. Registe-se, também, que o fenómeno GameStop da semana passada já foi repetido na Malásia, onde pequenos investidores criaram um grupo para apoiar uma empresa fabricante de luvas. Registe-se, ainda, a existência de alertas oficiais para o risco de investimentos em ambiente de grande volatilidade e a qualificação do fenómeno como “insane Ponzi Scheme”.

Os aderentes aos fenómenos de perspetivas de lucro rápido e fácil vão, à medida que o prodígio avança, sendo cada vez mais e cada vez mais inexperientes. A informação vai chegando progressivamente aos menos conhecedores que, convencidos de que podem enriquecer instantaneamente, engrossam a coluna e contribuem decisivamente para a subida. Estão lá e permanecem, quando os conhecedores vão saindo. Quem, na quarta-feira, comprou ações a 340 USD e as vendeu, por exemplo, hoje a meio da manhã, por 90 USD, perdeu 250 USD por ação.

O economista Nouriel Roubini, que ficou conhecido por prever a crise financeira, terá afirmado sobre o tema, numa conferência na última quinta-feira no Porto, que “Parece manipulação e vai acabar em lágrimas”.

Esperemos que, ao contrário do que parece, desta vez não tenha razão.

 

[1] A Holanda ainda hoje tem algo semelhante a uma Bolsa de Flores, o Aalsmeer Flower Auction.

Golias foi ao chão – o fenómeno GameStop e o efeito Reddit

Doutrina

Os pequenos e frágeis uniram-se esta semana e conseguiram aplicar uns golpes certeiros que desequilibraram alguns gigantes de Wall Street, numa semana em que uma surpreendente volatilidade foi ali a caraterística dominante. Golias foi ao chão e nós, os pequenos, sentimo-nos poderosos o que, para variar, é bastante bom.

A história, complexa como tudo nas Bolsas, conta-se em poucas palavras. Esta semana Wall Street fechou com os seus índices em queda acentuada, no que foi a pior semana desde outubro, segundo o JN, porque houve uma “revolta de pequenos investidores contra os fundos especulativos, que foram forçados a vender ativos para cobrir as suas perdas.”. Esses fundos tinham apostado na baixa da cotação de empresas em dificuldades, como a cadeia de lojas de videojogos GameStop, fazendo “short-selling”, coisa que fazem todos os dias e que consiste em “obter ações, emprestadas, vendendo-as, antecipando a sua descida, para depois de esta ocorrer as recomprarem, devolverem e encaixarem os ganhos realizados.”, também explicado aqui. Normalmente funciona. Esporadicamente, sai-lhes o tiro pela culatra e têm de recomprar. Precisando de liquidez, vendem as “posições longas” (investimentos previstos para médio/longo prazo) em ações de empresas que estão ganhadoras (e que, com a venda, desvalorizam). Pelo caminho podem perder dinheiro durante um bocadinho, o que não deixa de ser desagradável.

A especulação bolsista dos grandes investidores, leia-se gigantescos fundos, assenta em ordens quase exclusivamente automáticas, produzidas por ferozes algoritmos, enviadas por sistemas de computação poderosíssimos, estrategicamente situados, sempre que possível fisicamente ao lado das Bolsas de Valores, o que permite que cheguem uns milissegundos mais rapidamente que as dos outros gigantes o que, em negociação bolsista, faz toda a diferença. O fenómeno foi magistralmente analisado, já em 2006, por Saskia Sassen, no seu livro “Territory, Authority, Rights[1]. Esta extraordinária, versátil e surpreendente investigadora, alia à solidez dos métodos científicos clássicos, originalidades como a de ir à noite para o Goldman Sachs, falar com funcionários da limpeza e segurança, para melhor compreender a crise financeira que culminou em catástrofe em 2008. E compreendeu muito bem que, há mais de uma década, os “mercados” já funcionavam essencialmente em modo automático, dominados pela tecnologia só acessível aos incrivelmente ricos e poderosos que, assim, se tornavam mais incrivelmente ricos e poderosos, como a realidade desde aí, passando pela crise de 2008 e respetiva recuperação, foram demonstrando.

Esta dinâmica foi, então, interrompida esta semana. A revolta é notícia por todo o lado, aparecendo no Expresso, com o interessante título “Wall Street. O efeito Reddit ultrapassa o fenómeno da GameStop” o que, no essencial, significa que o que começou por ser uma rebelião contra um ataque à empresa de videojogos GameStop, se propagou a outras ações, devido a um movimento que se desenvolveu online, no fórum da Reddit. Segundo o Expresso “os investidores compram ações de acordo com as notícias que vão sendo divulgadas na rede social Reddit, muito partilhada pelos investidores e personalidades norte-americanas”. Neste movimento, as ações da GameStop foram objeto de intensíssima transação e tiveram ganhos extraordinários, outras tiveram perdas inesperadas e o fórum da Reddit praticamente duplicou o número de utilizadores que terá aumentado “de 2,8 milhões para 4,3 milhões”.

A moral da história consiste em que a união faz a força, David vence Golias, juntos venceremos e assim, o que é bonito, nos redime um pouco e nos alimenta a esperança de que as coisas podem ser diferentes, o que é especialmente importante para quem se interessa por Direito do Consumo.

Essa expetativa assumiu contornos muito vincados na aurora das redes sociais. O Facebook foi lançado em 4 de fevereiro de 2004, rapidamente ganhou adeptos, e outras redes sociais se lhe seguiram num movimento crescente e imparável. Parecia que nascia uma possibilidade de todos terem voz, palco, relevância. A ideia de uma espécie de democracia direta despontava intensamente.

O livro de Glenn Reynolds, de 2007, “An Army of Davids: How Markets and Technology Empower Ordinary People to Beat Big Media, Big Government, and Other Goliaths” expressa muito bem e amplamente, a ideia de que os indivíduos ganhavam relevantes poderes que lhes iam possibilitar grandes feitos.

Poucos anos depois, a ideia for perdendo força, para o que contribuíram, por exemplo, as denominadas “primaveras árabes”, em parte possíveis pela mobilização e comunicação online, e que, em muitos casos, se tornaram sombrios invernos. Mais recentemente, a eleição de Trump, também não ajudou. Os fenómenos associados às compras online, as fake news, a monetarização dos dados pessoais, a obtenção de foros de soberania de facto pelos gigantes tecnológicos, entre muitos outros, têm originado reflexão e recuo em relação às grandes expetativas iniciais.

Voltando ao caso desta semana em Wall Street, há que estar com atenção aos tempos vindouros.

Embora não tenha nada a ver para o caso, assinale-se que é curioso que uma empresa que vive de vender jogos se chame GameStop. Dir-se-ia uma contradição nos termos, uma suscetibilidade de induzir em erro desde a denominação e será, provavelmente uma gracinha imaginativa assente num trocadilho com GameShop. Do ponto de vista linguístico é interessante e funciona. Os trocadilhos tendem a funcionar. Do ponto de vista legal, é duvidoso. No entanto, esta é uma questão lateral, que não deve perturbar o facto de a GameStop ser o herói desta história e um herói charmoso que parece que ficou rico, pelo menos para já. Curioso, também, é o facto de o fenómeno da semana se ter intensificado muito após a publicação de um tweet de Elon Musk no tal fórum, sendo que as ações da Tesla eram das que mais perdiam. Podia ter algum interesse aplicar uma lupa neste ponto.

Vamos, portanto, estar com atenção à próxima semana, e à outra, e à outra. Existe a possibilidade de verificarmos que os algoritmos dos fundos foram ajustados e que os gigantes que fecharam a descer vão recuperar extremamente. Em relação à GameStop, ou se salva, ou aproveita para encaixar uns milhões e, eventualmente fechar para ir abrir no quarteirão a seguir, com denominação igualmente (des)elucidativa, talvez StopLossGame. Em relação ao Reddit, e sendo certo que Golias foi ao chão e se levanta antes de terminar a contagem para o KO, o tempo dirá se foi a causa ou a consequência e já diz que veio, viu e venceu.

[1] V. Saskia Sassen, “Territory, Authority, Rights – from Medieval to Global Assemblages”, Princeton University Press, 2006, pp. 348 e ss..

 

Boycott (boicote) e Buycott – O poder do consumidor está nas suas decisões

Doutrina

Os tempos que vivemos são estranhos e confusos. E são estranhos e confusos a muitos níveis. O consumo e as nossas decisões de consumo também estão a viver nestes tempos de medo, incerteza e angústia.

aqui falámos no nosso blog do conceito de revenge spending, num texto escrito em agosto de 2020 por Yasmin Watge, que caracteriza um fenómeno de consumo por vingança em relação à pandemia e ao vírus, que leva a que o menor consumo durante o confinamento seja compensado por um consumo excessivo após o final desse período. Também os efeitos Netflix e Shein foram realçados em textos de Paula Ribeiro Alves e Yasmin Waetge, ambos escritos em dezembro de 2020. Destes textos resulta alguma ânsia pelo consumo, por parte das pessoas, muitas vezes irrefletida.

Como refere Yasmin Waetge no final deste seu último texto, “o problema não é consumir, mas é não pensar no consumo!”.

E esta é a principal mensagem deste texto. As decisões de consumo são também políticas.

No #13 do NOVA Consumer Podcast, Sandra Passinhas definia-se como uma consumidora politicamente ativa, por exemplo não comprando produtos de determinadas regiões. Prevê aliás que um dia todos o faremos.

A verdade é que, no mesmo momento em que se assiste a fenómenos como os de revenge spending e a efeitos Netflix e Shein, entre muitos outros, nunca se discutiu tanto a ligação entre o consumo, por um lado, e a sustentabilidade e a responsabilidade social, por outro lado. E esta ligação está umbilicalmente ligada às decisões de consumo das pessoas, às nossas decisões de consumo. Nunca como hoje se transmite e se anuncia o que se compra e o que não se compra.

Nos primeiros episódios da segunda temporada do NOVA Consumer Podcast, já gravados e que se serão transmitidos em breve (com Catarina Barreiros, o primeiro, e Marta Santos Silva e Luísa Cortat, o segundo), é possível verificar esta tendência. A questão do consumo de abacate, por exemplo, ligada a uma produção muito pouco sustentável em contextos geográficos como o nosso (em Portugal) foi salientada nas duas entrevistas.

As decisões de consumo têm uma forte vertente política. Quando se contrata (ou não se contrata) está a tomar-se uma decisão que tem consequências políticas. Pode estar em causa o ambiente, uma orientação política, princípios ou valores éticos, o cumprimento da lei, processos de produção mais justos.

Neste texto, de 2018, Orge Castellano, explica de que forma “buycotting” é a nova forma de ativismo político, dando exemplos de campanhas para reforçar as compras a empresas contrárias às políticas de Donald Trump nos Estados Unidos da América.

Podemos dar muitos outros exemplos: comprar roupa fabricada em locais onde são respeitados os direitos dos trabalhadores; não comprar carne de regiões onde os animais são maltratados; comprar fruta de países democráticos; não comprar eletrodomésticos de países com regimes fiscais iníquos; ir a restaurantes que utilizam produtos sustentáveis; não seguir influenciadoras ou influenciadores que não alertam para o facto de os conteúdos serem patrocinados.

O boicote, do inglês boycott, é uma arma ao serviço do consumidor (e das associações de consumidores), muito referida e utilizada, em especial nos Estados Unidos América, nos primeiros tempos da sociedade de consumo. Segundo o texto anteriormente referido, a própria palavra resulta de um proprietário de terras irlandês, Charles Boycott, que, na segunda metade do século XIX, explorava e abusava (d)os camponeses. Em 1880, um ano particularmente difícil para as colheitas, estes pediram uma redução do valor das rendas, a qual foi recusada. Os camponeses iniciaram uma revolta, que contou com a solidariedade das empresas locais, que deixaram de contratar com Charles Boycott, tendo inclusivamente o carteiro deixado de lhe levar a correspondência. Esta tática de protesto foi então cunhada a partir do nome do boicotado naquele momento histórico. Boicotar uma empresa significa não contratar com ela. Boicotar um produto significa não o comprar (ou não o adquirir por via de qualquer outra relação contratual que não a compra e venda).

O buycott, fenómeno mais recente e ainda sem termo em português (será que podemos falar de “compracote”?), é a tática inversa: contratar com uma empresa porque se está alinhado com o seu posicionamento, por exemplo em matéria de ambiente, orientação política, princípios ou valores éticos e/ou cumprimento da lei[1].

Esta tática reforça o poder do consumidor. Quando se pensa no consumo que se faz, faz-se política e influencia-se a sociedade à nossa volta. O consumidor tem o poder de mudar a sociedade através do consumo, quer pelo que consome quer pelo que não consome. Tem o poder de influenciar o posicionamento das empresas. E tem o dever de controlar o cumprimento das declarações feitas pelas empresas. Isto leva-nos aos conceitos de greenwashing e de bluewashing, mas deixemos o tema para depois, que o texto já vai longo.

 

[1] Para uma análise mais aprofundada da distinção entre o boycott e o buycott, de um ponto de vista sociológico, v. este texto de Lauren Copeland, com o título Conceptualizing Political Consumerism: How Citizenship Norms Differentiate Boycotting from Buycotting.

O psicólogo Facebook e os jovens

Doutrina

Há muito, muito tempo, num reino distante, um gigante mostrou a um jornal o resultado de umas pesquisas que andava a fazer sobre a vulnerabilidade dos adolescentes online, aferível em tempo real, e a constatação de que a intensa vivência da fragilidade seria o momento ideal para, amavelmente, lhes sugerir algumas compras.

Foi em 2017, na Austrália, o gigante era o Facebook, o jornal o The Australian e a proeza assentava na utilização de inteligência artificial (Artificial Intelligence – AI), big data e small data. Pode tudo ser lido em detalhe aqui, num artigo do The Guardian que, sensatamente, nos avisa ao entrarmos: “This article is more than 3 years old”.

No que diz respeito às capacidades da AI, três anos é tempo imenso e é importante ter isso em mente ao ler este post, que vem na sequência do publicado esta semana aqui. A ideia é trazer substância material ao tema aí tratado, relativo à leitura das emoções por sistemas de inteligência artificial e ilustrar o que pode, e é, feito na realidade em que todos vivemos e que a todos nos afeta. É necessário, pois, ter em consideração que estas habilidades são, de algum modo, rudimentares em relação às que podem ser, e são, realizadas atualmente, em 2021, num mundo que, além do mais, está pandémico há um ano e, também por isso, transitou para uma versão ainda mais digital de si próprio.

Vamos aos factos: o Facebook, num relatório bastante claro, destinado a informar os anunciantes sobre as vantagens de anunciarem, explicou que seguia em tempo real as comunicações de adolescentes e jovens, nomeadamente posts e imagens, e identificava as inseguranças, ansiedades e receios que estavam a sentir. Naturalmente que, pelo simples facto de se incluírem naquela faixa etária, a propensão para se sentirem, por exemplo, gordos, magros, feios, com borbulhas, louros em vez de morenos, morenos em vez de louros, é enorme, como todos os que por essa idade já passámos tão bem sabemos. Não é por acaso, é pela sua especial vulnerabilidade, que a legislação protege diferenciadamente crianças e jovens.

Quando aquele feito do Facebook foi tornado público a reação não foi a melhor e a empresa pediu desculpa e disse que ia instaurar um inquérito interno e etc, etc, etc, o bê-a-bá do politicamente correto. No entanto, num segundo momento, talvez por perceber que admitir, mesmo que para pedir desculpa, seria mau demais, veio dizer que tinha havido um engano e que o Facebook não fornecia ferramentas “to target people based on their emotional state”, mas sim “to help marketers understand how people express themselves”. Ora, portanto, os anunciantes tinham muito interesse, talvez como os psicólogos, em compreender como é que as pessoas exprimiam as suas emoções e o psicólogo supremo Facebook, solicitamente, ajudava nessa tarefa e na prossecução desse elevado objetivo. Tudo, vá, em abstrato, sem ter a ver com conseguir vendas. Era, pois, isto que era feito, estava esclarecido e não se falava mais no assunto.

O escândalo foi grande e grandemente esquecido.

A internet é assim, o que lá está é tão eterno, como efémero. Impressionamo-nos, revoltamo-nos, enfadamo-nos e seguimos para a receita de wraps que se segue, porque já estamos a ficar com um bocadinho de fome.

Pode ler mais neste blog sobre a ética ligada à inteligência artificial, aqui e aqui e sobre a AI na sociedade aqui e, se quiser ficar mesmo assustado, aqui.

Inteligência Artificial, codificação das emoções e consumo

Doutrina

Os cientistas andam a codificar a emoção, o que nem sequer é muito novo, para a integrarem em sistemas de inteligência artificial.

A Artificial Intelligence (AI) ganha um E, transformando-se em EAI (Emotional Artificial Intelligence), o que a vai aproximando da ainda considerada praticamente inatingível AGI (Artificial General Intelligence), que implicaria que a inteligência da máquina seria semelhante à do ser humano, no sentido de que em vez de ser só magnífica na resolução de problemas e tarefas específicas, como fazer cirurgias, dirigir carros ou outros veículos, organizar cidades, seria também excecional na resposta a questões gerais e até de senso comum.

Até ver, as pessoas têm-se divertido bastante com as limitações dos sistemas de AI, sentindo-se ainda bastante superiores, já que sem qualquer dificuldade conseguem perceber coisas que a máquina nem vislumbra. Por exemplo, foi feita uma experiência com um sistema muito simples, em que uma pessoa representada em meia dúzia de traços no ecrã, “chutava à baliza” onde estava um “guarda-redes”, de aspeto semelhante. Naquele sistema de AI, tanto a figura que rematava como a que defendia, eram cada vez melhores na sua tarefa. Até que os cientistas resolveram apresentar o “guarda-redes” deitado no chão, deixando a “baliza aberta”. O marcador, perante a surpresa da situação, simplesmente colapsou. Não aproveitou a oportunidade “de fazer golo” e, em completo desnorte, acabou por se deitar também. Para a máquina, aquilo não era futebol, era evitar um obstáculo enquadrado num retângulo. Se o obstáculo é removido, a falta de lógica arrasa a estrutura. O humano, em face disto, ri-se por lhe ser tão evidente o que deveria ser feito.

Vários exemplos de comparação entre a inteligência humana e o desenvolvimento de uma (ainda incipiente) AGI, nomeadamente inserida em robôs, pode ser vista na extraordinária apresentação que José Santos-Victor, do IST, fez na Conferência sobre o tema “Cérebros e Robôs”, inserida na exposição da Fundação Calouste Gulbenkian denominada “Cérebro – mais vasto que o céu”, disponível aqui. Também no Técnico, Ana Paiva trabalha no desenvolvimento de “robôs sociais”, que exprimam emoções e sejam amáveis com as pessoas.

Os cientistas já codificam a emoção há muito tempo, sendo um clássico com provas dadas o sistema BET (Basic Emotion Theory), que assenta na tipificação das principais emoções humanas e sua manifestação.

Ora, com sistemas de AI, com algoritmos que aprendem através de técnicas de Machine Learning (ML) que, num nível de maior sofisticação opera através de redes neurais artificiais (Artificial Neural Nets – ANN), tomando a designação de Deep Learning (DL) e com uma quantidade crescente de material para alimentar o processo – a Big Data – fácil será perceber que as emoções humanas são facilmente reconhecíveis pela “máquina”. Tanto mais reconhecíveis, quanto maior for a quantidade de informação disponível.

O que é que isto tem a ver com o consumo, já vai apetecendo perguntar.

Pois tem tudo. Se pensarmos que o recurso a assistentes digitais, que recebem ordens de voz em que transparece a nossa disposição e até conversam connosco (chatbots) é já uma realidade vulgar, que o uso de câmaras que recebem e registam as nossas expressões faciais é quase permanente e ainda que é frequente que dados biométricos ligados à emoção, como o batimento cardíaco, estejam a ser registados, é fácil ver como empresas que têm acesso a tudo isso podem escolher o melhor momento para nos fazer lembrar que estamos mesmo a precisar de comprar alguma coisa.

A fasquia, que já estava alta com a análise do comportamento, é elevada a um nível muito superior, com a análise da emoção por sistemas de inteligência artificial.

A propósito de um artigo na área das ciências da computação, “The Ethics of Emotion in AI Systems”, de Luke Stark e Jesse Hoey, disponível aqui ou aqui, pode-se ler aqui um “Research Summary”, de Alexandrine Royer, uma cientista da área das ciências humanas (social scientist), publicado este mês pelo Montreal AI Ethics Institute, que explica com clareza a problemática em questão. Estas leituras dão-nos a perspetiva das ciências da computação, enunciada e complementada pela das ciências sociais, o que nos fornece um ponto de partida para grande reflexão.

Entretanto, pelo menos quando comprar online, através de um gigante tecnológico, faça um esforço para evitar, como tão bem disse Ricardo Araújo Pereira, “sentir sentimentos” ou, se tal for impossível, evite mostrá-los. É provável que poupe algum dinheiro.

Pode ler mais neste blog sobre a ética ligada à inteligência artificial, aqui e aqui e sobre AI na sociedade aqui.