Boycott (boicote) e Buycott – O poder do consumidor está nas suas decisões

Doutrina

Os tempos que vivemos são estranhos e confusos. E são estranhos e confusos a muitos níveis. O consumo e as nossas decisões de consumo também estão a viver nestes tempos de medo, incerteza e angústia.

aqui falámos no nosso blog do conceito de revenge spending, num texto escrito em agosto de 2020 por Yasmin Watge, que caracteriza um fenómeno de consumo por vingança em relação à pandemia e ao vírus, que leva a que o menor consumo durante o confinamento seja compensado por um consumo excessivo após o final desse período. Também os efeitos Netflix e Shein foram realçados em textos de Paula Ribeiro Alves e Yasmin Waetge, ambos escritos em dezembro de 2020. Destes textos resulta alguma ânsia pelo consumo, por parte das pessoas, muitas vezes irrefletida.

Como refere Yasmin Waetge no final deste seu último texto, “o problema não é consumir, mas é não pensar no consumo!”.

E esta é a principal mensagem deste texto. As decisões de consumo são também políticas.

No #13 do NOVA Consumer Podcast, Sandra Passinhas definia-se como uma consumidora politicamente ativa, por exemplo não comprando produtos de determinadas regiões. Prevê aliás que um dia todos o faremos.

A verdade é que, no mesmo momento em que se assiste a fenómenos como os de revenge spending e a efeitos Netflix e Shein, entre muitos outros, nunca se discutiu tanto a ligação entre o consumo, por um lado, e a sustentabilidade e a responsabilidade social, por outro lado. E esta ligação está umbilicalmente ligada às decisões de consumo das pessoas, às nossas decisões de consumo. Nunca como hoje se transmite e se anuncia o que se compra e o que não se compra.

Nos primeiros episódios da segunda temporada do NOVA Consumer Podcast, já gravados e que se serão transmitidos em breve (com Catarina Barreiros, o primeiro, e Marta Santos Silva e Luísa Cortat, o segundo), é possível verificar esta tendência. A questão do consumo de abacate, por exemplo, ligada a uma produção muito pouco sustentável em contextos geográficos como o nosso (em Portugal) foi salientada nas duas entrevistas.

As decisões de consumo têm uma forte vertente política. Quando se contrata (ou não se contrata) está a tomar-se uma decisão que tem consequências políticas. Pode estar em causa o ambiente, uma orientação política, princípios ou valores éticos, o cumprimento da lei, processos de produção mais justos.

Neste texto, de 2018, Orge Castellano, explica de que forma “buycotting” é a nova forma de ativismo político, dando exemplos de campanhas para reforçar as compras a empresas contrárias às políticas de Donald Trump nos Estados Unidos da América.

Podemos dar muitos outros exemplos: comprar roupa fabricada em locais onde são respeitados os direitos dos trabalhadores; não comprar carne de regiões onde os animais são maltratados; comprar fruta de países democráticos; não comprar eletrodomésticos de países com regimes fiscais iníquos; ir a restaurantes que utilizam produtos sustentáveis; não seguir influenciadoras ou influenciadores que não alertam para o facto de os conteúdos serem patrocinados.

O boicote, do inglês boycott, é uma arma ao serviço do consumidor (e das associações de consumidores), muito referida e utilizada, em especial nos Estados Unidos América, nos primeiros tempos da sociedade de consumo. Segundo o texto anteriormente referido, a própria palavra resulta de um proprietário de terras irlandês, Charles Boycott, que, na segunda metade do século XIX, explorava e abusava (d)os camponeses. Em 1880, um ano particularmente difícil para as colheitas, estes pediram uma redução do valor das rendas, a qual foi recusada. Os camponeses iniciaram uma revolta, que contou com a solidariedade das empresas locais, que deixaram de contratar com Charles Boycott, tendo inclusivamente o carteiro deixado de lhe levar a correspondência. Esta tática de protesto foi então cunhada a partir do nome do boicotado naquele momento histórico. Boicotar uma empresa significa não contratar com ela. Boicotar um produto significa não o comprar (ou não o adquirir por via de qualquer outra relação contratual que não a compra e venda).

O buycott, fenómeno mais recente e ainda sem termo em português (será que podemos falar de “compracote”?), é a tática inversa: contratar com uma empresa porque se está alinhado com o seu posicionamento, por exemplo em matéria de ambiente, orientação política, princípios ou valores éticos e/ou cumprimento da lei[1].

Esta tática reforça o poder do consumidor. Quando se pensa no consumo que se faz, faz-se política e influencia-se a sociedade à nossa volta. O consumidor tem o poder de mudar a sociedade através do consumo, quer pelo que consome quer pelo que não consome. Tem o poder de influenciar o posicionamento das empresas. E tem o dever de controlar o cumprimento das declarações feitas pelas empresas. Isto leva-nos aos conceitos de greenwashing e de bluewashing, mas deixemos o tema para depois, que o texto já vai longo.

 

[1] Para uma análise mais aprofundada da distinção entre o boycott e o buycott, de um ponto de vista sociológico, v. este texto de Lauren Copeland, com o título Conceptualizing Political Consumerism: How Citizenship Norms Differentiate Boycotting from Buycotting.

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