Aplicação da regra “na dúvida contra o predisponente” em contrato de seguro padronizado – um caso prático

Jurisprudência

Imagine-se o seguinte caso prático[1]:

– “A”, tomador de seguro, celebrou com “B”, seguradora, um contrato de seguro do ramo Multirriscos Habitação, titulado pela apólice n.º 008521475213, na modalidade “Domus X”, que teve o seu início em 01.06.2017 e tem por objeto o edifício e respetivo recheio do imóvel sito na Rua X, Vila Nova de Gaia, correspondendo ao edifício, na medida dos riscos assumidos por “B”, um capital seguro de € 150.000,00, e ao recheio, na medida dos riscos assumidos por “B”, um capital seguro de € 40.000,00;

– Em 28.12.2020, registaram-se ventos fortes e precipitação intensa na região onde está localizado o imóvel, associados à denominada “tempestade Ana”;

– Em consequência destas condições atmosféricas, verificaram-se os seguintes danos no objeto seguro: o telhado ficou com telhas partidas e levantadas pelo vento e rufos danificados e a empena do lado poente apresentava ardósias danificadas e deslocadas; no interior do imóvel, o teto e as paredes do quarto ficaram deteriorados devido à infiltração de água proveniente da chuva;

– Em 30.12.2020, “A” participou o sinistro a “B”, na convicção de que os factos descritos se enquadravam no âmbito da cobertura da apólice acima identificada e, dias depois, “A” fez chegar a “B” um orçamento da reparação dos danos, com o valor total de € 3.378,00, e fotografias dos mesmos;

– Em 29.03.2021, após a realização de uma peritagem ao imóvel pela empresa “C” nomeada pela seguradora, “B” enviou uma carta a “A”, a declinar a responsabilidade pelo sinistro, nos seguintes termos: «Após análise dos elementos reunidos acerca do sinistro, em que se inclui o relatório do perito, concluímos que este sinistro não aciona nenhuma das garantias da sua apólice. Segundo o que apurámos, ocorreram infiltrações na habitação segura alegadamente devido a telhas quebradas por ventos fortes. Sucede que, na data do sinistro participado e conforme consulta ao Instituto Português do Mar e da Atmosfera mais próximo, não foram registados ventos iguais ou superiores a 100 km/h. Deste modo, o evento reportado não é passível de acionar a garantia de Tempestades (…)»;

– No âmbito da cobertura “Tempestades”, prevista no ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais” da apólice n.º 008521475213, consta o seguinte:

  1. Esta cobertura integra os riscos a seguir definidos:
    • a) tufões, ciclones, tornados e toda a ação direta de ventos fortes, bem como o choque de objetos arremessados ou projetados pelos mesmos desde que a sua violência destrua ou danifique instalações, objetos ou árvores num raio de 5 km, tendo como centro a localização dos bens seguros (em caso de dúvida, poderá o Segurado fazer prova, mediante documento da estação meteorológica mais próxima, que, no momento do sinistro, os ventos atingiram intensidade excecional – velocidade superior a 100 km/hora);
    • b) alagamento pela queda de chuva, neve ou granizo, desde que se verifiquem conjuntamente as seguintes condições: – que estes agentes atmosféricos penetrem no interior do edifício seguro em consequência de danos causados pelos riscos referidos na alínea anterior; – que os danos se verifiquem nas 48 horas seguintes ao momento em que ocorreu a danificação ou a destruição parcial do edifício.
  2. (…)
  3. Exclusões – Para além das exclusões gerais previstas no art. 7.º destas Condições Gerais, ficam ainda excluídos do âmbito da presente cobertura as perdas ou danos:
    • a) (…)
    • b) (…)
    • c) (…)
    • d) (…)
    • e) provocados por infiltrações através de paredes e/ou tetos, humidade e/ou condensação, exceto quando se trate de danos resultantes do risco contemplado nesta cobertura.

A edição online do jornal “D” publicou, às 15h16m de 28.12.2020, uma notícia a dar conta de que, pelas 14:00h, havia registo de uma dezena de incidentes, como queda de árvores e infiltrações de água na zona do Grande Porto, devido ao mau tempo.

“A” tem direito a exigir o pagamento da quantia de € 3.378,00 por “B”?

“A” e “B” acham-se ligados por um contrato de seguro multirriscos habitação, nos termos do qual “B”, seguradora, se obrigou perante “A”, tomador do seguro, a satisfazer indemnização pelos prejuízos resultantes da verificação de determinados riscos nos objetos seguros (edifício e recheio do imóvel sito na Rua X, Vila Nova de Gaia). Estão em causa, nomeadamente, os riscos da cobertura “Tempestades” (ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais”), até ao limite do capital seguro fixado nas “Condições Particulares” (arts. 49.º-1, 128.º e 138.º-1 do Anexo ao Decreto-Lei n.º 72/2008 – LCS) e com dedução das franquias (quando) convencionadas (art. 49.º-3 da LCS), mediante o pagamento, pelo primeiro à segunda, de uma importância (prémio de seguro), na data da celebração do contrato (prémio inicial) e nas datas estabelecidas no contrato (prémio de anuidades subsequentes) – cf. arts. 51.º, n.º 1, 52.º e 53.º da LCS.

Para além de constituir fonte de uma relação jurídica de consumo (art. 2.º-1 da Lei n.º 24/96), o contrato em apreço, particularmente quanto às condições gerais (e especiais), foi concluído através da técnica das cláusulas contratuais gerais, pré-elaboradas pelo predisponente “B”, com vista à sua utilização generalizada numa pluralidade de contratos a celebrar, e aceites pelo aderente “A”, o qual não teve a possibilidade de as negociar, limitando-se a aceitá-las, ou, pelo menos, cujo conteúdo não pôde influenciar. Como tal, encontra-se sujeito ao regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, instituído pelo Decreto-Lei n.º 446/85 – LCCG (art. 1.º), nomeadamente ao sistema de controlo (de inclusão e de conteúdo) aí estabelecido, integrado por normas procedimentais e materiais que determinam quais as cláusulas que se consideram e podem ser incluídas num contrato de adesão e a extensão da sua admissibilidade, o qual funciona como um mecanismo de proteção daquele que se limita a aderir ao programa contratual.

Isto posto, a interpretação da cláusula contratual (geral) prevista no ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais” da apólice n.º 008521475213 obedece ao regime previsto nos arts. 10.º e 11.º da LCCG, no qual se estabelece a observância, para o efeito, da disciplina geral da interpretação do negócio jurídico, consagrada nos arts. 236.º a 238.º do Código Civil, dentro do contexto do contrato singular em que aquela cláusula se inclui (art. 10.º da LCCG). Prevê-se ainda que, tratando-se de uma cláusula ambígua, tem a mesma o sentido que lhe daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-la ou aceitá-la, quando colocado na posição de aderente real, sendo que, na dúvida, deve ser operada a exegese mais favorável ao aderente da cláusula contratual (art. 11.º-1 e 2 da LCCG).

Neste sentido, assinalo, em primeiro lugar, que a norma do n.º 1 do ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais” da apólice fixa, como elemento constitutivo da responsabilidade de “B”, sob alínea a), a prova da ocorrência de «tufões, ciclones, tornados» e/ou de «ventos fortes» – neste último caso, com a prova cumulativa de que «a sua violência destrua ou danifique instalações, objetos ou árvores num raio de 5 km, tendo como centro a localização dos bens seguros»[2] – enquanto causa dos danos sofridos nos objetos seguros. E, em segundo lugar, no que tange em particular aos “ventos fortes”, seguindo de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.01.2019, creio que, devidamente interpretada, a cláusula do contrato de seguro consagra dois casos autónomos de responsabilização de “B”:

– um primeiro caso, sem exigência de prova da velocidade, desde que, em face do acervo probatório disponível, resulte demonstrada a ocorrência de ventos que “por aproximação e/ou intuitiva e subjetivamente” possam ser classificados como fortes (“«grosso modo», são, ou é aceitável que possam ser, desde logo pelo senso comum e experiência da vida, aqueles que sopram a partir dos 50, 60, 70 Km/h”) – “ou, inclusive, se prove com rigor ou objetivamente”, que tais ventos atingiram uma velocidade de até 100 km/h – e, cumulativamente, se evidencie que os mesmos causaram danos na envolvência do objeto seguro, nomeadamente em instalações, objetos ou árvores num raio de 5 km, tendo como centro a localização dos bens seguros, assim se superando a dúvida determinada pela não demonstração da concreta velocidade do vento;

– uma segunda hipótese, aplicável apenas se existirem dúvidas quanto à ocorrência de ventos fortes que tenham provocado danos nas imediações do objeto seguro, valendo, aqui, um “critério/elemento de dissipação” das mesmas: tem o lesado que provar – “e, note-se que não por qualquer meio, mas antes apenas por prova taxada ou tarifada, qual seja, por documento eivado de verdade científica rigorosa, i.e., o emitido pela estação meteorológica mais próxima” – que, no momento do sinistro, os ventos atingiram intensidade excepcional – velocidade superior a 100 km/hora, facto que, se demonstrado por aquele concreto meio de prova e dada a classificação da velocidade (em termos predispostos por “B”) como “excecional”, dispensa a prova da verificação de danos ao redor do objeto seguro.

É, portanto, de rejeitar, à luz das regras interpretativas, mormente os n.ºs 1 e 2 do art. 11.º da LCCG, a adoção de uma compreensão da norma contratual do n.º 1 do ponto 13. (do art. 9.º das “Condições Gerais”) que aponte no sentido de que a responsabilidade de “B” depende, sempre e em todo o caso (e não apenas “em caso de dúvida”, como se extrai do elemento literal da norma), do cumprimento de ónus probatório por “A”, consistente na apresentação de declaração oficial emitida pelos serviços meteorológicos da estação mais próxima, da qual resulte que, no momento do sinistro, os ventos atingiram intensidade excecional (velocidade superior a 100 km/hora). De modo diverso, o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, deduz da redação da aludida cláusula é que o destacado encargo probatório apenas se coloca e envolve situações de dúvida quanto à imputação, em termos de causalidade, do sinistro aos fenómenos climáticos (tufões, ciclones, tornados, ventos fortes)[3], o que não sucede neste caso.

De qualquer modo, à semelhança do que se fez no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.06.2004, também aqui não podemos deixar de salientar que a cláusula predisposta por “B” não satisfaz a exigência imposta pelo n.º 1 do art. 36.º da LCS (“[a] apólice de seguro é redigida de modo compreensível, conciso e rigoroso”) quanto à sua redação, nem apresenta uma estrutura que prime pela inteligibilidade e clareza, sendo certo que, por aplicação das soluções normativas consagradas no art. 11.º da LCCG para os casos de ambiguidade, não pode deixar-se de assumir a exegese acima externada (em sentido mais favorável ao aderente da cláusula contratual). Impunha-se a “B”, a fim de poder sustentar o entendimento declarado na carta enviada a “A”, que elaborasse cláusula com uma redação e estrutura que exprimisse, em termos inequívocos, a imposição da exigência probatória (a impender sobre o segurado) em local apropriado (por exemplo, com a seguinte redação: “tufões, ciclones, tornados e toda a ação direta de ventos fortes com velocidade superior a 100 km/hora (…)”.

Ante o exposto, estando demonstrado que os danos no imóvel segurado se ficaram a dever à ação direta de ventos fortes, acompanhados de precipitação intensa, os quais implicaram vários incidentes na zona do Grande Porto relacionados com as condições atmosféricas adversas, está explicado por que razão ocorreu o sinistro. Por outro lado, considerando que os danos infligidos no teto e nas paredes do quarto do objeto seguro ficaram deteriorados em resultado do risco contemplado na cobertura “Tempestades”, não se encontra preenchida a exclusão prevista sob alínea e) do n.º 3 do ponto 13. do art. 9.º das “Condições Gerais”, pelo que, em suma, é de reconhecer mérito à pretensão de “A”.


[1] Inspirado no caso decidido pela Sentença do Julgado de Paz de Vila Nova de Gaia de 07.03.2016, e no caso decidido pela Sentença do CIAB, de 06.10.2020, proferida no Processo n.º 155/2020, de que fui relator.

[2] Em relação a cláusula de contrato de seguro que tomava idêntica redação, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.01.2019, mediante aplicação da regra interpretativa do n.º 2 do art. 11.º da LCCG, considerou que “nem sequer se deve entender que a exigência cumulativa desta destruição ou dano com a existência de ventos fortes, se reporte aos tufões, ciclones e tornados. Pois que estes fenómenos são de cariz extremo, os quais, só por si, fazem presumir aquela destruição”.

[3] Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.06.2004, no qual se repara, com acerto, que “[u]ma tal exigência de prova, a impor a apresentação de uma declaração oficial emitida pelos serviços meteorológicos da estação mais próxima, não pode resultar de uma mera divergência entre segurados e seguradora acerca da velocidade do vento. Com efeito, o facto de numa determinada estação a medição do vento se situar a um determinado nível não impede que noutro local (v.g., no local do sinistro) determinadas condições físicas determinem que se registem, em determinado momento, ventos de velocidade superior. De outro modo, bastaria que a seguradora rejeitasse o sinistro reclamado, deixando o segurado inteiramente dependente da obtenção de um elemento que, revelando a velocidade medida num ponto oficialmente determinado, não impediria, no entanto, a ocorrência de velocidades superiores noutro local, seja devido às especiais condições orográficas, seja à confluência de factores que tenham potenciado velocidades superiores”.

Contratação de serviços adicionais associados ao fornecimento de energia elétrica ou de gás

Doutrina

Atualmente, os comercializadores de energia elétrica e de gás natural, no desenvolvimento da sua estratégia mercantil, além de promoverem ofertas de prestação dos serviços públicos essenciais (art. 1.º-2-b) e c) da LSPE), também procedem, de forma associada, à comercialização de “serviços adicionais” (art. 2.º-bbbb) do RRCSEG), designadamente serviços de assistência técnica a equipamentos e a instalações domésticas (e.g. “Funciona”, da EDP Comercial; “Assistência Casa”, da Galp Power; “OK Serviços de Assistência”, da Endesa) e serviços de análise e gestão de consumos, através de equipamento com acesso por internet integrado ou aplicação em dispositivo móvel autónomo (e.g. “EDP Re:dy”, da EDP Comercial; “app Casa Galp”, da Galp Power; “app Iberdrola Clientes Portugal”, da Iberdrola).

Como vem sendo experienciado por muitos consumidores, quer na fase pré-contratual (i.e., no momento da sua formação), quer na fase contratual (i.e., aquando da sua execução) nota-se uma incontornável conexão entre os contratos que têm por objeto aqueles “serviços adicionais” e o(s) contrato(s) de fornecimento de eletricidade e/ou gás natural. Desde logo, e em todos os casos, porque a celebração dos primeiros pressupõe logicamente a existência do(s) segundo(s). Depois, porque, nalguns casos, a oferta da possibilidade de celebração simultânea dos contratos com a mesma contraparte, não constituindo fundamento suficiente para determinar a diferenciação de propostas de fornecimento (art. 16.º-2 a 4 do RRCSEG), possibilita o acesso a condições mais favoráveis, em termos de preço e, até, de prazo (mais curto) de disponibilização do “serviço adicional”. Ademais, quando aplicável, a interpelação para pagamento de prestação (mensal) devida pela disponibilização do “serviço adicional” é integrada na fatura emitida pelo comercializador (também, em regra, com periodicidade mensal – arts. 9.º-2 da LSPE e 45.º-1 do RRCSEG) para discriminação dos serviços de fornecimento de energia elétrica e/ou de gás prestados na instalação do utente.

Assim sendo, ainda que os contratos de prestação de “serviços adicionais” não se confundam juridicamente com o(s) contrato(s) de fornecimento de eletricidade e/ou gás natural, afigura-se necessário acautelar o risco de o consumidor, no momento da conclusão dos contratos, não percecionar, com clareza, a existência de contratos autónomos, as condições que regem cada um dos contratos e as eventuais implicações de vicissitudes sofridas por uma das relações jurídicas no outro vínculo negocial.

Para tanto, e conferindo obrigatoriedade às boas práticas a adotar no âmbito dos mercados, dirigidas aos comercializadores de energia por via da Recomendação da ERSE n.º 1/2017, o art. 17.º do RRCSEG dispõe, sob o n.º 1, que “[o] comercializador em regime de mercado deve informar, de forma completa, clara, adequada, acessível e transparente, os seus clientes quanto à subscrição de serviços adicionais”. Trata-se da consagração de um particularmente exigente dever de informação (constitucionalmente consagrado no art.º 60.º-1 da CRP e previsto, em termos gerais, no plano do direito ordinário, no art. 8.º-1 da LDC e nos arts. 5.º e 6.º do RJCCG, estes últimos aplicáveis pelo facto de a subscrição dos “serviços adicionais” se operar através da aposição da assinatura em contrato de adesão formado com recurso à predisposição de cláusulas contratuais gerais), que reclama uma identificação inequívoca dos “serviços adicionais” e respetivos preços.

Tanto assim que, logo no n.º 2 do mesmo art. 17.º do RRCSEG, se prescreve que “[o] comercializador deve igualmente explicitar que os serviços adicionais são independentes e não interferem com a prestação do serviço público essencial[1], salvo na situação em que haja eventual concessão de descontos pela subscrição desses serviços” – os quais devem ser claramente identificados e quantificados na ficha contratual padronizada, prevista no n.º 6 do art. 16.º do RRCSEG, a entregar ao utente consumidor – e, no mesmo sentido, o n.º 3 do art. 47.º do RRCSEG postula que “(…) os preços praticados relativos a produtos e serviços (…) adicionais [devem] ser autonomamente apresentados aos clientes, tendo por base o contrato celebrado que não seja o contrato de fornecimento”.

Sem prejuízo, cumpre notar que o referido dever de informação não impende sobre o comercializador somente na fase pré-contratual. Na verdade, atendendo ao facto, já acima exaltado, de a ligação entre os contratos que têm por objeto os “serviços adicionais” e o(s) contrato(s) de fornecimento de energia elétrica e/ou gás natural se fazer sentir, de igual modo, na fase do cumprimento destes vínculos negociais, a observância daquele dever de informação também se exige e impõe, nomeadamente, no momento da renovação contratual da prestação de “serviços adicionais”, geralmente sujeita a período mínimo de vigência do contrato (período de fidelização).

Neste caso, de acordo com a Recomendação n.º 1/2017 e à semelhança do que se dispõe no n.º 5 do art. 19.º do RRCSEG para o contrato de fornecimento de energia elétrica ou de gás, a renovação do período de fidelização deve ser objeto de aviso prévio, separado da fatura de energia, remetido com uma antecedência mínima razoável (diria, 30 dias, por analogia com a solução prevista no n.º 3 do art. 69.º do RRCSEG para a alteração unilateral do contrato pelo comercializador) ao consumidor, a fim de este, querendo, exercer o direito de oposição à renovação.

Também no âmbito da execução dos contratos conexos a que vimos fazendo referência, ao abrigo da previsão do art. 6.º da LSPE (que remete para o n.º 4 do art. 5.º do mesmo diploma legal), se o consumidor, por algum motivo, não proceder ao pagamento de valor correspondente a “serviço adicional”, sem, todavia, deixar de efetuar a contraprestação devida pelo fornecimento de eletricidade e/ou gás, tem o mesmo direito à quitação da divida relativa ao(s) serviço(s) público(s) essencial(ais)[2]. Ainda que incluído na mesma fatura (por intermédio da qual é reclamado o pagamento de um preço unitário) e associado ao fornecimento de energia elétrica e/ou de gás, o “serviço adicional” é funcionalmente dissociável do(s) serviço(s) de interesse económico geral, porque a cessação da prestação de um dos serviços não implica necessariamente a cessação da prestação do(s) restante(s)[3].

Por outro lado, se se verificar a migração do(s) contrato(s) de fornecimento de energia de um comercializador cessante para um novo comercializador com o qual o consumidor celebrou ou pretende celebrar um novo contrato de fornecimento de energia elétrica e/ou de gás (processo de mudança de comercializador, regulado, entre outros, nos arts. 235.º a 238.º do RRCSEG e no Anexo I à Diretiva n.º 15/2018 da ERSE), conforme assinala a Recomendação n.º 1/2017, importa, igualmente, assegurar a tutela do cliente (por forma a que este não sofra quaisquer entraves, ainda que indiretos, à mudança de comercializador), em face de um de dois cenários possíveis: a) caso o programa contratual do “serviço adicional” a que o utente consumidor aderiu preveja que a mudança de comercializador determina a cessação daquele serviço associado (ao fornecimento de energia pelo comercializador cessante), tal mudança não deve implicar qualquer penalização ou pagamento posterior correspondente a serviços que não tenham sido efetivamente prestados; b) na hipótese de o mesmo clausulado contratual não estipular, para a situação de ocorrência de migração de contrato(s), a cessação automática do “serviço adicional” (v.g., deixando tal extinção do contrato sob dependência de uma opção do cliente), a mudança não pode implicar um agravamento do preço, das condições ou dos prazos de pagamento do serviço que se mantenha vigente.

Uma derradeira consideração para manifestar discordância com a 7.ª e última recomendação constante da Recomendação n.º 1/2017. Sustenta o Conselho de Administração da ERSE que «[q]uando, nos termos da lei, seja invocada a prescrição ou caducidade do direito ao recebimento do preço dos serviços públicos essenciais, deve entender-se que tal invocação abrange os serviços (…) “adicionais” ligados e faturados conjuntamente». Ora, a prescrição extintiva de curta duração prevista no art.10.º-1 e 2 da LSPE aplica-se ao direito ao recebimento do preço relativo ao(s) serviço(s) público(s) essencial(ais), entendido em sentido estrito, e, no limite, aos demais créditos relativos ao(s) contrato(s) de fornecimento daqueles serviços que mantenham uma relação de acessoriedade com o crédito (principal) do preço (v.g. crédito de juros e, eventualmente, indemnização por incumprimento de obrigação de permanência/cláusula de fidelização[4]). O facto de os créditos respeitantes a “serviços adicionais” serem faturados conjuntamente com os relativos aos serviços essenciais a que estão associados, não constitui fundamento ponderoso para apoiar uma extensão do âmbito da aplicação das soluções normativas consagradas no art.10.º-1 e 2 da LSPE nos termos sugeridos pela recomendação.


[1] Uma previsão que também foi refletida, sob ponto 1.5., na Recomendação da ERSE n.º 1/2019, entre um elenco de recomendações dirigidas aos comercializadores de eletricidade para reformulação de cláusulas dos contratos de adesão propostos aos utentes consumidores.

[2] Neste sentido, Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito de Consumo, Coimbra, Almedina, 7.ª edição, 2020, p. 392, e Pedro Falcão, O Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica, Petrony Editora, 2019, pp. 84-85.

[3] Flávia da Costa de Sá, Contratos de Prestação de Serviços de Comunicações Eletrónicas: A Suspensão do Serviço em Especial, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2014, p. 62.

[4] Como defendido, recentemente, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.04.2021.

As taxas de juro bancárias estão liberalizadas?

Doutrina

De acordo com o entendimento jurisprudencial dominante[1], as taxas de juro bancárias, seja em relação aos juros remuneratórios, seja no que tange aos juros de mora, podem ser livremente estabelecidas pelas instituições de crédito e sociedades financeiras, pelo que não se encontram sujeitas aos limites ditados pelos arts. 559.º-A e 1146.º do Código Civil, aplicáveis ex vi art. 102.º, § 2 do Código Comercial.

Sustenta esta corrente que, por força do n.º 2 do Aviso n.º 3/93, do Banco de Portugal (Aviso n.º 3/93), foram praticamente liberalizadas as taxas de juro no domínio das operações e contratos bancários, representando aquelas, assim, no que respeita à sua formação nominal, o resultado da livre concorrência no mercado financeiro, salvo nos casos em que sejam fixadas por lei que regule, em especial, o crédito bancário, de que é exemplo paradigmático o art. 28.º do Decreto-Lei n.º 133/2009.

Ora, se a quase unanimidade da nossa jurisprudência afirma a inaplicabilidade do disposto pelos arts. 559.º-A e 1146.º do Código Civil nos casos em que o concedente do crédito é uma entidade sob a supervisão do Banco de Portugal (com esta exceção), já na doutrina vozes se insurgem contra tal posição. Não é o caso de Jorge Morais Carvalho, que, no seu Manual de Direito de Consumo (p. 422), também apresenta outras referências doutrinais (Carlos Ferreira de Almeida e Maria Cristina Portugal) que defendem a liberalização dos juros bancários.

Carlos Gabriel da Silva Loureiro terá sido o primeiro autor a pugnar pela sujeição dos juros estipulados por instituições bancárias ao regime da usura da lei civil comum, observando que a norma do n.º 2 do Aviso n.º 3/93, enquanto manifestação do poder regulamentar da autoridade reguladora do sistema bancário, foi emitido depois da revogação da norma habilitante, que constava do art. 28.º-1-b) da Lei Orgânica do Banco de Portugal de 1975[2] (revogada, esta, pela LOBP 90). À luz do princípio da legalidade​, nas vertentes de precedência e prevalência da lei (arts. 112.º-7 e 266.º-2 da CRP), pode, “por isso, questionar-se (…) a virtualidade de uma disposição com a referida natureza poder derrogar normas legais de natureza claramente imperativa”, como são os arts. 102.º do Código Comercial e 1146.º do Código Civil[3].

No mesmo sentido, também se pronuncia Manuel Januário da Costa Gomes, que revela sérias dúvidas quanto à idoneidade das “vagas e difusas” normas dos arts. 18.º, 22.º e 23.º-f), da LOBP 90 para conferirem a necessária habilitação à previsão daquela disciplina em matéria de juros. E ainda que se admita a existência de lei prévia, com um grau de pormenorização suficiente, que habilite o Banco de Portugal a emanar aquele Aviso n.º 3/93, acrescenta o mesmo autor que importa «(…) demonstrar – ponto este que exige urna valoração que extravasa o campo estritamente jurídico, entrando no financeiro e até na macroeconomia – que essa “intervenção” é necessária», nos termos do art. 16-1-a) da LOBP 98 (atualmente em vigor), para “garantir os objetivos da política monetária e cambial”.

Por sua vez, Pedro Pais de Vasconcelos enfatiza que a ressalva final da norma do n.º 2 do Aviso n.º 3/93 (“salvo nos casos em que sejam fixadas por diploma legal”) “é muito significativa e não tem merecido a devida atenção”. Assinalando a insuficiência dos Avisos do Banco de Portugal para, por si só, concretizarem a derrogação dos limites de taxas de juro estatuídos no Código Civil e no Código Comercial e aditando que, mesmo fundados em lei prévia habilitante, tais Avisos “não dispensariam, sem mais, as taxas TAEG do regime do art. 1146.º do Código Civil” (i.e., os limites gerais e não apenas os limites especiais), este autor nota que “[d]a comparação dos três regimes legais, da LOBP 75, da LOBP 90 e da LOBP 98, resulta com clareza a perda pelo Banco de Portugal da competência para fixar os limites de taxas de juro das operações ativas bancárias. Logo na LOBP 90 deixou de haver qualquer preceito que atribuísse ao Banco Central essa competência, e assim se manteve na LOBP 98. E, no entanto, os Avisos emitidos pelo Banco de Portugal em que regeu sobre taxas de juro TAEG continuam a referir como normas habilitantes o art. 17.º da LOBP 98, além do art. 28.º do Decreto-Lei n.º 133/09, de 2 de junho (que rege atualmente o crédito ao consumo)”.

A propósito do regime especial sobre a usura no crédito ao consumo que, em termos inovadores, foi consagrado no art. 28.º do DL 133/2009, alerta, de resto, o mesmo autor que este preceito, “se interpretado como único limite de taxas de juro e de usura, permite que as taxas de juro cresçam exponencialmente [um acréscimo, em cada trimestre, de 25% da taxa média do trimestre anterior para aquele específico tipo de operação, ou de 50% da taxa média da globalidade do contrato de crédito ao consumo celebrado no trimestre anterior] sem limite” temporal. Donde, considerando que “a ratio juris imanente ao regime jurídico do crédito ao consumo é de ordem pública de proteção do consumidor, não é de proteção do seu financiador”, na perspetiva do autor, não é defensável (…) o abandono dos consumidores a taxas de juro como aquelas que são permitidas pela sua limitação apenas ao regime do art. 28º do DL 133/09 com dispensa [da aplicação] dos limites dos arts. 559.º e 559.º-A do Código Civil e do art. 102.º do Código Comercial” a “(…) taxas das operações bancárias (…) objetivamente mercantis, porque assim o são as operações de banco, segundo o art. 362.º do Código Comercial” – em sentido objetivo (v., também, art. 2.º-1.ª parte do Código Comercial) – e de acordo com os arts. 2.º-2.ª parte e 13.º do Código Comercial – em sentido subjetivo.

Por último e em idêntico sentido da aplicação dos limites legais do Código Civil e do Código Comercial às taxas de juro bancárias, Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, em artigo publicado na Revista de Direito Comercial e em recente webinar organizado pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto, realça a elasticidade da redação do art. 559.º-A do Código Civil (aditado pelo Decreto-Lei n.º 262/83) quanto ao âmbito de aplicação do disposto no art. 1146.º do Código Civil – “[é] aplicável o disposto no artigo 1146.º a toda a estipulação de juros ou quaisquer outras vantagens em negócios ou atos de concessão, outorga, renovação, desconto ou prorrogação do prazo de pagamento de um crédito e em outros análogos” –, extensível a todas as obrigações que se traduzam em formas de remuneração de capital mutuado. Por conseguinte, advoga, nenhum sentido faria estabelecer um “duplo regime” em que “a lei criava quase sem brechas (ver o art. 559.º-A) um regime protetor do creditado, e afastava-o depois na esmagadora maioria dos casos em que é concedido crédito, através dos seus concedentes profissionais (…)”, que “(…) têm uma capacidade muitíssimo maior do que os que não (…) para o obter [o crédito] mais barato, e para avaliarem melhor o risco – e a consistência das garantias, se elas forem exigidas.”

Socorrendo-se ao argumento histórico da hermenêutica jurídica, exalta o último autor referido que o regime do Código Civil deriva daqueloutro (de fixação das taxas de juro dos empréstimos feitos por particulares) consagrado no Decreto 21730, de 14 de outubro de 1932, mas com uma destrinça não despicienda: “enquanto no regime anterior se excecionavam os juros bancários [art. 10.º], o Código Civil não consagrou exceção alguma, sendo assim evidente a intenção [de] os submeter ao regime geral.”

Projetando a sua posição no regime do art. 28.º do DL 133/2009, Pestana de Vasconcelos, depois de acentuar que a norma que determina a redução automática da TAEG, prevista do art. 28.º, n.º 6, daquele diploma legal, “(…) não constitui uma regra excecional relativamente ao art. 1146.º, permitindo a fixação de taxas de juro superiores” e que os comandos normativos ora em confronto visam “(…) regular figuras diferentes, calculadas de forma diversa: num caso uma taxa de juro, noutra uma forma de expor percentualmente o conjunto de custos associados ao crédito, no qual se inclui, também, a taxa de juro”, assevera que a aplicação do art. 1146.º do Código Civil importa, então, “a realização de três operações diversas:

(i) Em primeiro lugar, verificar se a taxa de juro nominal está dentro dos limites do art. 1146.º, e, quando não esteja, proceder à redução aos máximos legais (art. 1146.º, n.º 4). Desde logo, por força da aplicação deste limite, o valor em excesso que tenha sido pago terá que ser restituído, uma vez que se trata de um caso de nulidade parcial (art. 289.º, n.º 1).

(ii) De seguida, integrar na fórmula de cálculo da TAEG a taxa de juro nominal apurada, traduzi-la no montante de juros, e fixar o seu valor.

(iii) Por fim, aplicar os limites definidos para a TAEG (e já não para a taxa nominal, sublinhe-se novamente) ao valor apurado. Ultrapassados esses máximos, que assentam (…) nas taxas médias para a generalidade, ou determinados, contratos de crédito ao consumo, poderá proceder-se à redução”.

Pela nossa parte, embora entendamos que a inexistência de previsão legislativa, mormente no Decreto-Lei n.º 58/2013 (diploma fundamental na regulação dos juros bancários), que determine expressamente a inaplicabilidade dos limites de taxas de juro estatuídos nos arts. 559.º-A e 1146.º do Código Civil e 102.º do Código Comercial às operações bancárias ativas abona a favor da corrente doutrinal aqui desenvolvida, a fim de se dissiparem as divergências persistentes, seria aconselhável uma intervenção legislativa que viesse consagrar expressis verbis uma das soluções em confronto.


[1] V., neste sentido, só desde 2010, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.02.2010, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.06.2012, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.03.2014, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.05.2017, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.11.2017, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.04.2018, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.05.2020.

[2] O art. 28.º-1-b) da LOBP 75 rezava nos seguintes termos: “Com vista à orientação e contrôle das instituições de crédito, compete ao Banco [de Portugal], nomeadamente: (…) b) Fixar o regime das taxas de juro, comissões e quaisquer outras formas de remuneração para as operações efetuadas pelas instituições de crédito ou por quaisquer outras entidades que atuem nos mercados monetário e financeiro (…)”.  

[3] Na LOBP 90, o preceito correspondente ao art. 28.º-1-b) da LOBP 75 encontrava-se plasmado no art. 22.º-1-a) e já não permitia a fixação administrativa das taxas de juro: “Para orientar e fiscalizar os mercados monetário, financeiro e cambial, cabe ao Banco [de Portugal]: a) Regular o funcionamento desses mercados, adotando providências genéricas ou intervindo, sempre que necessário, para garantir o cumprimento dos objetivos da política económica, em particular no que se refere ao comportamento das taxas de juro e de câmbio (…)”.

Fornecimento de água e rotura em rede predial

Doutrina

Infelizmente, alguns de nós já tivemos de lidar com uma situação de rotura na rede predial de imóvel que, nos termos de contrato, é abastecido de água através da rede pública. Nessas circunstâncias, além dos encargos com a verificação e reparação da rotura, tememos a repercussão em faturação do volume de água perdida. Do ponto de vista jurídico, como deve a rotura no sistema de distribuição predial ser refletida em termos de faturação?

Com efeito, em primeiro lugar, importa ter presente que, na situação exposta, utilizador e entidade gestora se acham ligados por contrato para prestação do serviço de fornecimento de água, um contrato misto, com elementos de compra e venda e de prestação de serviços, de execução duradoura, nos termos do qual a segunda se obriga ao fornecimento permanente de água canalizada potável (prestação de execução continuada), encontrando-se o utente adstrito a contraprestações, de execução periódica, consistentes, nomeadamente, no pagamento de uma “tarifa de disponibilidade”, devida em função do intervalo temporal objeto de faturação, e de uma “tarifa variável”, proporcional à quantidade de água por si efetivamente consumida – art. 81.º do Regulamento n.º 594/2018, da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR).

Na vigência do contrato, assiste ao utente o direito à medição dos respetivos níveis de utilização do serviço de abastecimento de água, a ser assegurado pela colocação de instrumento de medição (contador) adequado às características do local e ao perfil de consumo do utilizador (arts. 66.º-1 e 2 do DL 194/2009 e 84.º-1 e 4 do Regulamento n.º 594/2018).

De acordo com o art. 69.º-1 do DL 194/2009 (assim como o art. 41.º-1 e 2 do Regulamento n.º 594/2018), “[t]odos os edifícios, existentes ou a construir, com acesso ao serviço de abastecimento público de água ou de saneamento de águas residuais devem dispor de sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais devidamente licenciados, de acordo com as normas de conceção e dimensionamento em vigor, e estar ligados aos respetivos sistemas públicos”, sendo o abastecimento predial de água (em boas condições de caudal e pressão), desde a rede pública até ao limite da propriedade a servir, assegurado por ramal de ligação, cuja instalação (assim como a respetiva conservação, renovação e substituição) é da responsabilidade da entidade gestora (arts. 32.º-1, 282.º, 284.º e 285.º do Decreto Regulamentar n.º 23/95, 69.º-9 do DL 194/2009 e 43.º-2 do Regulamento n.º 594/2018).

O art. 59.º-2 do DL 194/2009 (como também o art. 37.º-2 do Regulamento n.º 594/2018) dispõe que o serviço de abastecimento público de água através de redes fixas se considera disponível – e, portanto, o utente tem direito à prestação do serviço público essencial (art. 1.º-2-a) da LSPE) – desde que o sistema infraestrutural da entidade gestora do serviço esteja localizado a uma distância igual ou inferior a 20 metros do limite da propriedade, caso em que os proprietários dos prédios existentes ou a construir (qualquer que seja a sua utilização) são obrigados a instalar, por sua conta, a rede de distribuição predial (arts. 69.º-4 do DL 194/2009 e 41.º-1-a) e 44.º-3 do Regulamento n.º 594/2018) e a solicitar a ligação ao sistema público de abastecimento de água (arts. 69.º-1 do DL 194/2009 e 41.º-1-b) do Regulamento n.º 594/2018).

A conservação em boas condições de funcionamento e salubridade do sistema de distribuição predial também é da responsabilidade do proprietário, uma incumbência que abarca a deteção e a reparação de roturas ou de anomalias nos dispositivos de utilização (arts. 69.º-4 do DL 194/2009 e 44.º-3 e 4 do Regulamento n.º 594/2018). No entanto, de forma a garantir a integridade dos sistemas prediais de distribuição de água, a entidade gestora deve tomar as medidas necessárias para evitar a deterioração anormal ou mesmo a produção de danos naqueles sistemas, resultantes de pressão excessiva ou variação brusca de pressão na rede pública de distribuição de água (ou de alteração das características físico-químicas da água suscetíveis de causar incrustações nas redes), assegurando, para tanto, a manutenção da pressão de serviço dentro dos intervalos indicados no art. 21.º do Decreto Regulamentar n.º 23/95 (arts. 71.º-1-a) do DL n.º 194/2009 e 35.º-2-c) e 47.º do Regulamento n.º 594/2018).

Um dos motivos para a realização de “acertos de faturação”, além da produção de faturação baseada em estimativa de consumo nos períodos em que não haja leitura do contador, assenta na situação de comprovada rotura na rede predial (art. 99.º-1-e) do Regulamento n.º 594/2018).

Citando a Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 6.7.2014, proferida no Processo n.º 7/2014, Relator: Paulo Duarte, a partir do ensinamento de M.J. Almeida Costa, o fornecimento de água pela entidade gestora do serviço origina uma obrigação genérica, que se concentra no momento da «passagem da água da rede pública para o sistema predial, através do contador, coincidindo com o acionamento dos dispositivos de utilização pelo utente. Nesse momento, nos termos do art. 408.º-2 do Código Civil, transfere-se para o utente a propriedade sobre a quantidade de água especificada (estando aquele obrigado ao pagamento do preço correspetivo). Tendo em conta o art. 796.º-1 do Código Civil, porque a transferência do risco acompanha, em regra, a transmissão da propriedade, o risco de perda (ou perecimento) da água já medida e entregue, por causa não imputável ao utente nem ao prestador do serviço, corre por conta do utente. Em suma, independentemente de ter consumido ou não a água, o utente tem de pagar o respetivo preço.

Assim, nos casos em que o utente usa, ao longo do período de faturação, os dispositivos que provocam o consumo de água, e parte dessa água, por motivo de rotura, acaba por perder-se no circuito da sua rede predial, é o mesmo responsável pelo pagamento de toda a água que lhe tenha sido entregue, mesmo a que não tenha consumido[1]. Sem embargo, em caso de comprovada rotura na rede predial, há lugar à correção da faturação emitida, operando-se o acerto de faturação nos seguintes termos: a) Ao consumo médio apurado nos termos do art. 93.º do Regulamento n.º 594/2018[2] aplicam-se as tarifas dos respetivos escalões tarifários e ao volume remanescente, que se presume imputável à rotura, a tarifa do escalão que permite a recuperação de custos nos termos do Regulamento Tarifário aprovado pela ERSAR[3]; b) O volume de água perdida e não recolhida pelo sistema público de drenagem de águas residuais não é considerado para efeitos de faturação dos serviços de saneamento e de gestão de resíduos urbanos, quando indexados ao consumo de água (art. 99.º-6 do Regulamento n.º 594/2018).


[1] Pedro Falcão, O problema jurídico das fugas de água, in “Novos Estudos sobre Serviços Públicos Essenciais”, Petrony Editora, 2018, p. 97; Cátia Sofia Ramos Mendes, O contrato de prestação de serviços de fornecimento de água, Dissertação submetida com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2015, p. 51.

[2] Apurado, em princípio, entre as duas últimas leituras reais efetuadas pela entidade gestora, dividindo os m3 consumidos entre as duas últimas leituras pelo número de dias decorridos entre as mesmas, multiplicando o consumo diário assim obtido pelos dias que pretende faturar por estimativa (art. 67.º-6-a) do DL 194/2009, art. 93.º-1-a) e 2 do Regulamento n.º 594/2018). Ou em função do consumo médio do período homólogo do ano anterior quando o histórico de consumos revele a existência de sazonalidade ou, ainda, em função do consumo médio de utilizadores com características similares no âmbito do território municipal verificado no ano anterior, na ausência de qualquer leitura subsequente à instalação do contador (art. 67.º-6-b) do DL 194/2009 e art. 93.º-1-b) e c) do Regulamento n.º 594/2018).

[3] Sendo que, até à presente data, a ERSAR ainda não fez aprovar o Regulamento Tarifário dos Serviços de Águas (RTA), no uso da competência prevista nos arts. 11.º, alínea a) e 13.º do Anexo à Lei n.º 10/2014, de 6 de março. Neste caso, a definição da tarifa do escalão que permite a recuperação de custos resultará do regulamento tarifário de cada município ou sistema multimunicipal, adotado nos termos do respetivo procedimento aplicável previsto nos artigos 24.º a 28.º do Regulamento dos Procedimentos Regulatórios da ERSAR.

Período de fidelização e alteração da morada, desemprego ou emigração nos serviços de comunicações eletrónicas

Doutrina

Uma das questões que vem sendo dirimida com mais frequência nos centros de arbitragem de conflitos de consumo prende-se com a existência (ou não) do direito de o consumidor fazer cessar unilateralmente um contrato de prestação de serviços de comunicações eletrónicas, no decurso do período de fidelização convencionado com o profissional, fundamentando a desvinculação numa alteração das circunstâncias em que as partes basearam a decisão de contratar.

Os casos de alegada modificação da “base do negócio objetiva” reportam-se, essencialmente, a situações de alteração do local de residência do consumidor, existindo, contudo, registo de diferendos entre assinante e prestador de serviços de comunicações eletrónicas determinados por declaração de resolução do contrato (emitida pelo primeiro e com a qual o segundo não se conformou) fundada em situação de emigração ou de desemprego (ou quebra acentuada de rendimentos) do consumidor titular do contrato (ou do seu agregado familiar).

Nestes casos, revela-se pacífico que a possibilidade de o profissional prestar o serviço em determinada morada de instalação e o consumidor nele poder recebê-lo constitui uma condição determinante para a decisão de contratar das partes. E não raras vezes se verifica que a proposta apresentada pelo operador para modificação do contrato não se afigura a mais equilibrada no que tange aos interesses do assinante, sobretudo por força da diminuição qualitativa, de modo sensível, dos serviços a prestar pelo primeiro. Acresce que, nas situações de alteração do local de residência do consumidor, o facto de este, por um lado, continuar a pagar as prestações devidas por um serviço de que não vai usufruir (por continuar a ser fornecido na sua morada antiga) e, por outro lado, contratar serviços de comunicações eletrónicas para a sua nova residência (por nisso ter interesse e se tratar de um serviço público essencial – art. 1.º-2-d) da LSPE) determina uma situação de desequilíbrio entre o prejuízo causado na esfera jurídico-patrimonial do assinante e o lucro auferido pelo prestador, à custa daquele prejuízo[1].

Noutra perspetiva, a morada de prestação do serviço constitui um elemento essencial do contrato e, nessa medida, o profissional apenas se encontra adstrito a assegurar o cumprimento da sua obrigação principal com as características acordadas no concreto local estipulado no negócio celebrado com o consumidor, não podendo ser forçado a aceitar a alteração do contrato quanto à instalação de consumo[2], sobretudo quando o obstáculo que se colocou ao normal desenvolvimento do quadro contratual previsto surgiu por vontade do utente (e não por facto exterior à vontade das partes), não se revelando imprevisto e anómalo.

Não ignorando a assinalável litigiosidade em torno desta matéria, a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM), no seu Anteprojeto de diploma de transposição do Código Europeu das Comunicações Eletrónicas[3], gizou, nos arts. 132.º (Alteração da morada de instalação) e 133.º (Situação de desemprego ou emigração do titular do contrato), duas soluções normativas inovadoras, especificamente pensadas para as situações acima identificadas.

Assim, nos termos do art. 132.º do Anteprojeto, “[e]m caso de alteração do local de residência do consumidor, a empresa que oferece serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público (…) não lhe pode exigir o pagamento de quaisquer encargos relacionados com o incumprimento do período de fidelização, caso não possa assegurar a prestação do serviço contratado ou de serviço equivalente, nomeadamente em termos de características e de preço, na nova morada (n.º 1), sendo que, para tais efeitos, “o consumidor comunica à empresa que oferece os serviços a alteração da respetiva morada com uma antecedência mínima de um mês, apresentando documentação que a comprove” (n.º 2), fixada pela ANACOM (n.º 3), isto sem prejuízo do “direito de a empresa cobrar os serviços prestados durante o período de pré-aviso” (n.º 4).

Já de acordo com o art. 133.º do Anteprojeto, “[e]m situações de emigração ou de desemprego do consumidor titular do contrato devidamente comprovadas, a empresa que oferece serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público (…) não lhe pode exigir o pagamento de quaisquer encargos relacionados com o incumprimento do período de fidelização (n.º 1), podendo a ANACOM “determinar quais os elementos comprovativos que podem ser exigidos pelas empresas que oferecem serviços aos consumidores” (n.º 2). Esta solução normativa apresenta semelhanças com o disposto no art. 361.º-3-a) da Lei n.º 75-B/2020 (aqui já referido no blog), podendo representar uma sobrevigência de uma medida excecional e temporária para além do atual contexto de emergência de saúde pública provocado pela pandemia da doença COVID-19.

Ora, com base no anteprojeto preparado pela ANACOM (e noutros contributos recolhidos), em 9.4.2021, o Governo apresentou à Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 83/XIV/2.ª (PL), a qual, no que respeita à matéria de que aqui trato, acolheu, no essencial, a disciplina desenhada pela ANACOM para as situações de alteração do local de residência do consumidor (art. 132.º da PL). Porém, eliminou o art. 133.º constante do Anteprojeto, quedando-se por uma regra que pouco ou nada acrescenta (em face da prática dos tribunais): “[o] disposto nos artigos 131.º e 132.º não prejudica a aplicação dos regimes de resolução e de modificação do contrato por alteração das circunstâncias previstos no Código Civil” (art. 133.º da PL).

Acompanhando a apreciação efetuada pela Direção-Geral do Consumidor (DGC) em parecer sobre a PL, independentemente da bondade da solução, certo é que o art. 132.º da PL “vem sanar, de forma inequívoca, a questão, eliminando o espaço de discricionariedade existente, até ao momento, com eventuais ganhos em termos de segurança jurídica”, deixando de ser “os operadores a definir, numa primeira instância, se a mudança de residência constitui ou não uma alteração anormal das circunstâncias”. Sem embargo, diversamente do que se verificava no Anteprojeto, o PL surge desprovido de uma “norma estabelecendo o poder de a ARN determinar quais os elementos comprovativos que podem ser exigidos pelas empresas para efeitos de prova da alteração de morada”, o que, de acordo com a mesma lógica de preclusão da margem de discricionariedade, é merecedor de crítica. Acresce que, como nota a DGC, afigura-se «necessária a clarificação do que se entende por “serviço equivalente”», devendo ficar expresso em letra de lei que “serviço equivalente” é todo aquele que não importa “qualquer downgrade da tecnologia do serviço contratado, uma vez que, em qualquer tecnologia, este downgrade acarreta uma perda significativa da qualidade do serviço contratado”.

Já a supressão do art. 133.º do Anteprojeto deveria ser repensada, atenta a necessidade de intervenção legislativa para pacificação dos conflitos existentes entre assinantes e prestadores de serviços em casos de emigração ou de desemprego (ou quebra acentuada de rendimentos) do consumidor titular do contrato (ou do seu agregado familiar), ainda que, como reconhece a ANACOM com a sua nova proposta de redação para o artigo vertida em parecer sobre a PL (p. 207), a previsão normativa possa (e deva) ser mais “equilibrada, do ponto de vista da proteção dos legítimos interesses das empresas” e no quadro de uma disciplina jurídica dos contratos que encontra no princípio pacta sunt servanda (os contratos devem ser pontualmente cumpridos – art. 406.º do Código Civil) um dos seus princípios fundamentais.


[1] Dália Shashati, Períodos de Fidelização, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito na especialidade de Ciências Jurídicas Empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2015, pp. 81-93.

[2] Flávia da Costa de Sá, Contratos de Prestação de Serviços de Comunicações Eletrónicas: A Suspensão do Serviço em Especial, Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa, 2014, p. 45.

[3] O Código Europeu das Comunicações Eletrónicas foi estabelecido pela Diretiva (UE) 2018/1972, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, tendo o Anteprojeto de diploma de transposição sido aprovado por Decisão de 31.07.2020, para envio à Assembleia da República e ao Secretário de Estado Adjunto e das Comunicações.

Procedimento fraudulento e titularidade do direito ao valor da energia não faturada

Jurisprudência

Em post anterior, dedicado à exposição do enquadramento normativo que rege a verificação da prática de procedimento fraudulento e a “determinação do valor do consumo irregularmente feito”, tive oportunidade de defender que a referência ao “distribuidor” enquanto titular do crédito à diferença entre o valor da eletricidade paga e o valor da eletricidade efetivamente consumida (art. 3.º-1,-b) e 2 do DL 328/90) teria de ser objeto de uma interpretação atualista, devendo tal referência entender-se como reportada ao “comercializador”.

Volto ao tema com uma análise mais aprofundada, seguindo de perto a Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 20.09.2017, Processo n.º 1735/2017, Relator: Paulo Duarte.

Ao tempo da entrada em vigor do DL 328/90, «a comercialização estava associada à distribuição de energia elétrica, em correspondência com a realidade infraestrutural da ligação da rede de distribuição (sobretudo da rede em baixa tensão) aos locais de consumo. A situação alterou-se com a privatização e liberalização do mercado da eletricidade, que obrigou à introdução de regras que (…) impõem (…) a separação (…) entre certas atividades e certos operadores, em termos de “proibição de acumulação de missões a desempenhar pelo mesmo sujeito económico”».

Mais desenvolvidamente, com a adoção do DL 29/2006, «instituiu-se um regime de estrita “separação jurídica e patrimonial” (full ownwership unbundling) entre a atividade de transporte de eletricidade e as atividades de produção e de comercialização, impedindo a sua concentração vertical sob o domínio de um mesmo sujeito operador» (art. 25.º-1), sendo que, «[n]o que diz respeito à atividade de distribuição de energia elétrica, o legislador, ainda assim, não é tão severo, ficando-se pela exigência da sua “separação jurídica” (legal unbundling)» – arts. 36.º-1 e 43.º do DL 29/2006 (no mesmo sentido, os arts. 338.º-1, 339.º-1 e 2, 343.º-5, 350.º-1 e 2 e 370.º-1 do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC)).

Por conseguinte, e ainda de acordo com a mesma decisão arbitral, «segundo a atual arquitetura normativa do SEN [Sistema Elétrico Nacional], o distribuidor de eletricidade não pode vendê-la – atividade que apenas é permitida (mais: que lhes está reservada) aos produtores e aos comercializadores». Daí que o art. 22.º do Regulamento Tarifário (RT) Setor Elétrico (para o qual remete o art. 343.º-6 do RRC) restrinja os “proveitos permitidos” da atividade de distribuição de energia elétrica aos que “são obtidos através da tarifa de uso das redes de distribuição, excluindo qualquer remuneração pela comercialização de energia elétrica atividade cujo exercício lhe está vedado”.

Como tal, apesar de o DL 328/90 se referir ao “distribuidor” para efeitos do exercício do “direito ao acerto dos valores pagos pelo consumidor (o direito à diferença entre o valor pago e o valor do consumo real, ainda que apurado por estimativa em caso de anomalia ou viciação do contador)”, em face da evolução da realidade histórica existente ao tempo da entrada em vigor daquele compêndio legal, tal menção só pode ser interpretada como se dirigindo ao comercializador, “uma vez que só este pode ligar-se ao consumidor através do contrato de fornecimento (compra e venda) que o legislador considera violado” (cf. arts. 1.º-1 do DL 328/90, 44.º-3 do DL 29/2006 e 7.º-1 do RRC)[1].

Ao entendimento que aqui se acompanha não se opõe o ponto 31.3 do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental (GMLDD), no qual se determina que “[a] energia elétrica associada a procedimento fraudulento comprovadamente identificada e registada em cada ano não deve ser imputada a carteiras de comercializadores”. Retomando a jurisprudência que vimos seguindo de perto, a compreensão do alcance da norma do ponto 31.3 do GMLDD depende do conhecimento da distinção que a mesma pressupõe: a destrinça, estabelecida no ponto 31.2.2.1 daquele GMLDD “entre, por um lado, a energia registada, fiavelmente (apesar da prática fraudulenta), pelos equipamentos de medição e, por outro lado, a energia estimada”, admitindo-se, assim, a possibilidade de o procedimento fraudulento não impedir “o conhecimento direto (e não apenas estimado) da eletricidade consumida”. Ora, o ponto 31.3 do GMLDD «apenas se refere à energia “comprovadamente identificada e registada em cada ano”, e não à energia estimada na sequência da deteção do procedimento fraudulento», o que bem se compreende, pois, se a energia já foi considerada em períodos anteriores, carecia de sentido imputá-la, de novo, a carteiras de comercializadores. Já quanto ao consumo de energia elétrica, associado a fraude, apurado por via de estimativa, não se lhe aplica, afinal, o ponto 31.3 do GMLDD.

Em sentido diverso, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Coimbra em Acórdão de 21.11.2017, proferido no Processo n.º 502/16.7T8GRD.C1, Relator: Fonte Ramos, no qual se sustenta, a partir do mesmo ponto 31.3 do GMLDD, que “(…) só o Distribuidor, em benefício do SEN, terá competência para exigir do consumidor final o ressarcimento do valor da energia consumida ilicitamente, e nunca o comercializador (ou, no limite, o produtor/múltiplos produtores a operar atualmente no SEN)”.

Acolhendo o entendimento assumido neste último acórdão e ao arrepio de tudo o que defendemos acima (a que acresce o facto, de que partimos no post anterior, segundo o qual a verificação de procedimento fraudulento motiva “acertos de faturação”, da responsabilidade do comercializador, ainda que fundados em estimativas de consumo realizadas pelo distribuidor – art. 43.º-2 e 4 do RRC), a norma do n.º 5 do art. 33.º-5 do recém-adotado RRC veio determinar que “[n]as situações previstas no número anterior [erros de medição da energia e da potência resultantes de qualquer anomalia verificada no equipamento de medição, com origem em procedimento fraudulento], cabe ao operador da rede de distribuição que serve a instalação de consumo assegurar a recuperação integral para o Sistema Elétrico Nacional (…) dos consumos de energia não faturada, neles incluindo o valor da energia, que foi considerada em perdas [diferença entre a energia que entra num sistema elétrico e a energia que sai desse sistema elétrico, no mesmo intervalo de tempo], e a componente dos acessos, valorizada por aplicação da tarifa transitória correspondente, ou na sua ausência, da tarifa de acesso acrescida da tarifa de energia.”

Pela minha parte, em face da antinomia entre as normas dos arts. 1.º-1 do DL 328/90 e 44.º-3 do DL 29/2006, por um lado, e a norma do art. 33.º-5 do RRC, por outro, e lançando mão do critério hierárquico expresso no brocardo latino lex superior derogat legi inferiori (“lei superior derroga leis inferiores”), creio que o primeiro par de normas, portador de um status hierarquicamente superior à norma do diploma regulamentar, continua a determinar que o direito ao valor da energia não faturada tem por sujeito ativo o comercializador.


[1] Tal compreensão não é extensível ao exercício do direito a tutela reparatória em relação ao eventual dano patrimonial sofrido com a destruição (parcial) do equipamento de medição, de que o operador da rede de distribuição é proprietário (art. 29.º-1-b) e 3 do RRC), como nota Pedro Falcão, O Contrato de Fornecimento de Energia Elétrica, Petrony Editora, 2019, pp. 109-114, em especial p. 112.

Procedimento fraudulento e determinação do consumo de energia elétrica

Doutrina

Além da hipótese de faturação baseada em estimativa de consumo (já aflorada em post anterior), a realização de “acertos de faturação” de energia elétrica pode fundar-se, também, em “procedimento fraudulento” (art. 49.º-1-b) do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC)).

Nos termos do art. 1.º-1 e 2 do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro (DL 328/90)[1], “[c]onstitui violação do contrato de fornecimento de energia elétrica qualquer procedimento fraudulento suscetível de falsear a medição da energia elétrica consumida ou da potência tomada, designadamente a captação de energia a montante do equipamento de medida, a viciação, por qualquer meio, do funcionamento normal dos aparelhos de medida ou de controlo da potência, bem como a alteração dos dispositivos de segurança, levada a cabo através da quebra dos selos ou por violação dos fechos ou fechaduras”, sendo que “[q]ualquer procedimento fraudulento detetado no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica presume-se, salvo prova em contrário, imputável ao respetivo consumidor”.

Estabelece-se, assim, uma presunção ilidível contra o consumidor, no sentido em que este é o presuntivo responsável por qualquer procedimento fraudulento que se verifique em “recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica”, salvo se aquele demonstrar, de modo cabal, que tal procedimento não procede de culpa sua[2]. Como sucede com qualquer presunção, “a prova inferencial (por meio, precisamente, da inferência, do desconhecido a partir do conhecido, em que consiste a presunção) do facto presumido depende da prova do facto indiciário”, que, na estrutura da norma do art. 1.º-2 do DL 328/90 consiste na ocorrência de “procedimento fraudulento (…) no recinto ou local exclusivamente servido por uma instalação de utilização de energia elétrica”[3].

Existindo indícios ou suspeita da prática de qualquer procedimento fraudulento, o operador da rede de distribuição pode proceder à inspeção da instalação elétrica pela qual é responsável, por meio de um técnico seu (entre as 10 e as 18 horas, incluindo os equipamentos de medição – art. 2.º-1 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD), de que é lavrado auto. A inspeção deve ser feita, sempre que possível, na presença do consumidor (ou de quem no local o represente, designadamente um seu familiar ou empregado), a quem deverá ser deixada cópia. No auto, se for o caso, é descrito, sumariamente, o procedimento fraudulento detetado, bem como quaisquer outros elementos relevantes para a identificação, comprovação e imputação da responsabilidade do procedimento, sendo o mesmo instruído com os elementos de prova eventualmente recolhidos (art. 2.º-2 e 3 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD).

Após a identificação e verificação de factos passíveis de configurarem a prática de procedimento fraudulento, o operador da rede de distribuição deve notificar, por escrito, o consumidor a quem é imputável a sua autoria, devendo constar dessa notificação a identificação, entre outros, dos factos justificativos, do valor presumido do consumo irregularmente feito e do período de tempo devido para efeitos de acerto de faturação, bem como dos direitos do consumidor, designadamente, o de requerer a avaliação da prova recolhida. A avaliação é feita através de vistoria à instalação elétrica, a realizar pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), no prazo máximo de 48 horas após ter tido conhecimento do facto, sempre que aplicável (cf. arts. 4.º-1 e 5.º-2 do DL 328/90 e ponto 31.1 do GMLDD). Diga-se, aliás, que uma eventual interrupção do fornecimento de energia elétrica da instalação (arts. 3.º-1-a) do DL 328/90 e 79.º-1-g) do RRC e ponto 31.1 do GMLDD), consequente à deteção do procedimento fraudulento por facto imputável ao consumidor, sob pena da prática de ato ilícito, não pode deixar de ser antecedida daquela notificação (art. 4.º-1 do DL 328/90)[4].

Ainda que se conclua que o consumidor não foi autor ou responsável pelo procedimento fraudulento, o art. 3.º-2 do DL 328/90 reconhece ao “distribuidor” (leia-se, numa interpretação atualista, ao “comercializador”) o direito a ser “ressarcido” do consumo irregularmente feito (mas já não, claro, dada a ausência de culpa, das “despesas inerentes à verificação e eliminação da fraude” a que alude a alínea b) do n.º 1 do mesmo artigo 3.º)[5].

O art. 6.º-1 do DL 328/90 vem oferecer diretrizes para a “determinação do valor do consumo irregularmente feito”, estabelecendo que devem ter-se em conta “todos os factos relevantes para a estimativa do consumo real durante o período em que o ato fraudulento se manteve, designadamente as características da instalação de utilização, o seu regime de funcionamento, as leituras antecedentes, se as houver, e as leituras posteriores, sempre que necessário”. Este regime permite ao comercializador a satisfação possível do seu crédito perante uma situação deste tipo[6].

Densificando algumas destas orientações, o ponto 31.2.1 do GMLDD faz impender sobre o operador da rede de distribuição o encargo probatório de apurar o período de tempo durante o qual subsistiu o procedimento fraudulento. O período ficará sempre condicionado pela data de início do contrato do titular a quem for imputada a responsabilidade pela prática do procedimento, se existir contrato, não podendo, em qualquer caso, ser superior a 36 meses. O operador da rede deve verificar, entre outras situações, a eventual ocorrência de variações abruptas no perfil de consumo da instalação e a data da última deslocação à instalação, com acesso ao equipamento de medição. Já o ponto 31.2.2 admite que o cálculo do consumo de energia elétrica associado a procedimento fraudulento possa atender, se o mesmo existir, ao histórico de registos fiáveis do equipamento de medição. Na sua ausência, o quantum do consumo de energia elétrica será estimado com base no consumo médio anual por escalão de potência contratada(sempre que o Dispositivo de Controlo de Potência não tiver sido manipulado, deve atender-se à potência que estiver regulada nesse dispositivo), nos termos do ponto 33.1.2. do GMLDD, adicionado do respetivo desvio padrão, sendo que os valores a atender para ambos os elementos constam da Diretiva n.º 11/2016, da ERSE.


[1] V., de forma mais desenvolvida, também o ponto 31.1 do Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados de energia elétrica em Portugal continental (GMLDD), no qual se preveem, ainda, situações de ligação direta à rede.

[2] Sentença do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo, de 30.05.2017, Relator: Jorge Morais Carvalho.

[3] Sentença do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP) de 29.01.2017, proferida no Processo n.º 3283/2016, Relator: Paulo Duarte.

[4] Ver, a este propósito e com interesse, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.05.2016, proferido no Processo n.º 1929/13.1TBPVZ.P1.S1, Relator: Gabriel Catarino, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.11.2019, proferido no Processo n.º 3823/18.0T8BRG.G1, Relator: António Sobrinho.

[5] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.05.2021, proferido no Processo n.º 2422/19.4T8AGD.P1, Relator: Aristides Rodrigues de Almeida.

[6] Pedro Falcão, A tutela do prestador de serviços públicos essenciais no ordenamento jurídico português, in Estudos de Direito do Consumidor, n.º 12, 2017, p. 416.

Uma análise empírica do Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de conflitos de consumo – Parte II

Doutrina

Prosseguindo a análise ao Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de consumo, iniciada em post anterior, julgamos que a redação das normas regentes da elaboração da sentença arbitral, plasmadas no artigo 15.º do Regulamento, impõem duas observações críticas.

Em primeiro lugar, à semelhança do que é imposto pelo n.º 4 do artigo 607.º do CPC, inexiste fundamento bastante para se considerar inexigível a declaração, na sentença arbitral, dos factos que se julgam não provados de entre aqueles que hajam sido alegados pelas partes, tendo em consideração o objeto do litígio, para além dos factos que se encontram em contradição com os julgados provados e dos prejudicados por estes e excluindo aqueles que são meramente conclusivos.

Em segundo lugar, atendendo à tendencial maior complexidade que os litígios de consumo submetidos à jurisdição arbitral vêm conhecendo, à qual não é, de todo, alheia a previsão de arbitragem necessária na Lei de Defesa do Consumidor entendemos razoável um aumento do prazo para prolação da sentença arbitral em mais 15 (quinze) dias, desta forma se promovendo um alinhamento com a solução prevista no n.º 1 do artigo 607.º do CPC, aplicável aos tribunais judiciais de 1.ª instância.

Por sua vez, a letra da regra consagrada no artigo 17.º do Regulamento, sob a epígrafe “Prazos processuais”, ao referir-se a “processos de reclamação”, alimenta dúvidas quanto à aplicação do prazo de conclusão de 90 (noventa) dias ao conjunto dos procedimentos de resolução alternativa de litígios de consumo (mediação, conciliação e arbitragem) ou a cada procedimento individualmente considerado. Com efeito, em face do disposto pelo n.º 5 do artigo 10.º da Lei RAL, dúvidas não devem subsistir de que o prazo de 90 dias se aplica a cada procedimento de RAL. O Regulamento do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo já o estabelece de forma inequívoca. Esta é a única solução que se conforma com a lógica de “multi-step dispute resolution” adotada nos centros de arbitragem de conflitos de consumo nacionais (surgindo a mediação como fase prévia, seguida da conciliação e da arbitragem) e que assegura a exigível proteção ao consumidor[1].

Uma derradeira e mais aturada consideração se impõe acerca de uma diferença relevante e que salta à vista na redação que toma a norma do n.º 3 do artigo 19.º do regulamento interno de cada um dos centros de arbitragem de conflitos de consumo. Se, por um lado, os regulamentos do CIAB – Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Consumo (Tribunal Arbitral de Consumo), do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto (CICAP), do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo da Região de Coimbra (CACRC) e do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa (CACCL) preveem que, em caso de omissão, se aplica, subsidiariamente e “com as devidas adaptações”, o Código de Processo Civil, já os regulamentos do TRIAVE – Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Ave, Tâmega e Sousa, do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Algarve (CIMAAL) e do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo não estatuem o recurso às regras e princípios da lei processual civil “em tudo o que não estiver previsto” no Regulamento Harmonizado.

Nesta controvérsia sobre a aplicação do Código de Processo Civil à arbitragem de conflitos de consumo, posicionamo-nos a favor de uma aplicação, de último grau, da lei adjetiva comum, ainda que adaptada “à natureza marcadamente abreviada e informal do procedimento arbitral”, como dispõe, com particular acerto, a regra do n.º 2 do artigo 32.º do Regulamento do Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Seguros (CIMPAS).

Não se ignora que, como salienta Manuel Pereira Barrocas, “[o] Código de Processo Civil, tal como qualquer outra lei processual, nacional ou estrangeira, não foi pensado, elaborado e publicado para regular a arbitragem em geral e o processo arbitral em particular, sob pena de se transpor para a arbitragem a complexidade, quando não discussões doutrinarias e jurisprudenciais que não têm a ver com a arbitragem, desvirtuando e retirando as vantagens que lhe são próprias”. Afinal, “[a] jurisdição arbitral funda-se em juízos de equidade e na extrema simplificação e agilização dos procedimentos, recortando-se como uma forma de resolução de litígios em modo simplex, ao passo que a jurisdição estadual assenta no rigor do estrito cumprimento da lei processual e na absoluta salvaguarda de todas as garantias do pleno exercício das mais amplas faculdades processuais, de que não abre mão em circunstância alguma.”

Sem prejuízo do que antecede e, ainda, do disposto no n.º 3 do artigo 30.º da Lei da Arbitragem Voluntária, propugnamos, porém, que a certeza e da segurança jurídicas na aplicação do Direito reclamam que, na ausência de solução aplicável prevista na Lei RAL, na Lei da Mediação (aplicável ao procedimento de RAL de mediação) ou na LAV (aplicável ao procedimento de RAL de arbitragem), se imponha aos colaboradores das entidades de RAL responsáveis por cada um dos procedimentos a convocação e observância das regras e princípios postulados no Código de Processo Civil, ainda que despojados dos formalismos próprios e específicos de uma lei que rege o processo perante os tribunais estaduais.

A aplicação da lei processual civil reveste de particular interesse na verificação dos pressupostos processuais de que depende a regularidade da instância arbitral, seja os relativos ao próprio tribunal arbitral, e.g. competência em razão do valor (artigos 296.º e seguintes do CPC), seja os relativos às partes, e.g. personalidade e capacidade judiciárias (artigos 11.º e seguintes e 15.º e seguintes do CPC), seja, ainda, os relativos ao próprio objeto da demanda arbitral, e.g. aptidão da reclamação (artigo 186.º do CPC) e inexistência de litispendência e de caso julgado (artigos 577.º, alínea i), 580.º, 581.º e 582.º, todos do CPC), seguindo-se aqui de perto Sara Lopes Ferreira, em apresentação feita recentemente num webinar.

Mas não só. Também algumas disposições relativas à prática dos atos processuais, como o princípio da proibição da prática de atos inúteis (artigo 130.º do CPC), a alegação e prova de “justo impedimento” pela parte ou seu representante ou mandatário que obste à prática atempada do ato ou à presença na audiência arbitral, cuja marcação, por norma, não é antecedida de acordo prévio das partes, seja por contacto direto do tribunal, seja com a intermediação do secretariado do tribunal (artigos 139.º, n.º 4, 140.º, 151.º, n.ºs 2 e 3 e 603.º, n.º 1, todos do CPC), ou atinentes à instrução do processo, como a inexigibilidade de alegação e prova dos factos públicos e notórios (artigo 412.º do CPC), o critério de julgamento em caso de dúvida sobre a realidade de um facto (artigo 414.º do CPC), a prova por apresentação de coisas móveis ou imóveis (artigo 416.º do CPC), a prova por depoimento de parte e por declarações de parte, prova por inspeção e prova testemunhal (artigos 452.º e seguintes, artigo 466.º, artigos 490.º e seguintes e artigos 495.º e seguintes, todos do CPC, com as devidas adaptações), ou mesmo respeitantes à sequência dos atos a praticar na audiência de julgamento (artigo 604.º, n.º 3 do CPC) devem ser, a nosso ver, atendidas e respeitadas pelo árbitro na condução do processo arbitral.            

Por último, sem embargo do disposto no n.º 2 do artigo 10.º da Lei RAL, considerando que, paulatinamente, demandados e, sobretudo, demandantes vêm tomando consciência da importância que, amiúde, reveste a constituição de mandatário forense em prol da melhor tutela da sua posição jurídica no litígio, importa levar em consideração, no sentido do texto, que os advogados e os solicitadores trabalham quotidianamente com o Código de Processo Civil e têm a sua forma mentis moldada pela lei adjetiva comum.


[1] Jorge Morais Carvalho, João Pedro Pinto-Ferreira e Joana Campos Carvalho, Manual de Resolução Alternativa de Litígios de Consumo, Almedina, 2017, p. 130.

Uma análise empírica do Regulamento Harmonizado dos centros de arbitragem de conflitos de consumo – Parte I

Doutrina

Com a entrada em vigor da Lei n.º 144/2015, de 8 de setembro (Lei RAL), que transpôs a Diretiva 2013/11/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo, os regulamentos dos centros de arbitragem de conflitos de consumo harmonizaram-se entre si, apresentando sistematização e disciplina normativa idênticas, embora subsistam algumas dissemelhanças pontuais.

Neste contexto e com base na nossa experiência como árbitro em centros de arbitragem de conflitos de consumo, desenvolvemos, agora e em próximo texto, uma breve análise crítica de algumas disposições do Regulamento Harmonizado, tomando essencialmente por base o Regulamento do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Vale do Ave/Tribunal Arbitral.

Desde logo, a redação atual do n.º 2 do artigo 4.º do Regulamento Harmonizado, cuja epígrafe é “Competência material”, não acolhe plenamente a conceção estrita de consumidor – e, por essa via, de litígio de consumo – adotada na norma da alínea d) do artigo 3.º da Lei RAL, diploma que regula, em especial, os mecanismos de resolução extrajudicial de litígios de consumo. Assim, para efeitos da submissão de um conflito aos procedimentos de mediação, conciliação e arbitragem (artigo 3.º, alínea j) da Lei RAL), devia adotar-se o sentido jurídico-formal do conceito de consumidor, que se restringe às pessoas físicas, tal como imposto por um princípio de interpretação conforme ao Direito Europeu do Consumo, e deixar de tomar como referencial a noção ampla plasmada na Lei de Defesa do Consumidor – a Lei n.º 24/96, de 31 de julho.

Ainda a respeito do âmbito material de competência dos centros de arbitragem (e, em particular, da jurisdição do tribunal arbitral), a norma do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento Harmonizado – “[o] Centro não pode aceitar nem decidir litígios em que estejam indiciados delitos de natureza criminal ou que estejam excluídos do âmbito de aplicação da Lei RAL” – suscita-nos duas observações que vêm revestindo importância no (não) conhecimento e apreciação de relações jurídico-consumerísticas controvertidas por aquelas entidades de RAL (artigo 3.º, alínea b) da Lei RAL).

Por um lado, afigura-se-nos imperioso clarificar que a norma visa excluir a competência dos centros de arbitragem apenas no que à matéria penal diz respeito. O facto de o litígio configurado pelo reclamante apresentar elementos indiciadores da prática de qualquer delito criminal (e.g. furto de energia elétrica, em ações de simples apreciação negativa em que é demandado o operador da rede de distribuição, ou burla, em ações em que é demandado prestador de serviço de comunicações eletrónicas) não deve obstar à qualificação da demanda como “litígio de consumo”, se preenchidos os quatro elementos – subjetivo, objetivo, teleológico e relacional – a partir dos quais é estruturado o conceito técnico-jurídico de consumidor. Impõe-se, de modo diverso, a distinção (e separação, para efeitos jurídico-processuais) da questão de natureza jurídico-civil suscitada pelo demandante perante a entidade de RAL da eventual relevância e ressonância jurídico-criminal que a alegada conduta por aquele perpetrada pode assumir.

Por outro lado, a fim de se viabilizar a inclusão de litígios relacionados com os serviços de saúde, quando prestados por entidades privadas, na esfera de competência dos centros de arbitragem, a parte final do n.º 4 do artigo 4.º do Regulamento Harmonizado não devia conter remissão expressa para a delimitação negativa do conceito de “litígio de consumo” operada pelo n.º 2 do artigo 2.º da Lei RAL. Até porque, afora a solução normativa da sua alínea b), grande parte dos litígios abarcados pelas alíneas a) a c) do mesmo número, artigo e diploma legal revestem a natureza de relações jurídico-administrativas e, como tal, encontram-se, por natureza, excluídos da competência em razão da matéria do Centro.

Por sua vez, a tramitação do processo de arbitragem, disciplinada, em particular, pelo artigo 14.º do Regulamento Harmonizado, carece, a nosso ver, de uma regulação mais aturada, que promova e concretize plenamente os princípios do processo equitativo (artigo 12.º, n.º 1 da Lei RAL), nos seus corolários de igualdade e de defesa e contraditório.

Neste sentido, pugnamos pela eliminação da possibilidade de apresentação de contestação oral na própria audiência arbitral – para a qual as partes devem ser convocadas com uma antecedência mínima de 20 dias –, estabelecendo-se, em alternativa, que a parte reclamada pode apresentar contestação escrita até 10 dias da data marcada para a audiência. Desta forma, obstar-se-ia a que o reclamante, que surge, não raras vezes, desacompanhado de advogado ou solicitador a representá-lo em juízo (em virtude da diminuta utilidade económica do pedido formulado no processo arbitral, que fica aquém do previsível valor dos honorários devidos ao profissional forense, cuja contratação para assegurar patrocínio judiciário não é, além do mais, obrigatória – cf. artigo 10.º, n.º 2 da Lei RAL), só conheça a posição assumida pela reclamada, nos autos de arbitragem, naquela diligência.

Os mesmos princípios fundamentais do processo arbitral (artigo 30.º, n.º 1 da Lei da Arbitragem Voluntária – LAV) e, bem assim, o princípio da celeridade processual, que é timbre da arbitragem, levam-nos a defender que, por imposição regulamentar, a apresentação da contestação devia ser, de imediato, notificada à parte reclamante, a qual devia poder apresentar resposta ou réplica, por escrito, até à data da audiência ou oralmente na própria audiência (ditando para ata, se se sentir mais confortável com tal alternativa), caso a parte reclamada deduza defesa por exceção ou reconvenção, respetivamente. Desta forma, afastar-se-ia a necessidade de suspensão da audiência arbitral para o demandante gozar do necessário tempo de reflexão e de análise para se poder pronunciar sobre a matéria de defesa por exceção ou de reconvenção deduzida na contestação.

Idênticas preocupações de economia processual e de meios justificam que se imponha às partes a apresentação de toda a prova documental disponível (i.e., de que as partes já disponham) – e de que pretendam fazer uso – com a reclamação e a contestação, assim como fundamentam a previsão expressa da possibilidade de realização da audiência arbitral com recurso a meios de comunicação à distância adequados, nomeadamente videoconferência, como já sucede com o Regulamento do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo. Ressalva-se, quanto a este último aspeto, que deve privilegiar-se, sempre que possível, a colaboração, para o efeito, de centro/serviço/núcleo de informação autárquica ao consumidor, julgado de paz, tribunal estadual ou outra instituição instalada em edifício público da área do domicílio do sujeito ou interveniente processual.

A fim de se superar a divergência de entendimentos quanto à admissibilidade da reconvenção (aplicando-se ou não, supletivamente, a norma do n.º 4 do artigo 33.º da LAV), sem prejuízo da unidirecionalidade dos litígios de consumo (cf. artigo 2.º, n.ºs 1 e 2, alínea d) da Lei RAL), cremos que o princípio da eficiência processual aponta no sentido de que a mesma deve ser aceite. Na verdade, a improcedência de pedido de declaração de inexistência de dívida (em ação de simples apreciação negativa), em arbitragem iniciada pelo consumidor, não se consubstancia em sentença condenatória que possa ser executada, de imediato, pelo profissional (cf. artigo 703.º, n.º 1, alínea a) do CPC), obrigando este último a propor nova ação (ou iniciar procedimento de injunção) para obtenção de título executivo. Por último, de acordo com a jurisprudência firmada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.11.2015, proferido no Processo n.º 538/13.0YRLSB.S1, Relator: Fernanda Isabel Pereira, e pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28.06.2019, proferido no Processo n.º 1957/18.0YRLSB.C1, Relator: Arlindo Oliveira, entendemos que a norma do Regulamento Harmonizado relativa à responsabilidade pelas despesas com meios de prova requeridos em audiência arbitral devia conter uma remissão expressa para a solução normativa da segunda parte do n.º 5 do artigo 42.º da LAV – possibilidade de o árbitro decidir que alguma(s) das partes compense(m) a outra(s) pela totalidade ou parte dos custos e despesas razoáveis que esta(s) última(s) demonstre(m) ter suportado por causa da sua intervenção na arbitragem –, dissipando quaisquer dúvidas quanto à inaplicabilidade das normas do Código de Processo Civil e do Regulamento das Custas Processuais referentes a encargos com o processo de arbitragem, porque incompatíveis com a regulamentação própria dos litígios arbitrais.

A obrigação de indemnizar decorrente do exercício da atividade de distribuição de energia elétrica e os casos de força maior

Doutrina

A atual configuração normativa do Sistema Elétrico Nacional (SEN) está assente, por um lado, numa sucessão de relações jurídicas, económica e juridicamente autonomizadas, que se estabelecem entre os vários sujeitos que operam no mercado da energia elétrica e integram a sua cadeia de valor (a qual compreende as etapas de produção, transporte, distribuição, comercialização e consumo), e, por outro lado, no princípio da separação (unbundling) entre as várias atividades do setor elétrico, nomeadamente as atividades de distribuição e de comercialização (artigos 339.º, n.º 1 e 350.º, n.ºs 1 e 2 do Regulamento de Relações Comerciais do Setor Energético e do Gás (RRC).

O comercializador e o operador da rede de distribuição de energia elétrica acham-se ligados por contrato de uso de redes (artigo 351.º do RRC e artigos 8.º e seguintes do Regulamento de Acesso às Redes e às Interligações – RARI), vínculo negocial por intermédio do qual o operador da rede se obriga a proporcionar ao comercializador o gozo das infraestruturas que tem a seu cargo para o fim de nelas fazer transitar a eletricidade e de nelas criar pontos de ligação (de receção e de entrega de eletricidade), e que se assume como um contrato a favor de terceiro, em que o terceiro beneficiário é o consumidor de eletricidade, com a nuance, face à configuração típica daquela estrutura contratual, de o promissário (no caso, o comercializador com quem o consumidor contratou o fornecimento de energia elétrica) responder (em termos semelhantes àqueles em que o comitente responde perante o comissário – artigo 500.º do Código Civil) pelo cumprimento das obrigações do promitente (no caso, o operador da rede de distribuição), como resulta do disposto pela norma do n.º 1 do artigo 10.º do Regulamento da Qualidade de Serviço dos Setores Elétrico e do Gás – RQS)[1].

Ora, como explica Pedro Falcão, “[p]or força deste contrato a favor de terceiro, scilicet, da cláusula a favor de terceiro consagrada no contrato de uso de redes «para efeitos de acesso às redes das instalações […] dos clientes do comercializador» (ponto 1 do Anexo I do Despacho n.º 18899/2010, publicado no Diário da República de 21 de dezembro de 2010), fica o operador da rede, promitente no âmbito deste contrato, devedor da respetiva prestação ao utente beneficiário, que terá direito a exigi-la nas devidas condições”, as quais se encontram previstas no artigo 5.º do RRC, ao postular que «[n]o exercício das suas atividades, os sujeitos intervenientes no Sistema Elétrico Nacional (…) devem observar as obrigações de serviço público estabelecidas na lei» (n.º 1), sendo uma dessas obrigações «[a] segurança, a regularidade e a qualidade do abastecimento» [n.º 2, alínea a)].

Sucede que, a par da responsabilidade civil obrigacional por factos ilícitos, o operador da rede de distribuição, porque tem a direção efetiva de instalação destinada à condução e entrega de energia elétrica, está sujeito a um outro título de imputação de danos – a responsabilidade pelo risco, independente de culpa, cujo fundamento radica no domínio e aproveitamento de uma fonte de risco, por força da hipótese típica do artigo 509.º do Código Civil –, salvo se demonstrar, como determinado pelo n.º 1 do artigo 11.º da LSPE, que, embora desenvolvendo uma atividade perigosa, sujeita, nomeadamente, aos deveres impostos pelas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de fevereiro, em face das circunstâncias do caso concreto e atendendo às suas capacidades, não lhe era exigível diferente atuação, verificando-se, assim, uma “causa de força maior” (cfr. artigo 509, n.º 2 do Código Civil).

Concretizando o que deve entender-se por “caso de força maior” para efeitos do cumprimento das obrigações de qualidade de serviço de natureza técnica aplicáveis ao SEN, dispõe o artigo 8.º do RQS, no seu n.º 3, que “[c]onsideram-se casos de força maior as circunstâncias de um evento natural ou de ação humana que, embora se pudesse prever, não poderia ser evitado, nem em si, nem nas consequências danos que provoca”, porquanto, nos termos do n.º 1 do mesmo artigo e diploma, tais casos devem reunir “simultaneamente as condições de exterioridade, imprevisibilidade e irresistibilidade face às boas práticas ou às regras técnicas aplicáveis e obrigatórias”. Para efeitos de aplicação do regime regulamentarmente previsto para as interrupções acidentais por caso de força maior (cf. artigo 13.º, n.ºs 1, 2/b) e 3.º/f) do RQS), importa, ainda, atender às normas complementares estabelecidas pelo Manual de Procedimentos da Qualidade de Serviço dos Setores Elétrico e do Gás – Anexo II ao RQS –, particularmente o ponto 4. do Procedimento n.º 1 – Registo e Classificação das Interrupções no Setor Elétrico da sua Parte II.

Neste conspecto, vem-se consolidando uma doutrina jurisprudencial nos nossos tribunais superiores, que acompanhamos, segundo a qual as descargas elétricas atmosféricas (i.e., os raios produzidos pelas trovoadas) não devem ser consideradas uma circunstância de “força maior”[2]. De acordo com esta corrente, «(…) [u]m raio – um simples raio – pode não ser – não é – susceptível de ser dominado pelo homem, se esse homem for o simples consumidor de energia eléctrica, um dos autores. Mas já não pode aceitar-se que esse mesmo simples raio já não seja dominável por uma empresa como a ré, cujo objecto negocial é (…) a distribuição de energia. (…) O funcionamento e a utilização de uma rede de distribuição de energia eléctrica não pode localizar fora de si própria a existência normal de trovoadas e de raios. As trovoadas e os raios não são independentes do funcionamento e utilização da rede de distribuição. Podem ser – são – exteriores, mas não são independentes dessa utilização e funcionamento porque fenómenos naturais comuns e correntes com os quais a empresa que tem o negócio tem de contar em absoluto na montagem dele[3].

De igual modo, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores vem afastando a interação de cegonhas ou outras aves nas redes de condução e entrega de energia elétrica geridas e exploradas pelo operador da rede de distribuição como evento idóneo a preencher o conceito de “causa de força maior”, por se tratar de um fenómeno previsível até para o homem comum, suscetível de ser minimizado através da instalação de equipamentos dissuasores de pouso e de nidificação e de sinalizadores nas linhas de distribuição[4]. Em ambas as hipóteses ora destacadas, as doutas instâncias superiores entenderam que não se encontravam preenchidas as já enunciadas condições de imprevisibilidade e de irresistibilidade de que depende a classificação de uma interrupção “por força maior”, sendo as mesmas suscetíveis de serem reconduzidas, de modo diverso, à figura da interrupção “por causas próprias”, prevista na alínea h) do n.º 3 do artigo 13.º do RQS.


[1] Neste sentido, ver, entre outras e sem preocupações de exaustividade, a Sentença do TRIAVE – Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo do Ave, Tâmega e Sousa de 25 de julho de 2018, Processo n.º 1037/2018/FL (relator: Dr. Paulo Duarte).

[2] Corrente essa criada, nomeadamente, pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.11.2007, proferido no Processo n.º 06B2640, Relator: Pires da Rosa, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.04.2013, proferido no Processo n.º 6391/11.0TBBRG.G1, Relatora: Maria Rosa Tching, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.10.2013, proferido no Processo n.º 2211/10.1TJSB.C2, Relatora: Maria José Guerra, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.04.2018, proferido no Processo n.º 3702/16.6T8BRG.G1, Relator: Alcides Rodrigues e pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.01.2020, proferido no Processo n.º 1946/19.8YRLSB-6, Relatora: Maria de Deus Correia.

[3] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.11.2007, proferido no Processo n.º 06B2640, Relator: Pires da Rosa.

[4] Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2013, proferido no Processo n.º 3584/04.0TVLSB.L1.S1, Relatora: Maria Prazeres Pizarro Beleza, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16.01.2020, proferido no Processo n.º 1515/18.0T8EVR.E1, Relatora: Cristina Dá Mesquita.