No dia 14 de setembro de 2022, a Comissão Europeia apresentou a Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho sobre a proibição de produtos fabricados com recurso ao trabalho forçado no mercado da União Europeia, tendo sido agora aprovada, no passado outubro, sem votos contra, por duas comissões do Parlamento Europeu.
Numa altura em que muito se debate sobre sustentabilidade na UE – com especial ênfase, é preciso dizê-lo, na sustentabilidade ambiental – é com entusiasmo que se recebe a notícia de uma proposta de regulamentação que tutela diretamente o S dos pilares ESG. Depois da Diretiva do Reporte de Sustentabilidade e da Proposta de Diretiva relativa ao Dever de Diligência das Empresas (DDD), diplomas que recaem diretamente sobre as obrigações das empresas, surge então agora uma proposta especificamente vocacionada para limitar a comercialização de bens que resultem de trabalho forçado, que vem intervir diretamente sobre os bens e não criando propriamente novas regras para as empresas. A viabilização desta Proposta depende da aprovação do Parlamento Europeu e do Conselho, sendo o Regulamento depois aplicado a todos os Estados-Membros 24 meses após a respetiva entrada em vigor.
Esta iniciativa é, em geral, de aplaudir. É uma iniciativa relevante que dignifica e densifica os princípios comunitários e multilaterais de defesa dos direitos humanos, sendo sobretudo de salientar a ousadia de se iniciar um movimento legislativo que, a ser aprovado, comportará consequências muitíssimo expressivas no panorama do comércio europeu. Se pensarmos, por exemplo, dentro do setor têxtil, apenas nos bens de vestuário produzidos com algodão como matéria-prima, uma em cada cinco peças dessa roupa envolve trabalho forçado na sua produção, sendo, por isso, eliminável do comércio europeu. Não se descarte, por isso, a coragem subjacente à elaboração desta Proposta – ela comporta uma alteração notável do quadro vigente e não se refreia pela circunstância de os consumidores europeus poderem vir a encontrar as prateleiras mais folgadas, com todas as consequências que daí advêm para vários setores.
Não deixa também de ser uma proposta visionária, no sentido em que acolhe as preocupações cada vez mais crescentes dos consumidores europeus em relação à questão.
Sobre os aspetos positivos desta Proposta:
• É de ressaltar, em particular, a potencialidade da sua aplicação aos bens comercializados por todas as empresas – micro, pequenas, médias e grandes empresas – e por todos os operadores económicos, o que significa que tem a potencialidade de impactar (finalmente) absolutamente todos os consumidores europeus que compram bens. Será, neste sentido, uma boa ultrapassagem (ou complemento) das limitações da DDD, ainda que apenas em termos de sustentabilidade social.
• É de aplaudir a ideia de implementação de entidades de investigação do histórico da cadeia de abastecimento dos bens que ingressam no mercado europeu, entidades e competências essas que mais cedo ou mais tarde teriam de ser criadas/adaptadas na União de forma a honrar a expiação do problemático fenómeno do trabalho forçado. De acordo com a Proposta, as autoridades competentes conduzirão investigações e decidirão na sequência dessas investigações. As decisões destas autoridades deverão depois ser comunicadas às autoridades aduaneiras, que serão responsáveis pela identificação dos produtos em causa e pela realização de controlos das importações e exportações na fronteira da UE. Infelizmente, a atribuição deste controlo dividido entre autoridades nacionais e autoridades aduaneiras não prima pela melhor abordagem ao problema, deixando uma larga margem ao contorno do sistema arquitetado .
• A Proposta sugere a criação de uma base de dados relativa a zonas e produtos com exposição ao risco de utilização de trabalho forçado, sendo útil às empresas que queiram contornar fornecedores problemáticos. Este é um aspeto positivo, sobretudo pela transparência e acesso aberto a toda a comunidade, ainda que tivesse sido relevante pensar-se em formas de tornar essa comunicação eficaz junto do consumidor. Apesar de tudo, é um passo bastante importante a assinalar, sobretudo pelo quadro absolutamente dúbio e cinzento que se encontra atualmente nesta matéria.
• É de felicitar o estabelecimento de critérios específicos para a avaliação do risco de os operadores económicos estarem imiscuídos ou não em cadeias de abastecimento enformadas por escravatura moderna. Estes critérios serão muito úteis à condução da investigação que a entidade responsável por este controlo terá de levar a cabo, levantando o véu daqueles que são os sinais de alarme a que empresas, consumidores e mesmo entidades públicas devem estar atentos no momento da contratação.
A avaliação terá em conta os seguintes critérios (não exaustivos):
(i) Observações apresentadas por pessoas singulares ou coletivas ou por qualquer associação sem personalidade jurídica;
(ii) Indicadores de risco e outras informações, que devem basear-se em informações independentes e verificáveis, incluindo relatórios de organizações internacionais, em especial da Organização Internacional do Trabalho, da sociedade civil e de organizações empresariais, e ter em conta a experiência adquirida com a aplicação da legislação da União que estabelece requisitos de dever de diligência em matéria de trabalho forçado;
(iii) A base de dados sobre zonas ou produtos com exposição ao risco de utilização de trabalho forçado;
(iv) Informações e decisões codificadas no sistema de informação e comunicação, incluindo quaisquer casos anteriores de cumprimento ou incumprimento da proibição por parte de um operador económico;
(v) Informações solicitadas pelas autoridades competentes a outras autoridades pertinentes sobre se os operadores económicos objeto de avaliação estão sujeitos ao dever de diligência em matéria de trabalho forçado e exercem esse dever em conformidade com a legislação aplicável da União ou com a legislação dos Estados-Membros que estabeleça requisitos de dever de diligência e de transparência no que diz respeito ao trabalho forçado.
Se a iniciativa é sem dúvida para se elogiar, ocorre, ainda assim, que apresenta também alguns problemas e limitações que podem e devem ser consideradas no futuro do procedimento legislativo.
Além das que foram já sendo assinaladas, é de destacar pela negativa a proposta de destino a oferecer aos bens que venham a ser considerados produzidos em condições de trabalho forçado.
São dois os cenários:
(i) Se, antes da colocação dos bens no mercado, se detetar que o bem não cumpre os requisitos, as autoridades competentes determinarão a proibição de venda no mercado da UE.
(ii) No entanto, se os bens já estiverem no mercado, será ordenada a retirada e eliminação desses bens, a expensas do operador económico, bem como a proibição de exportação desses bens (“os operadores económicos que tenham sido objeto de investigação [devem retirar] do mercado da União os produtos em causa já disponibilizados e [mandá-los] destruir, inutilizar ou de outra forma eliminar” – Considerando 27).
Ainda que a solução do ponto (i) se compreenda, obviamente que a solução do ponto (ii) não pode passar por este desfecho. O bem jurídico que se pretende proteger com a criação deste Regulamento será sobretudo o da proteção da integridade física dos “trabalhadores” (e, no máximo, a expectativa do consumidor ético e de outras entidades), que não sai protegida com a retirada do bem do mercado. Antes pelo contrário, esta consequência é desastrosa para os princípios de sustentabilidade ambiental que pautam a agenda da UE por estes dias. Não pode a UE tratar um bem fruto de escravatura moderna como se de um bem perigoso se tratasse. A situação é exatamente a inversa: a produção do bem é que tornou perigosa a situação para o “trabalhador”. Retirar o bem do mercado não oferece nenhuma vantagem para nenhum deles, ainda que se compreenda que é uma medida de desincentivo ao operador económico. Mesmo que a solução venha a ser a de doar os bens (pelo menos os perecíveis) – que seria uma solução, em geral, mais sustentável – tal não ultrapassa o problema de não responder à verdadeira motivação de criação do Regulamento. Devem, pois, encetar-se medidas de combate à escravatura moderna, sem dúvida, mas em harmonia com todos os pilares da sustentabilidade e em fidelidade à solução do problema de facto.
As alternativas existem.