Sumário
I – Os direitos à reparação ou à substituição previstos no artigo 914º do Código Civil – e também no artigo 12, n.º 1 da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, que veio estabelecer «o regime legal aplicável à defesa dos consumidores» – não constituem pura alternativa ou opção oferecida ao comprador, antes se encontrando subordinados a uma sequência lógica.
II – Assim, o consumidor tem o poder-dever de seguir primeiramente e preferencialmente a via da reposição da conformidade devida, pela reparação ou substituição da coisa, sempre que possível e proporcionada, em nome da conservação do negócio jurídico, tão importante numa economia de contratação em cadeia, e só subsidiariamente o caminho da redução do preço ou resolução do contrato.
III – Isto porque, embora a lei (art. 5º do DL nº 67/2003) não hierarquize os direitos conferidos ao consumidor, numa interpretação conforme à Diretiva (Diretiva nº 1999/44/CE, de 25/05), há prevalência da “reparação/substituição” sobre o par “redução/resolução”, pois a concorrência eletiva dos diversos direitos do consumidor não é absoluta, por não prescindir de uma “aticização da escolha” através do princípio da boa fé, sendo que o art. 4º nº 5 do diploma citado recorre à cláusula do abuso de direito.
Enquadramento
– O Autor, consumidor que pretendia resolver os seus problemas de deslocação, adquiriu um automóvel em segunda mão (da marca BMW), por contrato de compra e venda verbal, pelo valor de € 15 500. O automóvel estava publicitado no site do stand como tendo 96 000 kms e estando em ótimas condições de funcionamento.
– Logo no início da utilização do automóvel surgiram problemas técnicos, tendo o autor recorrido a uma oficina. Na oficina, verificou-se que o automóvel tinha diversos problemas, faltando peças e estando outras estavam bastante danificadas. O automóvel necessitava também de atualizações de software.
– O Autor comunicou as desconformidades ao profissional, o stand, por email, tendo também tentado o contacto telefónico. Foi ignorado sucessivamente, tendo-lhe sido recusada a reparação. A resolução extrajudicial do litígio também foi recusada.
– No mês seguinte, o Autor colocou o automóvel numa oficina da marca BMW para realizar um check-up, tendo-se verificado vários outros problemas técnicos. Concluiu-se também que a quilometragem estava adulterada, com grandes diferenças no valor.
– Face à recusa de reparação e comunicação pelos Réus, o Autor colocou o automóvel a ser reparado por sua conta para poder utilizá-lo.
– O tribunal de primeira instância aceitou o pedido do réu de redução do preço do automóvel com base na desconformidade, tendo esta decisão sido confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
Comentário
Este acórdão recente do Tribunal da Relação de Guimarães vem recuperar uma orientação muito defendida pela doutrina e pela jurisprudência portuguesas[1] nos primeiros anos da transposição da Directiva 1999/44/CE pelo Decreto-Lei n.º 67/2003: a de que existe uma hierarquia nos direitos dos consumidores elencados no art. 4.º-1, com prioridade para os direitos à reparação e à substituição do bem desconforme, só subsidiariamente podendo ser exercidos os direitos à redução adequada (ou proporcional) do preço ou à resolução do contrato.
O TRG até reconhece que atualmente a orientação predominante na doutrina e jurisprudência[2] é de que não existe hierarquia entre estes direitos[3], sendo a sua escolha livre pelos consumidores, com a exceção da impossibilidade ou do abuso do direito (art. 4.º-5).
A argumentação utilizada no sentido de defender a hierarquia assenta nos seguintes pontos:
- “O consumidor tem o poder-dever de seguir primeiramente e preferencialmente a via da reposição da conformidade devida, pela reparação ou substituição da coisa, sempre que possível e proporcionada, em nome da conservação do negócio jurídico (…)”;
- “(…) Que embora a lei (art. 5º do DL n.º 67/2003) não hierarquize os direitos conferidos ao consumidor, numa interpretação conforme a Directiva (Directiva 1999/44/CE, de 25/05), há prevalência da “reparação/substituição” sobre o par “redução/resolução”, pois a concorrência electiva dos diversos direitos do consumidor não é absoluta, por não prescindir de uma “eticização da escolha” através do princípio da boa fé, sendo que o art. 4º nº 5 do diploma citado recorre à cláusula do abuso de direito”.
O Tribunal considerou assim que, ainda que o legislador tenha conscientemente procurado afastar-se do texto da Diretiva através de uma previsão normativa mais protetora do consumidor, aberta e flexível, o consumidor está vinculado pelo princípio da boa fé a procurar a manutenção da relação contratual pela reposição da conformidade pelo profissional.Alude-se ainda a uma interpretação conforme à Diretiva. Segundo o Tribunal, exigir a redução do preço primeiramente, sem dar oportunidade ao profissional de ser ele a repor a conformidade, constituíria assim abuso de direito. A mesma lógica se aplica à resolução do contrato, que é ainda mais grave, por comprometer a própria relação contratual.
Assim, embora tente evitar concluir que o diploma consagra uma hierarquia formal, o Tribunal reconhece a existência de uma hierarquia material/funcional ao refugiar-se na “sequência lógica”.
Infelizmente, este tipo de interpretações da lei irá sempre causar muitas dúvidas e uma incerteza jurídica no consumidor e no profissional, que, olhando para a letra da lei, dificilmente irão descortinar a existência deste mecanismo, mesmo que esta seja a solução que melhor equilibra os interesses de ambos.
No caso sub judice, independentemente do exposto, o Tribunal sempre teria chegado à decisão final de confirmar o recurso, dada a recusa de reparação pelo stand, mas a ratio decidendi deste acórdão não deixa de ser um sinal claro da recuperação desta orientação, que fora abandonada até por alguns dos seus primeiros defensores.
Antecipar-se-á aqui já o futuro, tendo em conta a Diretiva (UE) 2019/771, no seu artigo 13º. Voltaremos ao tema muito em breve. Fiquem atentos.
[1] Como exemplo: Acórdão do STJ de 15/03/2005
[2] Como exemplo: Acórdão do STJ de 5/05/2015
[3] “Com a entrada em vigor do DL 67/2003, a doutrina tem vindo a aceitar que a vontade do legislador é efectivamente afastar a hierarquia no exercício dos direitos decorrentes do cumprimento defeituoso na compra e venda de consumo; o que já é reconhecido mesmo entre autores que não concordam com tal opção legislativa.
Também a jurisprudência, após a entrada em vigor do DL 67/2003, vem adoptando a opinião de que foi afastada a hierarquia no exercício dos direitos – sendo já a mais numerosa” – Acórdão TRG de 20/2/2020.