No passado dia 10 de janeiro, foi publicada, em Diário da República, a Lei n.º 7/2022, em vigor a partir de 11 de março (art. 11.º), a qual visa proibir os comerciantes[1] que disponibilizam bens ou prestam serviços em território nacional, através de uma página na internet e/ou de aplicações móveis[2], de desenvolverem práticas de bloqueio geográfico (geoblocking) ou outras formas de discriminação nas transações em linha, baseadas, direta ou indiretamente, no local de residência ou de estabelecimento do consumidor (pessoa singular ou coletiva[3]), quando situado nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.
O referido diploma visa suprir uma lacuna subsistente mesmo após a adoção do Regulamento (UE) 2018/302 do Parlamento Europeu e do Conselho de 28 de fevereiro de 2018, cuja execução, no que tange às obrigações de designação das entidades responsáveis pela aplicação, fiscalização e prestação de assistência aos consumidores e à definição de um regime sancionatório que, de uma forma efetiva, proporcionada e dissuasora, garantisse o seu cumprimento, foi assegurada, na ordem jurídica interna, através da publicação do Decreto-Lei n.º 80/2019, de 17 de junho.
Com efeito, o Regulamento (UE) 2018/302, cujo objetivo consiste em prevenir o bloqueio ou restrição do acesso às interfaces em linha de um comerciante que opera num Estado-Membro dirigido a clientes (consumidores e empresas, em especial as micro, pequenas e médias empresas, que recebem serviços ou adquirem bens, ou procuram fazê-lo, na União, com o objetivo exclusivo de utilização final) de outros Estados-Membros que pretendem realizar transações transfronteiriças (o denominado “bloqueio geográfico”), assim como outras formas de discriminação direta ou indireta com base na nacionalidade ou no local de residência ou no local de estabelecimento dos clientes[4], não se aplica a situações meramente internas, em que todos os elementos de conexão de uma transação (nomeadamente, a nacionalidade, o local de residência ou o local de estabelecimento do cliente ou do comerciante, o local de execução, os meios de pagamento utilizados na transação ou na oferta, bem como a utilização de uma plataforma em linha) estão circunscritos num único Estado-Membro (art. 1.º, n.º 2).
Assim, com o propósito de conferir plena eficácia às disposições do art. 20.º da Diretiva 2006/123/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006 (“Diretiva Serviços”), transposta para o ordenamento jurídico nacional através do Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26 de julho, e conferir especial proteção aos consumidores das Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores que, de forma recorrente, se veem impedidos de aceder a bens fornecidos ou serviços prestados de forma essencialmente automatizada “após comunicação do seu domicílio, ou, similarmente, avisados da indisponibilidade de envio de bens para as ilhas” e, por essa via, são alvo de práticas discriminatórias que acentuam as desigualdades estruturais já determinadas pela insularidade e pelo caráter ultraperiférico das Regiões Autónomas e colocam em crise o princípio constitucional da continuidade territorial (arts. 5.º, 6.º, 225.º-2, e 229.º-1, todos da CRP), a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira apresentou à Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 71/XIV/2.
À semelhança do Regulamento europeu, a Proposta de Lei n.º 71/XIV/2 e a Lei n.º 7/2022 que veio a ser aprovada, sob a forma de decreto (para publicação), no termo do processo legislativo, pretenderam abordar as principais práticas discriminatórias operadas pelos comerciantes na atividade de disponibilização de bens ou de prestação de serviços com recurso a tecnologias de informação, arrumando-as em três grupos (arts. 4.º a 6.º): 1) acesso às interfaces online[5]; 2) acesso a bens e serviços; 3) não discriminação por razões relacionadas com o pagamento[6].
Concretizando: em primeiro lugar, a fim de garantir a igualdade de tratamento e evitar a discriminação entre clientes de Portugal Continental e das Regiões Autónomas, os comerciantes que disponibilizam bens ou prestam serviços em território nacional não podem bloquear nem restringir, por meio de medidas de caráter tecnológico ou qualquer outro, o acesso do consumidor às suas interfaces online por razões relacionadas com o seu local de residência ou com o local de estabelecimento em território nacional (art. 4.º-1). Embora a existência de diferentes versões das suas interfaces em linha, dirigidas a consumidores de Portugal Continental e das Regiões Autónomas não resulte vedada, o redirecionamento de um cliente de uma versão da plataforma em linha para outra versão, diferente daquela a que o mesmo tentou aceder inicialmente, com fundamento no seu local de residência ou no seu local de estabelecimento em território nacional, é proibida, salvo se o consumidor consentir expressamente nesse redirecionamento (art. 4.º-2 e 3). O consentimento expresso do cliente deverá ser considerado válido para todas as visitas subsequentes do mesmo consumidor à mesma interface em linha, sem prejuízo de dever resultar sempre salvaguardada a possibilidade de aquele retirar esse consentimento em qualquer momento. As proibições impostas nos n.ºs 1 e 2 não são aplicáveis na eventualidade de o bloqueio, a restrição de acesso ou o redirecionamento se revelarem necessários para assegurar o cumprimento de obrigações legais impostas pelo Direito da União Europeia ou pelo ordenamento jurídico português às quais as atividades do comerciante se encontram sujeitas (art. 4.º-4).
Em segundo lugar, com o fito de permitir que os clientes das Regiões Autónomas possam participar em transações nas mesmas condições que os clientes fixados em Portugal Continental e, por essa via, disponham de acesso pleno e equitativo aos diversos bens e/ou serviços oferecidos, os comerciantes não podem aplicar condições gerais de acesso aos bens e/ou serviços diferentes em função do local de residência ou do local de estabelecimento do consumidor em território nacional (art. 5.º-1)[7] e têm a obrigação de disponibilizar condições de entrega dos seus bens ou serviços para a totalidade do território nacional (art. 5.º-2). A proibição prevista no n.º 1 do art. 5.º não deverá, porém, ser entendida como afetando a aplicação de qualquer limitação territorial ou de outra natureza relativamente à assistência pós-venda ou a serviços pós-venda oferecidos pelo comerciante ao cliente. Por sua vez, a norma impositiva do n.º 2 do mesmo art. 5.º também não deverá ser interpretada no sentido de impor uma obrigação suplementar de suportar custos de transporte e de montagem/desmontagem para além do estabelecido no contrato, em conformidade com o Direito nacional e com o Direito da União Europeia, pelo que não obsta a que os comerciantes proponham condições de entrega distintas em função do local de residência ou do local de estabelecimento do consumidor, nomeadamente quanto ao custo da entrega (art. 5.º-3).
Em terceiro e último lugar, sem prejuízo de, em princípio, serem livres de decidir os meios de pagamento que pretendem aceitar[8], os comerciantes não podem aplicar diferentes condições a operações de pagamento[9], no âmbito dos instrumentos de pagamento por si aceites, por razões relacionadas com o local de residência ou de estabelecimento do consumidor em território nacional, o local de domiciliação da conta de pagamento[10] ou o local de estabelecimento do prestador de serviços de pagamento (art. 6.º-1). Sem embargo, os comerciantes não ficam impedidos de cobrar encargos não discriminatórios pela utilização de um instrumento de pagamento, nos termos do já referido Regulamento (UE) n.º 2018/302, os quais não podem exceder os custos diretos suportados pelo comerciante para emissão de ordem de pagamento através de dispositivo personalizado ou conjunto de procedimentos acordados entre o utilizador e o prestador de serviços de pagamento (art. 6.º-3). E, bem assim, quando tal se justifique por razões objetivas, a proibição imposta no n.º 1 do art. 6.º também não impede que o comerciante suspenda a entrega dos bens ou a prestação do serviço até receber uma confirmação de que a operação de pagamento foi devidamente iniciada (art. 6.º-2)[11].
A fiscalização do cumprimento das normas previstas na Lei n.º 7/2022 compete à Autoridade de Segurança Alimentar e Económica e às autoridades regionais com competência no âmbito da fiscalização económica (Autoridade Regional das Atividades Económicas, na Região Autónoma da Madeira, e Inspeção Regional das Atividades Económicas, na Região Autónoma dos Açores) – art. 7.º.
Uma derradeira consideração para recordar que, por força do disposto pelo art. 7.º do DL 24/2014, de 14 de fevereiro, nos sítios na Internet dedicados ao comércio eletrónico é obrigatória a indicação, de forma clara e legível, o mais tardar no início do processo de encomenda, da eventual existência de restrições geográficas ou outras à entrega e aos meios de pagamento aceites.
[1] “Comerciante” é, aqui, entendido como qualquer pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, com representação social ou não em território nacional, que atua, ainda que por intermédio de outra pessoa, com fins que se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional (art. 2.º, al. e)).
[2] Releva, aqui, a noção de “serviços prestados por via eletrónica”, i.e., serviços prestados pela Internet ou por meio de uma rede eletrónica cuja natureza torna a sua prestação essencialmente automatizada, envolvendo um nível muito reduzido de intervenção humana e impossível de assegurar sem recorrer às tecnologias da informação (art. 2.º, al. a)). Os serviços prestados por via eletrónica incluem, por exemplo, serviços de computação em nuvem (cloud), armazenamento de dados fora de linha, alojamento de sítios Web e fornecimento de barreiras de proteção, utilização de motores de busca e diretórios da Internet.
[3] “Consumidor” é, aqui, entendido como qualquer uma pessoa singular ou coletiva, residente ou com sede em território nacional, a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com caráter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios (art. 2.º, al. b)).
[4] Outros critérios de distinção que conduzam ao mesmo resultado que a aplicação de critérios diretamente baseados na nacionalidade ou no local de residência (independentemente do facto de o cliente em causa estar presente, de forma permanente ou temporária, noutro Estado-Membro), ou no local de estabelecimento dos clientes podem ser aplicados, nomeadamente, com base em informações que indiquem a localização física dos clientes, tais como o endereço IP quando ligado a uma interface em linha, o endereço para a entrega dos bens, a escolha do idioma ou o Estado-Membro em que o instrumento de pagamento do cliente tiver sido emitido.
[5] “Interface online” é, aqui, entendida como qualquer forma de software, incluindo um sítio Web ou uma parte dele e as aplicações, nomeadamente móveis, explorada por um comerciante ou por outrem em seu nome, que proporciona aos consumidores o acesso aos bens ou serviços do comerciante para efeitos da realização de uma transação que tem por objeto esses bens ou serviços (art. 2.º, al. d)). Constitui contraordenação leve a violação do disposto no art. 4.º, punida com coima de € 50 a € 1500 ou de € 100 a € 5000, consoante o agente seja pessoa singular ou coletiva (arts. 8.º-1 e 9.º-1).
[6] Constitui contraordenação grave a violação do disposto nos arts. 5.º e 6.º, punidas com coima de € 250 a € 3000 ou de € 500 a € 25 000, consoante o agente seja pessoa singular ou coletiva (arts. 8.º-2 e 9.º-2).
[7] Por “condições gerais de acesso” entendem-se os “termos e condições” e outras informações, incluindo os preços líquidos de venda, que regulam o acesso dos consumidores aos produtos ou serviços oferecidos por um comerciante, estabelecidos, aplicados e postos à disposição do público em geral, através de diferentes meios (designadamente, anúncios publicitários, páginas Web, documentação pré-contratual ou contratual), pelo comerciante ou por outrem em seu nome (art. 2.º, al. c)). Naturalmente, os “termos e condições” que são negociados individualmente entre o comerciante e os clientes não revestem a natureza condições gerais de acesso, para os efeitos da Lei n.º 7/2022.
[8] “Nos termos do Regulamento (UE) 2015/751 do Parlamento Europeu e do Conselho e da Diretiva (UE) 2015/2366 do Parlamento Europeu e do Conselho, os comerciantes que aceitem um instrumento de pagamento com cartão de uma determinada marca e categoria não têm a obrigação de aceitar nem cartões dessa mesma categoria, mas de uma marca diferente de instrumentos de pagamento com cartão, nem outras categorias de cartão da mesma marca. Assim, os comerciantes que aceitem um cartão de débito de uma determinada marca não são obrigados a aceitar cartões de crédito dessa marca, ou, se aceitarem cartões de crédito ao consumidor de uma determinada marca, não são obrigados a aceitar cartões de crédito profissionais da mesma marca. De igual modo, um comerciante que aceite serviços de iniciação de pagamentos na aceção da Diretiva (UE) 2015/2366 não é obrigado a aceitar um pagamento que implique a celebração de um novo contrato ou a alteração de um contrato com um prestador de serviços de iniciação de pagamento.” (considerando (32) do Regulamento (UE) 2018/302).
[9] “Operação de pagamento” é, aqui, entendida como o ato, iniciado pelo ordenante ou em seu nome, ou pelo beneficiário, de depositar, transferir ou levantar fundos, independentemente de quaisquer obrigações subjacentes entre o ordenante e o beneficiário (art. 2.º, al. f)).
[10] O Regulamento (UE) n.º 260/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho já proíbe que os beneficiários, incluindo os comerciantes, exijam contas bancárias localizadas num determinado Estado-Membro para que um pagamento em euros seja aceite (art. 9.º-2).
[11] A Diretiva (UE) 2015/2366 introduziu requisitos rigorosos de segurança para a iniciação e o processamento de pagamentos eletrónicos, com vista a reduzir o risco de fraude tanto para os métodos de pagamento novos como para os mais tradicionais, sobretudo os pagamentos em linha. Os prestadores de serviços de pagamento são obrigados a aplicar a chamada “autenticação forte do cliente”, um processo de autenticação do ordenante baseada na utilização de dois ou mais elementos pertencentes às categorias conhecimento (algo que só o utilizador conhece), posse (algo que só o utilizador possui) e inerência (algo que o utilizador é), os quais são independentes, na medida em que a violação de um deles não compromete a fiabilidade dos outros, e que é concebida de modo a proteger a confidencialidade dos dados de autenticação (cf. art. 4.º, n.º 30). Para transações remotas, tais como os pagamentos em linha, os requisitos de segurança vão mais além, exigindo uma ligação dinâmica a um montante e a um beneficiário específicos, para reforçar a proteção do utilizador, minimizando os riscos em caso de erro ou ataques fraudulentos (art. 97.º-2). No entanto, nas situações em que o comerciante não disponha de outros meios para reduzir o risco de incumprimento por parte dos clientes, incluindo, em particular, dificuldades relacionadas com a avaliação da qualidade de crédito do cliente, o comerciante deverá ser autorizado a não fornecer os bens ou a não prestar os serviços até ter recebido a confirmação de que a operação de pagamento foi devidamente iniciada. Em caso de débito direto, o comerciante deverá ser autorizado a exigir um pagamento adiantado através da transferência de crédito antes de os bens serem enviados ou antes de o serviço ser fornecido. No entanto, qualquer diferença de tratamento deverá basear-se apenas em razões objetivas e bem fundamentadas (considerando (33) do Regulamento (UE) 2018/302).