Num contexto de crescente complexidade nas relações de consumo e de aceleração das transformações económicas, sociais e digitais, o direito do consumo assume um papel cada vez mais relevante nas políticas públicas. As eleições legislativas de 2025 constituem uma oportunidade para avaliar de que forma os partidos políticos integram o tema nos seus programas. Neste texto, procedo a uma análise do tratamento dado ao consumo e ao direito do consumo nos programas eleitorais dos partidos com assento parlamentar, destacando medidas concretas, ausências e tendências comuns. A ordenação dos partidos resulta da relevância que entendo que, cada um, tendo em conta o programa, dá ao tema.
Partido Socialista
O Partido Socialista tem um ponto do seu Programa Eleitoral dedicado a “Maior proteção dos consumidores” (p. 26). Este ponto 1.6 está incluído na 1.ª missão: Uma economia em transformação assente em contas equilibradas, dentro de um ponto 1 dedicado a “Uma economia inovadora em transformação”.
Em matéria de consumo, o documento faz referência ao “património e […] compromisso” do Partido Socialista nesta área, incluindo “a extensão dos prazos de garantia dos bens móveis, a proibição da obsolescência programada, a regulação de ecossistemas digitais, o reforço da legislação para a prevenção e fiscalização de cláusulas abusivas em contratos”.
Considera-se que “a proteção dos consumidores é uma questão central na transformação da economia, tanto a nível nacional como europeu”, destacando-se a importância dos “consumidores mais vulneráveis”.
São oito as medidas mais concretas referidas no documento:
– Criação de um Portal do Consumidor, numa lógica de balcão único. Não é muito claro que diferentes portas de entrada no sistema irão ser substituídas por este balcão único. E quem fará a gestão deste Portal, admitindo-se que possa ser uma incumbência da Direção-Geral do Consumidor;
– Definição do Estatuto do Consumidor Vulnerável. Tenho algumas dúvidas em relação a um diploma autónomo destinado a proteger apenas consumidores vulneráveis. Trata-se de um conceito complexo e difícil de tornar operacional. Julgo que, neste domínio, a ação se deveria centrar no acompanhamento próximo do processo legislativo a nível europeu. Destaco, em especial, o Digital Fairness Act, que está prestes a ser apresentado, como proposta, pela Comissão Europeia, na sequência do Digital Fairness Fitness Check, publicado em outubro de 2024;
– Revisão do Código da Publicidade;
– Melhoria dos sistemas públicos de prevenção e apoio ao consumidor endividado;
– Definição de um “Índice de Reparabilidade de Produtos”, que permita ao consumidor obter informação sobre a vida útil dos produtos. Está aqui em causa, essencialmente, a transposição da Diretiva (UE) 2024/1799, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2024, relativa a regras comuns para promover a reparação de bens. Trata-se de um desafio relevante para os legisladores nacionais, como identifiquei num pequeno texto publicado recentemente, tendo em conta alguns problemas resultantes do diploma europeu. Estranha-se que não haja referência no documento à necessidade de transposição de outras diretivas europeias aprovadas nos últimos anos e que implicam opções relevantes da parte do Governo;
– Transmissão aos consumidores “toda a informação sobre a composição dos produtos agroalimentares”;
– Alargamento e modernização da rede de centros de arbitragem de consumo. Trata-se de uma medida com grande relevância prática. Além de dotar os centros de mais condições, julgo que seria muito importante fazer-se um efetivo controlo de qualidade das práticas dos centros e das decisões proferidas. Não basta o tratamento de muitos casos, é necessário que os procedimentos e as decisões tenham qualidade;
– Melhoria do enquadramento legal e reforço da fiscalização do jogo.
É possível encontrar mais referências ao consumo noutras partes do Programa.
AD – Coligação PSD/CDS
O Programa Eleitoral da AD – Coligação PSD/CDS também tem um ponto autónomo relativamente desenvolvido dedicado à “Defesa do Consumidor” (pp. 167 e 168). Este ponto surge num capítulo de que tem como título “Com Sentido de Estado”. Ao contrário do que sucede no documento do Partido Socialista, o tema aparece neste mais próximo da justiça do que da economia.
Num primeiro subponto introdutório, realça-se a necessidade de proteger os “interesses e os direitos dos cidadãos que adquirem bens e serviços no mercado”, defendendo-se que uma defesa eficaz do consumidor contribui, entre outros aspetos, para “o desenvolvimento económico e social do país”. Indicam-se ainda os “princípios da transparência, da informação, da participação, da prevenção e da reparação”. Não é claro em que medida transparência e informação se distinguem.
O segundo ponto indica as metas a atingir. Estas passam (i) pelo reforço da educação e da literacia digital dos consumidores, (ii) pela melhoria da fiscalização e (iii) pela melhoria da resolução alternativa de litígios de consumo.
Para se atingir estas metas, são indicadas quatro medidas:
– “Simplificar os mecanismos de reclamação e de resolução de conflitos”. Não é indicado o que se fará com vista a esta simplificação. Os procedimentos já são relativamente simples. Existirá, porventura, um problema relevante no que respeita à informação sobre a existência desses mecanismos;
– “Criar um sistema de mediação e arbitragem de consumo, que permita resolver de forma rápida, eficaz e gratuita os conflitos entre consumidores e fornecedores de bens e serviços”. Esta medida é difícil de compreender, pois já existe (há quase quarenta anos) um sistema de mediação e arbitragem de consumo. Será necessário, como já se referiu a propósito do Programa Eleitoral do Partido Socialista, garantir o seu funcionamento adequado, nomeadamente no que respeita à qualidade dos procedimentos e das decisões. Não deixa de ser muito interessante, e um ótimo sinal, a referência expressa ao tema nos dois programas;
– “Reforçar a fiscalização e a aplicação de sanções aos infratores das normas de defesa do consumidor, especialmente nos setores mais sensíveis, como a energia, as telecomunicações, os transportes e a saúde”. Um dos principais problemas do direito do consumo em Portugal é o da sua aplicação prática. Como já se defendeu num texto publicado neste blog, poderá estar em causa, por um lado, a falta de meios humanos das entidades fiscalizadoras e a ausência de orientações claras e transversais quanto à aplicação das normas de consumo. Acresce a perceção da inexistência de uma ação concertada por parte das várias entidades competentes nos casos em que a competência é partilhada. Por outro lado, realça-se a inexistência de sanções adequadas em caso de incumprimento dos deveres por parte dos profissionais;
– “Promover a educação e a literacia financeira dos consumidores, para que possam tomar decisões informadas e responsáveis sobre os seus créditos, poupanças e investimentos”.
É possível encontrar mais referências ao consumo noutras partes do Programa.
Livre
O Programa do Livre, apesar de não ter, ao contrário dos anteriormente referidos, um ponto especificamente dedicado à política de consumo e aos direitos dos consumidores, apresenta um conjunto muito alargado de ideias relevantes e concretas neste domínio. Justifica, por isso, uma análise autónoma e desenvolvida.
O documento contém medidas expressamente indicadas como visando a proteção do consumidor, no que respeita à cobrança abusiva de comissões bancárias (p. 8), à certificação das áreas de atuação dos profissionais da cultura (p. 87), à regulação dos “algoritmos imobiliários de portais digitais de divulgação de imóveis para venda e arrendamento” (p. 111).
No domínio da cultura, interessante é igualmente a ideia de incentivar “o público a não ser apenas consumidor, mas também criador”, por via da promoção de uma rede de “Casas da Criação” (p. 93).
Para responder à crise ambiental, defende-se uma “verdadeira transição para uma economia circular, que reduza o consumo de recursos” (p. 123). Nas páginas 131 e 132, são indicadas várias medidas relativas a “encorajar a economia circular e o consumo responsável”. Entre os objetivos indicados, destaco o de acabar com a obsolescência programada e instigar produtos de longa duração e defender o direito à reparação, fazendo-se referência expressa a diretivas europeias, o que não se verifica, em geral, nos restantes programas, o que mostra a atenção dada à necessidade de integrar o direito europeu nas soluções propostas. Igualmente interessante é a medida que consiste em limitar a publicidade no espaço público.
Encontramos também, tal como na generalidade dos programas, medidas relativas ao consumo de energia e de água.
No domínio do mercado digital, defende-se a “soberania digital” e a construção de uma “internet livre”, com destaque para o controlo dos dados e atividade pelas pessoas, nomeadamente a garantia de “que os roteadores e modems façam parte do domínio dos consumidores” (p. 182), ou para a proteção contra “práticas publicitárias intrusivas” (p. 183).
Outra medida concreta neste domínio é a abolição de “práticas de manipulação de consumidores em compras na internet conhecidas como «junk fees»” (p. 186). No essencial, está aqui em causa a garantia da transparência no que respeita ao preço ou outros valores a pagar pelo consumidor. Refere-se expressamente a proibição de impor custos adicionais pela escolha de um método de pagamento.
PAN – Pessoas-Animais-Natureza
O Programa Eleitoral também não dedica um ponto autónomo com medidas na área dos direitos dos consumidores.
No entanto, tem um conjunto alargado de referências ao consumo, com destaque para os setores da energia e da água. A sustentabilidade também constitui uma preocupação na ligação com o consumo. Neste domínio, referem-se expressamente medidas que consistem em “implementar o Índice de Reparação em todos os bens de modo a informar os consumidores sobre o potencial de reparação do produto e a sua atualização no ato da compra” e “assegurar a rotulagem ambiental de todos os produtos alimentares”.
O aspeto que gostaria de destacar no Programa do PAN é, no entanto, a ideia de que “é essencial ultrapassar a atual sociedade de consumo em ordem a uma sociedade da empatia”, acrescentando-se que de trata “de superar uma economia extrativista e linear por uma economia circular baseada no consumo consciente, no comércio justo e numa banca pública de fomento, a Banca Ética e das Finanças Solidárias”. Existe, portanto, um objetivo de mudança de paradigma no que ao consumo diz respeito.
Uma medida relevante consiste na “proibição de atualizações de preço durante o período de fidelização”, por via de uma alteração à Lei das Comunicações Eletrónicas. Tal medida parece-nos resultar dos princípios gerais de Direito e da própria lógica da fidelização, que deve ser bilateral, demonstrando, no entanto, a prática que os profissionais alteram por vezes os preços.
Igualmente relevante é a medida que consiste em “prever que todas as chamadas comerciais não solicitadas, realizadas por empresas para fins de vendas ou atendimento ao cliente, sejam realizadas através de números especificamente atribuídos para este efeito, garantindo a fácil identificação das chamadas por parte dos consumidores”. As chamadas comerciais não solicitadas são um problema e é interessante verificar que existe esta preocupação. Já no que respeita às linhas telefónicas de apoio, pretende promover-se “a liberdade de escolha aos consumidores no âmbito de serviços que recorram à Inteligência Artificial”.
Por fim, realço uma medida no que respeita ao consumo digital, visando-se a promoção de hábitos saudáveis, com ligação ao impacto do uso excessivo de ecrãs.
Outros partidos, com poucas referências ao tema
O Chega, apesar de apresentar um Programa Eleitoral bastante longo, não dedica nenhum capítulo ou subcapítulo ao consumo. São feitas cerca de duas dezenas de referências a “consumo” e a “consumidor”, mas, no essencial, em contextos diferentes daqueles que estamos aqui a tratar, como o das drogas. Ainda assim, há uma medida concreta relativa ao domínio da proteção do consumidor. No ponto 584 (p. 232), pode ler-se que o Chega pretende “combater a obsolescência programada, reforçando os direitos do consumidor, por exemplo, consagrando a obrigatoriedade de informação dos prazos de duração estimada dos equipamentos e aumentando o prazo para reparação”. Trata-se de duas medidas relevantes no que respeita à ligação entre consumo e sustentabilidade. Não se percebe, no entanto, muito bem o que significa “aumentar o prazo para reparação”. Quererá dizer que o prazo geral de 30 dias para efetuar a reparação deve ser alargado, dando-se mais tempo ao profissional? Ou pretende alargar-se o período da garantia legal especificamente para se permitir, nesse novo período alargado, o exercício do direito à reparação da coisa? Na primeira interpretação, não seriam reforçados os direitos dos consumidores. Seriam reforçados os direitos dos profissionais.
O Programa Eleitoral da Iniciativa Liberal também não contém nenhum ponto dedicado à política na área do consumo ou à defesa do consumidor. Encontram-se, ainda assim, no documento algumas referências a consumo. Está em causa, entre outros aspetos, a abertura do mercado de pagamentos eletrónicos, dando maior liberdade de escolha a consumidores e comerciantes (p. 81) ou a liberalização do setor do transporte individual de passageiros em veículo descaracterizado (p. 98) ou do mercado livreiro (p. 134). São ainda feitas algumas referências nas matérias da energia (pp. 108 e segs.) e do desperdício alimentar (p. 127).
O Compromisso Eleitoral do PCP não contém nenhuma medida específica relacionada com a proteção do consumidor ou o direito do consumo. É feita uma breve referência (p. 32) à necessidade de “crescimento do rendimento disponível das famílias, pelo crescimento dos salários e pensões, travando e corrigindo um consumo desequilibrado centrado no crédito bancário”.
O Manifesto Eleitoral do Bloco de Esquerda não faz qualquer referência ao consumo ou aos consumidores.
Síntese conclusiva
A análise comparativa dos programas eleitorais evidencia uma crescente valorização das questões relacionadas com o consumo e o direito do consumo, ainda que com abordagens e profundidades distintas entre os partidos.
O Partido Socialista e a AD (Coligação PSD/CDS) apresentam propostas estruturadas e com secções específicas dedicadas ao tema, destacando medidas como a melhoria da resolução de litígios, a regulação da publicidade e a proteção dos consumidores vulneráveis.
O Livre e o PAN, embora não lhe dediquem capítulos autónomos, integram de forma transversal a questão do consumo, com uma forte ênfase na sustentabilidade, na economia circular e na transparência digital, revelando uma visão mais transformadora e sistémica.
O Chega, a Iniciativa Liberal, o PCP e o Bloco de Esquerda revelam uma abordagem mais marginal ou mesmo ausente ao tema, limitando-se a referências pontuais, muitas vezes desconexas da lógica do direito do consumo.
Entre as medidas comuns a vários partidos, destaca-se a preocupação com o combate à obsolescência programada, a promoção da literacia do consumidor e o reforço dos mecanismos de fiscalização.
Verifica-se, assim, um consenso crescente quanto à importância estratégica da política de consumo, mas também uma divergência significativa quanto à profundidade, coerência e inovação das propostas apresentadas. Esta diversidade de visões pode refletir não apenas diferentes posicionamentos ideológicos, mas também diferentes compreensões do papel do consumo na sociedade e na economia contemporâneas.