O consumo nos programas eleitorais dos partidos políticos para as eleições legislativas de 2025

Doutrina

Num contexto de crescente complexidade nas relações de consumo e de aceleração das transformações económicas, sociais e digitais, o direito do consumo assume um papel cada vez mais relevante nas políticas públicas. As eleições legislativas de 2025 constituem uma oportunidade para avaliar de que forma os partidos políticos integram o tema nos seus programas. Neste texto, procedo a uma análise do tratamento dado ao consumo e ao direito do consumo nos programas eleitorais dos partidos com assento parlamentar, destacando medidas concretas, ausências e tendências comuns. A ordenação dos partidos resulta da relevância que entendo que, cada um, tendo em conta o programa, dá ao tema.

Partido Socialista

O Partido Socialista tem um ponto do seu Programa Eleitoral dedicado a “Maior proteção dos consumidores” (p. 26). Este ponto 1.6 está incluído na 1.ª missão: Uma economia em transformação assente em contas equilibradas, dentro de um ponto 1 dedicado a “Uma economia inovadora em transformação”.

Em matéria de consumo, o documento faz referência ao “património e […] compromisso” do Partido Socialista nesta área, incluindo “a extensão dos prazos de garantia dos bens móveis, a proibição da obsolescência programada, a regulação de ecossistemas digitais, o reforço da legislação para a prevenção e fiscalização de cláusulas abusivas em contratos”.

Considera-se que “a proteção dos consumidores é uma questão central na transformação da economia, tanto a nível nacional como europeu”, destacando-se a importância dos “consumidores mais vulneráveis”.

São oito as medidas mais concretas referidas no documento:

– Criação de um Portal do Consumidor, numa lógica de balcão único. Não é muito claro que diferentes portas de entrada no sistema irão ser substituídas por este balcão único. E quem fará a gestão deste Portal, admitindo-se que possa ser uma incumbência da Direção-Geral do Consumidor;

– Definição do Estatuto do Consumidor Vulnerável. Tenho algumas dúvidas em relação a um diploma autónomo destinado a proteger apenas consumidores vulneráveis. Trata-se de um conceito complexo e difícil de tornar operacional. Julgo que, neste domínio, a ação se deveria centrar no acompanhamento próximo do processo legislativo a nível europeu. Destaco, em especial, o Digital Fairness Act, que está prestes a ser apresentado, como proposta, pela Comissão Europeia, na sequência do Digital Fairness Fitness Check, publicado em outubro de 2024;

– Revisão do Código da Publicidade;

– Melhoria dos sistemas públicos de prevenção e apoio ao consumidor endividado;

– Definição de um “Índice de Reparabilidade de Produtos”, que permita ao consumidor obter informação sobre a vida útil dos produtos. Está aqui em causa, essencialmente, a transposição da Diretiva (UE) 2024/1799, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2024, relativa a regras comuns para promover a reparação de bens. Trata-se de um desafio relevante para os legisladores nacionais, como identifiquei num pequeno texto publicado recentemente, tendo em conta alguns problemas resultantes do diploma europeu. Estranha-se que não haja referência no documento à necessidade de transposição de outras diretivas europeias aprovadas nos últimos anos e que implicam opções relevantes da parte do Governo;

– Transmissão aos consumidores “toda a informação sobre a composição dos produtos agroalimentares”;

– Alargamento e modernização da rede de centros de arbitragem de consumo. Trata-se de uma medida com grande relevância prática. Além de dotar os centros de mais condições, julgo que seria muito importante fazer-se um efetivo controlo de qualidade das práticas dos centros e das decisões proferidas. Não basta o tratamento de muitos casos, é necessário que os procedimentos e as decisões tenham qualidade;

– Melhoria do enquadramento legal e reforço da fiscalização do jogo.

É possível encontrar mais referências ao consumo noutras partes do Programa.

AD – Coligação PSD/CDS

O Programa Eleitoral da AD – Coligação PSD/CDS também tem um ponto autónomo relativamente desenvolvido dedicado à “Defesa do Consumidor” (pp. 167 e 168). Este ponto surge num capítulo de que tem como título “Com Sentido de Estado”. Ao contrário do que sucede no documento do Partido Socialista, o tema aparece neste mais próximo da justiça do que da economia.

Num primeiro subponto introdutório, realça-se a necessidade de proteger os “interesses e os direitos dos cidadãos que adquirem bens e serviços no mercado”, defendendo-se que uma defesa eficaz do consumidor contribui, entre outros aspetos, para “o desenvolvimento económico e social do país”. Indicam-se ainda os “princípios da transparência, da informação, da participação, da prevenção e da reparação”. Não é claro em que medida transparência e informação se distinguem.

O segundo ponto indica as metas a atingir. Estas passam (i) pelo reforço da educação e da literacia digital dos consumidores, (ii) pela melhoria da fiscalização e (iii) pela melhoria da resolução alternativa de litígios de consumo.

Para se atingir estas metas, são indicadas quatro medidas:

– “Simplificar os mecanismos de reclamação e de resolução de conflitos”. Não é indicado o que se fará com vista a esta simplificação. Os procedimentos já são relativamente simples. Existirá, porventura, um problema relevante no que respeita à informação sobre a existência desses mecanismos;

– “Criar um sistema de mediação e arbitragem de consumo, que permita resolver de forma rápida, eficaz e gratuita os conflitos entre consumidores e fornecedores de bens e serviços”. Esta medida é difícil de compreender, pois já existe (há quase quarenta anos) um sistema de mediação e arbitragem de consumo. Será necessário, como já se referiu a propósito do Programa Eleitoral do Partido Socialista, garantir o seu funcionamento adequado, nomeadamente no que respeita à qualidade dos procedimentos e das decisões. Não deixa de ser muito interessante, e um ótimo sinal, a referência expressa ao tema nos dois programas;

– “Reforçar a fiscalização e a aplicação de sanções aos infratores das normas de defesa do consumidor, especialmente nos setores mais sensíveis, como a energia, as telecomunicações, os transportes e a saúde”. Um dos principais problemas do direito do consumo em Portugal é o da sua aplicação prática. Como já se defendeu num texto publicado neste blog, poderá estar em causa, por um lado, a falta de meios humanos das entidades fiscalizadoras e a ausência de orientações claras e transversais quanto à aplicação das normas de consumo. Acresce a perceção da inexistência de uma ação concertada por parte das várias entidades competentes nos casos em que a competência é partilhada. Por outro lado, realça-se a inexistência de sanções adequadas em caso de incumprimento dos deveres por parte dos profissionais;

– “Promover a educação e a literacia financeira dos consumidores, para que possam tomar decisões informadas e responsáveis sobre os seus créditos, poupanças e investimentos”.

É possível encontrar mais referências ao consumo noutras partes do Programa.

Livre

O Programa do Livre, apesar de não ter, ao contrário dos anteriormente referidos, um ponto especificamente dedicado à política de consumo e aos direitos dos consumidores, apresenta um conjunto muito alargado de ideias relevantes e concretas neste domínio. Justifica, por isso, uma análise autónoma e desenvolvida.

O documento contém medidas expressamente indicadas como visando a proteção do consumidor, no que respeita à cobrança abusiva de comissões bancárias (p. 8), à certificação das áreas de atuação dos profissionais da cultura (p. 87), à regulação dos “algoritmos imobiliários de portais digitais de divulgação de imóveis para venda e arrendamento” (p. 111).

No domínio da cultura, interessante é igualmente a ideia de incentivar “o público a não ser apenas consumidor, mas também criador”, por via da promoção de uma rede de “Casas da Criação” (p. 93).

Para responder à crise ambiental, defende-se uma “verdadeira transição para uma economia circular, que reduza o consumo de recursos” (p. 123). Nas páginas 131 e 132, são indicadas várias medidas relativas a “encorajar a economia circular e o consumo responsável”. Entre os objetivos indicados, destaco o de acabar com a obsolescência programada e instigar produtos de longa duração e defender o direito à reparação, fazendo-se referência expressa a diretivas europeias, o que não se verifica, em geral, nos restantes programas, o que mostra a atenção dada à necessidade de integrar o direito europeu nas soluções propostas. Igualmente interessante é a medida que consiste em limitar a publicidade no espaço público.

Encontramos também, tal como na generalidade dos programas, medidas relativas ao consumo de energia e de água.

No domínio do mercado digital, defende-se a “soberania digital” e a construção de uma “internet livre”, com destaque para o controlo dos dados e atividade pelas pessoas, nomeadamente a garantia de “que os roteadores e modems façam parte do domínio dos consumidores” (p. 182), ou para a proteção contra “práticas publicitárias intrusivas” (p. 183).

Outra medida concreta neste domínio é a abolição de “práticas de manipulação de consumidores em compras na internet conhecidas como «junk fees»” (p. 186). No essencial, está aqui em causa a garantia da transparência no que respeita ao preço ou outros valores a pagar pelo consumidor. Refere-se expressamente a proibição de impor custos adicionais pela escolha de um método de pagamento.

PAN – Pessoas-Animais-Natureza

O Programa Eleitoral também não dedica um ponto autónomo com medidas na área dos direitos dos consumidores.

No entanto, tem um conjunto alargado de referências ao consumo, com destaque para os setores da energia e da água. A sustentabilidade também constitui uma preocupação na ligação com o consumo. Neste domínio, referem-se expressamente medidas que consistem em “implementar o Índice de Reparação em todos os bens de modo a informar os consumidores sobre o potencial de reparação do produto e a sua atualização no ato da compra” e “assegurar a rotulagem ambiental de todos os produtos alimentares”.

O aspeto que gostaria de destacar no Programa do PAN é, no entanto, a ideia de que “é essencial ultrapassar a atual sociedade de consumo em ordem a uma sociedade da empatia”, acrescentando-se que de trata “de superar uma economia extrativista e linear por uma economia circular baseada no consumo consciente, no comércio justo e numa banca pública de fomento, a Banca Ética e das Finanças Solidárias”. Existe, portanto, um objetivo de mudança de paradigma no que ao consumo diz respeito.

Uma medida relevante consiste na “proibição de atualizações de preço durante o período de fidelização”, por via de uma alteração à Lei das Comunicações Eletrónicas. Tal medida parece-nos resultar dos princípios gerais de Direito e da própria lógica da fidelização, que deve ser bilateral, demonstrando, no entanto, a prática que os profissionais alteram por vezes os preços.

Igualmente relevante é a medida que consiste em “prever que todas as chamadas comerciais não solicitadas, realizadas por empresas para fins de vendas ou atendimento ao cliente, sejam realizadas através de números especificamente atribuídos para este efeito, garantindo a fácil identificação das chamadas por parte dos consumidores”. As chamadas comerciais não solicitadas são um problema e é interessante verificar que existe esta preocupação. Já no que respeita às linhas telefónicas de apoio, pretende promover-se “a liberdade de escolha aos consumidores no âmbito de serviços que recorram à Inteligência Artificial”.

Por fim, realço uma medida no que respeita ao consumo digital, visando-se a promoção de hábitos saudáveis, com ligação ao impacto do uso excessivo de ecrãs.

Outros partidos, com poucas referências ao tema

O Chega, apesar de apresentar um Programa Eleitoral bastante longo, não dedica nenhum capítulo ou subcapítulo ao consumo. São feitas cerca de duas dezenas de referências a “consumo” e a “consumidor”, mas, no essencial, em contextos diferentes daqueles que estamos aqui a tratar, como o das drogas. Ainda assim, há uma medida concreta relativa ao domínio da proteção do consumidor. No ponto 584 (p. 232), pode ler-se que o Chega pretende “combater a obsolescência programada, reforçando os direitos do consumidor, por exemplo, consagrando a obrigatoriedade de informação dos prazos de duração estimada dos equipamentos e aumentando o prazo para reparação”. Trata-se de duas medidas relevantes no que respeita à ligação entre consumo e sustentabilidade. Não se percebe, no entanto, muito bem o que significa “aumentar o prazo para reparação”. Quererá dizer que o prazo geral de 30 dias para efetuar a reparação deve ser alargado, dando-se mais tempo ao profissional? Ou pretende alargar-se o período da garantia legal especificamente para se permitir, nesse novo período alargado, o exercício do direito à reparação da coisa? Na primeira interpretação, não seriam reforçados os direitos dos consumidores. Seriam reforçados os direitos dos profissionais.

O Programa Eleitoral da Iniciativa Liberal também não contém nenhum ponto dedicado à política na área do consumo ou à defesa do consumidor. Encontram-se, ainda assim, no documento algumas referências a consumo. Está em causa, entre outros aspetos, a abertura do mercado de pagamentos eletrónicos, dando maior liberdade de escolha a consumidores e comerciantes (p. 81) ou a liberalização do setor do transporte individual de passageiros em veículo descaracterizado (p. 98) ou do mercado livreiro (p. 134). São ainda feitas algumas referências nas matérias da energia (pp. 108 e segs.) e do desperdício alimentar (p. 127).

O Compromisso Eleitoral do PCP não contém nenhuma medida específica relacionada com a proteção do consumidor ou o direito do consumo. É feita uma breve referência (p. 32) à necessidade de “crescimento do rendimento disponível das famílias, pelo crescimento dos salários e pensões, travando e corrigindo um consumo desequilibrado centrado no crédito bancário”.

O Manifesto Eleitoral do Bloco de Esquerda não faz qualquer referência ao consumo ou aos consumidores.

Síntese conclusiva

A análise comparativa dos programas eleitorais evidencia uma crescente valorização das questões relacionadas com o consumo e o direito do consumo, ainda que com abordagens e profundidades distintas entre os partidos.

O Partido Socialista e a AD (Coligação PSD/CDS) apresentam propostas estruturadas e com secções específicas dedicadas ao tema, destacando medidas como a melhoria da resolução de litígios, a regulação da publicidade e a proteção dos consumidores vulneráveis.

O Livre e o PAN, embora não lhe dediquem capítulos autónomos, integram de forma transversal a questão do consumo, com uma forte ênfase na sustentabilidade, na economia circular e na transparência digital, revelando uma visão mais transformadora e sistémica.

O Chega, a Iniciativa Liberal, o PCP e o Bloco de Esquerda revelam uma abordagem mais marginal ou mesmo ausente ao tema, limitando-se a referências pontuais, muitas vezes desconexas da lógica do direito do consumo.

Entre as medidas comuns a vários partidos, destaca-se a preocupação com o combate à obsolescência programada, a promoção da literacia do consumidor e o reforço dos mecanismos de fiscalização.

Verifica-se, assim, um consenso crescente quanto à importância estratégica da política de consumo, mas também uma divergência significativa quanto à profundidade, coerência e inovação das propostas apresentadas. Esta diversidade de visões pode refletir não apenas diferentes posicionamentos ideológicos, mas também diferentes compreensões do papel do consumo na sociedade e na economia contemporâneas.

O que podemos esperar da proposta do Digital Fairness Act?

Doutrina

No seguimento do texto anterior deste blog (“Que política para o Direito de Consumo Europeu no futuro? O novo foco na competitividade europeia”), pretendemos agora analisar, muito sucintamente, que expetativas podemos ter para a proposta do Digital Fairness Act (DFA), com base em tudo o que se sabe sobre este futuro procedimento legislativo europeu, em especial com o foco nos resultados e recomendações do Digital Fairness Fitness Check.

Esta análise é particularmente importante pois, quando consideramos os compromissos políticos dos comissários ao Parlamento Europeu, em especial  da Vice-Presidente  Henna Virkkunen e de Michael McGrath, Comissário para Democracia, Justiça, Estado de Direito e Proteção dos Consumidores, e os planos públicos da Comissão para 2025 no seu work programme, a proposta do DFA deverá ser a principal medida legislativa prevista em matéria de Direito do Consumo para os primeiros anos do mandato. Outra iniciativa, o “Digital package”, também será relevante, mas o seu objetivo será essencialmente de simplificação da legislação digital, como o RGPD, Data Act, Data Governance Act, etc..

Este texto pretende então sumária e criticamente analisar: 1) as principais recomendações dos dois documentos que serão fundacionais ao DFA: a resolução do Parlamento Europeu sobre addictive design online de 2023 e o Digital Fairness Fitness Check de 2024; 2) qual a timeline esperada para a proposta do DFA; 3) o que é que podemos esperar da proposta do DFA.

A resolução do Parlamento Europeu sobre conceção de serviços online para criar dependência dos consumidores (addictive design)

É inegável que o debate sobre a necessidade do DFA surgiu da publicação do Digital Fairness Fitness Checkem outubro de 2024, tendo a nova Comissão Von der Leyen incorporado então essa bandeira nos seus compromissos políticos.

Ainda assim, é necessário salientar que o debate público nas instituições europeias sobre os temas do DFA já tinha sido aberto pela  Resolução do Parlamento Europeu, de 12 de dezembro de 2023, sobre conceção dos serviços em linha de forma a criar dependência e proteção dos consumidores no mercado único da UE (2023/2043(INI)).

Nesta resolução, o Parlamento Europeu recomenda à Comissão que tome medidas legislativas e políticas para combater práticas de conceção de serviços digitais que tenham como objetivo criar dependência nesses serviços (o addictive design), devido aos danos que podem causar à saúde física e mental dos consumidores, especialmente de menores. O Parlamento pediu que se proíbam as práticas mais nocivas, que se promova a conceção ética e que se garanta a transparência, a escolha e a autonomia dos utilizadores, bem como a proteção dos consumidores mais vulneráveis.

Como exemplos de práticas digitais consideradas viciantes, a resolução refere o deslizar da página/feeds sem fim (infinite scroll),[1] a recarga de páginas (pull to refresh), as funcionalidades de vídeo de reprodução automática (never-ending autoplay), as recomendações personalizadas, as notificações de recuperação (recapture notifications), o jogo por marcação (playing by appointment) em determinados momentos do dia, o design de serviços que causa ‘time fog’ (perda da noção de passagem do tempo) e as notificações sociais falsas, assim como medidas que se aproveitem das vulnerabilidades psicológicas dos consumidores.

A resolução aponta como “alvos” de intervenção legislativa a Diretiva Práticas Comerciais Desleais (DPCD), a Diretiva Direitos dos Consumidores (DDC) e a Diretiva das Cláusulas Abusivas (DCA), que devem ser revistas para abordar estas práticas, referindo ainda o Regulamento dos Serviços Digitais (Digital Services Act, DSA, em especial quanto aos artigos 25.º (“Conceção e organização da interface em linha”) e 35.º (“Atenuação de riscos”), e o Regulamento da Inteligência Artificial (AI Act).

Esta resolução, aprovada por uma esmagadora maioria[2], teve como rapporteur Kim van Sparrentak, do grupo parlamentar Greens/EFA. Posteriormente, Kim van Sparrentak foi uma das eurodeputadas que mais questionou o Comissário McGrath na sua audição de confirmação no PE sobre a sua visão para o DFA. Tem sido apontada como possível futura shadow rapporteur para o DFA, mantendo-se bastante ativa nos debates relativos a Direito do Consumo e ao DFA.[3]

As conclusões do Digital Fairness Fitness Check

O Digital Fairness Fitness Check por si só, considerando apenas a sua dimensão (parte 1 com 350 págs., parte 2 com 78 págs. focado na Diretiva Omnibus, e os anexos de Use Cases com 428 págs.), mereceria vários textos neste blog. Para o presente, vamos apenas abordar muito sumariamente os principais resultados e recomendações.

Este estudo foi uma avaliação abrangente do Direito do Consumo Europeu, focada na equidade (fairness) digital, com o objetivo principal de determinar se as Diretivas core (DPCD, DDC e DCA) são adequadas para proteger os consumidores no ambiente digital, em especial considerando as alterações que já tinham recebido pela Diretiva Omnibus de Modernização do Direito Consumo (2019/2161).

O estudo focou-se numa seleção de práticas consideradas problemáticas em ambientes digitais (dark patterns, práticas agressivas, subscrições difíceis de cancelar, publicidade personalizada, preços personalizados, comércio social e marketing de influenciadores e vício digital), avaliando a eficácia, eficiência, aplicabilidade e coerência das diretivas de consumo para lhes dar resposta, assim como a sua coerência (overlaps e blind-spots, lacunas legais) com a restante legislação digital europeia, como o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), o DSA, o Regulamento dos Mercados Digitais (DMA) e o AI Act.

O estudo identificou desafios significativos para a aplicabilidade destas normas de Direito do Consumo Europeu. A rápida evolução dos mercados de serviços digitais, juntamente com o surgimento de novas práticas comerciais, tem criado lacunas legais e incertezas regulatórias. Os princípios gerais das diretivas (nomeadamente da DPCD e DCA), embora flexíveis e adaptáveis, são dificilmente aplicáveis nos novos casos concretos, existindo muita incerteza jurídica para consumidores, empresas e autoridades mesmo quando sinalizados pelas comunicações da Comissão (como nas Orientações de Interpretação da DPCD). Devido a esta incerteza e a dificuldades no enforcement, práticas que estão teoricamente abrangidas (como dark patterns, armadilhas de subscrição e publicidade oculta) persistem, existindo a necessidade de normas mais específicas que, por exemplo, explicitamente proíbam dark patterns. Os anexos da DPCD e DCA devem assim ser modernizados.

Foram identificadas diversas lacunas legais e falhas de coerência entre os diplomas, especialmente com o RGPD e o DSA. O papel dos dados pessoais na economia digital e a personalização de serviços e do preço ainda não estão suficientemente concretizados na legislação de consumo. Várias das obrigações aplicáveis a plataformas em linha pelo DSA deveriam também aplicar-se a outros profissionais.

O principal entrave à aplicabilidade da DPCD, o conceito do consumidor médio (“average consumer”), assim como o de consumidor vulnerável, tem de ser revisto e novas definições incluídas, para incorporar as noções de vulnerabilidade digital e de vulnerabilidades situacionais. Estes novos conceitos são necessários pois a hiperpersonalização de serviços digitais baseada em perfis tem um impacto notório que já não se limita apenas aos grupos tipicamente considerados vulneráveis (em função da idade, doença mental ou física e credulidade).

Devem ser introduzidas normas específicas para os contratos digitais, para combater práticas específicas deste domínio, por exemplo quanto aos free-trials, subscription trap, botões para cancelamento, etc.

O relatório recomenda ainda que as normas sobre deveres de informação e transparência sejam melhoradas, atendendo aos overlaps entre diretivas e aos riscos de excesso de informação (“information overload”). O valor opaco das moedas virtuais nos videojogos é especialmente visado, devendo passar a ser acompanhados do seu valor real (que entretanto a Comissão e a Rede de Autoridades de Consumo já começaram a adotar), e as loot-boxes também devem ter normas específicas. A personalização dos preços (como é que foram calculados) e dos serviços e o marketing de influencers online são também abordados.

O relatório recomenda também a inversão do ónus da prova face a tecnologias opacas e algoritmos e o reforço da proteção e dos direitos dos menores pelo Direito do Consumo Europeu, com a incorporação da proibição de uso de dados pessoais destes para publicidade personalizada (não apenas pelas plataformas em linha como já contemplado pelo DSA) e do princípio de conceção adequada à idade (“age-appropriate design”) dos serviços digitais.

Finalmente, o relatório inclui uma série de recomendações para reforçar o enforcement e a cooperação pelas autoridades nacionais, assim como o seu papel ativo no mercado.

Depois de muita antecipação, a publicação deste este relatório em outubro de 2024 foi um marco que salientou a necessidade de revisão do Direito do Consumo Europeu.

Qual a timeline para a proposta do Digital Fairness Act (DFA)?

Além das declarações do Comissário McGrath na sua audição no Parlamento Europeu (em novembro 2024) e no World Economic Forum em Davos (final de janeiro 2025), Maria-Myrto Kanellopoulou, a Chefe de Unidade em matéria de Direito do Consumo, na Direção-Geral da Justiça e dos Consumidores da Comissão Europeia (Directorate-General for Justice and Consumers (DG JUST)), afirmou numa audição no Parlamento Europeu promovida pelo Partido Popular Europeu (PPE) sobre a proteção de menores online, que a proposta do DFA não deverá estar pronta antes de 2026, devendo ser apresentada no início desse ano. Em março, num evento em Washington DC sobre o futuro da cooperação transatlântica entre a UE e os EUA, McGrath forneceu mais pormenores e apontou que a proposta do DFA deveria ocorrer a meio de 2026.

Considerando as Better Regulation Guidelines de 2021 e a Better Regulation Toolbox de 2023 da Comissão Europeia e o Acordo Interinstitucional entre as instituições europeias Legislar Melhor de 2016,  ainda antes de a proposta do DFA ser publicada, deverá ainda ser aberta uma consulta pública no portal “Have your say”, que terá de ficar aberta durante um período de 12 semanas.

A timeline para a proposta do DFA fica assim um pouco mais clara. Se o objetivo for a sua apresentação até ao final da primeira metade de 2026, é possível que ocorra uma consulta pública sobre o DFA entre o segundo e o terceiro trimestres de 2025. A análise de impacto que acompanha a proposta legislativa deverá ser realizada também nesta janela temporal. O tema deverá ainda ser discutido e trabalhado no European Consumer Summit, previsto para o final de maio. Finalmente, no final do ano, o Consumer Policy Advisory Group (CPAG) irá analisar os resultados recolhidos para considerar na preparação final da proposta. Esta timeline parece consistente com as declarações de Maria-Myrto Kanellopoulou, e tem sido avançada por várias fontes. Porém… além de não ter sido explicitamente e firmemente prevista, nem colocada por escrito no work programme de 2025 (embora exista a justificação de que é uma proposta para 2026, ao contrário da 2030 Consumer Agenda), há sinais de algumas reticências dentro da Comissão (e mesmo no Parlamento Europeu), que podem levar ao atraso da proposta. 

Então, o que é que devemos esperar da proposta do Digital Fairness Act?

Em primeiro lugar, é necessário relembrar o novo foco da Comissão Europeia na competitividade da economia da União Europeia. Neste prisma, medidas como um DFA muito “forte” podem ser consideradas contraproducentes, por criarem ou exacerbarem custos para os operadores económicos e/ou forçarem alterações nos seus modelos de negócios que levem a perdas de receitas. É ainda mais um diploma a considerar, quando o mote atual é “simplificar”. Estas preocupações têm sido apontadas como motivos para os adiamentos da proposta do DFA, podendo também ter o efeito de que as suas medidas fiquem aquém do esperado e/ou que a proposta não saia da gaveta, como alguns defendem.

Em segundo lugar, temos de considerar as propostas de atuação da resolução do PE e do Fitness Check. Ambos os documentos tecem recomendações que visam diplomas existentes, nomeadamente as diretivas de consumo e a sua relação com o DSA, o RGPD e o AI Act. 

Quando consideramos estes dois fatores, podemos descartar o cenário de que o DFA seja um novo diploma radical que irá revogar diplomas antigos em bloco e substituí-los por um novo diploma paradigmático que vem revolucionar o Direito do Consumo Europeu. O objetivo é simplificar e apenas corrigir/modernizar os conceitos e normas existentes.

Aliás, quando consideramos todos estes fatores, também podemos considerar o seguinte: o cenário mais provável é que o Digital Fairness Act acabe por não ser um “Act”, ou seja, um regulamento europeu.

A abordagem mais provável é que o DFA seja ou um pacote legislativo ou um diploma semelhante à Diretiva Omnibus, contendo alterações (mais ou menos cirúrgicas) a outros diplomas existentes, nomeadamente às 3 diretivas core de consumo (DPCD, DDC e DCA) e possivelmente ao DSA.

Este método tem sido defendido por vários atores políticos. A nuance entra na extensão da intervenção. O DFA deve ser só um “patch” que corrige “bugs” singulares na legislação existente ou deve ir mais além na sua intervenção?

O Professor Christoph Busch (aqui, aqui), após ter participado na reunião do Consumer Policy Advisory Group da Comissão, onde apresentou o relatório do CERRE (“Shaping the Future of European Consumer Protection: Towards A Digital Fairness Act?”), alertou para estas preocupações e tem defendido que o DFA deve ser um regulamento europeu (e não uma diretiva), que altere as diretivas de consumo: a) adicionando novas práticas comerciais ao anexo I da DPCD e cláusulas absolutamente proibidas à DCA, b) estabelecendo normas de antievasão (“anti-circumvention rule”) das proibições (como no artigo 13 do Digital Markets Act), c) torne obrigatórias medidas que facilitem a automação da fiscalização e supervisão pelas autoridades, d) simplifique os deveres de informação, e) estabelecendo um princípio de conceção (“by design”), pois, para proteger eficazmente os consumidores no ambiente digital, não é suficiente consagrar os direitos dos consumidores na legislação e informá-los dos seus direitos, é necessário que estes consigam facilmente exercer os seus direitos, por exemplo, através das interfaces do serviço do profissional (exemplo: botões de cancelamento). Estas medidas parecem bastante interessantes, mas é muito incerto se estão a ser bem acolhidas pela Comissão.

A BEUC também tem avançado com várias recomendações para o DFA, em especial na proteção de menores online, com o seu position paper (“Better Safe than Sorry”).

Por enquanto, a Comissão mantém-se muito vaga neste tema, não abrindo o jogo nem sobre o formato do DFA nem sobre o seu conteúdo. Recentemente, no European Retail Innovation Summit, o Comissário McGrath voltou a pronunciar-se sobre o DFA, assegurando que o diploma seria tanto pró-consumidores como pró-empresas, que não pretende criar mais entraves administrativos às empresas, que pretende abordar as práticas manipulativas e viciantes. Marketing por influencers, preços personalizados, moedas virtuais em videojogos mantêm-se na mira da Comissão.

Conclusões e uma ideia para reflexão – Atos delegados para editar as blacklists das práticas e cláusulas proibidas

Como referido, a consulta pública para preparar a proposta do DFA deverá ser publicada nas próximas semanas. Por agora, ainda sabemos muito pouco sobre os conteúdos e medidas que a proposta pode conter, tendo apenas acesso a algumas “pistas” sobre a forma do diploma. As recomendações que têm sido feitas, seja pelo Parlamento, no Fitness Check, por associações ou por académicos são apenas isso, recomendações, que podem sempre ser acolhidas, rejeitadas, modificadas e ou ignoradas.

Até termos mais informações concretas estamos, portanto, no terreno da especulação.

Assumindo esta realidade, podemos olhar criticamente para as medidas que estão a ser propostas.

Neste sentido, damos destaque a uma recomendação, particularmente inventiva e potencialmente controversa, para resolver o problema da morosidade e complexidade dos procedimentos legislativos europeus face à evolução das práticas no mercado e evolução tecnológica: o DFA alterar a DPCD e DCA para incluírem artigos que permitam à Comissão Europeia, por atos delegados, “editar” as blacklists nos anexos, de forma a acrescentar novas práticas comerciais desleais/cláusulas contratuais absolutamente proibidas.

Este tipo de delegação de poderes, previsto nos Tratados e amplamente utilizado em diversas áreas, como na fixação de requisitos de sustentabilidade (Ecodesign) para diferentes gamas de produtos e no AI Act (para a Comissão alterar os critérios de classificação de sistemas de IA de alto risco e a lista do anexo III, entre vários exemplos), poderia ser uma forma eficaz de permitir que a Comissão fosse colmatando a lista de práticas comerciais absolutamente proibidas com diferentes dark patterns, à medida que fosse recolhendo evidências científicas da sua nocividade, mantendo o PE e o Conselho a prerrogativa de se oporem, formulando objeções.

A maleabilidade destes anexos pode reduzir a segurança jurídica dos operadores económicos, mas pode contribuir para reduzir a fragmentação regulatória entre Estados Membros, especialmente quanto à DCA. No plano nacional, mesmo com atrasos na transposição, o efeito conforme poderia contribuir para uma melhor atuação de todos os stakeholders.

Existe um outro obstáculo bastante mais difícil de transpor: não é exatamente claro se este tipo de delegação de poderes é válida à luz do artigo 190.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Os atos delegados são atos não legislativos de alcance geral que só podem completar ou alterar elementos não essenciais do ato legislativo.

Enfim, é apenas (mais) uma ideia a considerar.


[1] Os sistemas de recomendação de várias plataformas já estão a ser investigados à luz do DSA pela Comissão. https://www.euronews.com/next/2024/10/02/tiktok-youtube-snapchats-video-recommendations-probed-by-eu-commission, Commission addresses additional investigatory measures to X in the ongoing proceedings under the Digital Services Act | Shaping Europe’s digital future

[2] 545 votos a favor, 12 contra e 61 abstenções.

[3] Como se viu no debate do EU Consumers Day no plenário do PE a 12 de março.

The EU Deforestation Regulation and its unintended effects on the voluntary provision of food information to consumers – A new wave of free-from claims

Doutrina

Regulation (EU) 2023/1115 – which is also known as ‘EUDR’ (EU Deforestation Regulation) – is a major piece of EU environmental legislation with a significant impact on the supply chains of food and non-food commodities that most contribute to deforestation and forest degradation. These commodities currently include coffee, cocoa, soy, cattle, oil palm, rubber and wood as well as certain derived products. The EUDR requires concerned businesses to set up a complex due diligence system, which should ensure that products placed on the EU market and exported from it are deforestation-free besides being legally produced in their country of origin. From this perspective, the EUDR forms part of an array of legislative measures that the EU has introduced over the last few years to ensure greater transparency and sustainability of modern supply chains, which include, among others, the Corporate Sustainability Reporting Directive (CSRD) and the Corporate Sustainability Due Diligence Directive (CS3D).

During the second semester of 2024, the EUDR featured regularly and prominently in specialised media outlets. This because of the concerns that were voiced by various stakeholders regarding their preparedness to meet the obligations imposed by the EUDR by its entry into application. For this reason, the EUDR’s application date, initially foreseen on 30 December 2024, was eventually postponed by one year, following the adoption of Regulation (EU) 2024/3234.

Even if it is not yet fully applicable, it is quite interesting to observe that the EUDR is already producing effects in the EU market in terms of business practices. Some of these practices go beyond the necessary adjustments that companies affected by the EUDR are expected to implement to comply with its due diligence requirements.

In a previous post on this blog, EUDR’s impact and implications were analysed through the consumer lens. One of the main conclusions that were reached there is that, in the future, it will be difficult for businesses supplying commodities and products subject to this EU regulation to highlight their deforestation-free status – and, thus, their added value in terms of environmental sustainability – through product labelling, marketing, and/or advertising.

Now, one year later, this analysis needs to be complemented by considering some of the most recent market developments that EUDR’s adoption has prompted, however, I would say, unintendedly.

I am primarily referring to the surge of ‘soy-free’ or ‘no-soy’ claims made on the packaging or in advertisements of plant-based foods currently being sold across the European market.

Generally portrayed as more environmentally friendly than meat and meat products, plant-based foods often include soy and soy products as ingredients in their formulation, among others, to guarantee the provision of high-quality proteins to the human diet.

However, with the EUDR singling out and – please allow me to say – demonising soy as one of the main culprits of deforestation, various manufacturers of plant-based foods seized the opportunity to actively promote product recipes without soy in it.

‘Free-from’ food claims – like the ones for soy that are here under exam – are by no means a novelty in the agri-food sector. On the contrary, they are a powerful marketing tool, which, by leveraging on the preferences, beliefs or even the fears of specific consumer groups, can ultimately drive and influence their purchasing decisions. ‘GMO-free’ or ‘no-GMO’ claims are a case in point here insofar as they target consumers who are overall mindful of natural diets or simply worried about the safety of what they eat. By the same token, environmentally conscious consumers are more likely to buy products that do not contain ingredients that may negatively impact the sustainability of our planet, as it has been the case in the past for palm oil and now it is happening for soy.

The central question here is whether this new wave of ‘free-from’ claims about soy we are seeing rise in the European market is legally substantiated or, instead, presents risks for the companies making them.

As a general rule, ‘soy-free’ and ‘no soy’ claims can be made in the EU if food companies ensure compliance with the legal principles governing fair information practices, which are enshrined in art. 7 (1) of Regulation (EU) No 1169/2011 on the provision of food information to consumers. This provision states, among others, that food companies cannot highlight the characteristics of their food products if other foods pertaining to the same product category possess similar characteristics. Applying this principle to the case in hand, this means that ‘soy-free’ and ‘no soy’ claims can be lawfully made, for instance, on plant-based products if there exist other competing products on the market with soy as an ingredient.

However, things can get more complicated if one considers that soy is regulated as an allergen in the EU and, as such, listed in Annex II of Regulation (EU) No 1169/2011. Under EU food law, allergens must be properly highlighted in the list of ingredients whenever they are added and used intentionally in the formulation of another food product. Besides, it is often the case that the presence of allergens – even if it only amounts to traces – cannot be excluded with absolute certainty in a finished food product, due to technically unavoidable cross-contaminations that may occur during the production process and/or result from the use of ingredients provided by suppliers. It is because of this that disclaimers such as ‘May contain’ or ‘May contain traces of’ – which are also known as Precautionary Allergen Labelling (PAL) statements – are very common on the European market and used to warn consumers suffering from food intolerances or allergies about the possible accidental presence of one or more ingredients they should avoid ingesting.

Now this raises the fundamental question as to whether current market practices where a ‘soy-free’ or ‘no soy’ claim coexists with a PAL statement in the product labelling, marketing and/or advertising are legitimate under EU law.

In our view, such practices are of dubious legality and, as such, not exempt from legal, economic and reputational risks.

To start with, stating that a food product is soy-free while admitting, at the same time, the accidental presence of soy in the finished product could be regarded as contradictory consumer information. As such, it might be construed as being contrary to the legal principle that stipulates that food information – including that provided on a voluntary basis – must be accurate, clear, and easy to understand for the consumer, based on the joint reading of art. 7 (1) and 36 (2) lett. a) and b) of Regulation (EU) No 1169/2011

Also, the use of additional statements (for instance, on packaging) clarifying that soy is not used intentionally in the product recipe and/or that the product may contain that ingredient (or traces of it), because of cross-contamination, is no guarantee that ‘soy-free’ and other similar claims will not be subject to consumer complaints or challenged by enforcement authorities. All in all, additional statements of the type here under exam do not seem suitable to prevent the occurrence of situations where consumers who are allergic to soy – and even the most careful ones – are exposed to the health risk resulting from its consumption. This even in spite of the fact that authoritative food science tells us that soy is not amongst the most dangerous allergens from a public health standpoint, as it is instead the case for other food allergens that can provoke severe reactions (e.g., anaphylactic shocks) such as peanuts and seafood (FAO & WHO 2023).  

In conclusion, while ‘soy-free’ and ‘no soy’ claims might be effective marketing tools to boost sales amongst consumers following vegetarian diets and/or keen on adopting sustainable consumption patterns, their use must be carefully pondered by food businesses. As shown above, the improper use of claims that refer to the absence of soy in food products might, under certain circumstances, mislead consumers, put their health at risk and, ultimately, expose food companies to sanctions and other enforcement measures. These considerations are particularly relevant now considering the legislative efforts deployed by the EU following the publication of the Green Deal in 2019 with a view to curbing false, unsubstantiated, and ambiguous environmental claims on consumer goods and their packaging, including food products.

Que política para o Direito de Consumo Europeu no futuro? O novo foco na competitividade europeia

Doutrina

Embora estejamos já no fim do primeiro trimestre de 2025, mantém-se especialmente urgente realizar uma reflexão sobre o que podemos esperar do resto do ano, e que espectativas devemos ter do futuro, em termos de política europeia e, em especial, que política é vamos ter para a proteção dos consumidores e o Direito Europeu do Consumo.

2024 foi um ano de fim de ciclo[1], com as eleições europeias em junho, novo Parlamento Europeu em julho, a tomada de posse da nova Comissão Europeia Von der Leyen 2.0 em dezembro, eleições presidenciais americanas em novembro e nova Administração Trump em janeiro.2025 marca o início de um novo ciclo[2], bastante desafiante, cheio de incertezas e de desafios.

Esta reflexão foca-se em dois temas nucleares, que serão abordados em dois textos neste blog: a) o novo foco na competitividade europeia pela Comissão Europeia; b) expectativas para a proposta do Digital Fairness Act, considerando os resultados do Digital Fairness Fitness Check.

Mudanças no Ar – o novo foco na competitividade europeia

Em setembro, foi publicado o relatório “The future of European competitiveness”, preparado pelo anterior presidente do BCE (“salvador do Euro”) e ex-primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, “encomendado” pela Comissão em 2023. O “Relatório Draghi”, como ficou conhecido, analisa a atual situação macroeconómica europeia, diagnosticando vários fatores e sintomas para a perda da competitividade e declínio face aos Estados Unidos e a China, propondo ainda uma série de recomendações estratégicas que visam inverter este processo e relançar a União Europeia enquanto bloco económico.

O relatório é extenso, divido em duas partes: a parte A, com análise inicial e estudo macroeconómico, com 69 páginas, enquanto a parte B, com 328 páginas, contém uma análise aprofundada setorial com recomendações de medidas e reformas. As recomendações visam essencialmente um maior aprofundamento das competências (e mesmo alguma federalização) da União Europeia. O relatório foca-se na necessidade de eliminar barreiras no mercado único, simplificar a carga regulatória sobre as empresas, “desbloquear” o movimento de capitais no espaço europeu, promover a consolidação de alguns grupos económicos europeus em certos sectores e a reindustrialização (mantendo um plano conjunto para descarbonização e transição climática), apostando na inovação tecnológica (destaque para a IA) e assegurando a segurança e soberania europeia.

As reações ao relatório foram diversas, entre a recetividade do diagnóstico geral e a controvérsia quanto a certas medidas, como a emissão de mais dívida comum europeia (oposta imediatamente pelos Países Baixos e Alemanha). Várias das reformas propostas dividiram assim Estado Membros e partidos europeus. Quanto à política em Direito do Consumo, várias das medidas foram elogiadas (especialmente em matéria de energia), enquanto outras levaram a críticas[3]. A BEUC manifestou preocupação quanto ao possível “relaxar” das normas de direito da concorrência para permitir a consolidação de certos mercados, como o das telecomunicações. Muitas vezes o direito do consumo, a regulação de segurança de produtos e a regulação digital são apontados como sendo excessivas, como um entrave ao crescimento das empresas (críticas semelhantes são também formuladas quanto ao modelo social europeu, em política fiscal ou laboral).

Surge assim a questão: até que ponto é que podemos assegurar o bem-estar dos consumidores sem sacrificar também a competitividade económica? Será possível compatibilizar ambos?

As instituições europeias, encabeçadas pela nova Comissão Europeia parecem pensar que sim. Muitas das principais recomendações do relatório foram integradas nos compromissos políticos dos comissários no seu escrutínio pelo Parlamento Europeu. Os primeiros resultados estão a começar a surgir.

No final de janeiro a Comissão publicou assim o seu primeiro grande documento programático, o “EU Compass to regain competitiveness and secure sustainable prosperity” (Bússola da Competitividade). A Comissão assume assim uma estratégia de investimentos em sectores estratégicos, na inovação, descarbonização, e uma aposta na simplificação e coordenação das normas aplicáveis.

Competitividade e Proteção de Consumidores

Quanto a medidas e políticas para o direito do consumo, ainda vamos ter de esperar um pouco mais, já que segundo o programa da Comissão para 2025 (“work programme 2025” e anexos), a “2030 Consumer Agenda” (que vai incluir “action plan for consumers in the Single Market”) só deverá ser publicada no último trimestre de 2025, sendo que deverá ser aberta uma consulta pública para este no segundo trimestre.

Ainda assim, a Comissão publicou já a comunicação “A comprehensive EU toolbox for safe and sustainable e-commerce” (acompanhado de um Q&A), em que delineia as suas prioridades e iniciativas para o comércio eletrónico, uma das áreas fundamentais com importância crescente.

É assumido que o mercado interno da UE é o mercado com as normas que mais protegem os consumidores e asseguram a segurança dos produtos no mundo, mas que estas normas e standards são frequentemente desrespeitadas e violadas no domínio do comércio eletrónico, em especial nas grandes plataformas online. Entre estas destacam-se as plataformas chinesas Temu[4] e Shein, as quais estão a ser alvo de investigações e ações judiciais, em especial para se perceber como estas plataformas têm permitido que uma “avalanche” de produtos de baixo preço, baixa qualidade, contrafeitos e perigosos para seres humanos (em especial crianças), inundem o mercado europeu. Além de representarem uma ameaça à segurança e bem-estar dos consumidores (e dos óbvios problemas no âmbito de sustentabilidade dos produtos e possíveis violações de direitos humanos no seu fabrico), a Comissão Europeia também realça os prejuízos que vendedores europeus sofrem com esta concorrência desleal, por terem de respeitar as normas e standards europeus.

Segundo esta comunicação, a solução não é diminuir a carga regulatória que consequentemente reduz a proteção dos consumidores, mas sim assegurar que as normas são devidamente cumpridas, impedindo a entrada de produtos desconformes e responsabilizando as plataformas. Desta forma, a comunicação propõe: a) uma reforma aduaneira, com um reforço dos controlos, fim da isenção de direitos para as encomendas cujo valor seja inferior a 150 euros e novas taxas sobre produtos importados para a UE através do comércio eletrónico, b) promover o enforcement dos novos diplomas para responsabilizar as plataformas online, como o Digital Services Act e o Digital Markets Act, o novo Regulamento de Segurança dos Produtos, o Regulamento de Cooperação entre Autoridades no domínio do Consumo, c) utilizar novas ferramentas digitais para a supervisão e para melhorar a cooperação, d) adotar um plano de ação para os diplomas em proteção ambiental, d) capacitar os consumidores e e) reforçar a cooperação internacional.

Esta primeira comunicação da Comissão constitui um primeiro sinal da sua política em Direito do Consumo, em conjunto com os já referidos compromissos políticos dos comissários, em especial da Vice-Presidente Henna Virkkunen e de Michael McGrath, Comissário para Democracia, Justiça, Estado de Direito e Proteção dos Consumidores, e os seus planos para uma proposta de um Digital Fairness Act baseado nas conclusões do Digital Fairness Fitness Check. Parece que a política em Direito Europeu do Consumo não será (muito) alterada no sentido de reduzir a proteção dos consumidores europeus. Embora haja um push quanto ao quadro regulatório digital, parece que a Comissão pretende continuar a complementar e aprofundar (talvez mais timidamente) o Direito do Consumo (em especial online) e em reforçar o seu enforcement.[5]

Quando a questão da competitividade europeia é levantada quanto à proteção dos consumidores, a abordagem (que também já tinha sido apontada no relatório do Digital Fairness Fitness Check) aparenta não passar necessariamente pela “desregulação”, mas pela “simplificação” do ordenamento jurídico, para melhorar a sua consistência (interna e externa) de forma a reduzir os custos de compliance para os agentes económicos, sem reduzir os direitos dos consumidores.

Porém, é necessário realçar que estes pressupostos podem mudar drasticamente.

Considerando apenas os sinais que vêm de dentro da Comissão, parece que outras matérias (como obrigações ambientais, de sustainable finance, corporate due dilligence) não vão ter tanta “sorte”, existindo um verdadeiro “push” para desregular. O work programme 2025 prevê vários diplomas de “simplificação” até ao final deste ano, incluindo no domínio “digital”, enquanto vários procedimentos legislativos anteriores foram “cancelados”, com a Comissão a retirar as suas propostas. Entre estes, é inevitável referir a proposta de diretiva relativa à responsabilidade civil em matéria de inteligência artificial (AI Liability Directive).

Brussels Effect vs Trump Effect

Finalmente, é necessário referir o “elefant in the room” subjacente à afirmação de que 2025 é o início de um novo ciclo “bastante desafiante, cheio de incertezas e desafios”: a nova administração Trump e as suas políticas comerciais e regulatórias.

Sem entrar em pormenores e análises geopolíticas, é necessário apontar que esta administração mudou substancialmente, radicalmente, a postura americana para a proteção dos consumidores – e que esta mudança também terá impacto nos consumidores europeus. Desde os planos de desmantelamento do Consumer Financial Protection Bureau, aos discursos do Vice Presidente JD Vance na campanha eleitoral e agora no AI Summit 2025 em Paris, tornou-se explícito e completamente incontornável com o memorando Defending American Companies and Innovators From Overseas Extortion and Unfair Fines and Penalties – The White House.

Neste memorando, a Administração Trump afirma que, se governos ou entidades reguladoras de outros Estados e blocos económicos aplicarem coimas, sanções, taxas ou outros tipos de penalizações discriminatórias, desproporcionadas ou destinadas a transferir fundos ou propriedade intelectual significativos sobre empresas americanas, a Administração irá aplicar tarifas e outras medidas retaliatórias em resposta.

Neste momento, estamos perante um confronto direto entre o “Brussels Effect” e o “Trump Effect”, e ainda não é clara qual vai ser a resposta europeia[6]. Por exemplo, será que as investigações em curso sobre X (antigo Twitter) por violações do Digital Services Act irão continuar? Não nos podemos esquecer de que, a nível nacional, as entidades reguladoras têm de ser independentes, enquanto, a nível europeu, a Comissão é um ator político.

Conclusões

2025 constitui o início de um novo ciclo, num número quase infindável de matérias e facetas.

Ainda não é inteiramente claro como vai ser a política europeia de Direito de Consumo este ano e no resto do mandato 2024-2029, mas já temos algumas pistas. A nova Comissão Europeia tem sido muito influenciada pelo Relatório Draghi e pela necessidade de desbloquear a competitividade europeia, com a redução/simplificação da carga regulatória. Até ao final do ano deverá ser publicado a 2030 Consumer Agenda, que, incluindo um “action plan for consumers in the Single Market”, deverá assim incluir mais indicações e planos para a proposta do Digital Fairness Act, que provavelmente ficará para 2026[7]. Em alternativa (mas muito menos provável) poderá ser parte do pacote legislativo “Digital”, embora o objetivo deste seja a simplificação da legislação digital.

Quanto à aplicabilidade extraterritorial dos diplomas europeus em regulação digital às Big Tech europeias, desde o Regulamento Geral de Proteção de Dados, o Digital Services Act, o Digital Markets Act e o AI Act, subsistem ainda dúvidas sobre como a União Europeia irá reagir:  o Brussels Effect irá vingar ou estas empresas escaparão impunes?

Fontes

Relatório Draghi The Draghi report on EU competitiveness

Digital Fairness Act Digital fairness – fitness check on EU consumer law

Briefings ao PE dos membros do conselho europarl.europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2025/700896/IPOL_BRI(2025)700896_EN.pdf

Competitive compass EU Compass to regain competitiveness

Commission announces actions for safe and sustainable e-commerce imports Safe and sustainable e-commerce imports

Questions and answers on the E-commerce Communication Q&A on the E-commerce Communication

Commission work programme 2025 – European Commission

Defending American Companies and Innovators From Overseas Extortion and Unfair Fines and Penalties – The White House


[1] É necessário referir que ainda ficaram pendentes para 2025 alguns procedimentos legislativos que não ficaram concluídos no último ciclo, nomeadamente a Diretiva Green Claims, a nova Diretiva de Resolução Alternativa de Litígios, nova Diretiva dos Direitos dos Passageiros Aéreos  e, em segurança de produtos, o novo Regulamento de Segurança de Brinquedos.

[2] Foram aprovados em 2024 os seguintes diplomas: a Diretiva de capacitação dos consumidores para a transição ecológica, a nova Diretiva de Responsabilidade do Produtor, a Diretiva do Direito à Reparação, o Regulamento de descontinuação da plataforma europeia de resolução de litígios em linha (ODR), o Regulamento dos requisitos de conceção ecológica dos produtos sustentáveis, e claro, o Regulamento de Inteligência Artificial.

[3] Outras ONG, na área da proteção do ambiente, também apontaram críticas a certas propostas sobre industrialização.

[4] A investigação sobre a Temu partiu da queixa promovida por um consórcio liderado pela BEUC, na ação “Taming Temu”.

[5] Por exemplo, podemos dar destaque aos resultados do último sweep realizado pela Comissão e as autoridades nacionais, que detetaram que quase metade dos vendedores de bens em segunda mão não cumprem com as suas obrigações à luz do Direito do Consumo, publicados no início de março. Nearly half of second-hand online traders fail to correctly inform consumers of their return rights

[6] A BEUC já apelou a que a União Europeia não se deixe intimidar, que continue firme na defesa dos consumidores europeus.

[7] Segundo declarações recentes do Comissário McGrath, deverá haver uma consulta pública e a proposta será apresentada a meio de 2026 (no evento: The Future of Transatlantic Digital Collaboration with EU Commissioner Michael McGrath | CSIS Events transcrição das declarações: The Future of Transatlantic Digital Collaboration with EU Commissioner Michael McGrath

Direitos televisivos no futebol português: principais desafios e problemas para o consumidor

Doutrina

O futebol em Portugal é já, desde há muito tempo, uma das principais indústrias de entretenimento do nosso país, gerando receitas perto da casa dos 1000 milhões de euros por época e representando 0,26% do PIB nacional. Mais do que meros números, o futebol enquanto tal é, talvez, um dos pilares da cultura portuguesa e podemos até dizer que, de uma forma ou de outra, atinge todos os portugueses.

No entanto, ao analisarmos mais ao detalhe algumas das principais áreas onde o futebol chega, podemos identificar problemas ao nível do Direito do Consumo, nomeadamente na questão dos direitos televisivos para a transmissão do mesmo.

Sendo este um espetáculo que deve ser primordialmente voltado para o consumidor, parece-nos relevante debater estes problemas e acima de tudo, apresentar soluções que permitam não só dignificar o consumidor, como também fazer cumprir as normas da Concorrência e de Direito do Consumo, muitas vezes, postas em segundo plano neste âmbito.

Ao contrário do que sucede nas principais ligas europeias (Inglaterra, Espanha, Alemanha), a titularidade dos direitos televisivos em Portugal pertence aos clubes ou às sociedades desportivas (SAD’s ou SDUQ’s) participantes na competição. Assim, cada uma tem a liberdade de comercializar esses direitos a qualquer operador, sendo que o mais comum é ao canal Sport TV. Desde 2013, os jogos do Sport Lisboa e Benfica no Estádio da Luz são transmitidos através de um canal próprio, a Benfica TV.

Este modelo de comercialização é, no entanto, alvo de críticas, tendo mesmo levado a Autoridade da Concorrência (AdC) a emitir, em janeiro de 2019, uma recomendação ao Governo para que os direitos televisivos passassem a ser comercializados de forma centralizada, seguindo o “modelo europeu” em que estes são vendidos através de um leilão, possibilitando uma melhor regulamentação que, naturalmente, traz vantagens para o consumidor, permitindo maior concorrência ao nível dos canais desportivos e preços ajustados ao valor de mercado.

De tal modo é assim que, a 22 de março de 2021, foi publicado o Decreto-Lei n.º 22-B/2021, que, na sequência da recomendação da AdC, determina que, a partir da época desportiva 2028/29, os direitos televisivos passem a ser comercializados de forma centralizada. Temos esperança de que muitos dos problemas que iremos discutir de seguida sejam, então, plenamente resolvidos.

Em primeiro lugar, salientam-se os acordos celebrados entre vários clubes da Liga Portugal com os grupos NOS e MEO (Altice), nomeadamente por parte dos “três grandes” (Sporting, Benfica e Porto), que pelo número de adeptos são, sem dúvida, os que representam maior peso económico. Esses acordos incluem, entre outros direitos, os de transmissão televisiva.

Ora, na perspetiva da AdC, tanto a duração (pelo menos 10 épocas desportivas) como a abrangência (NOS e Altice têm cerca de 80% deste mercado) destes acordos suscita problemas ao nível da concorrência, pois torna-se mais difícil para outros concorrentes adquirir direitos de transmissão, limitando a entrada no mercado nacional de canais desportivos que, possivelmente, até refletiriam melhor as preferências dos consumidores.

Desde que estes acordos foram celebrados, não houve qualquer alteração na transmissão dos jogos da Liga Portugal, mesmo com a entrada de um novo concorrente no mercado, a DAZN Portugal. Estes continuam quase em exclusivo a ser transmitidos pela Sport TV (com a exceção da Benfica TV).

Assim, no âmbito destes acordos, poderemos estar perante um abuso de posição dominante por parte destes agentes económicos, o que é vedado pelo art. 11.º-1 da Lei da Concorrência (Lei 19/2012) e, naturalmente, afeta o previsto no arts. 3.º-e) e 9.º, n.º 1, da Lei de Defesa do Consumidor, que consagram o direito à proteção dos interesses económicos do consumidor. A falta de concorrência pode levar à prática de preços excessivos.

Em segundo lugar, cumpre ainda discutir de que forma a estrutura acionista da Sport TV pode não só limitar a concorrência, como também perpetuar políticas de alinhamento de preços, mantendo-os artificialmente elevados. Este é também um dos problemas identificados pela AdC na recomendação já referida neste artigo.

Sendo este canal detido de forma igualitária pelas três principais operadoras de televisão em Portugal, estas naturalmente terão interesse em que os jogos da Liga Portugal sejam transmitidos na Sport TV, pelo que poderemos assistir a políticas anticoncorrenciais, com a possibilidade de as operadoras dificultarem a entrada no mercado de canais desportivos concorrentes e ainda evitarem competir entre si pela aquisição dos direitos, podendo, desta forma, praticar políticas de alinhamento de preços.

Assim, poderemos estar a falar de uma prática comercial desleal, proibida pelo DL 57/2008, por parte das operadoras a atuar em Portugal, na medida em que parece haver uma distorção do comportamento económico do consumidor, violando o disposto no art. 5.º-1 do diploma. O consumidor não tem outra opção que não seja pagar valores excessivamente elevados para poder assistir aos conteúdos desportivos.

Além de compartilharem a estrutura acionista do principal canal desportivo português, as operadoras firmaram um acordo entre si que permite a partilha dos direitos de transmissão dos jogos adquiridos individualmente, ou seja, a NOS que celebrara um acordo com o Sporting e com o Benfica disponibilizou à MEO (Altice) os direitos, e o mesmo, de maneira inversa, em relação ao Porto.

Este acordo, a curto prazo, parece beneficiar os consumidores, na medida em que não precisam de trocar de operador para assistir a determinados jogos.

Porém, a longo prazo, surgem problemas, também identificados pela AdC, tais como, a redução da concorrência entre os operadores. Como os jogos são partilhados, não há qualquer incentivo para que um tente superar o outro, a possível inflação dos preços por não haver qualquer tipo de disputa real e ainda a dificuldade, mais uma vez, para a entrada de novos concorrentes no mercado, prejudicando os consumidores, pois há uma clara manutenção de preços acima do valor de mercado nos pacotes desportivos. Nesta situação, tanto estes acordos como a questão da estrutura acionista da Sport TV parecem ir contra o disposto no art. 9.º-1 da Lei da Concorrência, que proíbe acordos e práticas concertadas por parte de empresas, neste caso, das operadoras a atuar em Portugal.

Em suma, a falta de concorrência e os preços elevados podem ter consequências negativas, não só para os consumidores como também para as próprias operadoras e para a indústria do futebol, na medida em que aumenta o recurso dos consumidores a plataformas ilegais para assistir aos jogos. Este é, aliás, um problema atual, como demonstra um estudo do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO), que revelou que, em junho de 2024, cerca de 17% dos portugueses acederam a conteúdos desportivos por meios ilegais, um número preocupante para um setor que pretende crescer e desenvolver-se.

Para evitar esta tendência e garantir um mercado mais equilibrado, é essencial reforçar a fiscalização sobre as operadoras e assegurar que os consumidores paguem valores justos pelo acesso aos conteúdos desportivos. A implementação do modelo centralizado em 2028/29 poderá constituir um passo positivo, mas, até lá, medidas regulatórias mais rigorosas e eficazes podem ajudar a mitigar os efeitos negativos do sistema atual.

Do Luxo ao Lixo ao Luxo: O Upcycling e seus Desafios para o Direito das Marcas

Doutrina

O upcycling tem vindo a ganhar destaque como uma nova filosofia de consumo e uma forma inovadora de expressão individual. Ao contrário da reciclagem tradicional, que envolve a transformação de resíduos em matéria-prima para a criação de novos produtos, o upcycling procura dar uma nova vida a bens já existentes, acrescentando valor e muitas vezes alterando radicalmente a sua estética ou funcionalidade. Embora frequentemente associado a um movimento criativo, o upcycling também pode ser uma atividade comercial, com cada vez mais designers individuais a especializarem-se nesta prática e a transformá-la em pequenos negócios.

No mundo da moda, essa tendência tem sido particularmente forte, atraindo grande atenção do público. Um exemplo é a designer mexicana Luisa Hurtado que transforma em bolsas os jeans das mais diversas marcas, tendo vídeos sobre esta arte que ultrapassam 34 milhões de visualizações. Esta nova abordagem à moda sustentável tem atraído cada vez mais consumidores, que veem no upcycling não apenas uma alternativa ecológica, mas também uma forma de adquirir peças únicas e exclusivas.

Do ponto de vista legal, um dos principais desafios do upcycling prende-se com o potencial conflito com os direitos das marcas originais. Muitas empresas argumentam que a reutilização dos seus produtos – sobretudo quando mantém seus elementos identificadores, como logotipos – constitui uma forma de free riding, ou seja, uma apropriação indevida do prestígio da marca para promover um novo produto sem que a empresa original tenha qualquer controlo sobre ele.

O problema central está na função essencial da marca: garantir a origem e a qualidade dos bens que coloca no mercado. Se, por exemplo, um criador independente reutiliza jeans da Levi’s para criar bolsas com este logo aparente, mas não há nos novos produtos um controlo de qualidade da marca Levi’s, estará o criador a enganar o consumidor sobre a origem daquele bem? As empresas podem afirmar que tais práticas induzem o consumidor a erradamente presumir que o novo produto tem a chancela da empresa, assim comprometendo a integridade da marca. Mas será que esta alegação se aplica a todos os casos?

Muitos dos designers que trabalham com upcycling não tentam esconder a transformação que realizam. Pelo contrário, fazem questão de documentar todo o processo, mostrando claramente que os produtos foram alterados e dando ênfase ao valor artístico e sustentável do upcycling. Além disso, muitos colocam a sua própria assinatura nos produtos, reforçando a ideia de que aquele bem é um item “upcycled” e não uma criação original da marca representada pelo logo que carrega. Em Portugal, a legislação já prevê a importância da comunicação clara ao consumidor no artigo 8.º da Lei de defesa dos Consumidores. Se comunicação do upcycling for suficientemente clara e inequívoca, ainda se pode falar em uma probabilidade de confusão por parte do consumidor? A resposta ainda não é clara, não existindo até o momento decisões dos Tribunais Portugueses ou do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) sobre o tema.

Apesar da incerteza jurídica, muitos académicos defendem que o upcycling não deve ser considerado uma violação dos direitos de propriedade intelectual (PI), seja dos direitos de autor ou do direito da marca. As suas análises são fundamentadas e consolidadas, sustentando que a PI não deve ser uma barreira à criatividade e, principalmente, às iniciativas que promovam a economia circular. O contexto regulatório europeu também aponta nessa direção. A Waste Framework Directive e a nova EU Strategy for Sustainable and Circular Textiles incentivam fortemente a reutilização de materiais e a redução de resíduos, alinhando-se com os princípios do upcycling. Talvez seja necessária uma interpretação também do direito das marcas de modo a não se tornar um obstáculo a estas práticas. É uma discussão que ainda está em aberto, mas é inegável que o upcycling representa um passo importante para um modelo de consumo mais sustentável. Desde que as práticas sejam transparentes e não induzam o consumidor em erro, o reaproveitamento criativo de materiais pode desempenhar um papel fundamental na economia circular, reduzindo desperdício e incentivando uma moda mais responsável.

Uma aldeia deslumbrante, um restaurante idílico e uma prática duvidosa

Doutrina

A história passa-se numa pequena aldeia medieval no centro de Portugal, uma aldeia deslumbrantemente preparada para receber todos os que a visitam. O cenário do restaurante é idílico, dentro das muralhas, com vista para o que outrora protegia o lugar dos invasores. O funcionário é simpático, sempre preocupado com o cliente, entretido, conversador na medida adequada. O ambiente é tranquilo e confortável.

No final da refeição, cumpridas as obrigações das partes, surge um pedido meio envergonhado, mas determinado e estruturado. Pode fazer uma crítica do restaurante na plataforma X, uma das mais famosas do mercado. Só se quiser, claro. E não custa nada. O papel plastificado apresentado ao cliente tem um código que é ativado com a simples aproximação do computador que todos trazemos nos nossos bolsos ou malas e que ainda continuamos a chamar telemóvel.

É certo que esta prática é recorrente, que este é apenas um exemplo especialmente significativo por surgir num contexto de certa forma inesperado. O cliente, que nunca ou raramente faz críticas ou comentários em plataformas online, sente, pela relação, curta, mas próxima, que estabeleceu com a pessoa que o atendeu, que não pode negar-se. Poder, se calhar, até pode, mas não consegue. Invocar os princípios num momento de relaxamento, de diversão, de descanso, é mais disruptivo do que colocar umas estrelas nuns espaços virtuais criados para o efeito. Ou fingir que coloca, se, entretanto, o funcionário se distrair um pouco. Até porque é preciso ainda fazer o login na plataforma, confirmar que se é humano, esperar.

Qual é o valor desta crítica? Não é espontânea, dificilmente será genuína, pensada, estruturada, feita por comparação com outros restaurantes, outras experiências. Isto porque é feita à pressa, sob pressão, imposta pelo momento, um momento tranquilo, relaxado. Vai ser enviesada, desde logo, por existir, mas também pela forma como foi feita. E vai influenciar, à sua escala, a decisão de outras pessoas. A crítica confunde-se hoje com a publicidade, não é feita por especialistas e, por isso, é subjetiva e motivada cada vez mais por outros fatores que não a qualidade – ou a sensação de qualidade de quem a faz.

A empatia será um dos fatores mais relevantes das críticas que são feitas por consumidores em plataformas online. Num restaurante, o atendimento, muito ligado com a empatia, será um aspeto importante, mas outros, como a qualidade dos ingredientes, a criatividade e originalidade dos pratos confecionados, a qualidade da confeção, a variedade, etc., são igualmente relevantes e tendem a não relevar.

Aquela crítica será também feita sob pressão, sem um pedido prévio do cliente, que é surpreendido num local em que não esperava sê-lo. O cliente pode estar preparado, num restaurante, para uma insistência educada e não exagerada no sentido de comer mais uma sobremesa ou de pedir uma segunda, ou terceira, garrafa de vinho. Não está, no entanto, preparado para ter de avaliar a experiência, para o mundo, assim que a refeição termina.

Trata-se de uma prática agressiva. Acresce que o cliente, por um lado, terá de fornecer dados a terceiros e, por outro lado, não beneficia de qualquer contrapartida. A existência de contrapartida não tornaria a prática lícita, uma vez que enviesaria ainda mais a crítica, mas teria, pelo menos, uma vantagem para o consumidor pela pressão a que é sujeito.

Anoitece na aldeia, a sua beleza torna-se ainda mais mágica ao olhar de quem passa, o processo digestivo segue o seu rumo e a internet tem mais uma crítica que não deveria ter, mais dados que não existiriam se não fosse tão importante para o negócio fomentar a criação. E assim continuamos a alimentar um sistema que tende a proporcionar menos momentos tranquilos e relaxados.

Preços Dinâmicos: Justiça de Mercado ou Prejuízo para o Consumidor?

Doutrina

A prática de preços dinâmicos, cada vez mais comum em setores como o entretenimento, onde bandas como os Oasis popularizaram a “venda” de bilhetes a preços flutuantes, tem gerado críticas e levantado preocupações sobre a sua transparência. Esta questão, identificada como uma ameaça à confiança dos consumidores, tem sido destacada pela Euroconsumers, organização dedicada à defesa dos direitos dos consumidores.

A estratégia de preços dinâmicos consiste na adaptação contínua dos valores cobrados por bens e serviços, ajustando-os de forma personalizada às circunstâncias do mercado. Este sistema utiliza tecnologia avançada, como algoritmos de inteligência artificial, para determinar preços com base em elementos como o comportamento dos consumidores, as tendências de compra em tempo real, a duração de campanhas promocionais ou até o perfil geográfico dos utilizadores. Durante a Black Friday, muitos consumidores deparam-se com variações inesperadas nos preços, frequentemente sem compreender os critérios aplicados pelos algoritmos que os determinam.

Por exemplo, os preços podem ser reduzidos em horários de menor procura, como durante a madrugada, para incentivar compras em momentos menos tradicionais. Por outro lado, em períodos de maior tráfego, como antes de eventos desportivos ou lançamentos de novos produtos, os valores podem subir. Empresas tecnológicas e plataformas digitais utilizam esta abordagem para maximizar a eficiência das vendas e reforçar a competitividade no mercado global.

Embora os preços dinâmicos possam beneficiar as empresas, permitindo-lhes adaptar-se rapidamente às flutuações do mercado e maximizar os seus lucros, este modelo tem levantado dúvidas no que diz respeito à transparência e à lealdade para os consumidores. A falta de clareza sobre os critérios que determinam os preços e a possibilidade de preços elevados em momentos de alta procura são algumas das questões que têm sido levantadas por organizações de defesa dos direitos dos consumidores.

O caso tornou-se conhecido em setembro, quando os bilhetes para os concertos da banda Oasis, na Irlanda e no Reino Unido, foram “vendidos” por preços que ultrapassaram os 400€, embora o valor inicial na Irlanda tivesse sido de 86€. A situação gerou desconforto entre os consumidores. Muitos só tomaram conhecimento do preço real após horas de espera em filas virtuais, enfrentando dificuldades para entender as variações de preço durante o processo. Os preços dinâmicos, geridos por algoritmos avançados, estão a transformar o mercado, mas também a levantar preocupações quanto aos seus impactos nos consumidores.

No âmbito do direito substantivo, a prática de preços dinâmicos é legal, ao abrigo da legislação de proteção dos consumidores da União Europeia.

Em 2021, a Comissão Europeia publicou uma orientação sobre a aplicação da Diretiva das Práticas Comerciais Desleais (transposta para a ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei n.º 57/2008), que menciona as condições sob as quais os comerciantes podem ajustar os preços de forma dinâmica (ponto 4.2.8). A Comissão destacou que, apesar da liberdade dos comerciantes em alterar os preços, é imprescindível que forneçam informações claras e acessíveis sobre o custo total do produto ou serviço, incluindo impostos e encargos adicionais. Esta transparência deve ser garantida especialmente quando o preço não pode ser definido com antecedência, devido às características variáveis do produto ou serviço.

Além disso, a Comissão alertou que práticas como o aumento de preços durante o processo de compra, sem conceder um tempo adequado para que o consumidor possa concluir a transação, podem ser consideradas desleais. Tais práticas prejudicam a capacidade do consumidor de tomar decisões informadas e podem distorcer o seu comportamento. Este tipo de abordagem pode ser classificado como uma violação das obrigações de boa-fé e diligência profissional previstas pela legislação europeia, afetando a confiança do consumidor no mercado.

A Diretiva dos Direitos dos Consumidores (transposta para o nosso ordenamento jurídico pelo Decreto-Lei n.º 24/2014) permite o uso de preços dinâmicos, desde que seja garantida total transparência para os consumidores. Estes devem conseguir ter acesso, antes de concluírem a transação, de forma clara e antecipada, às informações completas sobre o valor total a pagar, englobando todos os impostos e custos adicionais. O Artigo 6.º determina que deve ser apresentado o valor total do preço ou, caso isso não seja viável, os parâmetros utilizados para o seu cálculo. No caso de preços dinâmicos, as empresas devem comunicar de forma clara e antecipada as variações de preço e os parâmetros que influenciam essas mudanças. É essencial que tais práticas não induzam os consumidores em erro ou criem pressões indevidas, garantindo que possam tomar decisões informadas antes de concluir a transação.

Em suma, a prática de preços dinâmicos, embora legal e cada vez mais comum, exige maior atenção às questões de transparência e equidade para garantir a proteção dos consumidores. O equilíbrio entre a inovação empresarial e o respeito pelos direitos dos consumidores é essencial, especialmente em situações que podem influenciar o comportamento económico de forma indevida. Neste contexto, a questão poderá ser abordada nas novas medidas legislativas da União Europeia para reforçar a proteção do consumidor no ambiente digital, promovendo um mercado mais justo e transparente.

O Fenómeno “Black Friday”

Doutrina

A última sexta-feira de novembro tornou-se conhecida como “Black Friday”, um dia estrategicamente situado antes da época natalícia, em que os consumidores são bombardeados com e-mails, mensagens e alertas de várias lojas, anunciando horários de início, percentagens de desconto e uma enorme variedade de produtos disponíveis a preços reduzidos.

Se na ponta do iceberg os consumidores podem ver oportunidades de poupar algum dinheiro na compra dos presentes de Natal para a sua família e amigos, ou mesmo para os próprios; na parte inferior desse iceberg podemos ter vários problemas que nem sempre são evidentes como práticas comerciais desleais, erros na apresentação de preços, marketing direto agressivo, problemas de sustentabilidade e direitos humanos.

Infelizmente, com o aquecimento global e descongelamento dos glaciares, a subida dos níveis do mar pode gerar o desgelo acelerado da parte submersa dos icebergs, o que, por sua vez, pode provocar o colapso de grandes massas de gelo superficiais, afetando os ecossistemas marinhos e contribuindo para impactos potencialmente devastadores para as zonas costeiras e para a fauna local. Paralelamente, na nossa metáfora podemos interpretar a subida dos níveis do mar como o aumento da consciencialização sobre os problemas reais que, muitas vezes, permanecem ocultos, quer por estarem submersos, quer por a nossa atenção ser repetitivamente desviada para montras e e-mails promocionais. Assim, versemo-nos sobre questões importantes que podem e devem, eventualmente, “vir à tona”.

Uma das principais questões que surgem no contexto da Black Friday são as práticas comerciais desleais, que podem comprometer os direitos dos consumidores e prejudicar a sua confiança nas ofertas. De acordo com o Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, que regula as referidas práticas comerciais, um exemplo comum é a falsa redução de preços, em que os profissionais aumentam artificialmente o preço de um produto antes da Black Friday para, depois, oferecer um “desconto” que, na realidade, é fictício e não representa uma verdadeira vantagem comercial para os consumidores.

Outra prática frequente é a falsa urgência, em que os profissionais criam uma sensação de escassez, como por exemplo, anunciando que as promoções são válidas apenas por um período reduzido, ou que as quantidades de um determinado produto são limitadas, mesmo que isso não corresponda verdade. Essa tática leva os consumidores a tomarem decisões de compra apressadas, sem a oportunidade de avaliar adequadamente os produtos ou compará-los com outras ofertas disponíveis no mercado.

Estes tipos de comportamento são considerados desleais, nomeadamente, por explorarem a pressão emocional e a falta de tempo dos consumidores para avaliarem concientemente as ofertas comerciais que lhes são apresentadas, ao invés de proporcionar uma experiência de compra justa e transparente.

Durante a Black Friday, uma prática recorrente é o marketing direto agressivo, que leva os consumidores a serem incessantemente bombardeados com ofertas, seja por e-mail, mensagens de texto ou notificações nas redes sociais. A pressão constante para aproveitar os descontos pode comprometer o direito do consumidor de tomar decisões bem-informadas, violando assim o princípio da boa-fé contratual.

Ainda no mesmo contexto, surge também uma preocupação crescente com as questões de sustentabilidade e direitos humanos. Muitos profissionais, ao promoverem grandes descontos, não garantem que os produtos oferecidos sejam fabricados de forma ética e sustentável, podendo até envolver condições de trabalho precárias em países em desenvolvimento. O artigo 8.º da Lei n.º 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor) tem como objetivo garantir aos consumidores o direito de informação acerca das características principais dos bens que lhes são apresentados, incluindo a sua origem, para que estes mesmos consumidores possam tomar uma decisão de compra mais informada, com a devida consciência dos impactos ambientais e sociais negativos que podem estar na origem da produção de certos produtos.

Além disso, a Diretiva (UE) 2024/825 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de fevereiro de 2024, respeitante à capacitação dos consumidores para a transição ecológica através de uma melhor proteção contra práticas desleais e melhor informação, incentiva práticas de consumo que respeitem o meio ambiente e os direitos dos trabalhadores. Os profissionais devem ser transparentes quanto à origem dos seus produtos e às condições de fabrico, sendo reforçada a necessidade de durabilidade dos produtos. São ainda proibidas alegações ambientais sobre o desempenho futuro dos produtos, a menos que estejam acompanhadas de compromissos claros, objetivos, publicamente acessíveis e verificáveis, assim como publicidade que sugira benefícios para os consumidores que são manifestamente irrelevantes.

Por fim, e antes que chegue a “Cyber Monday”, é importante refletirmos sobre as consequências destas práticas comerciais, que, embora possam ser vantajosas num primeiro momento, muitas vezes escondem problemas significativos que afetam tanto os consumidores, quanto o nosso meio ambiente. Dessa forma, é fundamental que os consumidores se tornem mais conscientes e críticos das ofertas que recebem, questionando a transparência dos profissionais e prioritizando decisões mais esclarecidas.

Como disse o filósofo Henry David Thoreau, em 1854 no seu livro Walden, “um homem é rico na proporção do número de coisas que pode permitir-se deixar de lado”, pois ao adotar uma abordagem mais simples e consciente, podemos concentrar-nos no que realmente importa, evitando a armadilha do consumo excessivo e das falsas promessas que, frequentemente, encobrem a verdadeira natureza de muitas ofertas comerciais.

Web scraping e o RGPD: Como garantir uma recolha lícita de dados pessoais

Doutrina

A raspagem da web (“web scraping”) é uma prática que permite aos programadores de inteligência artificial (“IA”) recolher grandes quantidades de dados para treinar os seus modelos. Este processo automatiza a recolha de dados, através de pedidos de acesso (GET requests) feitos a Localizadores Uniformes de Recursos (Uniform Resource Locators, ou “URLs”) específicos. O web scraping é frequentemente emparelhado com ferramentas de web crawling que atualizam dinamicamente as listas de URLs a serem processados, expandindo ainda mais o âmbito da recolha de dados.

No desenvolvimento da IA, o web scraping desempenha um papel vital. A eficácia dos modelos de IA depende frequentemente da qualidade, quantidade e diversidade dos dados com que são treinados. Ao facilitar a recolha rápida e em grande escala de dados, o web scraping fornece a matéria-prima para treinar estes modelos. Contudo, a recolha de dados – que na maioria dos casos irá incluir dados pessoais – através de web scraping suscita preocupações em termos de proteção de dados. Os princípios fundamentais do Regulamento Geral de Proteção de Dados (“RGPD”) – como a minimização, transparência e licitude – opõem-se geralmente a esta forma de recolha de dados pessoais em massa. Em particular, o princípio da licitude exige que todo o tratamento de dados seja feito com base numa das bases legais consagradas no RGPD. Dada a falta de contacto direto com o titular de dados, a quantidade de dados pessoais potencialmente recolhida e o caráter ‘silencioso’ da prática, a utilização destas ferramentas tem sido considerada como contrária ao RGPD por falta de uma base legal aplicável.

Mas será mesmo assim? Será que nenhuma das bases legais do RGPD permite, em situação alguma, a utilização desta ferramenta de recolha de dados?

Artigos 6.º e 9.º do RGPD

O tratamento de dados pessoais é proibido, exceto se justificado por uma base legal constante dos arts. 6.º e 9.º do RGPD, se aplicável. O art. 6.º aplica-se a todo o tratamento de dados pessoais, enquanto o art. 9.º regula a utilização de categorias especiais de dados, como dados que revelem origem racial, opiniões religiosas, orientação sexual ou dados relativos à saúde, que exigem salvaguardas mais rigorosas.

Assim, para que o web scraping seja permitido, pelo menos uma das bases constantes dos arts. 6.º e 9.º – se necessário – deve ser aplicável. Dadas as características deste método de recolha de dados, vemos que as possibilidades estão limitadas aos interesses legítimos consagrados no art. 6.º(1)(f).

Começando pelo art. 6.º, a maioria das bases deve ser excluída, uma vez que a recolha de dados não tem, normalmente, uma interação direta com o titular de dados nem prossegue um interesse protegido pelo RGPD:

Consentimento: o web scraping geralmente não permite cumprir os requisitos para um consentimento válido, uma vez que não é informado (p. ex. os titulares de dados não sabem quem está a raspar os seus dados ou como serão utilizados), não é específico (p. ex., tornar dados pessoais acessíveis ao público não implica o consentimento para a raspagem) e não é inequívoco (p. ex., colocar os dados em linha não equivale a uma autorização explícita para a raspagem).

Execução de um contrato: O web scraping não envolve um contrato com a pessoa em causa, o que torna esta base jurídica inaplicável.

Obrigação legal ou interesse público: Estas bases exigem uma obrigação legal ou um interesse público definido por lei. Uma vez que a raspagem da Web não é legalmente exigida nem legalmente protegida, estas bases não se aplicam.

Interesses vitais: Esta base aplica-se apenas em casos de ameaças imediatas à vida ou à segurança física, que são improváveis em contextos de recolha de dados da internet. Muito embora se possa conceber a utilização de um sistema de IA para proteger os interesses vitais do titular de dados (p. ex. num contexto hospitalar), o mesmo não se aplica ao treino do modelo com base em dados pessoais recolhidos da internet.

Assim, e por exclusão de partes, a única base legal potencialmente aplicável será a relativa a interesses legítimos. Para tal, é necessário demonstrar que o tratamento de dados é necessário ao interesse prosseguido e que não se sobrepõe aos direitos e interesses dos titulares dos dados. No entanto, alcançar este equilíbrio é complexo e depende do caso concreto.

Quando a recolha de dados envolve categorias especiais de dados, aplicam-se condições mais rigorosas nos termos do art. 9.º. Dado o caráter particularmente intrusivo do tratamento destes dados pessoais e o nível de proteção consagrado pelo RGPD, nenhuma das exceções do art. 9.º(2) permite a raspagem de categorias especiais de dados:

Consentimento: o consentimento explícito exigido pelo art. 9.º é mais exigente do que o consentimento previsto no art. 6.º. Este facto torna-o impraticável para a maioria dos cenários de recolha de categorias especiais de dados da internet.

Dados pessoais manifestamente tornados públicos: esta exceção aplica-se se o titular de dados tiver intencionalmente tornado os seus dados pessoais públicos. No entanto, a sua aplicação ao web scraping apresenta dois desafios: demonstração de intencionalidade – os responsáveis pelo tratamento devem demonstrar que os dados pessoais foram deliberadamente partilhados pelo titular de dados com o objetivo de serem publicamente acessíveis – e a aplicação concomitante de uma das bases do art. 6.º, que vimos ser limitada a interesses legítimos.

As outras exceções: a maioria das exceções ao abrigo do art 9.º(2) protegem interesses que não incluem o web scraping para fins de treino de IA. Mesmo que a utilização de um sistema de IA possa ser enquadrada nas situações aí previstas (p. ex., dispositivos usados para diagnóstico médico), a própria recolha de dados para treinar o modelo não será, ou só raramente será, considerada necessária.

Assim sendo, na maioria dos casos, a recolha de categorias especiais de dados por via de web scraping para treinar modelos de IA não será permitida à luz do RGPD, por falta de uma base legal aplicável.

Interesses legítimos e web scraping

Nestes termos, vemos que a única hipótese para um tratamento de dados lícito no contexto de web scraping dependerá da aplicação do art. 6.º(1)(f) do RGPD. Contudo, a sua aplicação depende da passagem por três testes: os responsáveis pelo tratamento devem demonstrar que (i) o interesse prosseguido é legítimo, (ii) o tratamento de dados pessoais é necessário e (iii) não infringe desproporcionadamente os direitos, liberdades e interesses dos titulares de dados. A falha em qualquer uma destas fases fará com que o web scraping não se possa basear em interesses legítimos sendo, portanto, ilícito.

Identificação de um interesse legítimo

Primeiro, os responsáveis pelo tratamento devem definir um interesse específico a ser prosseguido pelo web scraping. O RGPD não fornece uma lista exaustiva de interesses legítimos, pelo que, no caso concreto, devem estar relacionados com necessidades legítimas de dados durante o ciclo de vida do modelo de IA.

Por exemplo, o treino de modelos de IA requer conjuntos de dados diversos de modo a garantir resultados de qualidade. Se a recolha de dados pessoais publicados na Internet permitir obter este conjunto diversificado de dados pessoais, então o responsável pelo tratamento poderá ter um interesse legítimo na recolha dos mesmos.

Contudo, existem limitações na escolha do interesse. Se o modelo em causa que se pretende treinar for proibido – p. ex. ao abrigo de outros Regulamentos da UE, como o Regulamento da IA – então o interesse não pode ser legítimo por ser ilícito. De igual forma, a raspagem de dados publicados na internet de forma claramente ilícita – e.g. websites de piratagem – padecem da mesma falha, na medida em que o acesso a esses dados é igualmente ilícito.

Sendo possível encontrar um interesse que seja legítimo para o web scraping durante o ciclo de vida do modelo de IA, então o primeiro teste está ultrapassado, podendo passar-se para o seguinte.

Necessidade do tratamento de dados

O teste de necessidade é o segundo passo para determinar se os interesses legítimos podem justificar a raspagem da Web. Aqui, o responsável pelo tratamento deve demonstrar:

Que não existem alternativas menos intrusivas: a recolha de dados da internet só deve ser efetuada se não existirem outros métodos que permitam atingir o mesmo objetivo.

Que o escopo da raspagem se limita ao necessário: a não existirem alternativas, que os dados recolhidos devem ser limitados ao estritamente necessário para o objetivo identificado.

Assim, numa primeira fase, os responsáveis pelo tratamento devem avaliar outros métodos para a prossecução do interesse em causa e verificar se permitem alcançar os objetivos determinados. Isto passará primeiramente por verificar se dados pessoais são necessários ou se, alternativamente, é possível alcançar o mesmo objetivo com, p. ex., dados anonimizados ou sintéticos.

Se os dados pessoais foram necessários, então uma segunda fase passará por avaliar outros métodos de recolha que permitam alcançar os mesmos fins. Por exemplo, os responsáveis pelo tratamento devem avaliar se os dados pessoais necessários podem ser obtidos sem raspagem. Se a raspagem da Web for considerada necessária por falta de métodos alternativos, o responsável pelo tratamento deve tomar medidas adicionais para garantir a estrita necessidade dos dados pessoais recolhidos. Por exemplo:

Minimização de dados: Deve definir as categorias de dados pessoais necessários e limitar a recolha de dados a essas categorias. Deve, também, limitar a conjugação de web scraping com web crawling de modo a evitar uma recolha excessiva e indiscriminada de dados pessoais. A utilizar as ferramentas em conjunto, deverá filtrar os dados pessoais obtidos e eliminar aqueles que não são necessários.

Exatidão: Validar regularmente a qualidade e a estrutura dos dados extraídos.

Limitação do armazenamento: Estabelecer períodos de retenção claros e eliminar ou tornar anónimos os dados que já não são necessários. De igual forma, deve minimizar as possibilidades de os dados pessoais serem extraídos com a utilização do modelo final.

Proporcionalidade

Sendo o web scraping necessário ao interesse prosseguido, o passo final para a aplicação do art. 6.º(1)(f) envolve a ponderação dos interesses do responsável pelo tratamento com os direitos, liberdades e interesses dos titulares dos dados. Para tal, é necessário avaliar a natureza do tratamento, o seu âmbito e o seu impacto nos indivíduos, especialmente em grupos vulneráveis como crianças.

Nestes termos, a raspagem da Web coloca dois desafios principais a este equilíbrio:

Dados sensíveis e pessoas vulneráveis: a recolha de dados particularmente sensíveis (p. ex. dados de localização ou financeiros e categorias especiais de dados) ou de dados de indivíduos vulneráveis (p. ex. menores) faz pender a balança para a desproporcionalidade do tratamento de dados. Por isso, a raspagem destes dados pessoais, relativos a estas categorias de titulares de dados, dificilmente passará o crivo da proporcionalidade, devendo ser excluída.

Falta de transparência: A raspagem da Web ocorre frequentemente sem o conhecimento dos titulares dos dados, que podem não ter conhecimento do que foi recolhido, de onde ou para que fim. Esta falta de transparência e frustração das expectativas do titular de dados faz igualmente pender a balança a favor dos interesses do titular de dados.

Para mitigar estas limitações, os responsáveis pelo tratamento devem garantir a segurança dos dados recolhidos de modo a diminuir possíveis riscos derivados do tratamento de dados e, na medida do possível, garantir que os titulares de dados são informados do tratamento.

Assim, em termos de integridade e a confidencialidade, as medidas a adotar dependerão do caso e dos riscos que o treino do modelo de IA pode levantar. De forma geral, os responsáveis pelo tratamento devem:

Avaliar os níveis de risco associados ao web scraping e ao ciclo de vida do modelo de IA, tendo em conta as fontes dos dados, as ferramentas utilizadas para os extrair e para treinar o modelo e a utilização prevista do sistema de IA.

Implementar salvaguardas como encriptação, compartimentação de dados e monitorização contínua para evitar divulgações e acessos não autorizados.

Restringir o acesso às bases de dados, manter registos de acesso e supervisionar a partilha de dados.

Mitigar a possibilidade de o modelo e/ou sistema final fornecer os dados pessoais como output.

Treinar o seu pessoal para identificar e gerir eficazmente os riscos de segurança.

No que toca à necessidade de transparência, embora o RGPD exija que os titulares de dados sejam informados sobre a recolha dos seus dados pessoais (arts. 13.º e 14.º), a raspagem da Web apresenta desafios a esta prestação de informação devido à dificuldade de identificar e notificar o grande número de titulares de dados potencialmente afetados. Neste sentido, o RGPD não exige a notificação individual do titular de dados quando esta implica um esforço desproporcional ao responsável pelo tratamento (art. 14.º(5)(b)). Fatores como a idade dos dados, a sua pseudonimização e a disponibilidade de detalhes de contacto influenciam esta avaliação.

Contudo, mesmo quando o responsável pelo tratamento está isento desta notificação individual, este deve tornar a informação acessível ao público, explicando de forma clara o escopo e finalidade da recolha. Tal passará, por exemplo, pela inclusão dos URLs dos sítios Web extraídos e resumos do conteúdo dos dados de treino. Os responsáveis pelo tratamento devem também cumprir as obrigações de transparência nos termos do artigo 53.º do Regulamento da IA, quando aplicável.

Uma abordagem estratificada ao fornecimento de informações – destacando os pontos-chave logo à partida e oferecendo explicações detalhadas em patamares inferiores – garante a clareza da informação fornecida, equilibrando os seus direitos com os interesses legítimos do responsável pelo tratamento. Nestes termos, embora seja claro que o web scraping não pode ser visto como uma ferramenta a utilizar sem considerações suplementares, a sua exclusão em absoluto também não parece ser clara à luz do princípio da licitude do RGPD. Tudo dependerá do caso concreto e das medidas adotadas pelo responsável pelo tratamento de modo a garantir a necessidade e proporcionalidade dos dados pessoais recolhidos na prossecução do seu interesse legítimo.