Inteligência Artificial – Recomendações universais da UNESCO em discussão

Doutrina, Legislação

A UNESCO apresentou o draft da sua “Recommendation on the Ethics of Artificial Intelligence (AI)” que, a ser aprovado, será o primeiro instrumento normativo global sobre a matéria.

O Comité Especial Intergovernamental de peritos da UNESCO (CEI) discutiu o documento numa primeira reunião, entre 26 e 30 de abril, a que se seguirá outra, prevista para entre 21 e 25 de junho. O vídeo dos trabalhos encontra-se disponível aqui, nas seis línguas oficiais (inglês, francês, espanhol, russo, árabe e chinês).

Esta iniciativa ocorre poucos dias após a Comissão Europeia anunciar o novo pacote legislativo que contém uma Proposta de Regulamento relativo à Inteligência Artificial (IA), com o primeiro quadro jurídico comunitário sobre a matéria, aqui divulgado e algum tempo depois da União Europeia aprovar as suas próprias “Ethics Guidelines on Artificial Intelligence”, elaboradas pelo grupo de peritos que criou para o efeito, o “High Level Expert Group on AI”, apresentadas neste blog aqui.

Na sua 40ª sessão, em novembro de 2019, a Conferência Geral da UNESCO decidiu desenvolver um instrumento de definição de padrões internacionais sobre a ética da Inteligência Artificial tendo, desde então, liderado um esforço multidisciplinar, multicultural e pluralista que permitiu a elaboração de um relatório preliminar e um primeiro draft da Recomendação. Em setembro de 2020, foi distribuído aos Estados Membros para recolha dos seus comentários que foram tidos em consideração para a preparação do relatório final e do draft da Recomendação sobre a Ética da IA agora em discussão.

Nas reuniões do CEI será consensualizado o texto que constituirá o draft final da Recomendação, a ser submetido aos Estados Membros para adoção na 41ª sessão da Conferência Geral da UNESCO.

Se adotada, a Recomendação será o primeiro instrumento normativo global neste campo de crítica importância em todo o mundo.

A União Europeia pretende aprovar um Regulamento relativo à Inteligência Artificial, de aplicação tendencialmente universal, como tem vindo a acontecer com o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), com impacto em países terceiros que se relacionam com a UE e já tem as suas Orientações relativas à Ética na Inteligência Artificial.

A UNESCO prepara Recomendações universais sobre o tema.

Destacam-se, como diferenças relevantes entre o futuro Regulamento e a futura Recomendação, o facto de aquele ser vinculativo e esta indicativa, bem como o facto de o Regulamento assentar numa análise de risco (risk assessement), excluindo da sua aplicação o que considera ter risco mínimo ou nenhum e a Recomendação abranger nas suas considerações éticas toda a IA, independentemente do nível de risco que comporte.    

A UNESCO enuncia a ideia de soberania da informação (data sovereignty) e a necessidade de a manter, a par do incentivo à partilha de informação (data sharing).

Esta é a quadratura do círculo que todos procuram. É preciso que os dados circulem, por serem fundamentais à eficácia da inteligência artificial e ao desenvolvimento dos negócios e da economia e é desejável que cada individuo decida sobre os seus dados e seja protegido. O ponto final aqui serve para evitar avançar para as questões críticas “protegido de quem e de quê”, já que essas além de poderem não gerar consensos, são essencialmente desconhecidas e em permanente e muito rápida evolução.

Por uma arbitragem de consumo mais verde (e mais eficiente para consumidores e empresas)

Doutrina

Por Joana Campos Carvalho e Jorge Morais Carvalho

Está em curso a nível internacional uma campanha para tornar as arbitragens mais verdes (Campaign for Greener Arbitrations). Esta campanha visa aumentar a sensibilidade da comunidade arbitral para a sua significativa pegada de carbono. O objetivo passa por trabalhar com todos os intervenientes relevantes para promover as melhores práticas na gestão sustentável das arbitragens, estimulando todos os profissionais a comprometerem-se com os Princípios Orientadores da Campanha e a reduzirem as suas emissões de carbono, assinando o Compromisso Verde (Green Pledge).

Se é certo que as emissões de carbono poderão ser mais significativas na arbitragem comercial, em especial na arbitragem comercial internacional, tendo em conta o maior volume de documentos e o maior número de pessoas envolvidas em cada processo, não é menos verdade que a arbitragem de consumo pode desempenhar aqui um papel muito relevante na prossecução de um tão importante desígnio do Mundo nos dias de hoje. A adesão dos nossos centros de arbitragem a esta campanha seria um sinal muito positivo para o sistema, podendo ter igualmente a vantagem de tornar mais eficientes e menos dispendiosos os processos para os centros e para as partes.

Vejamos algumas das práticas do Compromisso Verde que poderiam – e deveriam – ser aplicadas à arbitragem de consumo em Portugal:

1) Troca de correspondência por via eletrónica, com a ressalva dos casos em que a correspondência em papel é expressamente necessária. A utilização do correio eletrónico também tem uma pegada de carbono, mas menor do que o envio de cartas. Além de ser mais sustentável, a utilização do e-mail enquanto meio preferencial de contacto torna o processo consideravelmente mais eficiente, em especial na arbitragem de consumo, que se pretende rápida e com custos reduzidos.

2) Utilização preferencial de instalações de videoconferência como alternativa às viagens (incluindo para inquirição de testemunhas). Esta é a principal mudança que, na nossa perspetiva, se impõe na arbitragem de consumo. Reduz, sem dúvida, a pegada ecológica. E permite, além disso, a consumidores e profissionais não terem de se deslocar aos centros de arbitragem para as diligências relativas aos processos, em especial para o julgamento arbitral. Se há algo de positivo que resulta da experiência de pandemia em curso é a demonstração de que circulávamos muitas vezes sem sentido, perdendo tempo em atividades desnecessárias. Com as técnicas certas e a formação adequada, tudo num processo arbitral pode ser feito à distância, com a mesma proximidade e com a mesma ou muito mais qualidade. A experiência do último ano demonstra-o.

Não há nenhum princípio fundamental do processo justo que seja, em abstrato, afetado com a realização de um julgamento à distância ou com a inquirição de testemunhas através de uma plataforma como o Zoom. Uma das preocupações poderá ser com o respeito pelo princípio da imediação. Este princípio, que não é um princípio fundamental, impõe que o julgador deve ter o contacto mais direto possível com as pessoas que servem como fontes de prova[1]. Ora, a proximidade não tem de ser física. Pelo contrário, no Zoom, a expressão facial das pessoas até está mais próxima, podendo ser mais fácil lê-la do que numa sala de audiência. Não havendo, em abstrato, violação de qualquer princípio, o árbitro deve ter o cuidado de avaliar a existência de eventuais violações no caso concreto, tal como faz em qualquer audiência presencial. Por exemplo, se, no caso concreto, a ligação à internet de uma das partes é muito instável, pode estar colocado em causa o princípio do contraditório. Nessa situação, o árbitro deve tomar medidas, por exemplo a remarcação da audiência. Noutro exemplo, se o árbitro se aperceber de que alguém está na mesma sala a tentar influenciar a testemunha deve tomar medidas para que a isenção desta seja salvaguardada. Pode, também, haver casos em que o árbitro considere que, por alguma razão, naquele caso concreto faz mais sentido a audiência ser presencial. Por exemplo se as pessoas são todas da mesma cidade e uma das partes é mais idosa e demonstra ter muitas dificuldades informáticas. Os princípios do processo justo são suficientemente flexíveis para acomodar a realização de audiências arbitrais de consumo à distância. A barreira será mais relacionada com a circunstância de ser uma mudança e algo a que os profissionais da justiça não estão habituados, o que causa alguma insegurança. Por esse motivo, pode ser importante também descansar as partes e os advogados, explicando como tudo se vai passar para que se possam sentir seguros e confortáveis durante o processo.

Argumentos contrários à realização de diligências à distância na arbitragem de consumo, por natureza mais flexível e informal, esbarram também com a prática comum de fazer diligências à distância em arbitragens comerciais internacionais, muitas vezes de muitos milhões de euros. O ambiente agradece. E a generalidade dos consumidores e empresas também.

3) Evitar a impressão de documentos e ter o processo apenas em versão digital. Julgo que esta prática já será dominante nos centros de arbitragem de consumo em Portugal. Há muitos anos, quando a gestão dos processos do CNIACC estava no NOVA Consumer Lab, da NOVA School of Law, tomámos a decisão de tornar os processos exclusivamente digitais, não se imprimindo qualquer documento e incentivando as partes a comunicarem com o centro apenas por meios digitais. Também aqui se ganha ao nível da redução da pegada ecológica, mas também ao nível da eficiência e dos custos do processo arbitral.

A questão coloca-se igualmente no âmbito da mediação. Já existe também um Green Pledge neste domínio, com site em português. Como se pode ler nessa página, o passo que muitos mediadores tiveram de dar para a mediação online, em resposta à pandemia da Covid-19, demonstrou que há formas de mediar amigas do ambiente que são, simultaneamente, facilmente acessíveis e eficazes. A associação a estes compromissos é fácil. E esta associação pode depois ser anunciada. Fica, pois, o desafio lançado a mediadores/as e árbitros/as de consumo.


[1] José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 4.ª ed., Gestlegal, 2017.

A Clubhouse e a privacidade dos utilizadores

Doutrina

A nova rede social Clubhouse é já bastante conhecida entre o público, tendo chegado a Portugal no início deste ano. A sua popularidade eclodiu após ter sido palco de um debate entre Elon Musk, Marc Andreessen, Vlad Tenev e muitos outros empresários e elementos do público em geral, que chegaram mesmo a esgotar a capacidade da sala de chat hospedada pela Clubhouse para o efeito. O seu crescimento exponencial trouxe também alguns desafios e uma certa polémica em torno da privacidade dos utilizadores.

O grande fator que torna a Clubhouse atrativa prende-se com a sua exclusividade: além de apenas estar disponível para iOS, cada utilizador começa com dois convites para enviar a outras pessoas para aderirem à rede social. Esta rede social permite manter diálogos com outros utilizadores através de áudio – diálogos estes que, de acordo com a política de privacidade, não ficam gravados, pois quando a sala virtual é encerrada, não subsiste qualquer registo daquele chat. Existem exceções: os áudios dos utilizadores poderão ser temporariamente armazenados se houver, por exemplo, o reporte de um incidente. Nesta é ainda possível acumular-se seguidores e seguir outros utilizadores. O nome de utilizador é público e poderá ser utilizado para encontrar outros utilizadores. É possível mudar a fotografia de perfil, ligar a aplicação às contas do Twitter e Instagram, entre muitas outras opções.

Não obstante toda esta atratividade e utilidade, várias têm sido as preocupações levantadas pelos utilizadores no que se refere à privacidade. Até agora, muitos foram os relatos apresentados de falhas nesta vertente. Um dos casos mais falados é datado de fevereiro deste ano: um utilizador conseguiu transmitir em direto o áudio de uma sala de chat no seu website, mas foi rapidamente banido pois a gravação ou streaming sem a autorização explícita dos oradores viola os termos e condições da rede social.

Outro incidente ocorreu há poucos dias: a Clubhouse sofreu um ataque informático, o que resultou na disponibilização da informação relativa a 1,3 milhões de utilizadores em plena internet. Do que foi possível apurar, não foram revelados dados relativos a cartões bancários, moradas e emails. No entanto, a informação disponibilizada poderá facilitar ataques de phishing. A Clubhouse manifestou-se publicamente quanto a este assunto, afirmando que os dados disponibilizados já seriam públicos e poderiam ser consultados por qualquer utilizador através da aplicação.

Outro problema e desafio que a Clubhouse comporta relaciona-se com a facilidade de difusão de opiniões e informações, sem qualquer controlo por parte de um moderador associado à rede social – deste modo, será mais fácil a propagação de fake news, ódio, difamação contra utilizadores, teorias da conspiração, etc. O facto de as conversas não deixarem qualquer registo, após o encerramento de cada sala, implica que se os incidentes não forem reportados em tempo útil, não restem quaisquer provas que permitam reagir contra estes abusos.

Apesar destes incidentes, a questão mais relevante que cumpre analisar prende-se com o seguinte: se um utilizador quiser convidar amigos a utilizar a aplicação, terá de autorizar o acesso da aplicação à sua lista de contactos. Se não autorizar este acesso, o utilizador poderá continuar a utilizar a aplicação, mas ser-lhe-á relembrado constantemente através de uma notificação de que ainda não deu tal permissão.

Importa agora analisar a Política de Privacidade da Clubhouse, através de uma visão guiada pelo Regulamento Geral de Proteção de dados (RGPD). Na política de privacidade consta que a rede social recolhe dados fornecidos pelo utilizador titular de dados quer quando este acede à rede social, quer quando este a utiliza, criando ou partilhando conteúdos e comunicando com outros utilizadores da rede, o que é algo normal e necessário à execução do contrato, ou seja, de acordo com o art. 6.º, nº 1, alínea b), do RGPD, estamos perante um tratamento válido e lícito. Além do tratamento ser válido e lícito, também a questão dos deveres de informação é cumprida, pois aplica-se o artigo 14º, uma vez que a pessoa que recebe o convite recebe todas as informações necessárias sobre o tratamento de dados, os seus direitos, prazos de conservação. Supõe-se também que se o titular de dados não aceitar o convite num certo período de tempo, o Clubhouse deve apagar os dados utilizados nesta operação de tratamento (caso não lhe tenha sido dada autorização para o acesso contínuo à lista de contactos pelo utilizador). Releva ainda para a discussão o facto de na política de privacidade, no ponto relativo a Networks and Connections, a rede social menciona que, se o utilizador escolher dar permissão à aplicação para esta fazer o upload, sincronizar ou importar as informações da sua lista de contactos pessoais, esta poderá ser utilizada para “melhorar a experiência do utilizador em vários aspetos”, notificando-o quando um dos seus contactos se junte à rede social e utilizando a lista de contactos para recomendar outros utilizadores que possa querer seguir e recomendando, por sua vez, a sua conta a outros utilizadores.

Dado o exposto, se a aplicação requer que o utilizador dê permissão para que a mesma possa aceder à sua lista de contactos, estaremos já perante outra base de licitude, que será o consentimento, ou seja, sem o consentimento do utilizador titular de dados, a rede social não poderá ter acesso a esta informação (art. 6º, n.º 1, alínea a), do RGPD). Levantam-se aqui várias questões: em primeiro lugar, existem queixas de utilizadores que não deram permissão e mesmo assim a aplicação teve acesso aos dados das suas listas de contactos. Em segundo lugar, é suspeito e bastante invasivo um utilizador dar permissão para o acesso à sua lista de contactos à aplicação, e pessoas que nem sequer utilizam a aplicação veem os seus dados recolhidos e tratados pela Clubhouse sem terem dado o seu consentimento. Esta prática designa-se shadow profile.

Podemos concluir que, apesar de esta não aceitação da permissão de acesso à lista de contactos por parte do utilizador não afetar o funcionamento e utilização da rede social por parte do mesmo, este não poderá disfrutar da experiência completa da rede social, uma vez que será mais difícil encontrar e conectar-se com os seus amigos e familiares e, além disso, também não poderá enviar os seus dois convites disponibilizados inicialmente, o que criará entraves à socialização com amigos, que é o verdadeiro objetivo da rede social. Todavia, a autorização que o titular de dados dá para o acesso da aplicação à lista de contactos não se trata de um verdadeiro consentimento para o tratamento, na medida em que o utilizador não é o titular destes dados, devendo tratar-se de uma imposição dos termos de serviço do IOS e da App Store da Apple. Esta autorização dada pelo utilizador vai de encontro ao princípio da transparência e lealdade do RGPD, sendo que até pode ser considerada como uma oportunidade dada ao utilizador de exercer o direito de oposição.

Em março, surgiu uma atualização para tentar colmatar esta e muitas outras questões e falhas, sobretudo no que se refere à encriptação. No entanto, as queixas mantêm-se. Aguardemos o desenrolar da situação.

Regulamento Europeu relativo à Inteligência Artificial – divulgação antecipada (leaked draft)

Doutrina

A Comissão Europeia vai anunciar brevemente, provavelmente durante a próxima semana, a Proposta de Regulamento relativo à Inteligência Artificial que tem estado a preparar. A propósito da divulgação antecipada pelo Politico de um draft daquela Proposta, acessível aqui, já se encontram notícias muito concretas sobre o assunto.

Na senda da adoção de Regulamentos que vem caraterizando a União Europeia, principalmente no que à denominada Economia Digital diz respeito, já analisada neste blog, mais uma vez o instrumento preferido pela União é aquele que, com maior rapidez e a possível eficácia, faz chegar regras semelhantes a todos os Estados-Membros.

Este diploma vem coroar um esforço, que vai longo e intenso, no sentido de a UE procurar dominar esta força, aparentemente descontrolada, que se tem vindo a revelar ser o alastramento da utilização de inteligência artificial na análise de volumes astronomicamente crescentes de big data, que todos nós produzimos, com entusiasmo ou enfado, quando vamos usando e abusando de dispositivos eletrónicos, principalmente de smartphones e que se junta aos dados produzidos por todas as outras fontes, em permanência, de que se destacam a denominada Internet das Coisas, a omnipresente vigilância através de câmaras espalhadas em espaços públicos e privados e o GPS que nos mantém um pequeno boneco desarticulado nos mapas virtuais.

Esse esforço tem sido reportado e analisado neste blog, principalmente aqui e aqui, em relação à Estratégia para a inteligência Artificial (Artificial Intelligence – AI), aos trabalhos do Grupo de Peritos especificamente criado neste âmbito (AI HLEG), à criação da European AI Alliance (EAIA), do Livro Branco sobre a inteligência artificial e do Relatório sobre as implicações em matéria de segurança e de responsabilidade decorrentes da inteligência artificial, da Internet das Coisas e da robótica, bem como ao nascimento do ALLAI, tudo com vista à criação e operacionalização de uma AI confiável.

Passo de gigante será o Regulamento que enquadra juridicamente o tema e que estará a chegar.

De acordo com o draft divulgado, o diploma vai ter 92 considerandos, 69 artigos e 8 anexos.

A estrutura apresentada é a seguinte: Título I de “General Provisions”, Titulo II relativo a “Prohibited Artificial Intelligence Practices”, Título III que regula os “High-Risk AI Systems”, (para os quais estabelece requisitos e obrigações específicas, os “Notified Bodies” e os “Conformity Assessment, Standards, Certificates, Registration”), Título IV relativo à “Transparency Obligations for Certain Other AI Systems”, Título V estabelecendo as “Obligations For The Use Of Remote Biometric Identification Systems”, Título VI as “Measures In Support Of Innovation”, o Título VII a “Governance” (criando o artigo 47.º um “European Artificial Intelligence Board”), o Titulo VIII a “Eu Database For High-Risk Ai Systems”, Título IX a “Post-Market Monitoring, Information Sharing, Market Surveillance”, Título X os já habituais Códigos de Conduta, Título XI “Confidentiality And Penalties”, criando as também já habituais sanções astronómicas, Título XII os “Delegated Acts & Comitology” (maravilhoso termo que talvez se possa traduzir pelo correspondente nacional não menos delicioso “Comitologia”, que mostra muito daquilo em que se tornou a UE), fechando com o Título XIII de “Final Provisions”.

Deixamos o resumo e acesso ao draft leaked, para abrir o apetite e ficaremos atentos à divulgação oficial do texto final que se espera para muito breve, altura em que haverá oportunidade de se verificar se o draft divulgado antecipadamente corresponde à versão que virá a ser oficialmente anunciada. Tarefa comparativa completamente talhada para uma AI.

As bases enferrujadas do comércio global: o que o navio encalhado no Canal de Suez revelou ao mundo

Doutrina

O ano é 2021. Na mesma esfera da pauta em que se destacam a inteligência artificial, a teoria da singularidade, a manipulação de dados voltada ao direcionamento do consumo e um exponencial crescimento da dependência e importância da tecnologia na vida humana, a sociedade global foi recentemente surpreendida por um incidente que, em última análise, serviu para expor as fraquezas de um sistema de consumo e circulação de bens que apresenta bases que parecem enferrujar.

No dia 23 de março deste ano, o mundo assistiu o navio porta-contentores “Ever Given”, um dos maiores do mundo, com seus quase 400 metros de comprimento (equivalente à altura do Empire State Building) e suas 219 toneladas encalhar, nada mais, nada menos, que no Canal de Suez, localizado no Egito, bloqueando por completo o tráfego de uma das zonas mais importantes para o comércio marítimo mundial[1], que funciona como a ligação naval mais rápida entre o oceano Índico e o mar Mediterrâneo, e daí ao Atlântico, isto é, entre a Ásia e Europa.

O tema, globalmente noticiado, veio a resultar para além dos infindáveis prejuízos ao comércio internacional – e que ainda suscitam discussões contratuais e securitárias, em perdas económicas diárias situadas entre seis mil milhões e dez mil milhões de dólares[2], conforme informado pela seguradora Allianz. Nesta semana, por sua vez, fora então divulgada a decisão do Egito de não liberar o navio até que uma multa de mil milhões de dólares seja paga com fim de compensar os danos resultantes do período de bloqueio.

          O valor exigido pelo Egito para liberação do navio seria, em princípio, calculado com base na perda de taxas de uso do canal perdidas depois que diversos outros navios desviaram a rota, dando a volta pela África do Sul. Além disso, há os danos causados à hidrovia durante a drenagem, os esforços de retirada do cargueiro e os custos com equipamentos e materiais. Vale ressaltar, ainda, que no momento da liberação do EverGiven, havia 422 navios na fila de espera para realizar a passagem pelo Canal[3].

          Não bastassem todas as dificuldades logísticas, resultantes das circunstâncias da pandemia de Covid-19, vimos a rota por onde passam de 10 a 12% do mercado mundial ser interrompida pelo resultado de mais uma ação da natureza, como a baixa na maré da região, e a revelação do quão despreparado o mundo parece estar para estas ações.

          O tema, portanto, é só mais uma demonstração da precariedade das estruturas que fundam a economia mundial e o comércio internacional.  O sistema de fabricação “just-in-time”, voltado à redução de custos e aumento de lucros, em que estoques são evitados como forma de também evitar-se o dispêndio de dinheiro, sob a escusa de as empresas terem a circular por todos os cantos insumos suficientes para a produção de todo e qualquer produto, não mais que “de repente”, mostrou suas fragilidades inerentes.

          Nenhuma tecnologia industrial, digital, e nem mesmo a internet foi capaz de resolver o impasse que bloqueou a navegação global e que colocou em xeque a circulação internacional de bens. Da mesma forma, recentemente, diferentes indústrias têm assistido, em desespero, a falta de insumos para produção das vacinas contra o vírus da COVID-19. Isso para não adentrar na deflagrada falta de materiais hospitalares, incluindo máscaras e luvas, em diferentes países e sistemas de saúde do mundo.

          O fato de especialistas em resgate levarem quase uma semana para liberar o navio Ever Given do Canal de Suez, após utilização de drenagem, máquinas e operações de reboque, não vem só reafirmar a fragilidade humana perante incidentes naturais ou casuísticos, como também vem expor de forma clara a fragilidade dos pilares em que se fundam a circulação de bens no comércio internacional, envolvendo não somente diferentes indústrias, mas, acima de tudo, milhares de milhões de consumidores.

          Os diferentes modelos de gestão idealizados para um exponencial aumento de lucros, bem como a contante busca pelo modelo de produção rápida e especializada, evidentemente mudou também o eixo de como consumimos, ou ainda mais a velocidade com que podemos ter à nossa disposição produtos vindos de todo o mundo. O grande exemplo, como no caso da ascensão dos navio porta-contentores, em que caixas de ferro são empilhadas para otimizar o transporte ultramarino, fez aumentar drasticamente a disponibilidade de produtos de consumo a baixos custos e preços.

Ainda que não se abordem aqui as respostas aos problemas postos, o NOVA Consumer Lab tem a missão de observar o comportamento do consumo e do consumidor, bem como de problematizar esses mesmos progressos que geraram vulnerabilidades na organização da atividade mundial. E é neste momento que é preciso questionar se nossos esforços estão, mesmo que minimamente, debruçados sobre os pontos corretos e nossos olhares atentos aos problemas reais.

Como muito bem colocado pelo professor de globalização na Universidade de Oxford, Ian Goldin, “conforme nos tornamos mais interdependentes, somos ainda mais submetidos às fragilidades que surgem, e elas são sempre imprevisíveis (…) Ninguém poderia prever que um navio encalharia no meio do canal, como ninguém previu de onde viria a pandemia. Como não podemos prever o próximo ciberataque, ou a próxima crise financeira, mas sabemos que vão acontecer”[4].


[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/entenda-por-que-o-canal-de-suez-e-tao-importante.shtml?origin=folha

[2] https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/navios-ja-comecaram-a-atravessar-o-canal-do-suez

[3] https://www.reuters.com/article/egito-canaldosuez-idLTAKBN2BQ0GW

[4] https://www.euronews.com/2021/04/06/firms-must-store-more-to-avoid-shocks-to-global-supply-chain-says-mep

FIFA World Cup Qatar 2022: a caminho de um boicote?

Doutrina

Morreram mais de 6.700 pessoas no Qatar desde que o país foi designado anfitrião do campeonato do mundo de futebol. Não foram umas pessoas quaisquer e não foi numas circunstâncias quaisquer. Foram trabalhadores migrantes provenientes da Índia, do Bangladesh, do Nepal, do Sri Lanka e do Paquistão, e o número divulgado pelo The Guardian nem inclui a mão-de-obra proveniente de países como o Quénia e as Filipinas[1]. São sempre os mesmos.

Problema número um: os registos de óbito não especificam o local de trabalho dos falecidos, muito embora Nick McGeehan (diretor da FairSquare Projects) assegure que “uma proporção muito significativa dos trabalhadores migrantes que morreram desde 2011 estava no país apenas porque o Qatar obteve o direito de receber o Mundial de Futebol”[2].

Se os registos não especificam se morreram na construção de infraestruturas para o Mundial do Futebol, então não temos um problema. Exceto se, de repente, a Noruega aparecer com uma t-shirt estampada com o slogan “Human Rights: on and off the pitch” no jogo contra Gibraltar e ainda ganhar 3-0. Aí começam a surgir dúvidas acerca da veracidade da “causa natural” de 69% das mortes de indianos, nepaleses e bangladeshianos no Qatar.

Já em 2013 a Amnistia Internacional expusera a “exploração alarmante” dos trabalhadores estrangeiros no Qatar, afirmando que estes são “tratados como animais”[3]. Em 2016, nova investida sobre o lado feio do jogo bonito[4]. E nada. Perante várias pressões mediáticas, o Qatar anunciou um programa de proteção e garantia de bem-estar e agora, em 2021, os organizadores do evento assinam um memorando de entendimento com a CNDH. Atempado é que não foi.

Vários clubes noruegueses apoiam um boicote ao Mundial. 55% dos noruegueses são favoráveis a um boicote ao Mundial. A Alemanha, a Dinamarca e a Holanda já se juntaram ao movimento. Outros estão a caminho. Que parece em curso uma campanha articulada de boicote por parte das grandes estruturas, já não há grandes dúvidas. As acusações de sportwashing a isso obrigam, mas já obrigavam antes. Nesta cadência, as consequências não serão bonitas para o futebol: milhões de euros investidos em vão, milhares de promessas rompidas, algumas carreiras prejudicadas. Mas, sobretudo, milhares de vidas perdidas até agora e outras tantas com a sua atividade dispensada daqui para a frente.

Resta agora saber se também o público se juntará ao movimento. Não será surpreendente que o comportamento de boicote se torne viral, sobretudo se içado pelos sonantes nomes da indústria do futebol. No entanto, o público adepto da modalidade não tem contornado a devoção perante os múltiplos escândalos que estoiram permanentemente na área (e isto nem é um trocadilho). Talvez só mesmo a ausência das principais estrelas da modalidade poderiam justificar o desinteresse do público, o que, em teoria, nunca seria um verdadeiro boicote por parte do consumidor.

Também não será surpreendente o seu reverso, marcado pela já conhecida indiferença pelo fenómeno da violação de direitos humanos, conduzindo, sem qualquer rasgo de perturbação, o público ao estádio e ao comando. Tudo dependerá do eco que o movimento vai recolher, como já temos sido habituados. De todo o modo, é até inteligível a interrogação dos que não venham a compreender o que tem o futebol a ver com trabalhadores migrantes, dos que venham a não conceber que a perversa máquina por trás dos relvados, sempre tão bem regados a cifrões, desta vez encerre em si vidas dos seus iguais.

Qualquer um dos desfechos será agonizantemente hipócrita. Como bem referiu Håvard Melnæs, “não deveria Martin Ødegaard, ao protestar contra a exploração dos trabalhadores no Qatar, fazer o mesmo contra o patrocinador mais importante do seu clube, os Emirados Árabes Unidos, que trata os seus trabalhadores migrantes da mesma forma ou talvez pior do que o Qatar?”[5].

Não deixa nem por isso de ser curioso que a iniciativa venha do clube norueguês Tromsø, do Círculo Polar Ártico. Talvez lá de cima se veja melhor o panorama (do) mundial.


[1] https://www.theguardian.com/global-development/2021/feb/23/revealed-migrant-worker-deaths-qatar-fifa-world-cup-2022

[2] https://www.business-humanrights.org/en/latest-news/qatar-guardian-investigation-finds-6500-migrant-workers-have-died-in-world-cup-host-country-since-2010/

[3] https://www.amnesty.org/download/Documents/16000/mde220102013en.pdf

[4] https://www.amnesty.org/en/documents/mde22/3548/2016/en/

[5] https://www.theguardian.com/commentisfree/2021/mar/30/norway-boycott-qatar-world-cup-football

A proteção dos consumidores no texto constitucional em vigor

Doutrina

Em dois textos anteriormente publicados neste blog (aqui e aqui), analisou-se a evolução histórica da Constituição em matéria de consumo. Foi possível então verificar que a proteção dos consumidores foi entrando gradualmente na Constituição, tendo hoje um espaço com uma amplitude assinalável.

Começando por aspetos gerais, constituem hoje incumbências prioritárias do Estado, além de assegurar o funcionamento dos mercados, reprimindo as práticas lesivas do interesse geral, também “garantir a defesa dos interesses e dos direitos dos consumidores” (alíneas f) e i) do art. 81.º), sendo mesmo “a proteção dos consumidores” um dos objetivos da política comercial (alínea e) do art. 99.º).

A Constituição estabelece como tarefas fundamentais do Estado, entre outras, “garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático” (alínea b) do art. 9.º) e “promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais” (alínea d) do art. 9.º). Em concreto, e referindo para já apenas os direitos que são conferidos em geral, independentemente da natureza de consumidor da parte protegida, citamos as principais normas: “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” e “todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade” (art. 20.º-1 e 2); “o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis” (art. 34.º-1); “todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua retificação e atualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei”, e “a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis” (art. 35.º-1 e 3); “os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações [incluindo de consumidores], desde que estas não se destinem a promover a violência e os respetivos fins não sejam contrários à lei penal”, e “as associações [incluindo as de consumidores] prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas atividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial” (art. 46.º-1 e 2); “todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou coletivamente, […] petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral […]”, sendo também “conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização” (art. 52.º-1 e 3); “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão […], nos termos da Constituição” (art. 62.º-1).

Embora se discuta a sua natureza jurídica, nomeadamente o seu caráter de direito fundamental, inclui-se também na lista anterior o princípio contido no art. 13.º. Este preceito, depois de enunciar que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” (n.º 1), concretiza no sentido de que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual” (n.º 2). O artigo 26.º-1-in fine acrescenta ainda que a todos é concedido o direito “à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

Por fim, a Constituição da República Portuguesa contém atualmente uma norma – o art. 60.º – que atribui determinados direitos – atente-se na epígrafe do artigo: “Direitos dos consumidores” – a todos aqueles que numa determinada relação atuem como consumidores. O n.º 1 contém o elenco dos direitos que a Constituição considera mais relevantes, atribuindo-os aos consumidores individualmente considerados: direito à qualidade dos bens e serviços, direito à formação, direito à informação, direito à proteção da saúde e da segurança, direito à proteção dos interesses económicos e direito à reparação de danos.

A norma parece agrupar os direitos à formação e à informação num só direito, o mesmo sucedendo com os direitos à proteção da saúde, da segurança e dos interesses económicos. Entendemos, no entanto, que se trata de direitos que, pela sua singularidade, devem ser referidos de forma isolada. Apenas mantemos a associação dos direitos à saúde e à segurança.

O n.º 3 atribui direitos aos consumidores, embora não diretamente, mas através das associações de consumidores e das cooperativas de consumo: direito ao apoio do Estado, com vista à prossecução dos fins destas entidades, que passa pela garantia dos direitos dos consumidores, direito “a ser ouvidas sobre as questões que digam respeito à defesa dos consumidores” e direitos processuais especiais relacionados com a defesa dos associados ou de interesses coletivos ou difusos.

O n.º 2 trata da publicidade, uma problemática que vai além da proteção dos consumidores, embora o seu centro de relevância se encontre neste âmbito. A norma proíbe “todas as formas de publicidade oculta, indireta ou dolosa”.

O art. 60.º da CRP tem cariz essencialmente programático, embora alguns autores reconheçam a aplicabilidade direta às relações jurídicas de consumo de parte dos direitos consagrados no preceito[1].

Em relação à exigência de qualidade, defende-se que, além do seu sentido programático, o preceito constitui elemento de interpretação de contratos de consumo, determinando o nível de qualidade da prestação. Em caso de dúvida sobre o objeto do contrato, por terem sido utilizados termos vagos ou referências genéricas, deve ter-se em conta a necessidade de interpretação do clausulado no sentido de o bem ou serviço ser de boa qualidade. Em regra, o recurso a este elemento de interpretação é mais relevante quanto menos elementos concretos forem definidos contratualmente pelas partes, o que sucede em grande medida quando se remete a determinação da prestação para momento posterior.


[1] Diovana Barbieri, “The Binding of Individuals to Fundamental Consumer Rights in the Portuguese Legal System”, 2008, in ERPL, Vol. 16, n.º 5, 2008, pp. 676 e 677.

Internet of Brains (IoB) – a nova conexão

Doutrina

Quando algo toma conta da realidade, se espalha por todo o lado, domina e baseia muito do que passa a ser feito, tornando-se um dado tão adquirido que já nem se nota – como a eletricidade, a água, as estradas – usamo-lo como tal, não reparando no quanto nos torna dependentes, nos formata e nos transforma inexoravelmente.

A internet, juntamente com a Big Data e Inteligência Artificial (Artificial Intelligence – AI), têm tido um desenvolvimento extraordinário nos últimos anos e paulatinamente, vêm tomando conta das nossas coisas (Internet of Things – IoT), das nossas vidas (Internet of Everything – IoE) e, mais recentemente, dos nossos cérebros naquilo que poderá vir a ser denominado Internet of Brains (IoB).

O desenvolvimento da inteligência biológica e da AI tem andado a par, juntando em projetos comuns, parceiros ou colaborantes, cientistas da área das neurociências e das ciências da computação, a que se agregam os imprescindíveis conhecedores da física, da matemática, da química, da engenharia, da psicologia. Só em grandes grupos multidisciplinares é possível ir tentando tomar conta das várias partes, procurando não perder a noção do todo, em algo que a milenar parábola sobre os cegos e o elefante tão bem ilustra.

É assim que aceitamos, sem reparar, que o telemóvel se tornou uma extensão de nós, ou nós dele, que nos é sugerido, sistematicamente, o que ver, fazer, comer, onde ir e por onde ir, que em vez de nos guiarmos pelas estrelas, nos deixamos guiar por aplicações baseadas em geolocalização que, mais centímetro, menos centímetro, nos mostram num mapa levando-nos de um ponto a outro por onde consideram melhor, ou por onde lhes pagaram para considerarem melhor, ou quem sabe se aleatoriamente, coisas de que suspeitamos quando calha conhecermos o caminho e sermos encaminhados absurdamente.

Também não reparamos que estamos a aceitar que os dispositivos eletrónicos nos sugiram o que responder a correio eletrónico ou a mensagens mais instantâneas, bastando para tal um click, um toque no ecrã ou uma ordem de voz. Por exemplo, insistem “Parabenize” fulano, seja lá isso o que for. Se carregarmos, vemo-nos a escrever “Congrats!” ou Parabéns com um monte de emogis extremamente esfusiantes acoplados, totalmente desapropriados para a longínqua relação profissional ou nem isso que (não) temos com a pessoa a quem estamos “ligados” online.

Assim como damos como adquirido o corretor automático, que todos os dias nos “desensina de” escrever, habilidade que tão trabalhosamente fomos adquirindo ao longo de muitos anos de ditados e trabalho árduo e que se tornou praticamente desnecessária. Dispositivos eletrónicos de várias espécies corrigem os erros que damos, o que agradecemos, mas também os que não damos, transformando poesia em jargão de rua.

É preciso uma atenção redobradíssima, uma diligência muito acima de um homem médio, de um bonus pater famílias – ou como hoje se usa “homem/mulher médio(a)” e “pater/mater” – para conseguir manter em níveis de decência aceitáveis as comunicações online.

O pano de fundo em que tudo se passa é o das comunicações.

É neste plano que cientistas de várias áreas criaram o BrainNet, que expõem em artigo publicado, em abril de 2019, na revista Nature.

A ideia é três pessoas com os cérebros ligados através da internet jogarem, em colaboração, uma espécie de Tetris simplificado. Começam por explicar que “Direct brain-to-brain interfaces (BBIs) in humans are interfaces which combine neuroimaging and neurostimulation methods to extract and deliver information between brains, allowing direct brain-to-brain communication”.

Na sua experiência, o objetivo é que uma peça seja virada  ou não, o que for mais eficaz para que se venha a formar uma linha. Duas pessoas (Senders) estão a ver a peça no ecrã e a terceira, que vai tomar a decisão, não a vê (Receiver). Os Senders enviam informação ao Receiver, através de comunicação cérebro-a-cérebro, este recebe-a e toma a decisão. Até aqui tudo relativamente clássico, dentro do género, claro.

O que é feito a seguir, embora pareça e seja lógico, já me parece muito ousado, nomeadamente no que diz respeito à aproximação de investigações em inteligência biológica e artificial. É o seguinte: há uma segunda ronda em que os Senders enviam feedback sobre a decisão e o Receiver tenta melhorá-la.

A “retropropagação do erro” (Backpropagation – BP) é precisamente o modo mais eficaz e promissor de a AI aprender, treinando-se assim os algoritmos.

No essencial, na aprendizagem por reforço, estabelece-se o objetivo e deixa-se o sistema (Artificial Neural Nets – ANN) treinar e aprender, procurando a melhor forma de o alcançar.

No caso da AI, melhora se os humanos forem completamente retirados do processo como, por exemplo, a evolução no jogo Go demonstra. A versão melhorada do sistema, o AlphaGo Zero aprendeu a jogar Go, a partir do zero, chegando em três dias ao nível de campeão. O sistema ficou melhor quando inseriram simplesmente as regras básicas do jogo, sem informação sobre jogadas humanas que, conforme se verificou, constrangiam.

No final do século passado pensava-se que tal mecanismo não existia no funcionamento do cérebro biológico, mas a evolução do conhecimento parece ir noutro sentido.

Se pensarmos que os BBIs, que ligam cérebros biológicos através da internet, provavelmente sem fios, podem ligar(-se) a AI, vislumbramos um pouco daquilo em que estamos.

Os cientistas do BrainNet concluem: “Our results point the way to future brain-to-brain interfaces that enable cooperative problem solving by humans using a “social network” of connected brains.”, o que torna oficial e cientificamente demonstrada a telepatia.

É neste contexto científico, não de ficção científica, que o Direito positivo esbraceja e que o consumidor consome. Urge procurar caminhos, senão alternativos, pelo menos complementares.

Cursos e investimentos em mercados financeiros – Sinto-me enganado: e agora?

Doutrina

Talvez por força da pandemia, do desemprego, ou até da maior quantidade de tempo livre para a maioria das pessoas, nos últimos meses temos estado muito mais online.   

Por sua vez, aumentou o tempo passado nas redes sociais, onde alguns sortudos ostentam a sua vida luxuosa, que, segundo dizem, teve origem no sucesso no investimento em mercados financeiros. Confrontados com este estilo de vida à distância de um ecrã, muitos jovens viram-se aliciados com a ideia de começar a investir em mercados financeiros.

Foi assim que surgiu, entre muitos outros, um curso sobre criptomoedas, desenvolvido pela empresa de um conhecido youtuber, que tem gerado grande polémica nas últimas semanas, depois de o seu conteúdo ter sido exposto publicamente. Alguns dos alunos têm vindo a manifestar o seu descontentamento perante uma formação que tinha sido publicitada como “bastante completa e feita por especialistas, sendo o melhor curso do mercado” e que não correspondeu às expectativas. 

A questão que aqui me proponho resolver é, precisamente, a de saber quais os direitos que assistem a estes consumidores, tendo já sido abordada a dimensão penal deste problema neste blog.

Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março, regula a matéria das práticas comerciais desleais comerciais das empresas nas relações com os consumidores, ocorridas antes, durante, ou após uma transação comercial relativa a um bem ou serviço (art. 1.º).

Quanto à sua aplicabilidade ao caso concreto, os destinatários do curso preenchem o conceito de consumidor previsto no art. 3.º-a), também não havendo dúvidas de que a empresa que o promoveu preenche o conceito de profissional, descrito no art. 3.º-b. ). Com efeito, o youtuberexerce profissionalmente esta atividade.  

Também o elemento objetivo está preenchido, na medida em que a ação levada a cabo se insere no conceito de prática comercial do art. 3.º-d). 

Sendo aplicável este diploma, estabelece o art. 4.º que são proibidas as práticas comerciais desleais, concretizando-se este conceito nos arts. 5.º (práticas comerciais desleais em geral) e 6.º (práticas comerciais desleais em especial). 

O art. 6.º-b) remete para o art. 7.º, que nos indica quais são as ações suscetíveis de constituir uma prática enganosa, subcategoria de prática comercial desleal.

Ora, estatui o art. 7.º-1 que as práticas comerciais enganosas são aquelas que induzam ou sejam suscetíveis de induzir em erro o consumidor sobre um dos elementos descritos nas alíneas seguintes. Em especial, foquemo-nos na alínea b), que se refere às principais características do bem ou serviço, tais como as suas vantagens, ou os resultados que podem ser esperados da sua utilização. 

Neste caso, algumas das queixas recebidas a propósito do curso referiam-se ao facto de uma parte do seu conteúdo corresponder a uma cópia de informações que podem ser encontradas em sitespúblicos, não parecendo que o mesmo tenha sido feito por profissionais, como havia sido publicitado. A este propósito, relembre-se ainda o art. 22.º do Código da Publicidade,que impõe que aos cursos sem reconhecimento oficial seja feita essa menção expressa.

Não tendo tal sucedido, e parecendo haver informações sobre as vantagens do serviço que são falsas ou, mesmo que factualmente corretas, suscetíveis de conduzir o consumidor a tomar uma decisão de transação que não teria tomado de outro modo, considero que temos uma prática comercial desleal, à luz dos arts. 6.º e 7.º-1-b) do referido Decreto-Lei. 

Assim, estes contratos são anuláveis a pedido do consumidor, ao abrigo do art. 14.º, que remete para o art. 287.º do Código Civil. Quer isto dizer que o consumidor terá direito à reposição da situação anterior à celebração do contrato, produzindo a anulação do negócio efeitos retroativos, nos termos do art. 289.º do Código Civil. 

Concluindo, o investimento em mercados financeiros é aliciante e a procura por formação capaz de tornar qualquer cidadão num investidor de sucesso é cada vez maior, tornando-se urgente uma maior regulamentação e formação da população em geral quanto a este tema, que tem tanto de fascinante quanto de perigoso. 

Os consumidores na Constituição: de 1989 em diante

Doutrina

aqui se escreveu recentemente sobre o papel dos consumidores e da sua proteção na versão originária da Constituição de 1976 e na primeira revisão constitucional. Hoje concluímos esta análise histórica, descrevendo brevemente a evolução posterior, resultante das revisões constitucionais subsequentes.

A Lei Constitucional n.º 1/89, que aprovou a segunda revisão da Constituição, completou o caminho que havia sido iniciado pela revisão anterior rumo à atribuição de direitos aos consumidores.

O art. 32.º desta Lei Constitucional aditou o art. 60.º, com a epígrafe “Direitos dos consumidores”, que correspondia aproximadamente ao anterior artigo 110.º, com a diferença do aditamento do “direito à qualidade dos bens e serviços consumidos”. A principal novidade consistia na localização privilegiada deste art. 60.º, na parte da Constituição da República Portuguesa dedicada aos direitos fundamentais, embora no título relativo aos direitos económicos, sociais e culturais. Pode, assim, dizer-se que, com a revisão de 1989, se deu a fundamentalização dos direitos dos consumidores.

Com relevância significativa para os consumidores, foi ainda aditado à Constituição um novo art. 102.º, que definiu os objetivos da política comercial, incluindo especificamente entre esses objetivos “a proteção dos consumidores” (alínea e)).

Esta revisão constitucional também alterou os arts. 35.º (que aborda a problemática da utilização da informática), 52.º (com a alteração da epígrafe para “Direito de petição e direito de ação popular”) e 81.º-e) (eliminando a expressão “através de nacionalizações ou outras formas”), renumerou o art. 84.º, que passou a art. 86.º, e eliminou os arts. 109.º e 110.º.

Quanto ao art. 52.º, a epígrafe foi alterada nas duas primeiras revisões constitucionais: na versão originária, era “Direito de petição e ação popular”; depois da primeira revisão, passou a “Direito de petição e de ação popular”; e, na sequência da segunda revisão, ficou “Direito de petição e direito de ação popular”, epígrafe que ainda se mantém. Note-se que se trata de uma valorização progressiva da ação popular. Na versão originária, não tinha, face à epígrafe, o caráter de direito, na versão da primeira revisão, passou a ter o caráter de direito, mas abrangido na categoria mais ampla do direito de petição e de ação popular (parece tratar-se de um direito apenas), enquanto, na segunda revisão, manteve-se como direito, mas já autonomizado do direito de petição. A norma atribui, assim, dois direitos: um direito de petição e um direito de ação popular. Esta conclusão já teria de resultar de uma interpretação adequada da versão originária, pelo que nos parece que se trata apenas de uma curiosidade linguística.

A terceira revisão constitucional, que procurou adaptar a Constituição da República Portuguesa à União Europeia, não produziu alterações diretas ao nível da posição dos consumidores.

A Lei Constitucional n.º 1/97 (quarta revisão constitucional), pelo contrário, procedeu a alterações pontuais mas relevantes no que respeita à temática em análise. A exceção é o artigo 35.º da Constituição, que sofreu uma profunda remodelação, certamente originada pela massificação da utilização da informática e a consequente multiplicação de situações de tratamento de dados dos cidadãos.

Além desta alteração, deve destacar-se a inclusão expressa dos direitos dos consumidores entre os bens jurídicos que podem ser objeto de uma ação popular em caso de infração – art. 52.º-3-a). Embora no texto anterior já se pudesse concluir que os direitos dos consumidores estavam abrangidos pelo espírito da norma, especialmente dado o caráter exemplificativo da lista de bens enunciada, a sua inserção na letra do preceito retirou qualquer dúvida que se pudesse colocar.

O n.º 3 do artigo 60.º também foi alterado, tendo sido acrescentada aquela que ainda hoje constitui a parte final do preceito: “sendo-lhes [às associações de consumidores e às cooperativas de consumo] reconhecida legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos”.

Igualmente relevante, embora simbolicamente, foi a alteração da redação da alínea j), que passou a constituir a alínea h) e a estabelecer como incumbência prioritária do Estado, já não a proteção do consumidor, mas a garantia da defesa dos interesses e dos direitos dos consumidores. Assim, o Estado passa a estar diretamente vinculado à defesa dos direitos dos consumidores.

Refira-se ainda que os arts. 86.º e 102.º passaram, respetivamente, a 85.º (cooperativas) e 99.º (objetivos da política comercial). Das quinta, sexta e sétima revisões constitucionais, apenas a sexta, aprovada pela Lei Constitucional n.º 1/2004, atingiu as normas referidas neste post e no anterior sobre o tema, embora com pouca profundidade: acrescentou a orientação sexual ao elenco dos fatores de discriminação previstos no n.º 2 do art. 13.º, veio admitir a apresentação de petições também a órgãos das regiões autónomas (art. 52.º-1 e 2) e alterou a numeração do art. 81.º, passando as alíneas e) e h) a f) e i), respetivamente.