Louis Brandeis, ex-juiz do Supreme Court dos Estados Unidos da América e defensor ativo da justiça social, dos direitos dos consumidores e da responsabilidade corporativa, conhecido por “the people’s Lawyer”, em determinado momento referiu que “[o] cargo político mais importante é o de cidadão comum”.
Brandeis foi um dos primeiros juristas a denunciar abusos das grandes empresas e a defender o direito dos consumidores à informação e à proteção contra práticas abusivas. Este juiz defendia que o envolvimento individual era crucial para garantir uma democracia saudável e justa e, talvez fruto desse contexto, surgem, mais tarde, as ações coletivas de consumidores.
As referidas ações permitem a defesa conjunta de direitos ou interesses homogéneos de um grupo de consumidores, sendo um instrumento jurídico importante de garantia de direitos e tutela efetiva e dissuasora das infrações ao direito do consumo.
Em Portugal, as ações coletivas surgem pela primeira vez na Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 52.º, n.º 3, al. a) sendo posteriormente consagradas na Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, que regula o direito de participação procedimental e de ação popular, abrangendo diversos interesses, entre eles o relativo ao consumo de bens e serviços.
A mencionada Lei consagra um regime de representação processual por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, em que o autor representa todos os demais titulares dos interesses em causa que não tenham exercido o direito de autoexclusão (opt-out). A Lei prevê ainda um regime especial de custas, de recolha de provas e de responsabilidade civil e penal.
Este regime nacional foi complementado pelo Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2020/1828 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020, relativa a ações coletivas para proteção dos interesses coletivos dos consumidores. Esta diretiva visa harmonizar e reforçar os meios processuais para proteção dos interesses coletivos dos consumidores na União Europeia, assegurando a existência de, pelo menos, um mecanismo processual de ação coletiva eficaz e eficiente em todos os Estados-Membros.
O Decreto-Lei n.º 114-A/2023 trouxe mudanças significativas para as ações coletivas no âmbito do direito do consumo em Portugal, alinhando a legislação nacional com a Diretiva (UE) 2020/1828. Entre as principais novidades, destacam-se critérios mais rigorosos para associações e fundações que pretendam representar consumidores em tribunal, exigindo independência, transparência no financiamento e ausência de conflitos de interesses. A Direção-Geral do Consumidor assume um papel central, sendo responsável pela designação das entidades qualificadas e pela comunicação com a Comissão Europeia e outros Estados-Membros.
Outra inovação importante é a possibilidade de entidades estrangeiras, reconhecidas noutros países da União Europeia, intentarem ações coletivas em Portugal, e vice-versa. Para proteger consumidores não residentes, o regime opt-in foi adotado, exigindo manifestação expressa de vontade para serem representados em processos transfronteiriços. O Decreto-Lei n.º 114-A/2023 também regula o financiamento por terceiros, impondo limites à remuneração dos financiadores e proibindo situações de dependência ou concorrência entre financiador e demandado.
Como já é apanágio da área do direito do consumo, o referido diploma incentiva a resolução extrajudicial de conflitos, obrigando a uma consulta prévia ao profissional antes de recorrer ao tribunal para medidas posteriores. Além disso, estabelece um regime especial de prescrição, facilitando o acesso dos consumidores à justiça ao interromper prazos enquanto decorrem as ações coletivas. Ademais, as regras sobre indemnizações foram clarificadas, prevendo critérios para identificação dos lesados, distribuição proporcional dos valores, assim como para destinação dos montantes não reclamados.
Por fim, o Decreto-Lei n.º 114-A/2023 reforça a transparência e a divulgação das ações coletivas, obrigando à publicação das decisões e à prestação de informações detalhadas tanto pelos demandantes como pela autoridade competente. Isenta, também, consumidores e associações de custas processuais e prevê sanções para incumprimento das decisões judiciais. Estas medidas visam tornar as ações coletivas mais acessíveis, eficazes e transparentes, promovendo uma maior proteção dos direitos dos consumidores em Portugal.
A jurisprudência recente tem vindo a ilustrar, de forma concreta, o impacto do Decreto-Lei n.º 114-A/2023 na prática das ações coletivas em Portugal, destacando-se algumas particularidades. No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de março de 2025, Processo n.º 5623/23.7T8BRG.S1 (Relatora: Catarina Serra), o tribunal valorizou a autonomia das ações populares face ao processo penal, sublinhando que o novo regime reforça a tramitação própria e a independência destas ações, mesmo quando envolvem ilícitos criminais ou contraordenacionais.
Já no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2024, Processo n.º 607/24.0T8GMR.G1.S1 (Relator: Jorge Leal), foi dada especial atenção à legitimidade das associações de consumidores e à necessidade de concretização dos pedidos e da causa de pedir, em linha com as exigências de transparência e rigor introduzidas pelo novo diploma.
Por sua vez, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30 de abril de 2025, Processo n.º 3106/23.4T8GMR.G2 (Relator: António Pereira), destacou a admissibilidade de pedidos de indemnização coletiva e a importância da correta identificação da entidade demandada, refletindo as preocupações do Decreto-Lei n.º 114-A/2023 quanto à clareza processual e à proteção efetiva dos lesados.
Além disso, os tribunais têm aplicado as novas regras sobre a publicação das decisões, a gestão e distribuição das indemnizações e a necessidade de transparência e independência das entidades demandantes, como se observa nos pedidos e decisões que remetem para a designação de entidades responsáveis pela administração dos montantes devidos aos lesados. O regime de financiamento por terceiros e a obrigatoriedade de consulta prévia ao profissional antes da propositura da ação também têm sido referidos como garantias adicionais de equilíbrio e boa-fé processual.
Em suma, pelo que podemos interpretar da jurisprudência recente, parece-nos que o Decreto-Lei n.º 114-A/2023 já está a ser utilizado como um instrumento legislativo fundamental para a efetivação dos direitos dos consumidores, promovendo maior segurança jurídica, transparência e eficácia nas ações coletivas em Portugal.
Henry David Thoreau, no seu grande ensaio “Desobediência Civil” referia que “[j]amais haverá um Estado realmente livre e esclarecido até que este venha a reconhecer o indivíduo como um poder mais alto e independente, do qual deriva todo seu próprio poder e autoridade, e o trate da maneira adequada”. Talvez as ações coletivas de consumidores, cada vez mais reguladas, possam vir a trazer resultados reais a este grupo de indivíduos e contribuir para o fortalecimento da sua posição perante o Estado e o mercado, promovendo uma efetiva proteção de seus direitos e interesses, ao mesmo tempo em que reafirmam o papel do indivíduo como fundamento e limite do poder coletivo.